Letras: a turma da virada, século dezenove/vinte
Em pé: Rodolfo Amoedo, Artur Azevedo, Inglês de Sousa, Olavo Bilac, José Veríssimo, Sousa Bandeira, Filinto de Almeida, Guimarães Passos, Valentim Magalhães, Rodolfo Bernardelli, Rodrigo Octavio e Heitor Peixoto. Sentados: João Ribeiro, Machado de Assis, Lúcio de Mendonça e Silva Ramos.
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Imagens parecidas no cinema
De Joseph F. Biroc (1903-1996) in Dragões da Violência, Forty Guns, 1957, Samuel Fuller
Eve Brent in Forty Guns, 1957
De Joseph MacDonald (1906-1968) in Céu Amarelo, Yellow Sky, 1948, William A. Wellman
Gregory Peck in Yellow Sky, 1948
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Milly Lacombe e Deus
(...) Minha irmã uma vez me contou uma piada que nunca esqueci e que me ocorreu usar para começar esse texto. Numa cidadezinha do interior do Brasil havia dois irmãos muito endiabrados que tocavam o terror. O mais velho tinha 10, o menor tinha 8. Os garotos eram tão arruaceiros que um dia, depois da missa, os fiéis pediram que o padre os chamasse para uma conversa que pudesse corrigi-los. O padre chamou apenas o mais velho e, depois de uma bronca, disse a ele: "E agora eu te pergunto, meu filho: onde está Deus?". O garoto ficou pálido e emudeceu. O padre, se sentindo confrontado, falou mais alto: Onde está Deus? A criança entendeu que estava em apuros e, tremendo, silenciou mais uma vez. O padre perdeu a cabeça e berrou: Onde está Deus? Onde está? Me diga! O menino saiu correndo da Igreja, chegou em casa esbaforido, puxou o irmão para o quarto e disse: Dessa vez a gente se ferrou total. Deus sumiu e estão achando que foi a gente. Milly Lacombe, 29/11/2021
(...) Mas o risco de perder seu líder no melhor momento da história recente é dessas coisas que o botafoguense e a botafoguense acreditam ser uma espécie de destino. Me lembra um diálogo memorável do seriado Seinfeld que acontece entre o protagonista Jerry e George, seu melhor amigo. Tendo conseguido vender o piloto de um programa que ele e Jerry criaram para uma grande emissora estadunidense, George acha um caroço em seus lábios e decreta que vai morrer de uma doença fatal antes de poder ser bem sucedido. "Deus vai me matar justo agora!", sentencia. Jerry então diz a ele: mas você não acredita em Deus. E George responde: "Acredito sim. Para as coisas ruins". Milly Lacombe, 26/06/2023
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O homem-bomba das Alagoas: policial aliado de Arthur Lira fez 1 bi em contratos, comprou fazenda de 1 milhão de m2 e mansão que era de membro do PCC mas dá plantões de 24h na polícia civil
Por Lúcio de Castro, Publicado 13/06/2023, Agencia sportlight
Um bilhão de reais em contratos espalhados Brasil afora entre governos estaduais, prefeituras e a união. Uma fazenda recém adquirida com 1 milhão de metros quadrados, equivalentes a 100 hectares. Uma mansão em praia paradisíaca. Sete empresas com capital total de R$ 23 milhões.
Os bens que aparecem em nome de Murilo Sergio Jucá Nogueira Júnior não deixam dúvidas: trata-se de um bilionário. Ao menos considerando o que consta no nome dele.
Ainda assim, 12 dias do mês são dentro de uma delegacia da polícia civil, em um plantão de 24 horas que começa às 7h e só vai terminar no mesmo horário da manhã seguinte. Com adicional noturno, o salário bruto do homem de 1 bilhão chega a R$ 10.531,82. Em maio, o líquido ficou em R$ 7.629,72.
No último dia 1º de junho, algumas luzes começaram a ser jogadas sobre esse misterioso personagem. Durante a “Operação Hefesto”, deflagrada pela polícia federal (PF) para cumprir mandados de prisão e de busca e apreensão, foram encontrados R$ 4,4 milhões em dinheiro vivo em cofre num endereço ligado a Murilo Sérgio Jucá.
O objetivo da operação era aprofundar a investigação sobre desvios em contratos para a compra superfaturada de kits de robótica com dinheiro do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação). De acordo com a PF, o policial civil recebeu R$ 550 mil de Edmundo Catunda, sócio da Megalic e aliado do presidente da câmara, Arthur Lira (PP-AL). A investigação da PF aponta também que um dos carros para transportar dinheiro em espécie do esquema era de propriedade do policial. Uma outra digital de Murilo Sergio Jucá chega a Arthur Lira, de acordo com a PF: esse mesmo carro, uma Toyota Hilux preta, foi utilizado pelo deputado na campanha eleitoral em 2022, como está na prestação de contas do parlamentar (abaixo). Uma doação para o atual presidente da câmara.
Murilo Sérgio Jucá não abandonou a carreira mesmo tendo feito, ao longo dos anos, cerca de 1 bilhão de reais em contratos com diferentes governos através de suas empresas e diversos bens. Nem mesmo diante dos estressantes plantões de 24 na “Central de Flagrantes de Maceió”, maior delegacia das Alagoas, iniciada em 11 de agosto de 2003, quando foi admitido na corporação. Em 2005, foi aberta a primeira das sete empresas que aparecem em seu nome e consegue os primeiros contratos com entres governamentais.
