segunda-feira, 31 de julho de 2023

"Se me encontrar dormindo, deixe. Morto acorde-me" Antônio Maria

A morte com aviso prévio

Várias celebridades só morreram durante ou pouco depois de algo que lhes deu prazer ou satisfação

Ruy Castro, FSP, 01/07/2023

Em 1826, aos 83 anos, o ex-presidente dos EUA Thomas Jefferson estava morrendo de diarreia. Mas queria chegar ao dia 4 de julho, 50º aniversário da Declaração da Independência, assinada por ele. Um dia, acordou e perguntou: "Hoje é 4 de julho?". Ao ouvir que sim, suspirou e morreu. Já o dramaturgo norueguês Henrik Ibsen estava em coma em sua casa, em 1896, cercado pelos amigos. A enfermeira examinou-o e disse que ele parecia melhor. Ibsen protestou "Ao contrário!". E morreu no ato. E Mark Twain, autor de "Huckleberry Finn", nascido sob a passagem do cometa Halley em 1835, escreveu que só morreria quando o cometa passasse de novo. O Halley voltou no dia 10 de janeiro de 1910. Onze dias depois, Twain morreu.

Em 1959, aos 72 anos, Gilberto Amado, escritor e diplomata, chegou da rua vendendo saúde e pediu à funcionária: "Faça-me o melhor chá da sua vida, porque será o meu último". Ela o serviu, ele adorou e foi cochilar. Horas depois, viu-se que fora mesmo o seu último chá.

Gilberto pode ter morrido de prazer. Mas, nesta categoria, há possibilidades ainda melhores. O lendário jornalista Alcindo Guanabara, em 1918, e o poeta e empresário Augusto Frederico Schmidt, em 1964, ambos casados, morreram na cama com suas namoradas. Imagine o que devia ser, na época, ter um homem famoso, casado e morto na sua cama.

Em 1959, Dolores Duran chegou de manhãzinha em casa, vinda do Little Club, no Beco das Garrafas, onde cantava, e disse à empregada: "Que sono! Vou dormir até morrer!". Dito e feito. Tinha 29 anos. Já o cronista e compositor Antonio Maria foi mais prudente. Ao se recolher, deixou um bilhete para o colega de apartamento: "Se me encontrar dormindo, deixe. Morto acorde-me".

Mas Maria só morreu muito depois, em 1964, aos 43, na rua, de um infarto. Melhor assim, porque teve tempo para compor "Madrugada 3 e 5", "Canção da Volta" e "Manhã de Carnaval".


Mais mortos com aviso prévio

Guimarães Rosa, Gonçalves Dias e Mario Faustino também previram quando ou como iriam morrer --- e acertaram

Ruy Castro, FSP, 30/07/2023

Em 1963, eleito para a Academia Brasileira de Letras, Guimarães Rosa, cardíaco e temendo não resistir à emoção, adiou sua posse enquanto pôde. Rosa era médico, devia saber o que dizia. A ABL não o pressionou e o esperaria pelo tempo que ele quisesse. Em 1967, Rosa criou coragem e marcou a cerimônia para 16 de novembro. Foi uma grande noite, a que ele sobreviveu e saiu de lá feliz. Três dias depois, morreu de enfarte em casa. Rosa sabia mesmo o que dizia.

Em 1862, jornais noticiaram a morte do poeta Gonçalves Dias por afogamento. Mas ele estava vivo e levou a coisa na brincadeira: "Vi nos jornais que tinha morrido. Atiraram-me às ondas. O oceano é o único túmulo digno de um poeta. Vou cuidar da impressão das minhas obras póstumas." Em 1864, quando ele vinha da França pelo "Ville de Boulogne", o navio se chocou com um banco de areia na costa maranhense e naufragou. Todos se salvaram, menos Gonçalves, que, adoentado em sua cabine, morreu afogado.

Os poetas devem ter um canal exclusivo para essas coisas. Mario Faustino, um talento dos anos 1950, era admirado por seu poema "Mito", que dizia: "Os cães do sono calam/ E cai da caravana um corpo alado/ E o verbo ruge em plena/ Madrugada cruel de um albatroz/ Zombado pelo sol". Pois não é que, em 1962, Mario morreu num avião que explodiu sobre os Andes?

E nunca se explicou o sumiço do escritor e jornalista americano Ambrose Bierce. Num de seus contos, ele falou de um homem que desaparecia num deserto ou floresta sem deixar vestígio, como se se evaporasse. Pois foi o que lhe aconteceu no México, em 1913: evaporou-se. Se o mataram, ninguém soube ou viu. E era famoso. Seu corpo nunca foi encontrado.

Outro dia (2), escrevi sobre Thomas Jefferson, Mark Twain, Dolores Duran e outros que intuíram a data de sua morte e acertaram. Mas não me confundam. O máximo a que chego em profecias é prever o passado.

Servidores públicos no Brasil

Brasil tem menos servidores que EUA, Europa e países vizinhos

Estado inchado é mito, dizem especialistas: municípios têm dificuldade de preencher vagas qualificadas e órgãos federais estão com falta de pessoal 

Alexa Salomão, FSP, 30 julho 2023

No debate da reforma administrativa, que está parada no Congresso, ganhou força o argumento de que o Estado brasileiro está inchado. Quem estuda o serviço público afirma que é preciso revisar o concurso público, reformular as carreiras existentes, adaptar o efetivo às mudanças no mercado de trabalho e aprimorar a avaliação de desempenho. No entanto, refuta a ideia de que haja excesso gente na máquina pública.

"É um verdadeiro mito essa concepção de explosão na força de trabalho do serviço público no Brasil. Uma simples comparação internacional mostra isso", diz o pesquisador Félix Lopez, um dos coordenadores do Atlas do Estado Brasileiro, plataforma do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) que reúne dados sobre servidores públicos.

Dos 91 milhões de trabalhadores brasileiros, 11,3 milhões estão atuando no setor público com diferentes tipos de contratação. Representam 12,45% do total.

O número é parecido com o do México, onde 12,24% atuam no serviço público. Mas é menor que o dos Estados Unidos. O país que é referência global de valorização da iniciativa privada tem 13,55% dos trabalhadores no setor público.

A fatia também é maior no vizinho Chile. Nesse país, muito citado pelas reformas liberais, que reduziram o peso do Estado, os servidores representam 13,10% da força de trabalho.

Mais que os números, é fundamental levar em conta a política pública de cada país, diz Félix Lopez. "O Brasil é ambicioso em suas políticas de universalização de saúde e educação, o que demanda mais gente. Ainda assim está no nível intermediário na comparação internacional."

O efetivo brasileiro está bem atrás das nações que optaram pelo Estado de bem-estar social na Europa: os servidores representam 30,22% dos trabalhadores na Noruega, e 29,28% na Suécia.

Na média dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), os funcionários públicos são 23,48% do total de trabalhadores.

O número de servidores no Brasil teve crescimento exponencial, da ordem de 400%, nos municípios, desde o início dos anos 1990, alta que ocorreu para atender os serviços de saúde, educação e assistência social previstos na Constituição de 1988, diz o pesquisador.

Ele aponta que professores, médicos e enfermeiros somam 40% do funcionalismo municipal: "A expansão foi conectada à demanda da sociedade, ou da Constituição, como queiram nomear, mas o fato é que foi feita para atender à população".

Ainda assim, há deficiências nas áreas que exigem mais qualificação. Pesquisa publicada neste mês pela CNM (Confederação Nacional dos Municípios) mostra que um terço das cidades tem dificuldade para preencher vagas de médicos, incluindo grande centros urbanos. "Nas cidades menores, é difícil encontrar gente para contabilidade, engenheiro... quanto mais qualificado o servidor precisa ser, mais difícil fica. Mas o problema engrossa no médico," diz Paulo Ziulkoski, presidente da da CNM.

Baixos salários, exigência de carga horária de 40 horas, escassez de recursos e deficiências na infraestrutura pública são apontados como alguns dos problemas para atrair o profissional.

Considerando a esfera federal, o volume de servidores simplesmente encolheu, com exceção dos professores universitários, categoria que cresceu. O número estatutários em 2023 é inferior ao de 1989, afirma Pedro Masson, Coordenador-geral de Ciência de Dados da Diretoria de Altos Estudos da Enap (Escola Nacional de Administração Pública)

"São quase 100 mil servidores a menos entre os concursados", afirma Masson. "O 'mais Brasil e menos Brasília' já aconteceu na força de trabalho do serviço público, e a imagem de órgãos federais abarrotados de gente fazendo nada é uma caricatura."

