O Passado,
The Bygone, 2019, Graham Phillips & Parker Phillips
30 Monedas,
Série de TV, 2020, Álex de la Iglesia
O Nome da
Rosa, Der Name der Rose, 1986, Jean-Jacques Annaud
Szürkület, O
crepúsculo, 1990, György Fehér
As Aranhas,
Die Spinnen, 1. Teil - Der Goldene See, 1919, Fritz Lang
As Aranhas -
Parte 2, Die Spinnen, 2. Teil - Das Brillantenschiff, 1920, Fritz Lang
Animais
Noturnos, Nocturnal Animals, 2016, Tom Ford
A Vingança
de Ulzana, Ulzana's Raid, 1972, Robert Aldrich
Ela Disse,
She Said, 2022, Maria Schrader
Monsieur
Verdoux, 1947, Charles Chaplin
Madame Bovary,
1991, Claude Chabrol
Saltburn,
2023, Emerald Fennell
Kingdom:
Unmei no Hono, 2023, Shinsuke Sato
Cria Corvos,
Cría cuervos, 1976, Carlos Saura
Lawrence da
Arábia, Lawrence of Arabia, 1962, David Lean
Você Nunca
Esteve Realmente Aqui, You Were Never Really Here, 2017, Lynne Ramsay
A
Profissional, The Protégé, 2021, Martin Campbell
O Melhor da
Vida, Laughter, 1930, Harry d'Abbadie d'Arrast
Duelo de
Gigantes, The Missouri Breaks, 1976, Arthur Penn
12/12/23
O Passado, The Bygone, 2019, Graham Phillips & Parker Phillips
Quando um jovem fazendeiro cruza o caminho com uma garota de Lakota de uma reserva próxima, o misterioso desaparecimento dela leva a uma busca que descobre um passado angustiante e sugere um futuro terrível.
13/12/23
30 Monedas, Série de TV, 2020, Álex de la Iglesia
Sinopsis 1
Em 30 Moedas, conhecemos Manuel Vergara (Eduard Fernández), um padre exorcista e ex-detento, que vive na pequena cidade de Pedraza. Após se tornar um homem de fé, Padre Vergara está em busca de esquecer seu passado complicado e começar uma nova vida. No entanto, a cidade passa a ser atormentada por uma série de eventos paranormais, fazendo com que o padre precise da ajuda de Paco (Miguel Ángel Silvestre), o prefeito da cidade, e Elena (Megan Montaner), a melhor veterinária da região. O trio investiga uma antiga moeda do Padre, artefato que acreditam ser uma das 30 moedas de prata que Judas Iscariot recebeu dos romanos por ter traído Jesus Cristo. Porém, eles não imaginavam que as descobertas os levariam para o meio de uma conspiração envolvendo a Santa Sé e o Vaticano. Graças a este grupo improvável de investigadores, os mistérios que vieram a tona podem colocar em cheque toda a humanidade como conhecemos. (Adorocinema)
Sinopsis 2
El padre Manuel Vergara (Eduard Fernández), exorcista de profesión, boxeador y expresidiario, vive en Pedraza, un pueblo de Segovia, para olvidar su pasado y comenzar una nueva vida. Sin embargo, pronto comienzan a ocurrir fenómenos paranormales en el lugar y tendrá que contar con la ayuda de Paco, el alcalde (Miguel Ángel Silvestre), y Elena, la veterinaria del pueblo (Megan Montaner), para resolver el misterio de una moneda de Vergara que podría formar parte de las treinta con las que se pagó a Judas su traición a Jesucristo. Los tres protagonistas acabarán en el centro de una conspiración global que involucra a los cainitas y que amenaza con destruir al cristianismo. Wiki
5 razões para você assistir 30 Monedas
SERIADO | A série 30 MOEDAS é um terror de surpreender
14/12/23
O Nome da Rosa, Der Name der Rose, 1986, Jean-Jacques Annaud
CRÍTICA | O NOME DA ROSA (1986) por RITTER FAN 13 de novembro de 2020
William de Baskerville: O que há de tão alarmante no riso?
Jorge de Burgos: O riso mata o medo e, sem medo, não pode haver fé, porque sem medo do Diabo não há mais necessidade de Deus.
O Nome da Rosa, primeiro romance de ficção de Umberto Eco, não é uma obra fácil de ser adaptada para o audiovisual. Carregada de debates teológicos e de filosofia, com passagens inteiras escritas em latim e mantidas assim pelo menos nas primeiras edições do livro, sua transposição para um roteiro cinematográfico foi sem dúvida um desafio que acabou passando por diversos escritores, quatro deles finalmente levando os créditos pelo texto final. Muitos afirmam, torcendo o nariz, que o longa de 1986 é, no máximo, a versão aguada do romance, mas tenho para mim que ele é muito mais uma versão interessante de seu próprio jeito da obra de Eco executada com muito rigor técnico por Jean-Jacques Annaud.
É inegável que o roteiro centra seus esforços narrativos na investigação, pelo frade franciscano William de Baskerville (Sean Connery) e seu noviço Adso de Melk (Christian Slater), de mortes misteriosas que ocorrem em um monastério beneditino ao norte da Itália aonde eles vão para um debate teológico com emissários do Papa. Para todos os efeitos, trata-se de um Sherlock Holmes medieval (o uso do nome Baskerville por Eco não foi coincidência, claro) – ou uma versão de Guilherme de Ockham – descortinando, um a um, os pecados da batina, incluindo a força cega e destruidora da Inquisição comandada por Bernardo Gui (F. Murray Abraham, que só aparece no terço final, mas cuja presença ameaçadora é sentida desde o começo) em que o culpado é bem menos importante do que o porquê dos atos criminosos, o que retira o longa de uma mera obra investigativa localizada temporalmente em época inusitada. Os debates teológicos da obra original são drasticamente resumidos ou eliminados, mas diria que o roteiro, por incrível que pareça, acaba capturando bem o espírito “contraventor” e “herege” do trabalho do autor italiano, contrapondo ciência e religião, mas sem simplesmente negar um ou outro.
Os maiores problemas do filme estão em seu começo e em seu fim apenas, mas sem que eles afetem sobremaneira o resultado final. A apresentação de William de Baskerville como um Sherlock Holmes de hábito é marretada no texto de maneira exageradamente didática, o que retira muito da naturalidade da chegada do protagonista e seu pupilo à abadia, algo que, depois, é suavizado, ainda que sejam constantes demais as perguntas feitas por William a Adso de forma a explicar detalhadamente ao espectador o que por muitas vezes já ficou evidente ou que não precisava ficar tão evidente assim. Por seu turno, o final peca por ser redondinho e feliz demais, traindo um pouco – mas não completamente, como muitos defendem – a atmosfera pesada, suja e claustrofóbica que impera ao longo das mais de duas horas de projeção.
No entanto, o miolo é absolutamente fascinante. Para começar, Sean Connery está muito bem como um cínico e altamente científico investigador que se recusa desde o início a acreditar em explicações bíblicas para as mortes, encontrando uma lógica muito terrena e mesquinha para tudo que observa, justamente seguindo a linha do famoso Guilherme de Ockham, cujo método levaria à cunhagem do termo Navalha de Ockham, que prega pela explicação mais simples como a mais provável. Christian Slater funciona também muito bem como seu assistente que fala muito pouco, mas que simboliza o processo de transformação de um garoto de olhar arregalado em um homem maduro, algo que acontece em diversos níveis, incluindo o amoroso com sua relação quase instintiva com a bela e paupérrima moça sem nome (vivida por Valentina Vargas) do vilarejo ao sopé do monastério.
Outro destaque é a inspiradíssima escalação de Ron Pearlman como Salvatore, o monge corcunda que fala em diversas línguas ao mesmo tempo e que é essencial para a investigação de William e para o desfecho da história. Uma figura monstruosa, apresentada inicialmente de maneira brilhante apenas com um jogo de sombras que literalmente o transforma em um gárgula, o personagem logo mostra diversas facetas que em quase todos os momentos coloca Pearlman, em seu primeiro papel de destaque, tomando conta do cenário mesmo diante da imponente presença de Connery.
Falando em cenário, este talvez seja o grande “personagem” do longa. Ainda que alguns interiores tenham sido fotografados em uma abadia alemã, grande parte do que vemos em tela é um gigantesco cenário construído a duras penas no topo de uma colina nas imediações de Roma que acabou sendo o maior cenário fora de estúdio construído na Europa desde nada menos do que Cleópatra, de 23 anos antes. E o esforço mais do que valeu a pena, pois a imersão é completa nesse ambiente inóspito, de torres altas, pátios desertos e uma mistura fascinante de pensamento retrógrado com a manutenção cuidadosa de obras-primas da literatura em uma biblioteca labiríntica belíssima que, porém, ninguém pode ter acesso. Essa sensacional reconstrução de um monastério do século XIV vem acompanhada de figurinos detalhados representando as diferentes ordens religiosas, além de props cuidadosas que permitem o mergulho completo na Idade Média, com cozinhas ensanguentadas, quartos espartanos e salas de jantar opressivas que extraem toda a alegria de partilhar comida.