Vinte anos depois, coleciona contratos com diferentes esferas de governo. A maior parte desses contratos foi obtida nos último quatro anos.
É nas Alagoas que encontra maior campo para seus negócios. Com o governo daquele estado, nossa reportagem encontrou, através de fontes públicas, R$ 372.659.539,15 milhões (trezentos e setenta e dois milhões, seiscentos e cinquenta e nove mil, quinhentos e trinta e nove reais e quinze centavos). Uma parte através da Bra Serviços Administrativos, e a maior parte pela Reluzir Serviços Terceirizados. A imensa maioria dessa verba vem pela secretaria de saúde, via “fundo estadual de saúde”, em serviços de limpeza e conservação.
No governo federal, as empresas de Murilo Sérgio tem no total R$ 49.940.983.59 milhões, a maior parte entre a Bra Serviços e o MEC. Também podem ser encontrados acordos com a Reluzir e com a Ancol Anjos Engenharia.
O governo de Ibaneis Rocha, no Distrito Federal, tem sido pródigo em contratar os serviços de Murilo Sérgio Jucá Nogueira Júnior. Em seu mandato, encontramos R$ 346.630.561,16 milhões, todos através da BRA Serviços Administrativos.
E na prefeitura de Maceió, são R$ 80.942.377,34, via Bra Serviços. Entre 2022 e 2023.
Com o governo de Santa Catarina, embora a reportagem não tenha encontrado lançado o valor no portal da transparência, identificamos via diário oficial do estado ao menos um contrato de R$ 65.958.966,00 (sessenta e cinco milhões, novecentos e cinquenta e oito mil novecentos e sessenta e seis reais), com a Bra Serviços Administrativos, assinado em 19 de janeiro deste ano, e tendo como objeto a prestação de serviços continuados de limpeza, higienização e conservação de bens (móveis e imóveis), a serem executados nas dependências internas e externas dos prédios do Poder Judiciário daquele estado.
No total, somando governo federal, de Alagoas, do DF, Santa Catarina e prefeitura de Maceio, são R$ 916.132.427,24 milhões. Falar em um bilhão não é apenas arredondar esse montante. Outros contratos encontrados pela reportagem em diários oficiais não foram somados em sua totalidade porque não foi possível quantificar o total, já que não conseguimos via portais da transparência. Mas nesses diários, encontramos pelo menos contratos de Santa Catarina sem confirmação no portal sobre o montante, e ainda da “Disk Container” com o governo estadual de Alagoas, esses últimos verificáveis em contratos mas de soma total sem acesso no portal. Assim, com tantos outros, os R$ 916 milhões, já perto do 1 bilhão, podem ultrapassar a marca facilmente, com eventuais contratos espalhados por prefeituras e governos estaduais Brasil afora.
CONTRATOS DAS EMPRESAS EM NOME DE MURILO SÉRGIO JUCÁ COM DIFERENTES GOVERNOS:
COM O GOVERNO ESTADUAL DE ALAGOAS: R$ 372.659.539,15 milhões
COM O GOVERNO DO DF: R$ 346.630.561,16 milhões
COM ÓRGÃOS DO GOVERNO FEDERAL: R$ 49.940.983.59 milhões
COM A PREFEITURA DE MACEIO: R$ 80.942.377,34
COM O ESTADO DE SANTA CATARINA: R$ 65.958.966,00
TOTAL: R$ 916.132.427,24 milhões
SÓCIO DO POLICIAL EM EMPRESA DE ENGENHARIA ERA SERVIDOR DO ESTADO E FAZIA AVALIAÇÕES DO PREÇO DE TERRENOS PARA O GOVERNO
Entre as sete empresas de Murilo Sérgio Jucá, está a Ancol Anjos Engenharia Indústria e Comércio. Como sócio dele, está Davi Toledo Tenório de Amorim. Que até 23 de junho de 2022, era funcionário lotado como assessor especial da secretaria de estado do desenvolvimento econômico e turismo (SEDETUR), onde desempenhava, entre outras a função de avaliar para o governo o preço de terrenos. A reportagem questionou o governo do estado e também Davi Toledo, em seu contato pessoal, sobre um impedimento para alguém com sociedade em empresa de engenharia desempenhar tal função no governo do estado mas não obteve resposta de nenhum dos dois.
A FAZENDA DE UM MILHÃO DE METROS QUADRADOS NO CORAÇÃO DO ESTADO
Em 1º de setembro de 2021, o nome de Murilo Sérgio Jucá aparece como o de comprador de uma fazenda de um milhão de metros quadrados, equivalente a cem hectares. A multinacional Monsanto vendeu para o policial civil a propriedade onde realizava o melhoramento genético de cana de açúcar.
Exatos 945.745 metros quadrados de área de terreno, sendo 3.932m2 de área construída. Com uma recepção e vestiários na entrada, um escritório, um laboratório, 6 galpões, uma estufa, uma casa para almoxarifado e 28.39% do terreno ocupado por campos agrícolas.
A fazenda está em local privilegiado do estado, na rodovia AL-101, a 28 quilômetros do centro de Maceio, e entrada pela orla entre as praias de Jatiuca e Ponta Verde.