A transição digital pode cobrir naturalmente algumas atividades. Mais de 4.000 serviços estão digitalizados, incluindo a chamada prova de vida, que confirma atividades de aposentados e pensionistas do INSS. Ele é feito pelo órgão via cruzamento de dados e também pode ocorrer por meio de biometria no aplicativo Meu INSS do beneficiário. No entanto, inúmeras atividades na esfera federal estão com falta de gente, especialmente em agências reguladoras, institutos de pesquisas e órgãos ambientais.

Em recente artigo na Folha, os empresários Horácio Lafer Piva, Pedro Passos e Pedro Wongtschowski criticaram a permanência do Estado em áreas que poderiam ser mais bem gerenciadas pelo setor privado, caso de portos e aeroportos. No entanto, defenderam as carreiras típicas de Estado, como as da Receita federal ou agências reguladoras, e questionaram a falta de profissionais para o bom funcionamento de órgãos públicos que consideram fundamentais para a economia.

Entre os órgãos com carência de profissionais listados no artigo estão a CVM (Comissão de Valores Mobiliários), que regula funcionamento do mercado de capitais, a Embrapa, cuja pesquisa agropecuária é fundamental para a projeção do Brasil nessa área, e o Inpi (Instituto Nacional da Propriedade Industrial), órgão de registro de patentes. À reportagem, Wongtschowski, acionista do grupo Ultra, dono das marcas Ipiranga, Ultragaz e Ultracargo, disse que a intenção do artigo foi fazer uma alerta.

"Há um postura simplista e generalizada da elite brasileira de sempre achar que o Estado é grande demais. Criou-se, assim, um consenso, que é falso, de que há um excesso generalizado de funcionários públicos", afirmou. "No entanto, há instituições de respeito que estão altamente deficitárias em termos de volume de pessoal."

O servidor público clássico, concursado, com estabilidade, vocação e qualificado tem uma outra função na estrutura pública, afirma o cientista político Fernando Luiz Abrucio, pesquisador e professor da FGV EPPG (Escola de Políticas Públicas e Governo da Fundação Getulio Vargas). "Ele é o representante do Estado, e de suas normas e deveres, e esse papel ficou claro durante a pandemia e no governo de Jair Bolsonaro, quando áreas fragilizadas foram defendidas por parte funcionalismo", diz Abrucio.

"Imagine se não tivéssemos os profissionais do SUS atuando na pandemia —foram eles que evitaram uma tragédia maior." Ele diz que o mesmo vale para inúmeros servidores do Ibama, dos ministério do Trabalho, da Educação, do Meio Ambiente, para citar alguns.

Servidores da Receita Federal no Aeroporto de Guarulhos se recusaram a liberar joias trazidas da Arabia Saudade na comitiva do ministro de Minas e Energia no país, sem o pagamento do imposto, ainda que pressionados pelo ministro e pelo chefe da Receita.

Outro exemplo de servidor que atuou em defesa das normas do Estado é o do indigenista Bruno Araújo Pereira, que, mesmo licenciado da Funai (Fundação Nacional do Índio), atuava na defesa Terra Indígena Vale do Javari (AM) quando foi assassinado.

"Essa burocracia profissional do Estado resiste quando necessário", afirma Abrucio.. "Não precisamos de menos servidores, mas de mais profissionalização da máquina estatal. Não há saída fora disso se queremos ter desenvolvimento econômico."

sexta-feira, 28 de julho de 2023

Ontem a prostituição como ameaça. Hoje, a cracolândia

Como prostitutas foram confinadas à força no bairro do Bom Retiro em São Paulo

Thais Carrança*, Da BBC News Brasil em São Paulo, Twitter, @tcarran, 28 julho 2023

Zona do meretrício do Bom Retiro, única instalada por decreto do Governo em São Paulo, funcionou por 13 anos

Eram duas ruas estreitas, que corriam paralelas, cheias de homens.

Das portas e janelas das casas geminadas, através de venezianas, mulheres vestidas com quimonos coloridos esboçavam acenos e gestos lascivos aos passantes. "Os seus estranhos movimentos faziam-nos rir. De vez em quando deixavam entrever um pedaço de seio nu: 'Vem cá, benzinho, vem cá!", conta o escritor Eliezer Levin na obra Bom Retiro.

Policiais, médicos, ambulantes, mascates, funcionários públicos, comerciantes do bairro, trabalhadores da indústria de confecções e de pequenas oficinas, além de "desocupados, bandidos e muitos ébrios" buscavam prazer e diversão nas ruas Itaboca e Aimorés. 

"Essa medida trará inúmeros benefícios: não só para facilitar o policiamento, como também, por oferecer um interessante campo para estudos sociais, defendendo, ao mesmo tempo, a ordem e a moralidade públicas", argumentava à época Ademar de Barros, interventor do Estado de São Paulo, nomeado pelo então presidente Getulio Vargas. Com a prostituição confinada nas duas ruas, em uma tentativa de livrar as demais regiões do Centro de São Paulo da prática, a zona cresceu sem controle. 

Um levantamento de 1948, parte de estudo sobre o problema da sífilis na capital paulista, apontou que havia ali cerca de 150 casas de meretrício e mais de 1 mil prostitutas. "A maioria delas era de mulheres empobrecidas e migrantes brasileiras", relata o historiador Enio Rechtman, autor da tese de mestrado Itaboca, rua de triste memória: imigrantes judeus no bairro do Bom Retiro e o confinamento da zona de meretrício (1940 a 1953).

"O centro da cidade na época era frequentado pela elite paulistana que não queria conviver com esses 'tipos perigosos'", completa o pesquisador, que ministra em agosto o curso "Bom Retiro 1938 – 1953: Meretrício confinado no bairro e imigrantes à procura de um lugar seguro", na Unibes Cultural.

A zona do meretrício do Bom Retiro funcionou a poucas quadras de onde, oito décadas depois, o atual governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), cogitou realocar a Cracolândia – área que reúne centenas de consumidores de crack no Centro da capital paulista e se tornou uma crise complexa, que abarca da saúde e situação social dos dependentes, a questões de segurança e impacto para o mercado imobiliário. Sob uma enxurrada de críticas e até protesto no bairro, o governo estadual voltou atrás na proposta, informando que "novas possibilidades para solucionar o problema da Cracolândia  estão sendo estudadas e serão divulgadas em breve". 

Rechtman explica a motivação geográfica para a escolha de Ademar. 

Conheça a história da zona do meretrício "oficial" do Bom Retiro e de como sua memória foi apagada deliberadamente pelo poder público paulistano.

Brasil e São Paulo no fim dos anos 1930

Naquele final de década de 1930, o Brasil vivia sob o Estado Novo, fase ditatorial da Era Vargas, que durou de 1937 a 1945. À época, Vargas ainda flertava com o fascismo – o Brasil só romperia com os países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) em 1942 – e nomeou Ademar de Barros como interventor para o Estado de São Paulo.

"Getúlio Vargas e Ademar de Barros nutriam ideais eugenistas [teoria baseada na genética de que seria possível criar uma 'raça humana superior'] e higienistas", diz Rechtman, lembrando que este período foi marcado por reformas urbanas nos centros de várias capitais brasileiras. 

"Acontece que, após 1937, apesar do golpe do Estado Novo e instauração da ditadura getulista que impôs repressão e controle severo sobre costumes, a prostituição alastrava-se pelo centro da cidade [de São Paulo]", observa Edison Loureiro no artigo O passado triste do Bom Retiro.

Na capital, a prostituição, que no início do século 20 se concentrava nas ruas Líbero Badaró e São João, no Centro da cidade, espalhou-se com o alargamento dessas vias e, em 1930, tomava a Rua Amador Bueno (atual Rua do Boticário), Ipiranga (ainda não alargada) e Timbiras, lembra o pesquisador.

Urbanização e a prostituição como ameaça

Como interventor em São Paulo, Ademar de Barros inaugurou a estação de trem atualmente chamada de Estação Júlio Prestes. "Ele queria fazer bonito naquela região, mas, no entorno dali, havia muita atividade de prostituição", lembra Rechtman.

