A morte com aviso prévio
Várias celebridades só morreram durante ou pouco depois de algo que lhes deu prazer ou satisfação
Ruy Castro, FSP, 01/07/2023
Em 1826, aos 83 anos, o ex-presidente dos EUA Thomas Jefferson estava morrendo de diarreia. Mas queria chegar ao dia 4 de julho, 50º aniversário da Declaração da Independência, assinada por ele. Um dia, acordou e perguntou: "Hoje é 4 de julho?". Ao ouvir que sim, suspirou e morreu. Já o dramaturgo norueguês Henrik Ibsen estava em coma em sua casa, em 1896, cercado pelos amigos. A enfermeira examinou-o e disse que ele parecia melhor. Ibsen protestou "Ao contrário!". E morreu no ato. E Mark Twain, autor de "Huckleberry Finn", nascido sob a passagem do cometa Halley em 1835, escreveu que só morreria quando o cometa passasse de novo. O Halley voltou no dia 10 de janeiro de 1910. Onze dias depois, Twain morreu.
Em 1959, aos 72 anos, Gilberto Amado, escritor e diplomata, chegou da rua vendendo saúde e pediu à funcionária: "Faça-me o melhor chá da sua vida, porque será o meu último". Ela o serviu, ele adorou e foi cochilar. Horas depois, viu-se que fora mesmo o seu último chá.
Gilberto pode ter morrido de prazer. Mas, nesta categoria, há possibilidades ainda melhores. O lendário jornalista Alcindo Guanabara, em 1918, e o poeta e empresário Augusto Frederico Schmidt, em 1964, ambos casados, morreram na cama com suas namoradas. Imagine o que devia ser, na época, ter um homem famoso, casado e morto na sua cama.
Em 1959, Dolores Duran chegou de manhãzinha em casa, vinda do Little Club, no Beco das Garrafas, onde cantava, e disse à empregada: "Que sono! Vou dormir até morrer!". Dito e feito. Tinha 29 anos. Já o cronista e compositor Antonio Maria foi mais prudente. Ao se recolher, deixou um bilhete para o colega de apartamento: "Se me encontrar dormindo, deixe. Morto acorde-me".
Mas Maria só morreu muito depois, em 1964, aos 43, na rua, de um infarto. Melhor assim, porque teve tempo para compor "Madrugada 3 e 5", "Canção da Volta" e "Manhã de Carnaval".
Guimarães Rosa, Gonçalves Dias e Mario Faustino também previram quando ou como iriam morrer --- e acertaram
Ruy Castro, FSP, 30/07/2023
Em 1963, eleito para a Academia Brasileira de Letras, Guimarães Rosa, cardíaco e temendo não resistir à emoção, adiou sua posse enquanto pôde. Rosa era médico, devia saber o que dizia. A ABL não o pressionou e o esperaria pelo tempo que ele quisesse. Em 1967, Rosa criou coragem e marcou a cerimônia para 16 de novembro. Foi uma grande noite, a que ele sobreviveu e saiu de lá feliz. Três dias depois, morreu de enfarte em casa. Rosa sabia mesmo o que dizia.
Em 1862, jornais noticiaram a morte do poeta Gonçalves Dias por afogamento. Mas ele estava vivo e levou a coisa na brincadeira: "Vi nos jornais que tinha morrido. Atiraram-me às ondas. O oceano é o único túmulo digno de um poeta. Vou cuidar da impressão das minhas obras póstumas." Em 1864, quando ele vinha da França pelo "Ville de Boulogne", o navio se chocou com um banco de areia na costa maranhense e naufragou. Todos se salvaram, menos Gonçalves, que, adoentado em sua cabine, morreu afogado.
Os poetas devem ter um canal exclusivo para essas coisas. Mario Faustino, um talento dos anos 1950, era admirado por seu poema "Mito", que dizia: "Os cães do sono calam/ E cai da caravana um corpo alado/ E o verbo ruge em plena/ Madrugada cruel de um albatroz/ Zombado pelo sol". Pois não é que, em 1962, Mario morreu num avião que explodiu sobre os Andes?
E nunca se explicou o sumiço do escritor e jornalista americano Ambrose Bierce. Num de seus contos, ele falou de um homem que desaparecia num deserto ou floresta sem deixar vestígio, como se se evaporasse. Pois foi o que lhe aconteceu no México, em 1913: evaporou-se. Se o mataram, ninguém soube ou viu. E era famoso. Seu corpo nunca foi encontrado.
Outro dia (2), escrevi sobre Thomas Jefferson, Mark Twain, Dolores Duran e outros que intuíram a data de sua morte e acertaram. Mas não me confundam. O máximo a que chego em profecias é prever o passado.
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