Na trilha sonora, James Horner compõe peças muito originais e bem diferentes do que ele mesmo estava acostumado, pendendo, claro, para sons de órgão que evocam o ambiente pesadamente religioso que comanda a fita, mas sem deixar de pontilhar a iluminação de William de Baskerville de um lado e a inocência de Adso de Melk de outro, em uma combinação única que Annaud cirurgicamente sincroniza em sua obra. Ao ressaltar musicalmente a espiritualidade dos protagonistas, Horner e Annaud deixam ainda mais evidente a sujeira que marca o dogma religioso sendo levado às últimas consequências.
O Nome da Rosa é uma corajosa adaptação de um livro complexo que funciona exatamente por saber ressaltar o material mais próprio para o meio cinematográfico, aplainando e inevitavelmente simplificando as discussões teológicas e filosóficas de Umberto Eco. O resultado é um longa investigativo medieval que cumpre sua função de cutucar pensamentos antiquados – sejam eles quais forem – e mostrar que a busca pelo conhecimento e pela iluminação deve ser constante, mesmo que ela cobre um preço alto.
15/12/23
Szürkület, O crepúsculo, 1990, György Fehér
Nas florestas densas e sombrias de uma província húngara, a busca por um assassino de crianças arrasta um outrora respeitado detetive para uma obsessão envolta em indecisão e desespero, mesmo depois de ter sido afastado do caso há muito tempo. O que surge não é uma história de crime, mas uma jornada angustiante pelas trevas da alma humana.
O fascinante filme em preto e branco de György Fehér possui um trabalho primoroso de câmera e planos. Tal como no trabalho do colega húngaro Béla Tarr (que foi consultor deste filme), o estilo narrativo de Fehér expande o tempo, tornando transparente a espera persistente do detetive, que se estende por várias épocas, antes que o filme nos surpreenda com seu final. Filmicca
Versão restaurada exibida no Festival de Berlim de 2023
Elenco: Péter Haumann, János Derzsi, Judit Pogány, Kati Lázár, István Lénárt, Gyula Pauer
Direção: György Fehér
Idioma: Húngaro com legendas em Português
País: Hungria
17/12/2023
As Aranhas, Die Spinnen, 1. Teil - Der Goldene See, 1919, Fritz Lang
No iutubi aqui
CRÍTICA | AS ARANHAS – PARTE 1: O LAGO DOURADO, por LUIZ SANTIAGO, 5 de dezembro de 2020
Cronologicamente, As Aranhas – Parte 1: O Lago Dourado foi o terceiro filme de Fritz Lang, mas ao fazer essa afirmação não devemos nos esquecer de que as quatro primeiras produções do diretor datam todas do mesmo ano (1919), chegando aos cinemas na seguinte ordem: Halbblut (com estreia em 3 de abril), Der Herr der Liebe (com estreia em setembro), As Aranhas – Parte 1 (com estreia em 3 de outubro) e Harakiri (com estreia em 18 de dezembro). O que observamos aqui é que Lang não teve apenas um ano extremamente movimentado e criativo, mas que sua breve passagem pela função de roteirista em obras de outros diretores (ao todo, três filmes, todos em 1917) deram-lhe a desenvoltura necessária para assumir um projeto ousado, algo que os chefões da Decla já haviam percebido, tanto que entregaram ao recém-chegado diretor uma tarefa que normalmente caberia aos profissionais mais antigos da casa. Lang foi cotado para guiar um seriado cinematográfico.
Antes da TV, era frequente a prática de os estúdios fazerem, num curto espaço de tempo, diversos filmes de até pouco mais de uma hora de duração (essa era a média, mas haviam filmes mais longos), contando uma longa história em “capítulos”, convidando os espectadores a irem ao cinema num outro dia, para verem a continuação. O argumento apresentado por Lang ao produtor Erich Pommer fez as honras de convencimento, dando-lhe a oportunidade de criar uma história que pudesse ser contada em quatro filmes. Para isso, o cineasta foi retirado da direção de uma obra que logo iria começar a rodar (O Gabinete do Dr. Caligari) e recebeu a ordem para focar na primeira parte de Die Spinnen, uma saga que, dos quatro filmes inicialmente previstos, teria apenas dois lançados.
O roteiro dessa obra está entre as fundações das matinês de filmes de aventura, mistério e ação, uma linha de abordagem que conquistaria rapidamente o público e desenvolveria o seu gosto por lugares, povos e pessoas “exóticas”. Cimentando essa concepção, percebemos que o roteiro faz com que uma personificação maligna esteja sempre à espreita, praticamente intocável e com poder suficiente para fazer mal a muitas pessoas inocentes. Esta é a impressão que temos de Lio Sha (Ressel Orla), uma destemida e ardilosa mulher que dirige a organização de nome “Aranhas”, cuja finalidade é se apropriar de relíquias ao redor do mundo e de toda a sorte de riquezas e tesouros, peças arqueológicas, obras de arte, joias imperiais, raridades colecionáveis… Infelizmente o roteiro demora bastante tempo introduzindo a destemida Lio Sha e seu concorrente, o esportista, colecionador e também explorador Kay Hoog (Carl de Vogt), o mocinho da fita.
Notem que existe todo um filão cinematográfico que floresceu abundantemente nos anos posteriores e que bebem justamente dessa fonte (ela, por sua vez, recebendo águas de fontes literárias), sagas de exploração de lugares que colocam homens “civilizados” muitas vezes em conflito entre si, procurando riquezas ou buscando proteger um lugar histórico ou misticamente importante. Os resultados são os mais diversos. Depois do ritmo inicial um tantinho chateante, a história ganha forças e segue crescendo, mantendo os cacoetes típicos do cinema da década de 10. Essa particularidade, porém, se reveste de uma grandeza e entretenimento em alta conta, com Lang fazendo questão de explorar as construções ameaçadoras de forma ousada (com uma porção de tratamentos belos e inteligentes da direção de arte e fotografia, o que é de se esperar, numa obra do Expressionismo Alemão) e manter o interesse do público cada vez mais forte à medida que o filme se aproxima do final.
Aqui, apenas em seu terceiro filme, Fritz Lang se alçou como um realizador notável na Alemanha e o sucesso deste O Lago Dourado não só o colocaria em alta conta na visão do estúdio, mas também nos olhares do público e da crítica. Indo das salas de reuniões de São Francisco até as ruínas da antiga Civilização Inca, As Aranhas é o tipo de filme de aventura que cativa e que faz o público esperar ansioso pelo que está por vir, torcendo por um mocinho aqui, esperando um passo maligno da vilã acolá. Um filme historicamente relevante em seu “ensaio de gênero” e um divisor de águas para Fritz Lang, pensando nas oportunidades geradas para ele a partir daqui.
As Aranhas – Parte 1: O Lago Dourado (Die Spinnen, 1. Teil – Der Goldene See) — Alemanha, 1919
Direção: Fritz Lang
Roteiro: Fritz Lang
Elenco: Carl de Vogt, Ressel Orla, Georg John, Lil Dagover, Paul Biensfeldt, Harry Frank, Gilda Langer, Hans Lanser-Rudolf
Duração: 81 min.
As Aranhas - Parte 2, Die Spinnen, 2. Teil - Das Brillantenschiff, 1920, Fritz Lang
No iutubi aqui
18/12/23
Animais Noturnos, Nocturnal Animals, 2016, Tom Ford
Nocturnal Animals (Animais Noturnos) – 2016
By Waldemar Dalenogare Neto
Tom Ford apresenta Nocturnal Animals (Animais Noturnos, no Brasil), um dos melhores filmes do ano. Mantendo a coerência que tornou A Single Man um sucesso no mundo inteiro, o diretor e estilista adapta o bestseller de Austin Wright – Tony and Susan – para criar na tela de cinema uma memorável narrativa que percorre o mundo real e o mundo fictício, criando um laço de união espetacular entre as histórias.
Susan Morrow (Amy Adams) faz parte da alta sociedade de Los Angeles. Apesar de sua galeria de arte receber elogios diários, seu casamento com Hutton (Armie Hammer) começa a ruir por conta dos excessivos compromissos ‘profissionais’ dele em Nova York. Certo dia, ela recebe a cópia do manuscrito do livro de seu primeiro marido, Edward (Jake Gyllenhaal). Com o nome de ‘Animais Noturnos’, Edward constrói seu livro analisando um caso texano. Tony Hastings (Jake Gyllenhaal) decide viajar com sua esposa (Isla Fisher) e filha (Ellie Bamber) durante a noite. Na estrada, eles encontram três homens dispostos a criar problemas. Quem investiga posteriormente o caso ocorrido naquela noite é Bobby Andes (Michael Shannon), que decide correr atrás dos homens para fazer justiça.