MANSÃO NA PRAIA COMPRADA EM 2022 ABAIXO DO VALOR TINHA PROPRIETÁRIOS LIGADOS AO PCC
Em fevereiro de 2022, Murilo Sérgio Jucá comprou uma mansão na praia de Barra de São Miguel, badalado balneário a 28 quilômetros de Maceio. A compra se deu através da Disk Conteiner. Em outubro, a PF realizou busca e apreensão no endereço à beira-mar e a justiça determinou o seqüestro do bem . A investigação demonstrou que o policial civil e empresário adquiriu o imóvel pagando valor muito abaixo do mercado junto a envolvidos com a organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC).
A mansão de Barra de São Miguel pertencia anteriormente a Erik da Silva Ferraz, filho de João Aparecido Ferraz Neto, o João Cabeludo, ambos do PCC. Foragido do sistema prisional de São Paulo, Erik Ferraz assumiu a identidade falsa de Bruno Augusto Ferreira Júnior em Maceio e passou a viver como rico empresário, adquirindo, em sociedade com familiares, diversos bens de luxo em Alagoas, como parte de esquema de lavagem de dinheiro. Além do capital proveniente do tráfico de drogas, Erik e o pai comandaram o conhecido episódio do assalto a um avião da TAM no aeroporto de São José dos Campos em 1996, quando R$ 6 milhões foram roubados. Em 2017, Erik foi morto em ação da polícia federal, a “Operação Duas Faces”, contra a quadrilha. Os bens seguiram com sua então companheira, Gabriela Terêncio, também apontada como parte da quadrilha e uma das responsáveis pela lavagem do dinheiro.
Em três depósitos realizados em fevereiro de 2022, nos dias 4,14 e 15, Murilo Sérgio Jucá efetuou o pagamento da mansão através da Disk Conteiner para um representante da organização criminosa.
OUTRO LADO:
Murilo Sérgio Jucá:
A reportagem enviou questões sobre o tema para o policial civil em diferentes formas, sem obter resposta.
Deputado Arthur Lira:
A reportagem enviou questões sobre o tema mas não obteve respostas.
Polícia Civil de Alagoas:
A reportagem enviou questões sobre a incompatibilidade entre as práticas do policial e a atuação como servidor mas não obteve respostas.
E enviou a questão abaixo, também sem resposta:
De acordo com o Estatuto da Polícia Civil de Alagoas, em seu Capítulo II (Das Transgressões Disciplinares), Art. 88, são transgressões disciplinares:
XII – participar da gerência ou administração de empresas, qualquer que seja a sua natureza;
XIII – exercer comércio ou participar de sociedade comercial, salvo como acionista, cotista ou comendatário;
O citado policial consta como sócio e administrador de sete empresas, o que parece ferir o estatuto. Qual é a posição da instituição em relação a tal fato?
NOTA DA REPORTAGEM:
Após a publicação, a delegacia geral da polícia civil, através da assessoria de comunicação, enviou a resposta a seguir:
“A Delegacia Geral da Polícia Civil determinou que a Corregedoria da Instituição apure o caso”.
Davi Toledo Tenório de Amorim:
A reportagem enviou questões sobre a incompatibilidade entre a atuação como servidor de Davi Toledo e a participação em empresa de engenharia mas não obteve respostas.
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A Canção da Estrada / Pather Panchali - Por Sérgio Vaz
DE: SATYAJIT RAY, ÍNDIA, 1955
A Canção da Estrada é uma beleza, um grande filme. Um retrato impressionante, emocionante, sobre a vida duríssima, miserável, triste, de uma família no interiorzão da Bengala Ocidental, nos anos 1920, quando todo o Subcontinente Indiano era possessão britânica. Um filmaço – mas é muito mais que isso.
É uma das grandes obras mais improváveis da História; é o início de uma trilogia brilhante; é o filme que lançou ao mundo um dos maiores mestres do cinema; e sua produção e tudo que a envolveu formam uma saga absolutamente fascinante, espetacular.
Uma obra improvável: no primeiro dia de filmagem, em 1952, o diretor nunca antes havia realizado qualquer coisa relacionada a um filme. O diretor de fotografia jamais havia filmado coisa alguma. E as crianças que atuariam em papéis importantes jamais haviam antes passado diante de uma câmara.
O diretor de fotografia chama-se Subrata Mitra. Havia sido escolhido porque era um bom fotógrafo, sabia manejar bem as máquinas fotográficas – embora não tivesse qualquer familiaridade com as câmaras de cinema. O realizador, um jovem mal passado dos 30 anos de idade, trabalhava numa agência de publicidade de sua cidade natal, Calcutá.
Satyajit Ray contaria numa entrevista: – “O primeiro dia era mais como um ensaio para nós, para nos acostumarmos. Para a maioria de nós, era um começo do zero. Havia 8 pessoas na nossa unidade, das quais apenas uma, Bansi (Bansi Chandragupta), o diretor de arte, tinha alguma experiência profissional.”
Ele levou três anos para concluir A Canção da Estrada – no original, Pather Panchali, que em bengali significa “canção da pequena estrada”. (A Índia é um país tão grande, tão complexo, que tem nada menos que 21 línguas oficiais; o bengali é uma delas.) Com metade do filme rodado, o dinheiro que o jovem realizador tinha simplesmente acabou. Uma experiência, aliás, bem semelhante à que tinha tido pouco antes outro grande mestre do cinema em seu filme inicial: o dinheiro que Luchino Visconti tinha para realizar La Terra Trema (1948) também acabou.