As "pensões alegres" ou "casas de diversões noturnas" também incomodavam na região da Rua dos Timbiras, em um momento em que, na Avenida São João, começava a se formar a Cinelândia Paulista, local de lazer familiar, com cinemas, cafés, confeitarias e salões de dança.  "Quando São Paulo começa a se urbanizar, é o momento em que a preocupação com a prostituição cresce", observa Margareth Rago, autora de Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo, 1890-1930.

"A prostituição existia em outras épocas, mas não era um problema. Vira um problema para as elites quando se entende que ela seria uma má influência para as mulheres ricas e castas. E isso passa para a classe trabalhadora – também os operários vão olhar para suas esposas e dizer que 'mulher que é mulher é rainha do lar', vendo a prostituição como uma ameaça."

Ademar de Barros, que era médico de formação e chegou a estudar na Alemanha e na França nos anos 1920, se inspirou então no chamado regulamentaríssimo francês para propor o confinamento da zona do meretrício em uma região específica da cidade. O regulamentaríssimo foi criado na França no início do século 19, explica Rago. "A ideia era que o Estado tinha que interferir no espaço urbano para definir onde deveriam ficar os marginais, os loucos, as prostitutas e as 'pessoas normais'. Então há uma questão de poder, de interferir no território", observa a historiadora.

"Em relação à prostituição, os regulamentaristas defendem que o Estado deve dizer onde os bordéis devem ser construídos, que tamanho eles devem ter, quantas pessoas podem estar lá. Então o Estado deveria ter um controle absoluto das 'casas de tolerância'."

Rago vê pontos de contato entre a iniciativa de Ademar de Barros e a ideia, já abandonada, de levar a Cracolândia para o Bom Retiro. "Em ambos os episódios parece haver um objetivo de se agradar certos setores da sociedade, higienizando uma região e jogando um problema para outra mais afastada", diz a historiadora.

Procurado, o Governo de São Paulo afirma que "ampliou as ações de assistência e saúde aos dependentes químicos, além de ter intensificado as atividades de policiamento no centro da capital". Em relação ao Complexo Prates, local no Bom Retiro cogitado para a realocação da Cracolândia, o governo afirma que "a proposta está sendo revista após novas avaliações".

Por que o Bom Retiro

No final de 1939, Ademar de Barros também escolheu o Bom Retiro para levar adiante seu plano de confinar as prostitutas em uma zona restrita – mais especificamente, as ruas Aimorés e Itaboca.

Rechtman explica a motivação geográfica para a escolha de Ademar. "Havia o muro da estação de trem, que separava o Bom Retiro dos Campos Elíseos, um bairro de classe média alta no período, onde ficava o palácio do governo", diz o pesquisador.

Ele lembra que, à época, o Bom Retiro era uma espécie de "periferia do Centro", em um momento em que São Paulo ainda era uma cidade pequena. "Aquela região era perfeita para fazer um confinamento, porque, fechando duas ruas, era possível fechar um quarteirão inteiro e controlar o fluxo de entrada e saída de pessoas."

E assim foi feito, com a instalação de cancelas com guardas nos acessos às ruas, diz Rechtman. Controlava-se o movimento através da delegacia de costumes, que mantinha acompanhamento médico e fazia a profilaxia dos frequentadores através de delegacia, posto médico e farmácias locais", conta o pesquisador. 

Alguns historiadores destacam, porém, uma fala atribuída a Ademar de Barros para justificar a escolha do local: "É produto vosso, fica para vocês", teria dito o interventor.

É que o Bom Retiro, tradicional bairro de imigração judaica, tinha fama por abrigar uma onda tardia de imigração de "polacas", como ficaram conhecidas as mulheres judias traficadas do leste europeu para serem exploradas sexualmente nas Américas, explica Rechtman.  Desde o final do século 19, as polacas saíram da Europa e chegaram em cidades como Nova York, Buenos Aires e Rio de Janeiro.

Segundo o pesquisador, no final da década de 1920, houve um movimento de expulsão de cafetões de Buenos Aires, o que acabou levando algumas dessas mulheres a vir para São Paulo. Mais velhas e agora sozinhas, algumas acabaram se tornando elas mesmas cafetinas e donas de pensões no bairro."Esse é um passado que nenhuma comunidade quer lembrar", diz Rechtman, que é ele mesmo de família judaica, nascido e criado no Bom Retiro.

Ele observa, porém, que não se deve confundir a prostituição das polacas do final do século 19 e início do século 20, com a da zona de baixo meretrício do Bom Retiro nos anos 1940. Não só são momentos históricos distintos, como demografias diferentes – uma de mulheres europeias emigradas, outra em sua maioria de brasileiras de baixa renda, destaca o pesquisador.

A vida na zona de meretrício do Bom Retiro

"Se a expansão da prostituição para os lados da Rua dos Timbiras foi lenta, a ocupação das duas ruas do Bom Retiro foi de supetão, forçada e violenta", relata o pesquisador Edison Loureiro. 

Rua Aimorés por volta de 1950

Ele resgata um episódio que revela a transferência forçada de mulheres ao local.

"O Anhanguera Futebol Clube, um time de várzea, resolveu uma noite comemorar a vitória do campeonato na Rua Itaboca e conta seu memorialista da surpresa que [todos] tiveram quando, no meio da farra e fogos de artifício, já madrugada, chegaram os camburões com mulheres e as despejaram pelas ruas. Talvez mais de cinquenta." Segundo o pesquisador, os camburões da polícia simplesmente invadiam as pensões declaradas "irregulares" e, sem aviso prévio, embarcavam todos para a zona confinada.

Uma vez transferidas ao novo local, as prostitutas não ficavam presas ali, mas muitas moravam nas pensões onde trabalhavam. "A Itaboca era para os menos favorecidos e a Aimorés, para os remediados", relata Rechtman.

Durante o dia, a região tinha o movimento de ruas comuns, onde circulavam "leiteiros, padeiros, verdureiros, catadores de papel e vendedores dos mais variados", segundo depoimento de Nuno Santana, colhido pelo pesquisador Guido Fonseca, autor de História da prostituição em São Paulo. "Ao entardecer, no entanto, as mulheres iam [se] postando junto às portas e janelas como em mostruários, à espera do desfile de homens que aumentava com a chegada da noite." 

Através de venezianas, mulheres em casa de prostituição no Bom Retiro

O fim do confinamento

O que o interventor de São Paulo planejou como uma solução para o problema da prostituição nas ruas da cidade só mudou o problema de lugar. Com o passar dos anos e aumento da concentração de bares, bordéis e profissionais do sexo, também cresceu o descontentamento local com a zona de meretrício.

No seu mestrado, Rechtman recupera uma carta de leitor publicada em 8 de março de 1946 no jornal O Estado de S. Paulo. Exaltado, o senhor Valdomiro Borges Couto, autor da carta, citava diversas escolas próximas à zona, ao argumentar em favor da repressão ao local. "Imagine Senhor Redator, que os alunos dessas escolas transitam diariamente por esta Zona, viajando de bonde ou ônibus em promiscuidade com homens e mulheres da pior espécie", bradou o leitor. "Par disso inúmeros 'bars' se abriram como satélites do 'bas fond' e as orgias e as brigas se sucedem diuturnamente, com assassinatos, roubos, ferimentos, etc. Não se compreende como a Polícia não tome medidas drásticas (...)".

Respondendo ao clamor popular, em junho de 1953, o então prefeito Jânio Quadros suspendeu todos os alvarás dos bares nas ruas Itaboca, Ribeiro de Lima, José Paulino e Aimorés. A desocupação final veio em 30 de dezembro, quando o então governador Lucas Nogueira Garcez anunciou uma ordem para extinção da zona de meretrício, às vésperas do Quarto Centenário de São Paulo, que seria comemorado em 1954 com grande pompa e circunstância.

A Folha de S. Paulo noticiou o encerramento da zona do Bom Retiro

A revolta das meretrizes

A desocupação, no entanto, não foi pacífica. No dia seguinte à ordem do governador, a polícia cercou o local, onde ainda trabalhavam pouco mais de 600 mulheres. "Logo as mulheres começam a sair à rua e protestar, algumas gritando e rasgando as roupas. Outras atiram móveis e utensílios pelas janelas”, relata Loureiro. “Na confusão generalizada uma prostituta chamada Antônia, moradora da Rua Aimorés, tem um colapso e morre no local. A notícia se espalha causando mais revolta." 