Quem mergulhar na história proposta por Ford certamente terá seu coração batendo forte. Nocturnal Animals consegue mexer com os mais variados sentimentos negativos (como nojo, raiva, tristeza) para construir junto do espectador a ideia de vingança. Se Gyllenhaal é a chave para a compreensão do filme em atuação inspirada, sem dúvida alguma a principal estrela é Michael Shannon, que parece colocar na tela toda a agonia do público.
A alegoria do antigo relacionamento de Susan e Edward fica clara com os flashbacks que aos poucos mostra o começo e o final do casamento (quando Susan insistia na ideia de que Ed era um ‘homem fraco’). Todo o desenrolar é feito como nos filmes de David Lynch, onde o público evita até mesmo piscar o olho para não perder informações que ajudem a entender tanto o contexto geral como para dar uma explicação satisfatória para o que foi apresentado.
Nocturnal Animals é incrível. Tem um poder único de reflexão e ressalta a qualidade de Ford como diretor. É o tipo de produção que merece ser vista mais de uma vez junto com a leitura do livro para aplaudir a adaptação impecável e toda a construção do longa (com bela fotografia de Seamus McGarvey e banda sonora de Abel Korzeniowski). Vencedor do Leão de Prata de Veneza e indicado para três prêmios Globo de Ouro.
19/12/23
A Vingança de Ulzana, Ulzana's Raid, 1972, Robert Aldrich
CRÍTICA | A VINGANÇA DE ULZANA por LUIZ SANTIAGO 6 de junho de 2022
Um paralelo estranho com a Guerra do Vietnã
A Vingança de Ulzana (1972) é um filme do começo da última década na filmografia de Robert Aldrich, e ao menos considerando o que alguns críticos e espectadores apontaram ao longo dos anos, faz alusões à participação americana na Guerra do Vietnã. Em entrevista ao Los Angeles Times em maio de 1972, o roteirista Alan Sharp disse que, além de uma homenagem a John Ford (mais especificamente a Rastros de Ódio), ele retratou aqui a ideia de medos históricos que todo mundo tem. No seu caso, três grandes momentos históricos de maldade, violência e mortandade sempre o atormentaram: o Terceiro Reich, a Turquia durante a Primeira Guerra Mundial e o sudoeste americano durante os anos 1860-1886. Em resumo, trata-se de um filme sobre atitudes mortíferas de grupos de pessoas em luta, considerando diferentes comportamentos e culturas, o que faz com que as atitudes de um dos lados seja vista como pior que as outras.
Nos anos 1970, os westerns constantemente representavam personagens de moral dúbia, complexa, e tramas finalizadas de maneira desesperançada, sem o louvor belicista ou de conquistador vitorioso das décadas anteriores. Também vemos nesse momento um tratamento majoritariamente diferente para os indígenas, que não eram mais vistos essencial e completamente como inimigos selvagens dos homens brancos, impedindo o avanço da civilização trazida pelos colonos — ou seja, a exposição ideológica da mentalidade podre dos europeus ou de seus descendentes na América, que invadiram terras indígenas, exterminaram violentamente milhões de nativos, levaram diversas espécies de animais e de árvores à beira da extinção e ainda se designam como os detentores do progresso, da razão, dos bons modos.
O roteiro de Alan Sharp mira, em tese, no cerne dessa questão. Mas tanto a sua escrita quanto a direção de Robert Aldrich não indicam esse olhar crítico, a exposição de uma situação de conquista diante dos verdadeiros donos da terra. O filme começa com a fuga de Ulzana de uma reserva indígena. Juntamente com outros companheiros, ele consegue pegar alguns cavalos e sair pelo deserto e pradarias matando gente das piores maneiras possíveis. O filme é bastante violento (tanto que temos duas versões oficiais dele: a americana, editada sob supervisão do diretor; e a europeia, editada sob supervisão de Burt Lancaster) e mostra cenas que não se encontrava frequentemente em filmes dos anos 1970, com destaque para a cena do suicídio de um Tenente ao perceber que seria capturado pelos Apaches e a tortura de um homem diante de uma fogueira, que os indígenas ainda fizeram questão de lhe enfiar o rabo de um cachorro na boca.
Dramaticamente, são cenas que engajam o espectador e que emotivamente vai criando uma percepção geral a respeito dos Apaches Chiricahua, tirando de cena a ideia de um conflito moral e estabelecendo Ulzana e seus companheiros como os definitivos e impiedosos vilões. De um lado, temos alguém que aparentemente entende o pensamento dos indígenas e que inclusive é casado com uma: o batedor McIntosh (Lancaster, em uma ótima atuação). Do outro, o jovem Tenente Garnett DeBuin (Bruce Davison), que se divide entre o acolhimento cristão e momentos de puro racismo, normalmente descontado no batedor Apache que era um soldado do Forte, o silencioso Ke-Ni-Tay (Jorge Luke). A homenagem a Rastros do Ódios é imediatamente percebida diante da grande perseguição que toma conta da narrativa. E essa perseguição em tese demonstra o pensamento insistente e até inconsequente dos americanos diante de uma determinada situação de crise. Até aí, vemos apenas um princípio narrativo comum, que será desenvolvido para explicar a absurda violência indígena e reforçar a fixação dos soldados. Só que isso não acontece no filme.
Em dado momento da projeção, numa conversa com o Tenente DeBuin, o soldado Apache Ke-Ni-Tay “justifica” o comportamento violento de seus irmãos com a seguinte frase: “porque eles são assim“. Mesmo se a gente considerar a explicação mítica que vem logo a seguir, a representação dos nativos nesse filme é apenas do horror e da selvageria por eles mesmos, já que não existe um único frame de contexto para a ação de Ulzana — e se ficarmos apenas com a explicação simbólica para a “busca por poder ao matar outras pessoas” o significado pretendido pela obra fica ainda pior. É por isso que eu sempre achei estranha a comparação feita por alguns críticos, acadêmicos e até mesmo por membros da equipe do filme (o próprio Bruce Davison já falou disso em entrevistas) com a Guerra do Vietnã, porque simbolicamente não dá para considerar a obra uma “crítica aos americanos”, mas um reforço ao fato de que os errados da história são os nativos violentos e os seus perseguidores são apenas pessoas teimosas e precisam responder à violência com a qual são recebidos, embora seus princípios cristãos nem sempre permitam isso: em uma cena, o personagem de Burt Lancaster diz ao de Bruce Davison que o que incomodava o jovem Tenente era a possibilidade de um homem branco “pensar e agir como um Apache“. Pois é.
A Vingança de Ulzana é um filme intenso, com uma caçada que não se torna enjoativa em momento algum, mesmo nas cenas de estranha representação da movimentação Apache. O roteiro soube explorar bem os novos espaços trilhados pela divisão militar e o fotógrafo Joseph F. Biroc (que só naquele início de década já tinha dois trabalhos lançados com Aldrich: Assim Nascem os Heróis e Resgate de uma Vida) colocou muito bem na grande tela todas as paisagens grandiosas do Arizona, onde aconteceu a maior parte das filmagens. Em última instância, é um filme sobre uma grande campanha liderada por um grande guerreiro nativo (mais uma vez ressalto que não há motivação real para as ações de Ulzana aqui) e sobre a tentativa dos americanos em encontrá-lo e impedir que siga em sua trilha de morte. Um western que tem a superfície de um filme dos anos 1970, inclusive na demonstração de violência; mas que, em significado, mesmo que supostamente não seja a sua intenção, traz uma mentalidade de três décadas antes.
A Vingança de Ulzana (Ulzana’s Raid) — EUA, 1972
Direção: Robert Aldrich
Roteiro: Alan Sharp
Elenco: Burt Lancaster, Bruce Davison, Jorge Luke, Richard Jaeckel, Joaquín Martínez, Lloyd Bochner, Karl Swenson, Douglass Watson, Dran Hamilton, John Pearce, Gladys Holland, Margaret Fairchild, Aimee Eccles, Richard Bull, Otto Reichow
Duração: 103 min.
08/01/2024
Ela Disse, She Said, 2022, Maria Schrader
Ela Disse (2022) | Crítica por Marcus Alencar, 08/03/2023
Desde 2017, graças ao movimento #MeToo, as estruturas de poder na indústria do cinema nunca mais foram as mesmas. A campanha ficou conhecida pela forte participação de atrizes de Hollywood contra a cultura de assédio sexual na indústria e deu voz a várias dessas profissionais que por muitos anos foram silenciadas e desacreditadas. Recentemente, chegou a oportunidade de conhecer o primeiro passo dessa luta em Ela Disse, filme que conta a história das investigações que impulsionaram esse processo tão relevante.
