Morre Zé Celso, criador do Teatro Oficina e tradutor do tropicalismo para os palcos
Vítima de um incêndio, dramaturgo substituiu bom gosto pela verdade em peças como 'O Rei da Vela', que afrontou a ditadura
Gustavo Zeitel, FSP, 06,07,2023
Maior nome da dramaturgia nacional e criador da linguagem tropicalista no teatro, José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, que encenou a folia, a orgia e a anarquia no Teatro Oficina, morreu nesta quinta-feira (6), aos 86 anos, em São Paulo.
Ele estava internado na unidade de terapia intensiva do Hospital das Clínicas depois de ter tido 53% de seu corpo queimado em um incêndio causado por um aquecedor elétrico que consumiu seu apartamento, no Paraíso, bairro da zona sul paulistana, durante a madrugada de terça-feira (4).
Nos anos 1960, Zé Celso escolheu a anarquia oswaldiana para desafiar a repressão da ditadura militar. O artista participou do grupo fundador do Teatro Oficina —também formado por Renato Borghi, Fauzi Arap, Etty Fraser, Amir Haddad e Ronaldo Daniel—, que se tornaria símbolo do teatro brasileiro.
Dez anos mais tarde, a companhia montou "O Rei da Vela", clássico inspirado no livro de mesmo nome escrito em 1933 por Oswald de Andrade, que satirizou a política e o comportamento subserviente do país em relação ao mundo desenvolvido.
Sob a direção de Zé Celso, os atores Renato Borghi, Othon Bastos, Etty Fraser e Dina Sfat ironizaram os filmes da Atlântida, as comédias de costume e o tom empolado das óperas. Em "O Rei da Vela", Abelardo, um agiota, enriquece endividando os outros e acaba trapaceado por um sujeito ainda mais sem caráter.
Zé Celso consolidava então os alicerces do Oficina, indo ao centro da linguagem dramatúrgica. Pensador do teatro, ele resgatava o conceito da antropofagia modernista. Mastigava e deglutia a cultura estrangeira, servindo ao público um banquete tropicalista. Assim, rompia com o estilo europeizado do Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, atribuindo sentido à arte teatral brasileira da segunda metade do século 20.
Zé Celso substituiu o bom gosto pela verdade. Profundo conhecedor do método do russo Constantin Stanislavski, operou uma mudança determinante na atuação brasileira. As peças não seriam compostas por uma sucessão de falas justapostas, mas por um permanente diálogo entre o elenco e a plateia.
Tal mudança impôs um novo significado para o espaço cênico. Ao modo de uma ágora, Zé Celso se voltava à essência do teatro, num jogo entre performance e catarse. Já não era mais interessante a representação, mas a convivência em cena de múltiplas linguagens.
Em suas peças, o diretor buscou desregular o moralismo conservador, com a nudez e a escatologia. A transgressão era, simbolicamente, uma agressão à ordem vigente, o que se tornou elemento constitutivo da poética do Oficina.
Regido por Dioniso, deus grego do teatro, ele concebeu a encenação como um ritual, encontrando o profano dentro do sagrado. Ancorado na contracultura em voga nos anos 1960, almejava o transe em vez do sublime.
O segundo ato de "O Rei da Vela", por exemplo, é caracterizado pela liberdade sexual. O diretor adotaria o mesmo estilo de vida, tendo interesse por todas as formas de amor e experimentando o barato criativo das drogas. Ele voltaria a desafiar a ditadura em 1968, quando estreou no Rio de Janeiro "Roda Viva", uma composição de Chico Buarque.
Com Marília Pêra e Antônio Pedro nos papéis principais, a peça criticava a sociedade de consumo no drama de um cantor que decide mudar de nome, manipulado pelos desígnios da indústria cultural. O Ato Institucional nº5, o AI-5, havia acabado de ser promulgado, e a repressão do regime militar reforçou a perseguição e a censura aos artistas.