Visconti, nobre, conde, vendeu jóias da família para concluir seu filme. Ray, classe média para alta, filho de poeta e historiador, formado em Ciências e Economia pela Universidade de Calcutá, vendeu sua coleção de LPs e pediu à esposa, Bijoya, que penhorasse suas jóias – muito provavelmente menos valiosas que as da condessa italiana mãe de Luchino Visconti.
A ajuda que de fato permitiu que o filme fosse completado veio do governo de Bengala Ocidental. Consta que o dinheiro do empréstimo ao jovem diretor foi anotado nos livros de caixa daquele Estado indiano como “investimento em estradas” – uma referência ao título, canção da pequena estrada.
Esse detalhe pode ser lenda, mas o fato é que está lá na abertura do filme, no início dos créditos iniciais: “O governo de Bengala Ocidental apresenta”.
O realizador agradece por três eventos milagrosos
Bem depois de 1955, o ano do lançamento do filme (em que estava com 33 anos de idade), Satyajit Ray declararia que três milagrosas não ocorrências permitiram que Panther Panchali pudesse ser enfim concluído:
– “Um: a voz de Apu não quebrou. Dois: Durga não cresceu. Três: Indir Thakrun não morreu.”
São nomes de personagens do filme. Indir Thakrun é uma velhinha bem velhinha, que anda toda encurvada – é chamada de tia pelo casal central da história. A atriz que a interpreta é Chunibala Devi.
Durga é a filha mais velha do casal Harihar Ray e Sarbojaya Ray – os papéis, respectivamente de Kanu Bannerjee e Karuna Bannerjee.
Quando a ação começa, Durga é uma linda garotinha aí de uns 5, 6 anos de idade; Sarbojaya, a mãe, está grávida do segundo filho – que virá a ser Apu. Vemos Apu bebezinho em apenas uma sequência, e então há um corte de uns 6, 7 anos.
Apu de 6, 7 anos, é interpretado por Subir Banerjee, um garotinho encantador, de imensos olhos negros, um rosto absolutamente expressivo. A Durga lindinha do início do filme é o papel Runki Baerjee, e a Durga adolescente, aí de uns 12 anos, por Uma Das Gupta.
As duas meninas que interpretam Durga e o garoto que faz Apu, todos eles são lindos, expressivos, encantadores.
A família mora perto de um vilarejo perdido no interior daquela coisa gigantesca que é a Índia. A casa em que vivem pai, mãe e as duas crianças é absolutamente pobre, miserável mesmo. Fica próxima de uma outra igualmente miserável, em que mora a tia velhinha, Indir.
O pai, Harihar, é um sacerdote – mas, ao contrário dos religiosos cristãos das diversas vertentes, denominações, não é ligado a uma Igreja, uma instituição que garanta seu sustento. Recebe alguma ajuda dos fiéis pelas cerimônias que oficia – mas isso é quase nada. Uma pessoa otimista, esperançosa, mas nada prática, pragmática, Harihar escreve histórias, peças para companhias teatrais ambulantes. Dinheiro propriamente dito não ganha. Vive viajando para tentar encontrar algum emprego, algo com que possa prover a família das coisas básicas – mas a verdade é que Sarbojaya muitas vezes se vê sem comida alguma para dar aos filhos.
Aquele interiorzão de Bengala Ocidental que o filme mostra é tão miserável quanto o interiorzão do Nordeste brasileiro, e, embora lá chova muito, na verdade até demais da conta, bem ao contrário do que acontece na região mais pobre do Brasil, me lembrei muito – enquanto revia agora A Canção da Estrada – de Vidas Secas, as duas obras, o livro de Graciliano Ramos e o filme de Nelson Pereira dos Santos.
É muita miséria, muita miséria, muita miséria – e uma imensa, imensa, imensa tristeza.
Pai, mãe e filhos são os personagens centrais do filme – mas o garoto Apu acabará sendo o protagonista dos dois filmes seguintes do que ficou conhecido ao redor do planeta como A Trilogia de Apu. No ano seguinte ao de A Canção da Estrada, 1956, Satyajit Ray lançaria O Invencível/Aparajito. E em 1959 viria O Mundo de Apu/Apur Sansar.
A saga da família do interiorzão de Bengala Ocidental, que, nos dois filmes seguintes, prossegue na cidade sagrada de Benares (hoje conhecida como Varanasi), à beira do Rio Ganges, e na gigantesca metrópole que é Calcutá, foi uma criação – em boa parte autobiográfica – do escritor Bibhutibhushan Bandyopadhyay.
Bibhutibhushan Bandyopadhyay é tido como um dos mais importantes autores da literatura em língua bengali. Seu romance autobiográfico Pather Panchali foi lançado em 1945, quando o escritor, nascido em 1894, estava portanto na maturidade, com 51 anos. Morreria apenas 5 anos depois, em 1950 – Satyajit Ray trataria dos direitos de filmagem da história com a viúva dele.
É interessante verificar as datas. Entre o lançamento do romance e a morte do escritor, houve a independência da Índia do Império Britânico, em 1947, com a criação, ao mesmo tempo, do Paquistão.
Satyajit Ray fez, ele próprio, a adaptação do romance para o cinema – embora não tenha, a rigor, escrito um roteiro. A cada dia, antes de filmar determinadas cenas, ele mostrava para os atores desenhos que fazia, descrevia a situação e explicava o que eles deveriam dizer e fazer.