Adaptação do livro homônimo, o longa mostra o trabalho das jornalistas Megan Twohey (Carey Mulligan) e Jodi Kantor (Zoe Kazan) do New York Times em localizar e entrevistar as vítimas de abuso sexual sofrido pelo famoso produtor de cinema Harvey Weinstein (Mike Houston) marcando assim uma das mais importantes histórias de uma geração e estilhaçando décadas de silêncio a respeito de um tema que nunca fora tratado com o devido respeito, principalmente na indústria cinematográfica.
Mesmo tendo como foco principal das denúncias a figura dele, Ela Disse não dá espaço para que sua presença ocupe mais tempo que o necessário. O mais importante está no intenso e frenético trabalho investigativo da dupla, algo que no começo parece uma missão impossível de tão árdua. Nesse ponto, a direção de Maria Schrader acerta ao compartilhar com o público todos os percalços que Megan e Jodi passam em suas vidas pessoais e profissionais como ameaças anônimas e recusas de fontes traumatizadas por anos de sofrimento.
Aliás, vale mencionar que Ela Disse não deixa de lado a questão emocional, mesmo sendo baseado em fatos reais e ter jornalistas no protagonismo. Diferente de filmes desse tipo como, por exemplo, Spotlight: Segredos Revelados, o longa traz uma perspectiva mais humanizada de quem realmente entende o lado da vítima de forma humana e sensível. Isso ganha mais peso com algumas reviravoltas e a participação da atriz Ashley Judd interpretando a si mesma em uma cena na qual revive o momento em que deu o testemunho que foi crucial para dar credibilidade à reportagem, algo que encorajou outras mulheres a fazerem o mesmo pouco tempo depois.
Cenas como essa emocionam não só a dupla de protagonistas como também podem despertar o mesmo em boa parte do público que consegue se conectar com esse processo de empatia criado pelo roteiro assinado por Rebecca Lenkiewicz. Inclusive, isso ocorre em outro momento desenvolvido com precisão em Ela Disse na qual a força da narração cria um processo de empatia único e ao mesmo tempo doloroso. Com apenas áudios das vítimas acompanhamos o olhar da câmera “passear” por um corredor de hotel vazio sem necessariamente chegar ao fim do mesmo em uma sequência cujo simbolismo nos coloca em uma espécie de rua sem saída, o que nos permite entender como essas mulheres se sentiram perdidas por uma sociedade manipulada por homens poderosos e influentes que compraram o silêncio delas das mais variadas formas.
No entanto, o ponto negativo disso aparece quando percebemos que o longa foca demais nos atos de Harvey enquanto outros nomes são pouco e brevemente mencionados. É como se o produtor fosse uma única e verdadeira ameaça, o que não é verdade principalmente para quem acompanhou todas as inúmeras denúncias surgidas no período.
Outra questão relativa à figura dele é que não há aprofundamento sobre como foi montado todo o esquema corrupto criado para se manter durante tantos anos no poder mesmo cometendo tantos crimes. É como se Ela Disse só chegasse em um determinado ponto e pisasse no freio com algum receio do estúdio, o que também nos leva a pensar que esse tenha sido o motivo para o filme ter sido “esquecido” entre os indicados ao Oscar 2023.
Algo que também faz falta é ver o que houve depois de todo o escândalo provocado pelas reportagens e artigos das jornalistas. Tendo em vista que se trata de uma investigação responsável por impulsionar o movimento #MeToo, teria sido no mínimo interessante mostrar algo sobre isso começando para valer nas redes sociais ao invés de apenas algumas informações através de legendas.
Mesmo assim, Ela Disse não perde sua qualidade de forma alguma. Atual, relevante e emocionante, o filme merece ser visto e debatido por conta da temática do assédio sexual e de como sua prática fortaleceu uma indústria formada em grande parte por homens poderosos e misóginos. Não só isso, mas também por saber dar voz de forma competente a mulheres que em seu tempo não foram ouvidas e tratadas com o devido respeito.
09/01/24
Monsieur Verdoux, 1947, Charles Chaplin
Henri Verdoux (na prisão) e o Promotor
PR: Tem de admitir que o crime não compensa.
HV: Não, senhor. De modo nenhum.
PR: Que quer dizer?
HV: Para se ter êxito, seja no que for, é preciso ser organizado.
PR: Não vai deixar-nos com esse comentário cínico.
HV: É incongruente ser idealista num momento como este.
AD: Que conversa é essa sobre o Bem e o Mal? Apoiei-o durante todo o julgamento. Dá-me uma moral da história. Você, o exemplo trágico de uma vida de crime.
HV: Como é que alguém pode ser exemplo nestes tempos de crime?
PR: Você certamente foi, roubando e matando pessoas.
HV: Era um modo de vida.
PR: As pessoas não vivem assim.
HV: É a história de muitos grandes negócios. Guerras, conflitos, tudo é um negócio.
PR: Que conversa é essa sobre o Bem e o Mal?
HV: Um assassinato faz um vilão; milhares, fazem um herói. A quantidade santifica, meu amigo.
Crítica | Monsieur Verdoux por Ritter Fan, 10 de setembro de 2014
Entre O Grande Ditador e Monsieur Verdoux, o filme seguinte de Chaplin, sete anos se passaram. O hiato é perfeitamente justificável em vista das questões geopolíticas que assolaram o mundo com a ascensão nazista na Europa nessa época, mas há, também, um outro fator menos conhecido que afetou exclusivamente Chaplin, o chamado “Caso Barry”, que levou o produtor/ator/diretor a disputar a paternidade de uma criança pela aspirante à atriz Joan Barry, com quem tivera um caso intermitente entre 1941 e 1942.
E essa discussão judicial ainda ganhou contornos mais profundos, pois o então diretor do FBI, J. Edgar Hoover usou o episódio para fazer ruir a reputação de Chaplin em razão de seu viés político, com uma intensa e absurda perseguição com base no Caso Barry. E, como se isso não bastasse, não muito depois que a ação de reconhecimento de paternidade foi ajuizada, Chaplin anunciou o casamento com Oona O’Neill, filha de Eugene O’Neill, então com 18 anos, enquanto ele próprio já estava com 54. Em outras palavras, foi um período conturbado na vida desse grande artista que culminaria com sua expulsão dos EUA em 1952.
Mas Charles Chaplin não se fez de rogado e, em meio a toda essa controvérsia, correu atrás da produção de Monsieur Verdoux, talvez seu filme mais incendiário e certamente o que é menos compreendido pelo público em geral, muito em razão de sua má recepção nos EUA e do completo desaparecimento do amado personagem Vagabundo, em troca de outro bem mais complexo e absolutamente inusitado. Assistir Monsieur Verdoux, por isso, exige um certo estado de espírito e a compreensão de que esse talvez seja o menos chapliniano filme de Charles Chaplin, ainda que suas marcas estejam presentes.
E, se o contexto histórico da produção desse drama com fortes tons de humor negro (realmente, não consigo considerar Verdoux como uma comédia) não o fez abrir os olhos para o filme, então saiba que a história partiu de uma ideia de Orson Welles, que queria dirigir a obra com o próprio Chaplin atuando. Chaplin negou, mas viu potencial narrativo e acabou adquirindo os direitos, passando a produzir, escrever o roteiro e protagonizar. Reparem bem: Monsieur Verdoux é o “filho” de dois monstros do cinema mundial. Mais um fator que torna o filme obrigatório para cinéfilos.
Sei que pareço vendedor de facas Ginsu, mas tem mais! Monsieur Verdoux, além de ser uma ideia de Welles, é baseado livremente na vida de Henri Désiré Landru, um francês que, no final do século XIX, passou a seduzir viúvas para tirar o dinheiro delas e, quando conseguia, ele as matava, desmembrando-as e incinerando-as em um forno. Ele foi, literalmente, o Barba Azul dos contos de Perrault, apelido que Chaplin traz também para o filme e para seu personagem título. Em outras palavras, não só temos o conturbado aspecto pessoal da vida de Chaplin por trás, como uma “parceria” com Welles e uma mais do que inusitada história em que o ator que criara o inesquecível Vagabundo vive um serial killer polígamo. Se quiser parar de ler essa crítica para correr atrás do filme, não o culpo. Siga em frente, assista e volte aqui!
Voltou?