Numa apresentação no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, vinte integrantes do Comando de Caça aos Comunistas, o CCC, invadiram a sala de espetáculos, agrediram os artistas e destruíram o cenário. Depois de uma sessão em Porto Alegre, "Roda Viva" foi censurada em definitivo.
Em 1974, Zé Celso foi preso numa solitária e torturado. Sem condições de trabalho no Brasil, o artista se exilou em Portugal, onde montou "Galileu Galilei", espetáculo inspirado na teoria do dramaturgo alemão Bertold Brecht. Em 2010, Zé Celso foi anistiado pelo Estado brasileiro, recebendo também uma indenização de R$ 570 mil.
Nascido em Araraquara, no interior de São Paulo, Zé Celso estudou para ser advogado na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. No Centro Acadêmico 11 de Agosto, integrou o grupo de jovens que formaria o Teatro Oficina em sua fase amadora. Na época, escreveu os textos "Vento Forte para Papagaio Subir", de 1958, e "A Incubadeira", de 1959, ambos dirigidos por Amir Haddad.
Na virada da década, o grupo se profissionalizou. Em 1963, encenou "Pequenos Burgueses", do russo Máximo Gorki, com Rosamaria Murtinho e Tarcísio Meira. Na peça, Zé Celso traçava um paralelo entre a vida na Rússia pré-Revolucionária e o Brasil às vésperas do golpe militar.
Dois anos antes, a companhia havia adquirido a sede da rua Jaceguai, no Bixiga, com projeto do arquiteto Joaquim Guedes. A sala de espetáculos já tinha então uma estrutura pouco usual. Duas arquibancadas se defrontavam, deixando no meio o espaço vazio onde acontecia a encenação.
O diretor inaugurou o espaço, montando a peça "A Vida Impressa de Dólar", de Clifford Odets. Em 1966, um incêndio destruiu o edifício do Oficina, que foi reformado em seguida. Em 1991, Lina Bo Bardi radicalizaria a proposta da companhia em um novo projeto arquitetônico.
Com uma estrutura horizontal, a plateia se senta no alto de andaimes de frente para uma parede envidraçada. O plano aberto se tornou idôneo para os acontecimentos orgásticos do Oficina. Em 2015, o jornal britânico The Guardian considerou o prédio como o melhor projeto arquitetônico do mundo.
Ao longo do tempo, o Oficina se tornou um centro de estudos da dramaturgia brasileira. No teatro, foram formados atores como Bete Coelho, Leona Cavalli e Esther Góes. Por ali, passaram também Augusto Boal, Fernanda Montenegro, Marieta Severo e Zezé Motta.
Nos anos 1980, Zé Celso se dedicou à pesquisa teatral e ofereceu cursos no Oficina. Em 1991, atuou, ao lado de Raul Cortez, em "As Boas", clássico do francês Jean Genet.
No cinema, Zé Celso assinou o roteiro de "Prata Palomares", de 1972, atuou em "Um Homem Célebre", dois anos depois, e dirigiu o curta-metragem "O Parto", em 1975. No ano de 2015, voltou a atuar, no filme "Ralé", ao lado de Helena Ignez. Seu maior êxito no cinema foi a adaptação de "O Rei da Vela", que arrematou os prêmios de melhor montagem e de melhor trilha sonora do Festival de Gramado.
Durante quatro décadas, o artista brigou na Justiça com Silvio Santos. O apresentador e dono do SBT, que era proprietário do terreno, pretendia construir ali um conjunto residencial de três torres, cada uma com cem metros de altura. Já o artista brigava para que fosse construído um parque público no local.
Zé Celso deixa o marido, Marcelo Drummond, ator do Oficina, com quem viveu durante 37 anos. Num prólogo da tragédia, os dois se casaram, no mês passado, na sede do teatro. Zé Celso apresentava o seu derradeiro ato, um espetáculo festejado por artistas, bacantes que comungavam juntos o amor, o humor e um revolucionário do teatro brasileiro.