Jornal retrata a revolta das meretrizes e o falecimento de Antônia

Furando o cerco policial, um grupo de prostitutas invadiu o comércio da Rua José Paulino e três delas foram gravemente feridas por um comerciante armado com uma barra de ferro. A confusão só acabou com a chegada do Batalhão de Choque e dos Bombeiros, que atacaram a multidão com jatos d'água e cassetetes. 

Jornal Diário da Noite reporta a onda de protestos com o fechamento da zona

Com o fim da zona no Bom Retiro, a prostituição migrou para o bairro dos Campos Elíseos, em pensões nas Alamedas Cleveland, Glete e Nothman, dando início ao período da chamada "boca do lixo" como principal centro de baixo meretrício da cidade de São Paulo.

Apagamento da memória

Para além de acabar fisicamente com a zona de meretrício do Bom Retiro, o poder público paulistano se esforçou em apagar também a memória do local.

Em 1957, a Câmara Municipal de São Paulo aprovou um projeto de lei mudando o nome da Rua Itaboca para Rua Professor Cesare Lombroso. Ao propor a mudança, o vereador autor do projeto argumentava que a Rua Itaboca era um local de "triste memória".

A historiadora Margareth Rago observa a ironia na escolha do novo nome. 

Placa na Rua Professor Cesare Lombroso, antiga Rua Itaboca

Cesare Lombroso (1835-1909), um médico e criminologista italiano, acreditava haver características físicas específicas que tornavam determinadas pessoas propensas à criminalidade. Ele foi autor de livros como O homem criminoso (1871) e A Mulher Delinquente: A Prostituta e a Mulher Normal (1893, em coautoria com Guglielmo Ferrero).

"Para Lombroso e Ferrero, a prostituição não seria resultado de condição social, mas de distúrbios biológicos que poderiam ser identificados por traços como tamanho do queixo, posição dos olhos, construção das orelhas. A prostituta, mais do que o homem criminoso, era, nesta visão, uma degenerada", resume a sinopse brasileira da obra de Lombroso e Ferrero. Ao relacionar criminalidade e características físicas, a obra de Lombroso é muito criticada por ter dado um verniz científico a preconceitos, estereótipos e discriminação contra minorias.

No entanto, observa Rago, a escolha do nome é tratada com tanta naturalidade, que existe hoje, onde um dia foi a antiga Rua Itaboca, um shopping center chamado Lombroso Fashion Mall.

*Com a colaboração de Caroline Souza e da equipe de Jornalismo Visual da BBC.


quarta-feira, 26 de julho de 2023

Sobre Falar Merda

Bullshit

Sérgio Augusto, O Estado de S. Paulo, 23 Julho 2023

Um filósofo a menos no planeta. Domingo passado, sob o calorão da Califórnia, finou-se, aos 94 anos, a singular figura de Harry G. Frankfurt. De olhar perspicaz e malicioso, inclusive aqui ele se popularizou com suas reflexões sobre a vontade, o amor, a liberdade e a responsabilidade moral, até que em 2005 um ensaio de 80 páginas sobre o sinônimo alfa (em inglês) de asneira, bobagem e tolice transformou o professor de filosofia da Universidade Princeton num imprevisível, mas inevitável best seller.

Como resistir a um livrinho intitulado On Bullshit?
Antes mesmo de sua tradução pela Intrínseca (Sobre Falar Merda), comentei-o nesta coluna com a efusividade exigida pelo tema e o douto tratamento que lhe dispensou Frankfurt, o qual, em busca de maior amplidão analítica, foi até Sócrates, contemporâneo da retórica ou sofística, o bullshit da Grécia Antiga, com baldeações em Santo Agostinho (que repertoriou oito tipos de mentira), Wittgenstein, e no romancista policial Eric Ambler.

Por vezes, o que consideramos bullshit não passa de uma prosaica mentira ou uma acaciana asneira. Só mesmo um filósofo para esmiuçar suas menos palpáveis sutilezas.
O vigor semântico de “Bullshit” nos faz mais falta do que as dezenas de vocábulos que importamos do inglês, muitas vezes sem a menor necessidade, e mais vezes ainda de forma irremediavelmente patética. Por que não o adotamos?

Substantivo de origem, bullshit desdobrou-se em verbo: “Don’t bullshit me”, assaz conjugado em filmes americanos, uma das razões pelas quais o poeta e calejado tradutor Ivo Barroso me apontou “porra nenhuma” como a melhor tradução ao dispor da última flor do Lácio. Já havia um “don’t bullshit me” num dos Cantos de Ezra Pound, perfeitamente traduzível por “não me enrole”.
Publicado originalmente em 1986 na revista literária The Raritan Review, o ensaio de Frankfurt é sempre uma conversa iluminada sobre o fenômeno, que, apesar de pandêmico, universal, demorou a ser estudado como merecia justamente porque todo mundo se achava entendido no assunto e não apenas um mero praticante.

Bosta de touro – eis o que, literalmente, quer dizer “bullshit”. Derivou de “hot air”, ar quente, conversa fiada, possível origem do nosso “bafo de boca”. Se nem todo bullshit é uma mentira, nem toda mentira é um bullshit. Por ter mais partes com o blefe do que com a mentira tout court, salienta Frankfurt, o bullshit pode ser um inimigo da verdade mais perigoso que a mentira.

Já existem sites especializados nas categorias de bullshitismo (ou tauroscatologia) mais conhecidas. Um deles dedica-se a difundir a certeza de que todas as religiões enrolam seus crentes. Daí, por sinal, a suspeita de que no Sermão da Montanha se encontra o mais antigo bullshit que até nós chegou: “Os humildes herdarão a Terra”.

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Doris e Leny

Doris Monteiro e Leny Andrade renovaram nossa música moderna
Cantoras estrearam ainda adolescentes e abraçaram novos estilos que se engendravam no Brasil dos anos 1950

Rodrigo Faour, FSP, 24/07/2023

Elas começaram muito jovens em programas de calouros, estrearam profissionalmente ainda adolescentes e abraçaram a música moderna que se engendrava no Brasil dos anos 1950. Doris Monteiro, nascida em 1934, e Leny, em 1943, ensinaram que era possível serem mulheres autônomas, nas vidas privada e artística, sem se submeter a homens equivocados, nem gravar o que não queriam –algo que sempre permeou a vida da maioria das nossas intérpretes, principalmente a da geração delas.

 
As cantoras Doris Monteiro, à esq., e Leny Andrade  - Divulgação

Filha adotiva de um casal, cujo homem era um porteiro de prédio em Copacabana, Doris Monteiro já tinha no DNA algo das mulheres modernas do bairro, pois sempre quis ser cantora, decidiu estudar inglês e ia às lojas de disco ouvir Dick Farney e Lucio Alves, seus ídolos de emissão suave.
Tentou a sorte então no Papel Carbono, onde os calouros imitavam algum artista em voga, optando por uma cantora francesa, Luciene Delyle, porque no Brasil não havia outra que cantasse com tão pouca voz. Deu certo. Logo descolou um contrato e estreou aos 17.

O maior crítico da época, Sylvio Tullio Cardoso, desprezou totalmente seu primeiro 78 rpm. Disse que deveria voltar aos estudos e largar a carreira. Mas o disco estourou, com o samba-canção "Se Você se Importasse", de Peterpan.

Anos depois, teve de fazer mea culpa e lhe entregar um troféu como "melhores do ano" de sua coluna em O Globo, época em que foi vedete da revista "Fantasia e fantasias", no Copacabana Palace. Como se não bastasse, estrela da Tupi, foi eleita Rainha do Rádio em 1956.
Doris, então, já uma grande intérprete da ala moderna do samba-canção, teve sucesso com músicas de amor positivas, coisa rara à época, como "Do Re Mi" e "Graças a Deus", ambas de Fernando César, que ela resolveu dar uma chance por insistência de Chacrinha. Motivo: ele tinha uma fábrica de sabonetes, "como poderia ser bom compositor?", pensava, mas a intuição do Velho Guerreiro estava certa.
Em 1957, por insistência de outro compositor moderno, Billy Blanco, gravou "Mocinho Bonito". Descobriu então que tinha uma bossa tremenda para interpretar esse tipo de samba, por isso surfou muito bem pelos vindouros sambalanço, bossa nova e samba rock.