Pois bem. O que Chaplin faz com uma história sanguinária dessas é transformá-la em um “filme de Chaplin”. E esse é o maior estranhamento que o espectador sentirá (depois de se acostumar a ver o ator como outro personagem e um assassino ainda por cima…): o gravíssimo assunto que a película aborda é tratado com lentes leves, de humor negro, mas sem que os crimes, que nunca aparecem em tela, sejam banalizados. O roteiro de Chaplin faz uma arriscada – mas arriscaria dizer, perfeita – mescla entre drama e comédia física, bem no estilo dos filmes que o consagraram. Não digo que é imediata a aceitação dessa mistura, pois não é, mas, dada uma chance justa ao filme, a recompensa é fantástica. Chaplin dosa muito bem os momentos pesados com seu peculiar humor, gerando sequências absolutamente inesquecíveis como ele tentando assassinar uma de suas desbocadas esposas, Annabella Bonheur (Martha Raye), em um barquinho no meio de um lago, ou quando ele tenta seduzir uma viúva (Marie Grosnay, vivida por Isobel Elsom) que se interessa em comprar a casa de uma de suas finadas ex-esposas ou ainda quando, na penúltima sequência cômica, ele tenta se esconder de Annabella em mais um casamento seu.
A surpresa vem do quão parcimoniosa é a inserção de momentos tipicamente chaplinianos, o que acaba permitindo ao espectador flutuar entre os dois gêneros cinematográficos – drama e comédia – sem sentir a marola criada. Quando vemos Verdoux cair pela janela no primeiro “momento pastelão”, nos assustamos, mas essa é a extensão de nosso estranhamento. Chaplin faz issso para marcar seu ponto e para nos retirar da letargia que eventualmente sua (des)caracterização tenha criado nos primeiros dois minutos. Depois, não é que esse estranhamento desapareça, pois ele não desaparece, mas ele passar a ser fluido, bem construído e “invisível” dentro da estrutura narrativa proposta.
Ajuda também o cuidado com o design da produção. Em vista da poligamia de Verdoux, diversos cenários diferentes se fazem necessários, um para cada esposa. Todos são muito característicos para tornar fácil a diferenciação pelo espectador, não deixando dúvida do ambiente em que Verdoux está, especialmente considerando que ele ainda tem um “quartel general” e uma esposa e filho verdadeiros (a razão de ele fazer o que faz se prende a seu amor por sua família) em uma espécie de casinha do interior francês. O cuidado com figurino também reflete essa multiplicidade de lugares (todos na França), com o próprio Verdoux alterando suas “fantasias” (pois são mesmo fantasias) dependendo da personalidade que adota.
E Chaplin, como de costume, compôs também a trilha sonora, fugindo do tom jovial e alegre – por vezes melancólico – de trabalhos anteriores e mergulhando em uma mistura, como o filme exige, entre humor e drama, até thriller em determinados momentos, como no começo, com a família de uma das esposas de Verdoux preocupada com o paradeiro dela e ao final, na controversa sequência do julgamento. E a transição se dá como a que existe entre comédia corporal e drama, suavemente e sem maiores percalços depois que o espectador passa pelo primeiro – e breve – susto de aclimatação.
Falando na sequência do julgamento, esse é o momento que realmente não funciona em Monsieur Verdoux. A controvérsia que exige ao redor dela é muito mais política do que qualquer outra coisa, pois a paranoia americana, à época, viu o discurso antibelicista como algo mais profundo, anticapitalista. E, de fato, há contornos dessa natureza, mas esse é só um posicionamento político do autor e nada mais. O que incomoda não é sua posição, mas sim a maneira como ele trata a questão. E, para isso, precisamos voltar um pouco ao filme em si. As atitudes de Verdoux são, de certa forma, justificadas dentro da narrativa como a saída que o personagem encontrou para manter sua família depois que ele é demitido de seu emprego de mais de 30 anos em um banco. Seu rancor em relação ao sistema bancário – e, portanto, capitalista – é visível em suas várias manobras na bolsa de valores ao telefone. O trabalho de Chaplin no roteiro, nesse tocante, é irretocável.
O problema é que, de maneira muito canhestra, quando o filme se aproxima de seu encerramento, não só a família de Verdoux sai da narrativa sem maiores justificativas, deixando o espectador quase que pendurado sobre o assunto, como, no julgamento por seus crimes, Verdoux aproveita para literalmente fazer um longo e pouco característico discurso sobre como suas atitudes não são nada se comparadas com as mortes infligidas pelas guerras, direta ou indiretamente. Suas críticas até procedem, mas elas não justificam a atitude do personagem e, pior do que isso, criam um momento expositivo que simplesmente não combina com todo o trabalho anterior. O assunto já estava claro de maneira indireta por tudo o que veio antes e o discurso parece mesmo aquilo que ele é: uma reclamação de Chaplin (não de Verdoux) em relação à sua perseguição nos EUA. Apesar de compreensível, havia formas mais elegantes de se alcançar o mesmo objetivo.
Apesar desses problemas ao final, Monsieur Verdoux é uma obra de grande estatura que merece ser assistida não só por seus méritos intrínsecos, como, também, pela combinação de fatores que a levou às telonas. Pode ser um dos menos lembrados filmes de Charles Chaplin, mas é, também, um dos melhores.
Monsieur Verdoux (Idem, EUA – 1947)
Direção: Charles Chaplin
Roteiro: Charles Chaplin (baseado em ideia de Orson Welles)
Elenco: Charles Chaplin, Mady Correll, Allison Roddan, Robert Lewis, Audrey Betz, Martha Raye, Ada May, Isobel Bennett, Helene Heigh, Margaret Hoffman, Marilyn Nash, Irving Bacon, Edwin Mills, Virginia Brissac
Duração: 124 min.
10/01/24
Madame Bovary, 1991, Claude Chabrol
Com musa Isabelle Huppert, Chabrol adaptou "Madame Bovary", obra-prima de Flaubert
Livraria da Folha, 13/09/2010
Falou Claude Chabrol, falou Isabelle Huppert, musa do cineasta francês, que morreu no último domingo aos 80 anos, em Paris. Ele a dirigiu em filmes como "Madame Bovary" (1991), adaptação cinematográfica do célebre romance do escritor francês Gustave Flaubert (1821-1880), referência no retrato irônico e sarcástico dos ideais pequeno-burgueses de felicidade e ascensão social.
Alguns críticos de cinema consideram o filme de Chabrol, que adora narrativas sobre paixão e violência, como a melhor adaptação do clássico publicado por Flaubert em 1857. As outras foram de Vincente Minelli (1949) e Jean Renoir (1934). Seu trunfo é a atuação contida e enigmática de Isabelle Huppert no papel da protagonista Emma Bovary.
Ao lembrar o problema de adaptações de livros com personagens marcantes como Emma, Inácio Araújo, crítico da Folha, já chamou o filme "Madame Bovary" como "um belo longa injustiçado".
Este romance de Flaubert teve impacto na cultura ocidental. O sobrenome da heroína virou até verbete de dicionário: "Bovarismo: tendência que certos indivíduos apresentam de fugir da realidade e imaginar para si uma personalidade e condições de vida que não possuem, passando a agir como se as possuíssem".
Para o escritor francês Émile Zola (1840-1902), "Madame Bovary" foi o primeiro dos romances naturalistas porque haveria nele a "reprodução exata da vida, a ausência de todo elemento romanesco".
Sem episódios excitantes, Emma Bovary sofria com uma vida tediosa, solitária, típica de uma cidade provinciana, criando um vazio repleto de conflitos em que a imaginação, o romantismo, era o fiapo que sustentava sua existência. As frustrações nesta rotina de falsas aparências a levam ao suicídio, enquanto o leitor devora apaixonadamente este melodrama clássico.
Por causa do romance, Flaubert foi processado por descrever imoralismos. Mas a defesa conseguiu inocentá-lo, numa época em que eram comuns escritores escandalizarem a sociedade explorando temas considerados tabus ou incômodos às elites.
Madame Bovary, Roger Ebert, December 25, 1991
Saltburn, 2023, Emerald Fennell
'Saltburn' é um delicioso filme de suspense perverso e hipersexual
Emerald Fennell dirige história transgressora sobre sentimentos nada nobres em tornou de família que parece ter tudo
Teté Ribeiro, FSP, 22/12/2023
"Saltburn", o segundo filme da escritora e diretora Emerald Fennell, que ganhou um Oscar em 2021 pelo roteiro de "Bela Vingança", tem um estilo gótico de filmagem e mistura a Inglaterra de "Downton Abbey" — em toda a sua pompa e circunstância — com a de Ronald Biggs, o lendário assaltante de trem que fugiu da cadeia e se refugiou no Brasil, onde viveu entre 1970 e 2001.
Oliver Quick, um estudante bolsista da Universidade de Oxford interpretado por Barry Keoghan, não é um garoto popular, nem bonito, nem divertido, e sofre para fazer amigos. Os alunos tiram sarro de seu jeito diferentão, suas roupas de brechó e da sua aproximação forçada com o outro esquisito da faculdade, Michael, papel de Evan Mitchell.