João Carlos Martins diz que tombou o Teatro Oficina em cinco dias e que Zé Celso 'chorou, chorou'
Maestro era secretário estadual de Cultura de SP e articulou ação com o Condephaat
Mônica Bergamo, FSP, )6/07/2023
O maestro João Carlos Martins foi o responsável pelo tombamento do Teatro Oficina, em 1982, quando era secretário estadual da Cultura em São Paulo. Já naquela época, Silvio Santos investia na terra ao lado do espaço e pretendia comprar o lote ocupado pelo grupo de Zé Celso, que então alugava o imóvel.
Martins lembra que entregou o documento do tombamento do teatro em mãos. Os dois estavam em seu gabinete e não contiveram a emoção. "Ele começou a chorar. Chorou, chorou. Choramos juntos", afirma.
"O tombamento é uma carta sagrada, que ninguém, nem mesmo a ditadura da época, conseguiria contestar. Tanto é que o Silvio Santos tenta há 40 anos construir alguma coisa lá e não consegue", diz o maestro.
Os trâmites para acelerar o processo tinham começado cinco dias antes.
Martins conta que estava em seu gabinete quando recebeu um telefonema da recepção. "Me falaram que havia 50 pessoas com roupas coloridas querendo invadir a secretaria, e que chamariam a polícia para impedir", recorda.
O então secretário de Cultura perguntou quem integrava o grupo. Assim que soube que era Zé Celso, acompanhado por companheiros do Teatro Oficina, liberou a entrada deles. E mandou "toda a tropa" subir, mas "pela escada, porque não caberia todo mundo no elevador".
O maestro relembra que ficou na porta de sua sala ouvindo os atores galgarem os degraus, "cantando e gritando 'temos que tombar o Oficina, temos que tombar o Oficina'".
"Zé Celso entrou na minha sala e disse 'você é pianista, você é artista, tem que ajudar o teatro'. Ele também tocava piano", diz Martins.
O fundador do Oficina explicou ao então secretário o seu drama: o teatro corria o risco de ser demolido para que em seu lugar fosse erguido um empreendimento de Silvio Santos.
"Quando ele terminou, eu perguntei: ‘Zé, para quando você precisa desse tombamento?'. E ele respondeu: 'Para ontem'", segue Martins.
A pressa se justificava: o imóvel que é sede da companhia teatral era alugado. E, enquanto o artista lutava para que fosse construído no terreno vizinho o parque público do rio Bexiga, o dono do SBT, por meio de uma de suas empresas, já tinha pronto o projeto de construir ali um conjunto residencial de torres.
Quando Zé Celso conversou com João Carlos Martins, o pedido de tombamento já havia sido protocolado no Condephaat. O maestro afirma que chamou em sua sala o então presidente do Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Arqueológico, Artístico e Turístico de SP), o geógrafo Aziz Ab'Saber, e o vice, o arquiteto e urbanista Benedito Lima Toledo, e lançou para eles o desafio: tombar o Oficina em menos de uma semana.
"Eles se assustaram, mas o idealismo falou mais alto. Em poucos dias, reuniram o conselho inteiro e aprovaram o tombamento", relembra Martins.
Havia pressa também porque, naquele período da ditadura militar, "poderia aparecer uma ordem superior", e o tombamento poderia ser barrado. A companhia de teatro fazia oposição ao regime, que censurava obras artísticas e torturava e matava oponentes. "Cinco dias depois, eu chamo o Zé na minha sala e entrego o documento com o Teatro Oficina tombado, aprovado por unanimidade, e assinado por mim", afirma ainda.
Ele celebra o legado do artista: "Zé Celso criou ousadia para todos os segmentos da artes. A palavra 'ousadia' faz parte do dicionário dele, que foi um genial dramaturgo".
No mês passado, exatamente um mês antes de sua morte, Zé Celso fez uma grande festa no teatro para celebrar seu casamento com o ator Marcelo Drummond.
A festa reuniu artistas, personalidades e intelectuais que lotaram a plateia do espaço. O maestro João Carlos Martins e sua mulher, Cármen, estavam presentes.
com BIANKA VIEIRA, KARINA MATIAS e MANOELLA SMITH
Zé Celso foi e será uma revolução constante de amor e liberdade
Leona Cavalli UOL, 06/07/2023
O Zé foi e continuará sendo uma revolução constante de amor e liberdade. Sua paixão pelo teatro era avassaladora, e irradiava pra todos, no palco ou onde quer que estivesse; talvez por isso seja uma das pessoas mais importantes da história do teatro no mundo.
Seu legado é imenso. O Teatro Oficina, que ele construiu, com arquitetura de Lina Bo Bardi, foi eleito um dos 10 melhores do mundo pelo jornal The Guardian.
Pessoalmente meu amor e gratidão são eternos. Comecei minha carreira com ele no Oficina, com Ham-Let, e fiz muitos outros espetáculos, o último no ano passado, Fausto.
Foi com ele que comecei e, acima de tudo, foi ele quem me mostrou a força do Teatro Sagrado, que trago comigo para sempre. Como eu, muitos começaram e aprenderam com ele e com sua paixão arrebatadora pela arte e pela vida.
Como me disse, na última vez em que o vi, há um mês, no seu incrível casamento com Marcelo Drummond, na hora em que nos despedimos: "Até sempre". Até sempre e para sempre: ZÉ!
Leona Cavalli é atriz, escritora, diretora teatral e palestrante.
Vai acontecer muito teatro na despedida de Zé Celso
Paulo Betti, UOL, 06/07/2023
Diz a lenda que quando o torturador se aproximou, ao invés de lamúrias e súplicas por clemência, o que ouviu do homem a ser torturado, em alto e bom som foi: "venha com esses seus choques elétricos! Eu tenho tesão por eles!".
Era o Zé Celso afrontando o braço perverso da ditadura militar. O teatral total, misturado e sendo a vida.
Sua existência perpassa todas as transformações que sofreu o teatro brasileiro nos últimos dois séculos. Do Teatro Brasileiro de Comédia como contraponto, passando por americanos, russos, pela literatura brasileira, leituras fundamentais dos Sertões de Euclides da Cunha. Zé Celso esteve no epicentro da Tropicália! A versão não menos genial para o teatro da obra literária de Oswald de Andrade. O Rei da Vela, com Renato Borghi, Abrahão Farc, Etty Fraser. Cenários de Helio Eichbauer. Zé esteve no exílio. Quando voltou, fui ao Oficina para o Ensaio Geral do Carnaval do Povo. Aquela bigorna e o nome do grupo, tão desmistificador, oficina, local de trabalho! Não perdi mais nenhum de seus trabalhos.
Ainda estudante da Eadusp (Escola de Arte Dramática-USP), com Eliane Giardini, fui ver "As Três irmãs", peça do russo Anton Tchekhov. Na cena inicial, as três banhavam os rostos e braços numa bacia com água e pétalas de flores. Como estavam lindas! Analu Prestes, Kate Hansen e Maria Fernanda!
O tempo passava com um pião sendo rodado, daqueles que fazem barulho. Em toda peça que faço penso em usar o pião! Outra cena inesquecível era um duelo. Luís Antonio dava o tiro e o fogo queimava no rastilho, indo numa agoniada câmera lenta em direção do outro duelante.
Mais tarde tinha uma tocha com fogo, sempre o fogo, um biombo e a voz grave poderosa de Maria Fernanda: "Será que ainda vamos pra Moscou?" Renato Borghi e Fernando Peixoto também estavam naquele palco. Lembro como Eliane e eu, jovens estudantes de teatro, assistimos a As Três Irmãs. A bilheteira, Teresa, propôs a troca de dois ingressos pela metade do frango de padaria que ainda portávamos.
Agora, Zé foi vitima do fogo. Vai acontecer muito teatro na sua despedida! E fica o exemplo de luta, que deve levar a solução jurídica para a praça que dever ser o espaço contíguo ao maravilhoso Teatro Oficina! Evoé!
Paulo Betti é ator de teatro, cinema e TV e diretor e autor teatral
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