Alguns sucessos depois, como "Palhaçada", "Mudando de Conversa", "É Isso Aí" e "Alô, Fevereiro", Doris gravou quatro álbuns com Miltinho. https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/184657-morre-cantor-miltinho-mestre-do-ritmo.shtml O título não poderia ser melhor, "Doris, Miltinho e Charme". Charme, realmente, era sua marca registrada, vindo muito de seu lado atriz. Sim, pois em 1953, já atuava no cinema nacional e chegou a ser premiada por seu papel em "Agulha no Palheiro", de Alex Viany.

Em 1976, passou a viver com o pianista jazzístico Ricardo Júnior e a vida inteira passou a ser acompanhada por ele. Antes, teve outros dois maridos, sendo que o primeiro, ainda nos anos 1950, a traiu. Quando ela o flagrou com outra mulher em sua casa, o mandou embora imediatamente depois de menos de um ano de casamento, na época em que separação era tabu. Mas ninguém passava a perna em Doris. Era muito viva e ciumenta.

Doris teve uma carreira regular em disco até 1981, incluindo um álbum com seu ídolo Lucio Alves, após uma excursão a seu lado no Projeto Pixinguinha. Como seus discos eram muito bem cuidados, com o fino da MPB e da bossa, ao ser rejeitada pelas grandes gravadoras, preferia não gravar a ter que se sujeitar a álbuns de baixo orçamento.

JOÃO DONATO E DORIS MONTEIRO EM "LUGAR COMUM" E "É ISSO AÍ". DONATO CANTA "A RÃ" - PARTE 7 DO SHOW 

LENY ANDRADE, PIONEIRA DO SCAT SINGING NACIONAL

No ano que Doris gravava o primeiro disco, 1951, com apenas oito de idade, Leny Andrade já arriscava a sorte cantando música de adulto, "Risque", de Ary Barroso, num concurso que houve no subúrbio de Del Castilho, onde morava. Passou a seguir pelo Programa do Guri, triunfou no César de Alencar, da Rádio Nacional, até que aos 15, estreou profissionalmente como crooner da orquestra de Permínio Gonçalves, uma das muitas bandas de baile dos anos dourados.

Estávamos em 1959, ano que perdíamos Dolores Duran, sua maior referência, mas não sem antes ter gravado um compacto duplo registrando "Fim de Caso", que na segunda parte da melodia improvisava com scats, ao invés de cantar a letra. Foi assim que Leny aprendeu a improvisar e fez disso sua marca. Inicialmente com a voz mais aguda, depois mais grave e quente.

Após gravar discos de 78 rpm independentes que quase ninguém tomou conhecimento, gravou na RCA entre 1961 e 62, com a bossa nova já consagrada, trabalhando com Luiz Eça e músicos que iriam depois compor o Tamba Trio. Depois, passou pela Polydor num álbum ao vivo em estúdio, enquanto, em paralelo, foi "a única crooner da orquestra de Dick Farney", gostava de frisar, e atuava no João Sebastião Bar, templo da bossa paulista, revezando-se com Claudette Soares.
Em 1965, tudo mudou em sua carreira. O álbum "Estamos Aí", na Odeon, estourou, trazendo alguns dos primeiros arranjos de Eumir Deodato, incluindo a faixa-título. E a dupla Miele e Bôscoli produziu no Porão 73 o show "Gemini V", em que cantava uma bossa-jazz explosiva ao lado de Pery Ribeiro e do Bossa Três, que também virou disco.

O sucesso foi tanto que passaram ao Teatro Princesa Isabel e outros locais até serem contratados para atuarem na Cidade do México a partir de 1º de agosto de 1966, no El Señorial, onde passaram a residir. Ali conheceu Sarah Vaughan e muitos outros ícones do jazz mundial.

Em outubro de 1972 voltou ao Brasil. Época de "Gemini V Anos Depois". Vieram alguns projetos experimentais em disco, incluindo um homônimo, só de samba de raiz, na Odeon, época em que cantava também em casas como a Catedral do Samba, em São Paulo, e que casou-se, pela primeira e única vez, com o artista plástico Carmelo Senna, mas somente por cinco anos, porque não suportou ter um marido dependente de drogas.

Foi em 1983 que Leny retomou sua carreira internacional, cantando pela primeira vez no Blue Note, de Nova York, o que lhe abriu progressivamente as portas dos festivais de jazz da Europa, Estados Unidos e Japão, onde cantou por inúmeras vezes, chegando a manter um apartamento na ilha de Manhattan. Tony Bennett toda vez que ia vê-la, fazia uma caricatura sua nos guardanapos dos clubes.
No Brasil, as grandes gravadoras lhe fechavam as portas, pois seu som era eterno e não de modismos. Passou a gravar em todos os selos independentes que se possa imaginar, destacando dois memoráveis álbuns homônimos na Pointer, em 1984 e 85, e três na Eldorado, incluindo o clássico "Luz Neon" (1989), com antológicas versões de "Adeus, América", "Wave", "Batida Diferente" e "Night in Tunisia", além de álbuns em parceria com Gilson Peranzzetta, César Camargo Mariano e Romero Lubambo.

Doris e Leny eram pessoas divertidas e cativantes. Adoravam contar piadas e falar palavrão entre amigos, e curtiam a convivência com os fãs, inclusive os gays que nunca a esqueceram. Exigentes demais, por vezes ranzinzas profissionalmente por quererem sempre o melhor, tiveram carreiras impecáveis que a posteridade terminará de consagrar.

Cantaram e gravaram sem concessões com o melhor e o mais moderno que a nossa música pôde produzir em termos de melodia e harmonia. Admiravam-se mutuamente, disso sou testemunha. Leny a chamava carinhosamente de "Dodó". Foram juntas para o eterno e eternamente sempre se farão presentes onde quer que haja fãs de música, para além do entretenimento.

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Filmes parte 33

Fausto, Faust: Eine deutsche Volkssage, 1926, F.W. Murnau

Tudo pela Pedra Azul, The Blue Lightning, 1986, Lee Philips

O Bandido Giuliano, Salvatore Giuliano, 1962, Francesco Rosi

Recordações, The Lost Moment, 1947, Martin Gabel

Os Amores de Carmen, The Loves of Carmen, 1948, Charles Vidor

O Purgatório, Purgatory, 1999, Uli Edel

O Homem Elefante, The Elephant Man, 1980, David Lynch

Nas Garras do Vício, Le beau Serge, 1958, Claude Chabrol

Na Teia do Destino, The Reckless Moment, 1949, Max Ophüls

Janela Indiscreta, Rear Window, 1954, Alfred Hitchcock

Homens em Fúria, Stone, 2010, John Curran

Envolto nas Sombras, The Dark Corner, 1946, Henry Hathaway

Fogo Sagrado!, Holy Smoke, 1999, Jane Campion

Em Carne Viva, In the Cut, 2003, Jane Campion

Barbarosa, 1982, Fred Schepisi

As Aventuras de Robinson Crusoé, Robinson Crusoe, 1954, Luis Buñuel

Amador, 2010, Fernando León de Aranoa

A Sombra de um Revolver, All'ombra di una colt, 1965, Giovanni Grimaldi

A Pequena Loja na Rua Principal, Obchod na korze, 1965, Ján Kadár & Elmar Klos

A Música de Gion, Gion bayashi, 1953, Kenji Mizoguchi

Treta, Beef, Série de TV, 2023, Lee Sung Jin

O 3º Homem, The Third Man, 1949, Carol Reed

A Grande Ilusão, La grande illusion, 1937, Jean Renoir

O Grande Ditador, The Great Dictator, 1940, Charles Chaplin

Oppenheimer, 2023, Christopher Nolan

18/6/23

Fausto, Faust: Eine deutsche Volkssage, 1926, F.W. Murnau

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Fausto 1926 por Eduardo Kaneco

F.W. Murnau leva para as telas a peça Fausto de Goethe, contando com um generoso orçamento, concedido pelo estúdio depois do seu sucesso A Última Gargalhada (1924). Como resultado, surgiu um filme com belos cenários de estúdio pintados com toques expressionistas e trucagens visuais que dão vida ao tema fantástico da estória.