Até que um dia, por acaso, Oliver faz um favor ao Deus Sol do lugar, o charmosérrimo aristocrata Felix Catton, interpretado por Jacob Elordi — guarde esse nome, se é que você ainda está imune ao charme deste jovem australiano de 26 anos, o Nate da série "Euphoria" e o Elvis do filme "Priscilla", de Sofia Coppola.
Felix, de tão agradecido, aproxima Oliver de sua turma, um bando de garotos e garotas bem nascidos e malcriados que faz festas, bebe, cheira cocaína, transa livremente e usa o humor sarcástico inglês no dia a dia. Parecem, em comparação a Oliver, uma espécie alienígena.
Ele fica mais do que encantado por Felix, hipnotizado pela existência tão absurdamente fácil, charmosa e cheia de vida do garoto. O novo amigo o convida para passar as férias de verão com sua família em Saltburn —e, quando a propriedade tem até nome próprio, na Inglaterra, isso costuma querer dizer muita coisa. Tradição, dinheiro de família e comportamento exótico são o combo principal.
"Saltburn", o filme, faz um retrato sombrio do que a obsessão e o desejo visceral podem provocar em um jovem como Oliver, desesperado para pertencer ao grupo mais cool da sua faculdade e tendo, na intimidade, a certeza de que aquele lugar nunca será legitimamente seu.
Saltburn, a propriedade, é uma dessas casas de famílias nobres da Inglaterra, no campo, que talvez até fizesse sentido há dois séculos, quando era natural ter mais gente trabalhando para servir à uma família abastada do que membros da própria família. Os cômodos são amplos e há uma biblioteca, uma galeria, uma ala norte, uma ala sul, obras de arte, tapetes gigantescos e lustres de cristal.
A apresentação da casa, feita por um Felix vestido de jeans e camisa amassados e os pés descalços, em um plano-sequência, já é um clássico instantâneo. O mordomo de Saltburn, Duncan, interpretado por Paul Rhys, que recebe Oliver e parece ofendido pela presença do garoto classe média, deixa claro que o clima dali para frente será mais de suspense que de drama.
A direção de arte do filme é ultra caprichada, não há detalhe que não tenha sido escolhido a dedo, nenhuma peça de roupa do figurino existe ao acaso, é tudo parte da linguagem transgressora desta trama. Preste atenção aos espelhos e aos reflexos, seja nas águas do lago perto da casa ou na mesa de jantar, de metal polido.
Há metáforas em tudo. O roteiro de Fennell usa imagens de mariposas, aranhas e vampiros para compor o clima meio delirante, meio febril da realidade altamente improvável da família Catton e de Saltburn aos olhos de Oliver.
O elenco, todo talentoso, se adequa perfeitamente à história e suas trágicas reviravoltas. Barry Keoghan é um protagonista sinistro e irresistível na mesma medida, que alterna momentos de doçura e abandono com outros de pura sociopatia.
Jacob Elordi, ah, Jacob Elordi. Cabelo desgrenhado, roupas sempre amassadas sobre um esqueleto divino coberto pelo tanto exato de carne sobre os ossos e de pele sobre a carne. Ele é todo charme e sex appeal, a aristocracia vira um mero detalhe de sua gloriosa existência.
Alison Oliver, que interpreta a irmã problemática de Felix, Venetia, uma garota bulímica e insaciável sexualmente, está impecável, assim como Carey Mulligan, que faz uma participação curta porém marcante como a amiga excêntrica da família, Pamela. Richard E. Grant também não decepciona como Sir James Catton, o pai da família.
Mas a arma secreta deste elenco é Rosamund Pike, como a matriarca Elspeth, uma ex-modelo exótica que parece fazer questão de exibir em cada fala que é diferente do resto da humanidade. Antes de apresentá-la a Oliver, Felix já avisa que sua mãe tem fobia de pelos faciais, então ele deve se barbear antes de encontrá-la. Quando isso acontece, ela conta, sem se desculpar, que também têm uma intolerância irrefreável a gente feia.
"Saltburn" é, em resumo, uma sátira. Se você não se divertir com a perversidade dos personagens, das situações e até dos desfechos cada vez mais amedrontadores, não há muito neste filme para você. Mas quem mergulhar por completo nesse estranho universo, cheio de desejo e repulsa e em tudo excessivo, vai ter duas horas e onze minutos de muito prazer.
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Música de cena picante de Saltburn cresce 290% no Spotify brasileiro
A música Murder on The Dance Floor, hit pop farofa de 2002 da cantora britânica Sophie Ellix Brextor, viu seu número de exibições no Spotify aumentar 290% no Brasil após ela ter sido incluída no filme Saltburn, disponível na Netflix. No mundo, a música teve um aumento de 340%, tendo como base o número de execuções no ano anterior.
A faixa é executada “naquela” sequência final do filme, quando o ator Barry Keoghan dança completamente nu pela mansão. A dancinha, é claro, viralizou nas redes sociais com as pessoas reproduzindo-a, porém não tão, digamos, a vontade. Veja https://veja.abril.com.br/coluna/o-som-e-a-furia/musica-de-cena-picante-de-saltburn-cresce-290-no-spotify-brasileiroeja
Ellis-Bextor - Murder On The Dancefloor (as featured in Saltburn)
11/01/24
Kingdom: Unmei no Hono, 2023, Shinsuke Sato
‘Kingdom 3’ é uma conclusão competente da trilogia Por WILSON SPILER
Após um primeiro filme de estreia aclamado pela crítica e pelo público, e um segundo filme que manteve o nível de qualidade, “Kingdom 3: A Chama do Destino” (Kingdom: Unmei no Hono) chega à Netflix para fechar a trilogia de filmes baseados no mangá de Yasuhisa Hara.
Sinopse do filme Kingdom 3: A Chama do Destino
O terceiro filme segue Li Xin (Kento Yamazaki) e Wang Qi (Takao Osawa) enquanto estão no campo de batalha pela primeira vez para lutar contra uma invasão de Zhao (Kôji Yamamoto). O longa-metragem também aborda o passado desconhecido de Yin Zheng (Ryô Yoshizawa).
Kingdom 3: A Chama do Destino é bom?
Embora com diálogos bem artificiais, “Kingdom 3: A Chama do Destino” é um prato cheio para quem gosta de muita ação e aventura. Experiente em filmes de ação, Shinsuke Sato demonstra todo o seu talento com cenas de batalha espetaculares, coreografias bem elaboradas e efeitos visuais impressionantes.
O diretor também consegue criar uma atmosfera de tensão e suspense constante, o que torna o filme ainda mais envolvente. Os momentos de ação são intercalados com cenas dramáticas, que ajudam a desenvolver os personagens e a história, conseguindo capturar toda a violência e a brutalidade da guerra, mas também o heroísmo e a coragem dos soldados.
O elenco, por sua vez, consegue acompanhar o que é proposto, com destaque para o carismático Kento Yamazaki, que interpreta Xin, e para a competente Kanna Hashimoto, que vive He Liao Diao, auxiliados por uma história envolvente e cheia de reviravoltas.
Conclusão
Em resumo, “Kingdom 3: A Chama do Destino” é um filme imperdível para os fãs de ação, aventura e história. A sequência é uma conclusão competente para a trilogia, e deixa os espectadores ansiosos pelo futuro da franquia, já que o mangá ainda tem vários volumes para ser adaptado.
12/01/24
Cria Corvos, Cría cuervos, 1976, Carlos Saura
Após a morte do pai militar, e também da mãe tempos atrás, a pequena Ana, uma menina melancólica e fascinada pela morte, e suas duas irmãs, Irene e Maite, terão que viver com a presença da sua austera tia Paulina, que será a responsável por cuidar delas.
Alternando perfeitamente entre a fantasia e a realidade, o filme evoca sutilmente os sentimentos complexos da infância e as lutas de uma nação que emerge das sombras. Filmado no ano da morte do ditador espanhol Franco, “Cría Cuervos” anunciou um ponto de virada na Espanha.
Vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes e com atuação magnífica de uma pequena Ana Torrent (“O Espírito da Colmeia”), a obra-prima de Carlos Saura funde o pessoal e o político num retrato do legado do fascismo e dos seus efeitos numa família de classe média. O título é baseado no ditado espanhol: “Crie corvos e eles lhe arrancarão os olhos”. Filmicca
Elenco
Ana Torrent, Conchita Pérez, Mayte Sánchez, Geraldine Chaplin, Mónica Randall, Florinda Chico, Josefina Díaz, Germán Cobos, Héctor Alterio, Mirta Miller
Direção: Carlos Saura
Geraldine Chaplin 1944
Carlos Saura (1932-2023)
13/01/24
Lawrence da Arábia, Lawrence of Arabia, 1962, David Lean
No iutubi aqui
LAWRENCE DA ARÁBIA é o maior filme da história (Análise)
Anne V. Coates (1925-2018) 1963 Vencedor Oscar Best Film Editing Lawrence da Arábia
Pauline Kael, 1001 noites no cinema, tradução: Marcos Santarrita e Alda Porto, Seleção: Sérgio Augusto, p. 264 e 265, Compahia Das Letras, 1994. (Dê dois cliks para ver melhor a imagem)
CRÍTICA | LAWRENCE DA ARÁBIA por RITTER FAN 10 de julho de 2016
Por um momento desconsidere os fatos históricos retratados em Lawrence da Arábia: o embrião da Revolução Árabe, a derrota do Império Otomano, a unificação das tribos de beduínos, a 1ª Guerra Mundial. Esqueça também o caráter épico da fotografia de Freddie Young e da arrebatadora trilha de Maurice Jarre (ambos responsáveis pelo excelente Doutor Jivago) e a direção cirúrgica de David Lean, o Cecil B. DeMille dos anos 60. Foquemos no personagem – não na figura história – de T.E. Lawrence ou Al Lawrence, como é rebatizado por Sherif Ali e foquemos em Peter O’Toole, então com 30 anos e em seu primeiro papel de destaque.
Anthony Quinn, Lawrence, O’Toole e Omar SharifMuito criticado inicialmente por ser “alto demais” ou por atuar de maneira afetada, aspectos que difeririam muito do verdadeiro Lawrence, O’Toole constrói um personagem absolutamente fascinante. Seu olhos profundamente azuis, seu cabelo pastoso loiro, seu físico magérrimo de pele muito branca tomam a tela de tal maneira que é literalmente impossível desviar o olhar ou não se interessar de primeira por aquela figura peculiar.
Trejeitos? Com certeza! Em determinados momentos, como na sequência em que desfila, vitorioso, em cima de um trem turco depois que seu batalhão árabe o explode, ele parece uma primadonna, destacando-se de tal maneira do que vemos ao redor que pode até parecer estranho ou completamente deslocado. Mas é justamente por essa postura corajosa, inédita – sim, artificial por vezes – que o Lawrence que vemos é tão magnético. Se ele não era assim na vida real, não poderia me preocupar menos. O Lawrence das telas é Peter O’Toole e sua evolução de desenhista de mapas do exército britânico a líder das tribos árabes, angariando respeito dos líderes de um lado e de outro é convincente e chocante.
Seu começo é pacato, idealista, usando de seu conhecimento profundo sobre “as arábias” para iniciar um inédito – e completamente desacreditado – projeto de arrebanhamento dos nômades beligerantes entre si em prol de um objetivo em comum, a derrota dos turcos que, por sua vez, beneficia a Coroa Britânica, O’Toole, ao longo das quase quatro horas de projeção faz seu personagem crescer e crescer até cair e cair. Vemos, vagarosamente, Lawrence construir amizades, concretizar planos, tornar-se um herói, converter-se em um assassino e um sádico em uma espiral de loucura causada pelos horrores da guerra que ele não esperava. Ver O’Toole, com poeira dos pés a cabeça, sentado em seu dromedário com olhar fixo no horizonte, pensando na morte de Daud, um rapaz nômade que o serve e, depois, no terço final, vê-lo liderar um sanguinário ataque a turcos em fuga que acabaram de massacrar uma vila é de cortar o coração, mas é um caminho perfeitamente crível e lógico, ainda que, de certa forma, o caráter puramente heroico de seus atos acabe se dissipando.
Dentro de um épico filmado em widescreen extremo com uma câmera Super Panavision 70 e que amealhou sete das 10 estatuetas do Oscar que concorreu, há uma história intimista de um soldado visionário que é profundamente afetado pelo que vê ao seu redor. Essa é a mágica de David Lean dirigindo O’Toole, mágica essa que ele repetiria com Omar Sharif em Doutor Jivago, ainda que Lawrence da Arábia tenha ainda mais ambições. Para Lean, os momentos de ação repletos de extras cavalgando cavalos e dromedários são tão importantes quanto os momentos de silêncio – total, sem nem mesmo trilha sonora – como quando Lawrence volta para resgatar um membro de seu batalhão que caiu da montaria no meio do mortal deserto de Nefud, a caminho de Aqaba (hoje na Jordânia, àquela época no Emirado da Transjordânia, não reconhecido oficialmente). Lean vai do macro ao micro em questão de minutos fazendo-nos participar de cada momento desses anos da vida de Lawrence.
Mas Lean não tinha “apenas” O’Toole com quem trabalhar. Omar Sharif, vivendo Sherif Ali, o beduíno da tribo Harita e primeiro verdadeiro amigo e admirador de Lawrence é igualmente impressionante em seu papel. Ele é o selvagem que Lawrence odeia, mas em quem acaba se transformando ao ponto de Sherif passar a temer Lawrence e o monstro em que se tornou. A transformação de Omar Sharif, seria possível dizer, é inversamente proporcional à de Peter O’Toole, cada um caminhando em direções opostas e nunca realmente se encontrando, mas sempre se respeitando.
Há, ainda, Anthony Quinn como o espalhafatoso Auda abu Tayi, líder da tribo Howeitat, inimiga da Harita. Quinn, mexicano de origem, é camaleônico em seu papel, ainda que a marca do “tipo de personagem” que sempre fez – forte, esbravejador, bárbaro – esteja lá bem presente. No espectro oposto, há Alec Guiness como o Príncipe Faisal, aliado dos britânicos e que se tornaria rei da Síria. Guiness o constrói de maneira reservada, discreta, mas extremamente astuta, exatamente como um político costuma ser. Confesso ter sentido estranheza com o ator britânico no papel do príncipe árabe, mas, no final das contas, ele acaba funcionando, talvez por sua presença ser pontual, aqui e ali.
Eu poderia voltar ao que propositalmente deixei de fora no início da crítica, o panorama geopolítico da época naquela região do mundo, mas meu trabalho aqui não é dar uma aula de história (e nem seria capaz disso). Lawrence da Arábia é conhecido por suas várias inexatidões tanto históricas como em relação aos personagens. Seria um erro fatal esperar um documentário de um filme de ficção e, mesmo que o viés imperialista dos britânicos esteja presente e Lawrence seja apresentado como um salvador, o espectador precisa olhar além desses aspectos e focar no que Peter O’Toole fez ali.
E não só Peter O’Toole, como o restante do elenco e, lógico, David Lean na direção, Freddie Young na fotografia e Maurice Jarre na retumbante trilha sonora. Lawrence da Arábia é um feito único, uma obra de escopo tão amplo quanto intimista que moverá o espectador que estiver disposto a seguir Al Lawrence pelas arábias.
Lawrence da Arábia (Lawrence of Arabia, Reino Unido – 1962)
Direção: David Lean
Roteiro: Robert Bolt, Michael Wilson
Elenco: Peter O’Toole, Omar Sharif, Alec Guinness, Anthony Quinn, Jack Hawkins, José Ferrer, Anthony Quayle, Claude Rains, Arthur Kennedy, Donald Wolfit, I.S. Johar, Gamil Ratib
Duração: 222 min. (duração original) / 202 min. e 187 min. (cortes lançados no cinema posteriormente) / 216 min. (versão restaurada de 1989) / 227 min. (corte do diretor de 2001 – versão objeto da presente crítica)
Lawrence da Arábia: a surpreendente história de T. E. Lawrence podcast
14/01/2024
Você Nunca Esteve Realmente Aqui, You Were Never Really Here, 2017, Lynne Ramsay
Disponível em Filmicca
CRÍTICA | VOCÊ NUNCA ESTEVE REALMENTE AQUI por GABRIEL FERREIRA VIEIRA 30/05/2018
Depois de Precisamos Falar Sobre Kevin, que também estreou no Festival de Cannes, Lynne Ramsay volta com uma obra ainda mais genial e idílica, e menos ufana. As relações comportamentais diretas entre pais e filhos continuam, as atuações precisas continuam e o roteiro equilibrado, feito para mostrar tudo que é preciso no menor tempo possível, também continua. Além de tudo, o que mais agrada em ver um filme como Você Nunca Esteve Realmente Aqui é sua estrutura toda estilizada, não somente a parte visual ou somente a sonora, são os dois juntos e as atuações também entram nessa. Na primeira cena o filme ganha o espectador, com um visual noturno e imagens construídas a partir de faixas de luz em pontos específicos, a música, como sempre, perfeita de Johnny Greenwood – por favor, leitores, ouçam as trilhas desse grande compositor, em especial essa e Phantom Thread – que carrega a mesma responsabilidade de ares experimentais coerentes do visual, mais a sensacional performance de Joaquin Phoenix como Joe – e a de um sujeito que só aparece para levar uma cabeçada dele, todavia uma ótima atuação.