Ray não fez uma adaptação fiel do romance. Bem ao contrário. Manteve alguns acontecimentos básicos, mas desprezou muitos outros eventos e também um número altíssimo de personagens. “O livro tem mais de 300 personagens”, explica Mamoun Hassan, um estudioso da obra do realizador. “É um livro sobre a vila em que esses personagens vivem. Ray o tornou a história de uma família da vila.”
No interiorzão, não se fala dos ingleses, dos dominadores
Neste primeiro filme, Ray não explicitou em momento algum o onde e o quando. Fiquei com a sensação de que a ação se passava na época em que o filme foi feito, anos 50. Na verdade, a ação de A Canção da Estrada se passa ainda na segunda década do século XX, ali por 1917, 1918. Isso porque bem no início do segundo da trilogia, O Invencível, há um letreiro com o local e a data – Benares, 1920 – enquanto a câmara, colocada num trem, passa numa longa ponte sobre o Rio Ganges. Ali, naquele início de O Incrível, Apu já está com 10 anos de idade. A família acabava de se instalar na grande cidade. (Atualmente, Varanasi, ex-Benares, tem mais de 3 milhões de habitantes.)
Embora a família Harihar Ray e Sarbojaya Ray esteja em Bengala Ocidental, nos anos 20, não há, em A Canção da Estrada, qualquer menção aos ingleses, ao domínio britânico. É como se aqueles e aquilo não existissem. Há, a rigor, um único sinal da civilização britânica, mas o espectador menos atento poderá nem sequer fazer a ligação de uma coisa com a outra: a uma distância não muito longa da casa miserável da família, há uma linha férrea. Da casa, ouve-se o barulho dos trens passando. Em uma sequência tão visualmente bela quanto importante na narrativa, o garotinho Apu e sua irmã adolescente Durga caminham pela primeira vez até perto da linha para ver passar um trem – esse símbolo da civilização britânica.
Como é interiorzão, área rural, longe das cidades, antes do rádio, da TV, da luz elétrica, aquela família de Bengala Ocidental poderia estar em qualquer outra parte da Índia, ou do interiorzão de qualquer país africano, ou latino-americano. “La pobreza és la misma”, como dizia em sua milonga o uruguaio Daniel Viglietti.
Um realizador que estreou com narrativa simples
Quero registrar aqui muitas informações sobre a produção do filme e várias opiniões sobre ele, mas antes gostaria de comentar dois ou três pontos.
Bem diferentemente de muitos outros realizadores que começam a filmar bem novos, e fazem questão de se mostrarem inventivos, criativos, safos, diferentes, Satyajit Ray, neste filme de estréia que concluiu aos 33 anos de idade, não se demonstra encantado com fogos de artifício, criativóis, vejam-como-sou-genial-e-diferente. Bem ao contrário, sua narrativa é simples, direta, escorreita. Clássica. Quase acadêmica, diriam os críticos que adoram fogos de artifício e detestam as narrativas simples, diretas, escorreitas.
Acho fascinante isso: na verdade, embora jovem demais, e absolutamente inexperiente, Ray se mostra um realizador com surpreendente maturidade.
Há, no entanto, um momento de arrebatamento, de grande, fortíssimo impacto formal. Tem tudo a ver com o conteúdo: é um momento de clímax, de uma dor aguda, forte, lancinante: Harihar e Sarbojaya, pai e mãe, se abraçam chorando. O espectador sente que haverá um grito altíssimo. No entanto, não ouvimos o som que sai da boca do pai – é como se o microfone perto dele tivesse sido desligado. O que se ouve é uma nota aguda, alta, cortante, de um instrumento de sopro, que se prolonga numa melodia de tristeza imensa.
Uma sacada brilhante – o resultado do encontro de dois jovens de talento descomunal, Satyajit Ray e Ravi Shankar. Eram conterrâneos e contemporâneos os dois artistas que se transformariam, ao longo da segunda metade do século XX, no principal cineasta e no principal músico da Índia, de fama planetária. Shankar é de 1920, um ano antes do ano de Ray, 1921. Foi exatamente a partir de 1956 que Ravi Shankar passou a se apresentar em grandes cidades ocidentais, e, na Índia, a atuar como criador de trilhas sonoras e diretor musical de produções do cinema de seu país. Ele comporia também as trilhas dos dois outros filhos da Trilogia de Apu.
E é extraordinário como a música de Ravi Shankar é importante na narrativa do filme. Ela não apenas ajuda a criar o clima nos instantes mais importantes, mas pontua cada movimento, cada estado de espírito dos personagens, em especial das crianças, Durga e Apu.
Um detalhe no estilo de Ray e de seu diretor de fotografia Subrata Mitra: em diversos momentos do filme, acontece de a câmara ficar parada num determinado lugar, enquanto os personagens se movimentam, saem do quadro. A câmara não se movimenta atrás deles: fica parada, e quem se movimenta de volta para dentro do quadro são os personagens.
Uma estréia que teve reconhecimento internacional
Lembrei mais acima que Ray, assim como Luchino Visconti, teve imensas dificuldades para financiar seu primeiro filme. Há uma característica que o aproxima de outro gigante: da mesma maneira com que Orson Welles se tornou conhecido mundialmente com seu primeiro longa-metragem, Cidadão Kane (1941), Ray obteve reconhecimento internacional com este A Canção da Estrada, sua primeira obra.
Foi um sucesso tão grande quanto imediato. Na Índia, ganhou o prêmio nacional de melhor longa-metragem. Foi admitido para exibição no Festival de Cannes, um dos três mais importantes do mundo, ao lado dos de Berlim e Veneza, e lá obteve uma honraria especial, o Prêmio Internacional Documento Humano. Recebeu uma indicação ao Bafta, da academia britânica, na categoria de melhor filme.