Mefistófeles, o demônio aposta com Deus que ele consegue conquistar a alma do sábio Fausto. Se conseguir, a Terra será dele. Diante da epidemia da peste, Fausto se desespera porque não nem a fé nem a ciência conseguem evitar as mortes. Então, ele se torna vulnerável à proposta de Mefistófeles, que lhe promete conceder os desejos dele na Terra, em troca de servir ao demônio no Inferno. Então, Fausto se aproveita e, além de curar os doentes, goza dos prazeres de uma nova juventude. Porém, quando ele se apaixona por Gretchen, ele coloca em risco a vida da moça. Mas, nasce daí um amor verdadeiro que pode impedir o plano de Mefistófeles.

Cenas que parecem pinturas

A sequência inicial da conversa entre Deus e o demônio é assombrosa. Murnau constrói um cenário de fantasia que leva o espectador para um mundo totalmente diferente do que existe no plano terreno. A figura de Mefistófeles é assustadora, e ele desce para a Terra trazendo a peste como um ser gigantesco, o que funciona para comunicar a ideia de seus poderes. E, aqui, sua caracterização muda para um ser jocoso e astucioso. Com isso, Fausto parece uma vítima indefesa perante o perigoso Príncipe das Trevas.

Aliás, o diretor alemão comprova essa sua capacidade de transitar entre esses mundos fantásticos. Afinal, ele é conhecido por Nosferatu (1922), que traz um dos mais assustadores vampiros da história do cinema. Em grande parte, porque ele absorve as influências do expressionismo alemão, não só nos cenários tortuosos como na abordagem do interior do ser humano, em seu conflito existencial. Como resultado de sua visão, Fausto apresenta várias cenas que se assemelham a pinturas, com uma beleza plástica irretocável.  

Em tempo: Fausto de Goethe 

19/6/23

Tudo pela Pedra Azul, The Blue Lightning, 1986, Lee Philips

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A luta desesperada de mercenários pela posse de um diamante azul, cujos poderes místicos atraem aventureiros de todas as partes do mundo.

21/6/23

O Bandido Giuliano, Salvatore Giuliano, 1962, Francesco Rosi

O Bandido Giuliano, por Sérgio Augusto

Premiado no Festival de Berlim de 1962 (“melhor direção”), Salvatore Giuliano forma, ao lado de I Nuovi Angeli, o pelotão de frente do melhor cinema italiano da atualidade. Constitui uma das empresas mais corajosas daquele cinema e uma valiosa contribuição ao conhecimento não só da Itália mas também, e principalmente, de suas mais graves questões: o problema do separatismo, movimento que comoveu a miserável Sicília no fim da Segunda Grande Guerra; o problema da incapacidade do Estado em impor o respeito à lei e seus apelos a métodos heterodoxos e alianças sombrias; o problema da rivalidade entre as várias forças representativas do Estado; o problema do poder subterrâneo da Máfia e suas ramificações entre os políticos. Em meio a esse complexo de problemas, começa e termina a trajetória de Giuliano, com suas aparentes contradições, sua obscuridade, seus ainda insolúveis mistérios.

Salvatore Giuliano foi um bandoleiro siciliano bastante célebre na Itália. Pouco depois do desembarque dos aliados, foi ele nomeado coronel pelos autonomistas desejosos por separar a ilha do continente. Após a destruição política desse movimento, suas sequelas ganharam as montanhas e lá permaneceram durante anos, com o apoio e ajuda de parte da população e da Máfia. Em circunstâncias por longo tempo obscuras, foi Giuliano delatado a alguns policiais italianos (rivais uns dos outros) por seu braço-direito Gaspare Pisciotta. Abateram-no e com seu cadáver organizaram uma macabra encenação. Depois de longo e dramático processo, seu denunciador foi envenenado na prisão.

A exemplo de I Nuovi Angeli (Anjos Modernos), Salvatore Giuliano visa a fornecer a ilusão da realidade bruta através da reconstituição quase completa dos fatos. Como bem reparou um crítico europeu, “estamos nos antípodas da concepção primordial do neorrealismo”. O citado crítico vai mais longe ao observar que a fita “é uma montagem de atualidades sem atualidades”. O resultado é revelador, isto é o que importa, independentemente de seu processo.

Segundo o realizador Francesco Rosi faz questão de frisar, “Salvatore Giuliano não é absolutamente um filme biográfico, mas um discurso sobre o cadáver de Júlio César”. Outro crítico europeu vai mais adiante chamando-o de “Cidadão Kane a serviço de uma maiêutica de esquerda”. Não se vê o herói senão morto, em um relato onde todo o cuidado é tomado para romper-se a cronologia a qualquer custo. Sem se preocupar com fusões, a ação passa de 1950 a 1954, ou de 1944 a 1948, evocando os acontecimentos outrora retumbantes de que o povo italiano ainda se recorda. O verdadeiro assunto do filme é um país infeliz, oprimido, desgarrado e revoltado. Não se exalta nem se deprecia Giuliano; antes, mostra-se o bandoleiro como um fruto de sua terra, das condições sociais e políticas dos anos 40.

A frieza documental das primeiras cenas a mostrarem as formalidades legais em face da presença do corpo do bandido (que a polícia acredita ter assassinado, mas que, na realidade, foi morto por seu lugar-tenente); a prolongada excitação da busca aos homens da cidade, a tumultuosa reconstituição do julgamento em Viterbo – tudo isso, desde os momentos mais intensos aos dominados pelo documentarismo puro e simples, é governado pelo mesmo espírito: a procura ao fato, o respeito ao valor moral da evidência. Estes fatos circulam em flashbacks cronológicos, mais ou menos como aqueles do Orson Welles de seus primeiros dias, por isso a designação de um crítico europeu que acima citamos. A narrativa em torno de Giuliano transforma-se em mosaico. A liberdade é agressiva, de uma construção desdramatizada, composta de uma série de flashes acerca da atividade, o processo e a morte de Giuliano.

A decupagem de Rosi não procura explicar nada, fornece fatos, detendo-se mais sobre as consequências imediatas do acontecimento do que sobre a sua preparação ou sua realização. Recorre-se aos contornos da existência do personagem sem que essas fugas subtraiam a investigação dos fatos. Rosi chegou a dizer aos censores que sua obra não poderia ser cortada, pois apenas relatava aquilo que os jornais da época noticiaram e o que foi dito em tribunal. Desta forma, os métodos utilizados assemelham-se aos de Eisenstein de O Encouraçado Potemkin, reconstituindo, vinte anos depois, os eventos revolucionários de Odessa.

Os retornos da ação tornam um pouco difícil o relato. A primeira parte é de grande beleza e extrema violência. Um de seus clímaxes é a chegada das tropas que fazem reinar o terror na cidade, com mulheres desesperadas e homens indignados. Outra sequência impressionante: Giuliano e seus sequazes abrindo fogo contra centenas de camponeses, em Portella della Ginestra. Mulheres e crianças foram mortas. Os sobreviventes participaram da reconstituição. A segunda parte, centralizada no processo, desperta menos interesse, principalmente para a plateia estrangeira.

Giuliano é interpretado por um jovem mecânico de Palermo a quem outorgam uma dimensão quase mitológica. Seu rosto só nos é mostrado em detalhe quando ele já está morto. Rosi, porém, não idealiza o bandido. O filme, aliás, não existe exceto com relação ao espectador e para ele, utilizando todas as aprovações do mistério para destruí-lo, analisando-o e arrancando-lhe a verdade. Sob este ponto de vista, Salvatore Giuliano é um filme de libertação intelectual. A impressão deixada no final é de que o bandido era um ditador fascista em estado embrionário.

Não há atores profissionais, salvo os que interpretam o delator e o presidente do tribunal. Houve, contudo, uma preocupação em selecionar a dedo os tipos entre aqueles que viveram os episódios reconstituídos. Valeu-se o cineasta de antigas (e históricas) fotografias. O “cadáver” de Giuliano foi colocado exatamente no pátio onde foi encontrado há treze anos. A velha que chora sobre seu corpo não é sua mãe, mas uma mulher que teve dois de seus filhos assassinados no bando de Salvatore. Os carabineiros e policiais exercem este métier na vida real e muitos até participaram da repressão. Quanto aos habitantes da cidade natal, e último habitat de Salvatore, eles compartilharam das violências e das operações policiais de 1950 e as reviveram com indignada convicção.

Correio da Manhã (14 de março de 1963)

22/6/23

Recordações, The Lost Moment, 1947, Martin Gabel

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Escritor americano vai para a Itália, obcecado pela ideia de encontrar as cartas de amor, perdidas, de um grande poeta. Lá, se envolve com uma jovem e bela neurótica que põe sua vida em perigo.