Sem querer comparar muito com seus outros filmes, pode-se dizer que Ramsay atingiu seu ápice no quesito visionária, mesmo após um filme como Kevin que, além do público cult, pegou boa parte do mesmo público teen que assiste, digamos, 13 Reasons Why – uma série que, é bom ressaltar, tem acertadas influências do filme da diretora escocesa. Nessa história de veterano do exército americano que volta traumatizado e vira um assassino de aluguel ou algo do tipo, que já ouvimos mil vezes desde a era pós-Bush, somos pegos de surpresa por um material inesperado, afinal de contas o roteiro, certeiro, não entrega tudo de uma vez, todo um passado que define o universo psíquico do personagem nos é mostrado quanto mais nos é necessário saber sobre esse universo psíquico e, assim, toda a história nos vai ficando mais clara na construção de um quebra-cabeça de peças temporais e psíquicas do protagonista, e é mais ou menos tudo isso que importa no filme: montar o quebra-cabeça o expectador por si próprio. Algo muito bom de se fazer é assistir ao filme com mais pessoas, pois é garantida uma extensa conversa sobre as interpretações a respeito de Joe, e é a partir delas que sairão as interpretações temáticas do filme.
Uma das melhores coisas na trama de Você Nunca Esteve Realmente Aqui é falta de pudor em triturar moralmente aqueles que estão no poder. Jonathan Ames, escritor do livro em que se baseia o longa de Ramsay, de roteiro escrito por ela, não mede as circunstâncias ignominiosas e iniquidades nas quais colocará seus personagens políticos, envolvidos com todo tipo de distorção moral que existe: corrupção dos meios de uso da força (diga-se, a polícia), uso vil do poder, exploração do mundo dos narcóticos, redes de pedofilia com pequenos acordos de trocas das crianças uns com os outros, e por aí vai.
E deixar os políticos nus moralmente como essa história faz é inexistente hoje, numa época em que artistas se saem muito bem ao criticar um lado e conseguem destruir tudo com propaganda política para outro lado. Ramsay e Ames são altamente independentes de qualquer ideologia política – eles estão do lado do que é moral e observando aquilo que não é, nada fora isso importa – porque de fato são artistas independentes intelectualmente, deixando claro que não precisam de nenhum tipo de propaganda (ou auto propaganda), para nenhum lado, para se firmarem enquanto artistas bem resolvidos. E o assunto mesmo em pauta aqui é a violência extrema – sim, o filme é violento demais, estão avisados – sempre vetorizada pelos detentores de poder tirânico, existindo eles, em um mínimo exemplo, dentro de casa, como o pai de Joe, um dos maiores traumas de sua vida e espancador cruel de sua mãe, e, em máximo exemplo, os governantes.
Há muito de Kubrick, há muito de Cronenberg – a sequência na casa do governador há muito o que lembrar da sequência na casa do personagem de William Hurt em Marcas da Violência – e há algo de Kieslowski, mas, acima de tudo, há muito da pouco comentada no mundo do cinema (principalmente para o quanto deveria) Lynne Ramsay, e isso é um motivo de comemoração. É uma diretora moderna que não entende de pobreza artística nem se deixa cair pela rampa íngreme da propaganda política. De certo uma artista notável de nosso tempo e com Você Nunca Esteve Realmente Aqui deixa cravado um patamar de pulso artístico que não pode ser levado na brincadeira
A Profissional, The Protégé, 2021, Martin Campbell
Crítica | Eduardo Kaneco, 9 novembro, 2021
A produção requintada e os protagonistas famosos não intimidam Martin Campbell. Afinal, o diretor realizou A Máscara do Zorro (1998), com Antonio Banderas, Anthony Hopkins e Catherine Zeta-Jones, e sua sequência de 2005. Além de Amor Sem Fronteiras (2003), com Angelina Jolie e Clive Owen, e O Fim da Escuridão (2010), com Mel Gibson, entre outros filmes de orçamento generoso.
A Profissional conta com Samuel L. Jackson e Michael Keaton como nomes consagrados, e Maggie Q, como estrela ascendente. Essa atriz havaiana se tornou conhecida pela sua atuação na série Divergente (2014-2016), e apresenta como um dos seus trunfos seu corpo atlético. Por sinal, um atributo muito útil nesse novo filme, que tem uma pegada física extrema.
Em A Profissional, Martin Campbell aproveita sua experiência como diretor de filmes de James Bond – 007 Contra GoldenEye (1995), com Pierce Brosnan, e 007: Cassino Royale (2006), estreia de Daniel Craig na franquia. Porém, a protagonista não é uma agente secreta do governo, mas uma assassina sem licença para matar. Quem a resgatou no Vietnã, em 1991, foi Moody (Samuel L. Jackson), responsável também por treiná-la para ser uma matadora de aluguel de elite, como ele. Essencialmente, o que aproxima esse filme de James Bond são os ambientes sofisticados e os protagonistas e os vilões que pertencem à nata em seus ramos.
Ação visceral
Aliás, a violência extrema e a vulnerabilidade da heroína Anna – submetida a uma cruel tortura e alvo de vários tiros – se aproximam da era Daniel Craig, o mais humanizado dos James Bonds do cinema. Nesse aspecto, como filme de ação visceral, A Profissional não desaponta, nem em quantidade nem em intensidade de cenas emocionantes. Principalmente porque Anna passa quase o filme inteiro tentando se vingar do responsável pelo atentado ao seu amigo e mentor Moody. Então, nesse trajeto, topa com um rival à altura, o duvidoso Rembrandt, cujo charme o coloca a um passo à frente de Anna. Michael Keaton se supera nesse papel, inclusive protagonizando as várias cenas de ação do filme, lembrando os seus tempos de Batman (1989).
Contudo, o roteiro não convence. Por um lado, falha nos detalhes, como nos tiros que acertam os seguranças que estão atrás de Anna, no prólogo – quem os dispara? Mas, acima de tudo, nas essenciais motivações para Moody e Anna resolverem se sacrificar para vencer os maiores malfeitores da trama.
Em suma, quem não se importa com um enredo consistente, se divertirá bastante. Mas, os demais se incomodarão.
Ficha técnica:
A Profissional | The Protégé | 2021 | EUA, Reino Unido | 109 min | Direção: Martin Campbell | Roteiro: Richard Wenk | Elenco: Maggie Q, Samuel L. Jackson, Michael Keaton, David Rintoul, Patrick Malahide, Ray Fearon, Robert Patrick, Florin Piersic Jr.
15/01/24
O Melhor da Vida, Laughter, 1930, Harry d'Abbadie d'Arrast
Pouco antes de morrer, Herman J. Mankiewicz, produtor deste filme, disse que, de todos os filmes em que trabalhara, este era o seu favorito. Comédia bela e sofisticada, uma ode à impraticabilidade, fracassou comercialmente, mas suas atitudes e espírito influenciaram as comédias malucas da década de 1930. (Mesmo o famoso diálogo entre Bogart e Claude Rains sobre a ida a Casablanca em busca das águas é parafraseado de Laughter.) Fredric March faz o herói-compositor que volta a Nova York após passar alguns anos expatriado em Paris; descobre que a beldade da Follies (Nancy Carroll), a quem amou, se casou por dinheiro e perdeu a capacidade de rir. (Laughter, tradução: riso). O rítmo do diretor, H. d'Abbadie d'Arrast, é um pouco vagaroso, e ele perde tempo quando devia ir mais depressa, mas tem estilo visual, sobretudo quando trabalha em interiores ou em cenários deliberadamnete artificiais. (A natureza o desequilibra.) Os cenários art déco são elegantes, e a encantadora Nancy Carroll usa talvez as melhores roupas já vistas na tela (com possível exceção da Greta Garbo em Mulher de brio). E a cena simples com March ao piano, e Nancy e outra garota (Diane Ellis) dançando jazz, que é um dos momentos mais bonitos e felizes do cinema da época. O texto foi sobretudo de Donald Ogden Stewart, embora H. d'Abbadie d'Arrast e Douglas Doty tivessem certa participação, e Mankiewicz provavelmente deu o tom; o roteiro se atola um pouco no melodrama. Com Frank Morgan como o marido da beldade, e Glen Anders na confusa subtrama. (Pauline Kael, 1001 noites no cinema, tradução: Marcos Santarrita e Alda Porto, seleção: Sérgio Augusto, p. 264, Compahia Das Letras, 1994)
Duelo de Gigantes, The Missouri Breaks, 1976, Arthur Penn
Robert E. Lee Clayton é um matador de ladrões de cavalos chamado por David Braxton, que tem cavalos, uma filha e odeia tais ladrões. Clayton elimina um dos ladrões, o que causa a ira dos demais, e está disposto a acabar com um por um, até encontrar Tom Logan o chefe do bando. (Filmow)