O grande John Huston viu um copião do filme, apaixonou-se por ele e alertou Hollywood sobre a importância do realizador. Com a passagem do tempo, A Canção da Estrada só ganhou mais reconhecimento. Em um levantamento feito em 2005 pela revista Time, foi colocado entre os 100 melhores filmes de todos os tempos. Numa pesquisa entre críticos realizada pela BBC recentemente, em 2018, Pather Panchali ficou em 15º lugar entre os filmes falados em outro idioma que não o inglês. O filme está na lista dos Grandes Filmes do crítico Roger Ebert e no livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer.
Não rendeu dinheiro para seu realizador, mas o reconhecimento foi tão amplo que ele se sentiu seguro para deixar o emprego na agência de publicidade e passar a se dedicar completamente ao cinema.
De Akira Kurosawa, outro dos maiores mestres destes primeiros 120 anos de cinema, Satyajit Ray mereceu a seguinte frase:
“Não ter visto os filmes de Ray é ter vivido no mundo sem jamais ter visto a lua e o sol.”
Um cineasta que discute valores morais, princípios básicos
Por seus trabalhos posteriores, pelo conjunto de seus 37 títulos como diretor e 70 como roteirista, que lhe renderiam uma coleção de 46 prêmios e outras 19 indicações Satyajit Ray ficaria conhecido como um dos maiores humanistas do cinema, e um dos realizadores que foram mais fundo na discussão dos valores morais, do respeito a alguns princípios básicos, da necessidade de cada pessoa e cada grupo social lutar contra a corrupção.
Esse tema central de sua obra já está claramente presente em Pather Panchali. Aparece na primeira cena do filme: do terraço de sua casa, uma mulher rica do vilarejo vê a garotinha Durga roubar uma fruta de seu pomar, e esbraveja contra ela. A acusação dói profundamente em Sarbojaya, a mãe da menina. Roubar – mesmo que seja uma fruta de nada – é um crime terrível, é tudo que aquela mãe não deseja que um filho faça.
Numa das sequências mais fortes do filme, essa mulher rica irrompe na casa de Sarbojaya, acompanhada de suas duas filhas, para acusar Durga de haver roubado um colar de uma das meninas.
A mãe reage com uma violência desmesurada contra Durga, arrastando-a pelos cabelos para fora de casa. Durga garante de pé junto que não roubou o colar.
Bem perto do final do filme, o espectador ficará sabendo a verdade.
Valores morais, princípios básicos. Nenhum outro dos grandes mestres do cinema foi tão fundo na discussão desses temas.
Uma “dosagem sutil de realismo e lirismo”
O livro As Obras-Primas do Cinema, de Claude Beylie, selecionou apenas quatro filmes lançados em 1955 – um deles é A Canção da Estrada. O autor realça o fato de que o cinema indiano já era, naquela época, um dos férteis, prolíficos do mundo, rivalizando apenas com os Estados Unidos, com cerca de 700 títulos por ano. “A enorme produção da Índia (700 filmes realizados cada ano) deixou pouco espaço para a criação pessoal. Um só grande cineasta revelou-se: Satyajit Ray.”
E mais adiante: “Ritmado por uma música obsedante de Ravi Shankar (cítara, flauta e tabla), A Canção da Estrada impressiona por sua dosagem sutil de realismo e lirismo. Todas as coisas existem juntas, ‘numa globalidade em que a morte e a vida, o indivíduo e o cosmo, não podem mais, não devem mais ser distinguidos’ (Henri Agel). Isso é arte de altíssimo nível.”
Diz o livro 1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer, de Steven Jay Schneider: “A direção de Ray é de uma grande delicadeza, capaz de expressar tanto emoções fortes quanto lirismo. Poucos esquecerão a sequência em que Apu e Durga ouvem o som do vendedor de doces ambulante. Embora não tenham dinheiro para comprar as guloseimas, os dois saem correndo atrás dele, seguidos por um cachorro curioso, enquanto a pequena procissão é refletida em uma lagoa. Auxiliado pela música maravilhosa de Ravi Shankar, A Canção da Estrada alcançou sucesso mundial, alçando Ray ao reconhecimento no Festival de Cannes em 1956.”
Diz o Guide des Films de Jean Tulard sobre La Complainte du Sentier, o lamento do caminho, que foi como os distribuidores franceses chamaram Pather Panchali: “Muito emocionante, comovente mesmo, sua linguagem é ao mesmo tempo universal e profundamente indiana. Simples e autêntico, ele é antes de tudo eficaz pela maestria técnica sem par de S. Ray. Seu estilo é do mais puro lirismo e trata com poesia a miséria e os dramas de uma família. O roteiro, a elaboração das sequências, a composição dos olhares e das atitudes transcendem um relato preciso, torna o filme ainda mais autêntico e nos permite estar em plena comunhão com os personagens, sua situação e sua evolução. Verdadeira crônica familiar, indo do nascimento à morte, ela assume diferentes tons: o da firmeza e de toda atenção de uma mãe quando se trata da educação dos filhos – uma encantadora discrição do nascimento de Apu; o da fineza e contenção nas atitudes dos pais nos eventos trágicos, como (aqui o texto apresenta um spoiler, que corto fora). Ray recusa todos os efeitos espetaculares e que cedem ao apelo comercial. Ele quer nos enternecer não pela escuridão da miséria, mas pelo que ela tem de respeitável e tocante.”