Baseado em obra de Henry James.

23/6/23

Os Amores de Carmen, The Loves of Carmen, 1948, Charles Vidor

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Resenha

OS AMORES DE CARMEN

24/7/23

O Purgatório, Purgatory, 1999, Uli Edel

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Recém aceito na gangue do famoso Blackjack, o jovem e ingênuo Sonny, durante uma fuga com o bando, vai parar numa estranha cidade chamada Refúgio. Lá, o xerife não usa mais armas, e mesmo sendo duramente hostilizados pela gangue, os cidadãos não esboçam nenhuma reação. Sonny descobre que se trata de um lugar onde famosos ex bandidos tem que ficar durante dez anos sem cometer nenhum ato de violência, para que sejam perdoados e possam ir para o céu. Porém, a gangue está sedenta por sangue, e se os moradores não reagirem serão mortos. Se reagirem vão para o inferno!

26/6/23

O Homem Elefante, The Elephant Man, 1980, David Lynch

Reflexões em torno do filme “o homem elefante” por Edélcio de Jesus Sardano

27/6/23

Nas Garras do Vício, Le beau Serge, 1958, Claude Chabrol

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Nas Garras do Vício de Claude Chabrol (le beau Serge, 1958) por Yves São Paulo 

28/6/23

Na Teia do Destino, The Reckless Moment, 1949, Max Ophüls

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Na Teia do Destino / The Reckless Moment por Sérgio Vaz

29/6/23

Janela Indiscreta, Rear Window, 1954, Alfred Hitchcock

Janela indiscreta por Yuri Correa

30/7/23

Homens em Fúria, Stone, 2010, John Curran

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Stone (Edward Norton) foi condenado à prisão por doze anos e já cumpriu oito. Ele deseja obter liberdade condicional e deixar o cativeiro, mas antes precisa passar por Jack (Robert De Niro), um policial prestes a se aposentar que tem por função avaliar se ele ainda é um perigo para a sociedade

1/7/23

Envolto nas Sombras, The Dark Corner, 1946, Henry Hathaway

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Crítica por Sérgio Vaz

2/7/23

Fogo Sagrado!, Holy Smoke, 1999, Jane Campion

Holy Smoke - Fumo Sagrado (1999)

3/7/23

Em Carne Viva, In the Cut, 2003, Jane Campion

Crítica por Eduardo Kaneco 

4/7/23

Barbarosa, 1982, Fred Schepisi

Karl Westover, um inexperiente garoto do campo, foge de seu lugar depois de acidentalmente matar um vizinho, de quem a família passa a persegui-lo por vingança. Em sua fuga ele encontra Barbarosa, um pistoleiro de proporções quase míticas, que se encontra ele próprio em perigo perseguido por seu sogro Don Bráulio, um bem sucedido rancheiro mexicano. Don Bráulio que ver Barbarosa morto por este ter casado com sua filha contra sua vontade. Relutante, Barbarosa toma Karl como parceiro, tão logo eles lutam para sobreviver contra as forças que alinham contra eles. Filmow 

5/7/23

As Aventuras de Robinson Crusoé, Robinson Crusoe, 1954, Luis Buñuel



CRÍTICA | AS AVENTURAS DE ROBINSON CRUSOÉ

por RITTER FAN,  29 de maio de 2020 

6/7/23

Amador, 2010, Fernando León de Aranoa

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Marcela, una joven con apuros económicos, durante el verano cuida de Amador, un anciano postrado en cama, en ausencia de su familia. Los dos no tardarán en confiarse sus respectivos secretos. Un suceso inesperado deja a la chica enfrentada a un difícil dilema moral. Pero Amador y Marcela han alcanzado ya, sin saberlo, un acuerdo. Al cumplirlo, van a demostrar que la muerte no siempre es capaz de detener a la vida. (FILMAFFINITY)

7/7/23

A Sombra de um Revolver, All'ombra di una colt, 1965, Giovanni Grimaldi

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À SOMBRA DE UM REVÓLVER (ALL’OMBRA DI UNA COLT) – ‘UMA BALA ENTRE OS OLHOS’

11/7/23

A Pequena Loja na Rua Principal, Obchod na korze, 1965, Ján Kadár & Elmar Klos

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CRÍTICA | A PEQUENA LOJA DA RUA PRINCIPAL

Por GUILHERME ALMEIDA, 8 de agosto de 2018 

12/7/23

A Música de Gion, Gion bayashi, 1953, Kenji Mizoguchi

No iutubi aqui

Crítica por Eduardo Kaneco

14/7/23

Treta, Beef, Série de TV, 2023, Lee Sung Jin

Crítica por Bia Montenegro

16/7/23

O 3º Homem, The Third Man, 1949, Carol Reed

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CRÍTICA | O 3º HOMEM

Por MICHEL GUTWILEN,  27 de abril de 2020

...

Sobre as guerras - 1ª guerra mundial (1914-1918): 17 milhões de mortos; 2ª guerra mundial (1939-1945): 60 milhões de mortos

18/7/23

A Grande Ilusão, La grande illusion, 1937, Jean Renoir

"Na apresentação do filme, em 1938, ao público americano, Renoir escreveu: 'Ouço Hitler vociferando no rádio, exigindo a divisão da Tchecoslováquia. Estamos a beira de outra 'Grande Ilusão'. Porque sou pacifista, realizei esse filme. Para mim, um verdadeiro pacifista é um francês, um americano, um alemão autêntico. Um dia virá em que os homens de boa vontade encontrarão um terreno de entendimento. Os cínicos dirão que atualmente minhas palavras revelam uma consciência pueril. Mas porque não?" E acrescentou em 1946: "Os franceses deste filme são bons franceses, os alemães bons alemães. Alemães de antes da guerra de 1939. Não me foi possível tomar partido por nenhum dos meus personagens." (Geoges Sadoul, Dicionário de filmes, p. 175, L&PM, 1993)  

Crítica | A Grande Ilusão (1937) por Leonardo Campos,  6 de novembro de 2016 

18/7/23

O Grande Ditador, The Great Dictator, 1940, Charles Chaplin

"O roteiro foi feito em 1938 e, apesar do segredo do segredo que o cercava, ficou-se sabendo da sua polêmica anti-hitlerista, que provocou  protesto do embaixador alemão e cartas de ameaça enviadas por organizações pró-nazistas americanas. Depois de setembro de 1939, os isolacionistas e a Comiissão de Atividades Antiamericanas, por sua vez, passaram a atacar Chaplin. Ele aguentou firme e terminou a montagem na ocasião que as tropas hitleristas entravam em Paris. O Grande Ditador foi praticamente o único filme americano a combater o fascismo alemão antes de Pearl Harbour, e teve sucesso garantido nos Estados Unidos. Custou dois milhões de dolares (soma enorme na época). Apesar da hostilidade de todo um segmento da grande imprensa, Chaplin expressou seu credo no discurso aos homens, proferido de uma tribuna onde se lia a palavra 'Liberdade': A cobiça envolveu o mundo num círculo de ódio, faz-nos entrar a passo de ganso na miséria e no sangue. Não se desesperem. Os ditadores morrerão, e o poder que eles usurparam retornará aos povos. Por mais tempo que homens possam morrer, a liberdade não poderá desaparecer. Soldados, vocês não são máquinas nem gado. Vivam sem ódio. Lutem pela liberdade. Em nome da democracia, unamo-nos todos. Lutemos por um mundo novo, por um mundo adequado, de dê a cada homem a possibilidade de trabalhar." (Geoges Sadoul, Dicionário de filmes, p. 174,  L&PM, 1993)

O discurso no filme

Sinto muito, mas não pretendo ser imperador. Não é esse o meu ofício.

Não pretendo governar ou conquistar. Gostaria de ajudar judeus, gentios, negros, brancos. Todos nós desejamos ajudar-nos uns aos outros. Viver para a felicidade do próximo e não para seu infortúnio. Não desejamos odiar ou desprezar. Há espaço para todos. A terra é rica e pode prover às nossas necessidades. O caminho da vida pode ser o da liberdade, porém perdemo-nos.

A cobiça envenenou as nossas almas, levantou muralhas de ódio, fez-nos chegar à miséria e aos morticínios. Criamos a velocidade, mas somos enclausurados dentro dela. A máquina tem-nos deixado na penúria. Os nossos conhecimentos fizeram-nos cépticos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que inteligência, de afeição. Sem estas virtudes, a vida será feita de violência.