Que beleza de texto esse do Guide de Jean Tulard!
Poucos filmes indianos são lançados aqui
Embora a Índia seja o país que mais produz filmes em todo o mundo, com atualmente cerca de 1.000 títulos por ano (ante cerca de 800 da Nigéria, 450 dos Estados Unidos, 400 do Japão e 300 da China), o cinema indiano não tem muito espaço no Brasil. Creio que nunca teve. Só nos últimos anos, parece, alguns títulos de Bollywood – como é chamada a região que concentra boa parte da produção indiana, em Bombaim, hoje Mumbai – passaram a estar disponíveis para os assinantes da Netflix. Os lançamentos em circuito comercial são muito poucos.
Vi alguns filmes de Satyajit Ray na Cinemateca Brasileira; em 2002, o Telecine 5, antes de virar Telecine Cult, mas cult como nunca, apresentou um festival de filmes do realizador, inclusive os da Trilogia de Apu. Hoje em dia, com a internet, deve estar mais fácil localizar obras de Ray, assim como outros filmes indianos.
De qualquer forma, tem que ser elogiado o lançamento da caixa A Trilogia de Apu, com três DVDs, trazendo os filmes completamente restaurados, com imagem e som impecáveis, e ainda uma boa quantidade de extras, num total de mais de 3 horas. Os extras incluem entrevistas preciosas com o próprio Satyajit Ray, atores, colaboradores, como o músico Ravi Shankar. Há um excelente documentário de quase 50 minutos, The Apu Trilogy – A Closer Look wih Mamoun Hassan, o estudioso da obra do cineasta que já foi citado aqui. A caixa foi lançada na coleção Obras Primas, da empresa M.D.V.R., a mesma que trouxe, também em caixa caprichada, o Guerra e Paz de Sergei Bondarchuk, o filme mais caro da história da União Soviética.
Anotação em novembro de 2019
A Canção da Estrada/Pather Panchali
De Satyajit Ray, Índia, 1955
Com Karuna Bannerjee (Sarbojaya Ray, a mãe), Kanu Bannerjee (Harihar Ray, o pai), Chunibala Devi (Indir Thakrun, a velha tia), Uma Das Gupta (Durga adolescente), Runki Banerjee (Durga criança), Subir Banerjee (Apu Ray)
e Reba Devi (Seja Thakrun), Aparna Devi (a mulher de Nilmoni), Tulsi Chakraborty (Prasanna, o professor), Haren Banerjee (Chinibas, o vendedor de doces), Nibhanani Devi (Dasi Thakurun), Rama Gangopadhaya (Ranu Mookerjee), Roma Ganguli (Roma), Binoy Mukherjee (Baidyanath Majumdar), Harimohan Nag (médico)
Roteiro Satyajit Ray
Baseado no romance de Bibhutibhushan Bandyopadhyay
Fotografia Subrata Mitra
Música Ravi Shankar
Montagem Dulal Dutta
Direção de arte Bansi Chandragupta
Produção Governo de Bengala Ocidental. DVD M.D.V.R., Obras Primas.
P&B, 125 min (2h05)
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Por que restaurantes do Peru deixam os brasileiros no chinelo?
Central, de Lima, encabeça lista 50 Best, que tem mais 2 peruanos; apenas A Casa do Porco representa o Brasil
Marcos Nogueira, FSP, Cozinha Bruta, 20/06/2023
Então o restaurante Central, de Lima, foi eleito o melhor do mundo no ranking da água San Pellegrino. É, de fato, relevante para o setor de gastronomia da América Latina, pela primeira vez no topo da lista – não vou discutir aqui a validade dessa ou de qualquer outra premiação, já o fiz em outros anos.
Finalmente posso ir para o boteco, subir na mesa e bradar que já comi no melhor restaurante do mundo. Estive no Central em 2012, portanto onze anos atrás, e nada tenho a opinar sobre a qualidade da cozinha campeã dos 50 Best.
Os chefs Pia Leon e Virgilio Martinez, do restaurante Central, no Peru - Daniel Silva/Divulgação
Algo que sempre me intrigou, antes e depois de visitar o Peru, é a razão por que os restaurantes de Lima e a gastronomia peruana têm aceitação internacional muito mais ampla do que São Paulo e a cozinha brasileira.
Quem nunca foi ao Peru e lê esses textos de gastronomia pode pensar – eu cheguei a fantasiar algo do tipo – que Lima é um paraíso dos glutões, onde você tropeça em tesouros gastronômicos a cada esquina.
Não é bem assim.
Lima é um lugar muito peculiar, onde nunca chove e garoa o tempo todo.
A comida é inegavelmente boa, mas o que mais salta aos olhos do visitante é a desigualdade social. Lima é muito mais desigual do que São Paulo. Talvez esteja no nível de Maceió ou de Manaus.
O setor de Lima onde se encontram os restaurantes premiados é minúsculo. Grosso modo, a elite e a alta gastronomia estão em três distritos: Miraflores, San Isidro e Barranco.
Foto - Peru cozinha 3
Nesses bairros, nem todos os serventes são indígenas, mas todos os servidos são brancos. A concentração de sapatênis e camisas Lacoste impressiona nos restaurantes. As ruas brilham de tão limpas, não há gente pedindo dinheiro ou acampada na calçada.
O restante da cidade, que tem 8,5 milhões de habitantes, mostra a pobreza sul-americana que estamos acostumados a ver nas periferias daqui. Apenas que o trânsito é mil vezes mais caótico.
Quem faz gastronomia no Peru são os ricos brancos ou de ascendência asiática. Igualzinho no Brasil. Então por que Lima tem três restaurantes na lista, enquanto São Paulo tem só um?
Eu vejo dois motivos.
O primeiro diz respeito à cultura limenha, ao que se come nos lares. Os ricos da cidade incorporaram a tradição alimentar popular e a extrapolaram, sem embaraços, nos restaurantes com pedigree. É uma coisa autêntica.
Em São Paulo, há uma ilusão de alecrim dourado que se acha europeu no meio dos bugres. A mesa da elite, afora um bobó aqui e uma feijoada ali, imita a França, a Itália e os Estados Unidos.
Para resgatar – o verbo indica que a coisa já começa mal– a culinária de raiz, nossos chefs empreendem expedições, mergulham em bibliografia, fazem um trabalho etnográfico.
Olhar estrangeiro, em suma. Notável exceção é a Casa do Porco –não por acaso, o único brasileiro na lista dos 50–, que cria em cima das bases caipiras de Jefferson Rueda.
outro trunfo peruano é o investimento estatal na gastronomia. O governo de lá decidiu que comida é uma grande cartada de soft power diplomático. Aplicou e colheu resultados.
No Brasil, já se ensaiou fazer algo semelhante, mas a iniciativa nunca engrenou. Podemos seguir o exemplo do Peru e injetar um rio de grana na promoção da comida brasileira.
Vale a pena? Eu, apesar de tirar meu sustento da gastronomia, acho que não. Temos muitos nós mais urgentes para desatar.
E, francamente, olhe bem para o Peru: é menos notório pelos 50 Best do que pela convulsão social que não deixa governo algum parar em pé. A gente não quer só comida, ou quer?
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Odores nada republicanos
Ativo na imprensa, Sérgio Porto investia contra o que chamava de Festival de Besteiras que Assola o País
Muniz Sodré, FSP, 24/06/2023
Meio século atrás, Stanislaw Ponte Preta, heterônimo humorístico do escritor e jornalista Sérgio Porto, cunhou o neologismo "depufede", inicialmente em referência a um deputado federal que, para combater o comunismo no país, queria proibir a vodca. Nada muito estranho: era época da "Redentora", outra malícia sua para a ditadura militar. Muito ativo na imprensa carioca, ele investia contra o que chamava de "Febeapá", Festival de Besteiras que Assola o País.
Sérgio Porto cronista do jornal "Última Hora" e criador do personagem Stanislaw Ponte Preta - 1963-UH/Folhapress
A atualidade de Lalau, nome carinhoso do cronista, põe-se todo instante à prova na vida pública atual, onde a besteira, elevada ao zênite, corrói a civilidade institucional num verdadeiro culto à estupidez. Embora antenados a um determinado momento, seus ditos afiados guardam algo de intemporal, como as tiradas de Mark Twain. "Leitor, vamos supor que você fosse um idiota. E vamos supor que você fosse membro do Congresso. Mas estou me repetindo", boutade de Twain. "Depufede", agulhada de Stanislaw.
Na leitura da esfera pública, a reprise de sátiras pode comportar atualização, especialmente quando o sensório, não mais apenas o palavreado, se faz incontornável. Nunca foram tão mobilizáveis as emoções explicativas, mas permanece à margem o sentido do odor. Sobre isso o marketing sensorial tem algo a ensinar, no capítulo dos perfumes, ao falar de "famílias olfativas" como conjuntos de essências com diversas semelhanças entre si.
Reinterpretada, a expressão depufede cresce em literalidade semântica quando a Câmara de Deputados aprova um projeto de lei que criminaliza a malevolência verbal contra seus próprios membros, parentes e colaboradores. Se vivos, Twain e Stanislaw seriam alvos naturais. Mas um representante da dignidade minoritária, contrário ao projeto, objetou: "Cheira mal!" No Senado se tapou o nariz.
Esse tipo de juízo corrobora a hipótese de que a raiz mais antiga da vida emocional esteja no olfato. Bem o sabia o apóstolo Paulo: "Nós somos o aroma de Cristo, espalhando sua fragrância em todos os lugares" (2 Coríntios 2:15). Ou então José Saramago: "A maior dificuldade para chegar a viver razoavelmente no inferno é o cheiro que lá há" ("Ensaio sobre a Cegueira").
O neologismo de Lalau adquire plenitude em famílias olfativas cevadas no recente chorume legislativo. Não é bodum físico igual ao do avião de drogas do ex-deputado, tio de senadora. É mau cheiro moral, exalado de conjuntos híbridos de roubos, cinismos e chantagens. Isso requer jornalismo de nariz apurado, capaz de espelhar sinestesicamente, como se faz com sensação térmica, a náusea social. Já existem exemplares ferroadas estéticas, como "sertanojo", de José Simão. Depufede é, politicamente, a bandeira amarela do fisiologismo metastático.
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Revi The Night Of, minissérie, 2016, Richard PriceSteven Zaillian. Recomendabilíssima
Riz Ahmed e John Turturro protagonizam esta minissérie. Conheci primeiro no filme (notável e impactanfe) O Som do Silêncio, Sound of Metal, 2019, Darius Marder
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