A aviação e o rádio aproximaram-nos. A natureza dessas coisas é um apelo à bondade, à fraternidade universal. Neste mesmo instante a minha voz chega a milhões de homens, de mulheres, de crianças desesperadas, vítimas de um sistema que tortura e encarcera inocentes.

Aos que me ouvem, eu digo: Não desespereis. A nossa desgraça é o produto da cobiça, da amargura de homens que temem o progresso humano. O ódio desaparecerá, os ditadores sucumbirão, e o poder arrebatado ao povo retornará ao povo. Enquanto morrem os homens, a liberdade nunca perecerá.

Soldados! Não vos entregueis a esses brutais que vos desprezam e escravizam, que ditam os vossos atos e as vossas ideias! Que vos utilizam como carne para canhão!

Não vos entregueis a esses desumanos com mentes e almas de máquina! Não sois máquinas! Homens é que sois! E com amor nas vossas almas! Não odieis! Só odeiam os desumanos. Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade!

São Lucas escreveu: "O Reino de Deus está dentro do homem. Não de um só homem, mas de todos os homens! Em vós! Vós, o povo, tendes o poder de criar máquinas, de criar felicidade! Tendes o poder de tornar esta vida livre e bela, de fazer dela uma aventura maravilhosa!

Em nome da democracia, usemos desse poder!

Unamo-nos! Lutemos por um mundo novo. Um mundo que assegure a todos o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice. Com tais promessas, os desalmados subiram ao poder. Mas só mistificam. Não cumprem o que prometem!

Os ditadores liberam-se e escravizam o povo! Lutemos para cumprir estas promessas! Para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, pôr fim à cobiça, ao ódio e à prepotência.

Lutemos por um mundo de razão, em que a ciência e o progresso conduzam à ventura de todos nós.

Soldados! Em nome da democracia, unamo-nos!

O Grande Ditador por Rodrigo de Oliveira

19/7/23

Oppenheimer, 2023, Christopher Nolan

'Oppenheimer' é filme estéril e arrastado pela direção viciada de Nolan

Longa é um dos poucos exemplos em Hollywood de cinema feito para adultos, mas se perde em seu enredo fragmentado 

Inácio Araujo, FSP, 19/07/2023

Desde que deixou Batman de lado, Christopher Nolan tem se especializado em dar passos maiores que suas pernas, caso de "Dunkirk" e "Interestelar".

"Oppenheimer" era, portanto, a grande chance de se aproximar de um assunto de atualidade, nem tão batido quanto a resistência inglesa no início da Segunda Guerra, nem tão atrapalhado quanto o fim dos tempos. Sendo Oppenheimer "o pai da bomba atômica", traz consigo a sombra da guerra de destruição total que hoje nos ameaça e, ao mesmo tempo, de uma segunda guerra fria.

Nolan observa o jovem pesquisador em fase de crescimento, adquirindo uma reputação de físico genial; depois, como o cérebro principal do Projeto Manhattan, que levaria à criação da bomba A; por fim, como vítima da caça às bruxas protagonizada pelo senador Joseph McCarthy já no início da guerra fria.

A divisão faz sentido. A ideia de fragmentar essas partes, ao menos como foi realizada, bem menos. A fragmentação produz viagens para frente e para traz e do branco e preto ao colorido que não colaboram para o entendimento das coisas. Repete o problema de "Dunkirk": um tique, uma notação autoral, nada mais. Ela funciona em alguns momentos, como o encontro entre Oppenheimer e Einstein, que aparece no início e no final, mas é tudo.

Para assistir ao filme com algum sossego convém conhecer alguns dados da história dos EUA, como o fato de que a caça às bruxas do macarthismo visava menos aos comunistas do que aos adeptos da política de Franklin Roosevelt. Era entre esses que se poderia localizar Oppenheimer nos anos 1930.

O momento em que o filme melhor se sai é, em definitivo, aquele de menor ambiguidade do personagem. Oppenheimer parece convencido, durante seu trabalho em Los Alamos, de que a bomba atômica seria o fim de todas as guerras, e é nessa direção que orienta seu trabalho.

Além do mais, sendo judeu, acabar com os nazistas numa tacada só lhe parece algo moralmente aceitável. Mesmo ali, no entanto, uma sombra surge muito forte: a possibilidade de que uma explosão da bomba destrua o planeta não é descartável, embora seja remota.

O terceiro momento mistura o problema de consciência que o assola depois das detonações de Hiroshima e Nagasaki (afinal, Oppenheimer queria usar sua criação contra os rivais nazistas, não contra a população japonesa) e os ataques que começa a sofrer durante a caça às bruxas, em que, insidiosamente, misturam-se posições políticas antigas e ideias sobre física.

De certa forma, é nessa parte que o filme resolve o dilema de Oppenheimer, o nosso protagonista, não ter, até o pós-guerra, nenhum antagonista. Eis algo que o cinema de Hollywood não tolera.

É então que surgem dois antagonistas: Edward Teller, dito "o pai da bomba H". Mas no pós-guerra é que ele aprontará algumas ursadas contra o nosso amigo Oppenheimer.

O principal oponente, porém, é o almirante Lewis Strauss, figura central da comissão de energia atômica, isto é, de certa forma o empregador de Oppenheimer. Por trás dele, pode-se perceber o próprio Estado americano e seu belicismo.

"Oppenheimer" esteriliza esse aspecto delicado ao erigir Lewis Strauss em vilão e atribuir a ele tudo que infelicita o grande físico.

O filme é, em poucas palavras, uma história a desenrolar, levada por Nolan, que parece ter certo prazer em enrolar as coisas. Prazer? Ao obscurecer a trajetória do físico, ao deixar em segundo plano a angústia moral e mesmo o arrependimento por ter criado uma arma capaz de destruir a humanidade, Nolan obscurece a grande questão de atualidade de seu filme: a retomada da corrida armamentista entre Rússia e EUA, o aprofundamento do espírito bélico americano nos últimos anos, em suma: o perigo mesmo de destruição da humanidade como decorrência de uma guerra nuclear.

Com diálogos bem escritos e bons atores bem dirigidos e bem maquiados, "Oppenheimer" seria um posto privilegiado para observar a história dos EUA desde os anos 1930 até os 2020. Por que Christopher Nolan o esteriliza, ao mesmo tempo em que decora seu filme com periódicas e fotogênicas explosões atômicas?

Difícil dizer. Pode ter sido imposição dos distribuidores. Pode ter sido pressão do Departamento de Estado, do FBI ou de quem mais seja. Mas não é nada impossível que o gosto de Christopher Nolan por tornar obscuro o que em si já não é tão simples é que se tenha imposto aqui.

É em todo caso, um dos poucos exemplos que Hollywood e cercanias nos oferecem hoje de um cinema para mentalidades com mais de 12 anos, uma pena que se tenha transformado num mastodonte de três horas que navega pesadamente da Depressão à caça às bruxas para desembocar num filme de tribunal apenas enfadonho.

Em tempo

Bombardeamentos atômicos de Hiroshima e Nagasaki

A bomba atômica de urânio (Little Boy) foi lançada sobre Hiroshima em 6 de agosto de 1945, seguido por uma explosão de uma bomba nuclear de plutônio (Fat Man) sobre a cidade de Nagasaki em 9 de agosto. Dentro dos primeiros 2-4 meses após os ataques atômicos, os efeitos agudos das explosões mataram entre 90 mil e 166 mil pessoas em Hiroshima e entre 60 mil e 80 mil seres humanos em Nagasaki; cerca de metade das mortes em cada cidade ocorreu no primeiro dia. Durante os meses seguintes, vários morreram por causa do efeito de queimaduras, envenenamento radioativo e outras lesões, que foram agravadas pelos efeitos da radiação. Em ambas as cidades, a maioria dos mortos eram civis, embora Hiroshima tivesse muitos militares. 

Quem foi o verdadeiro Robert Oppenheimer, criador da bomba atômica

'Em entrevistas concedidas nos anos 1960, Oppenheimer acrescentou ainda mais seriedade à sua reação. Ele afirmou que, nos momentos após a detonação, veio à sua mente um verso do Bhagavad Gita, o livro sagrado do hinduísmo: “Agora, eu me tornei a morte, o destruidor de mundos.”'

Debate sobre os bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki