quarta-feira, 28 de junho de 2023

Brasil, 203 mi

Brasil tem 203 milhões de habitantes, 4,7 milhões a menos do que o previsto, mostra Censo

IBGE aponta avanço de 0,52% ao ano na população de 2010 para 2022, menor número já registrado 

Leonardo Vieceli, Isabella Menon, FSP, 28/06/2023

O Brasil tem 203,1 milhões de habitantes, apontam os primeiros dados do Censo Demográfico 2022, divulgados nesta quarta-feira (28) pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). O resultado representa 4,7 milhões de pessoas a menos do que a prévia da pesquisa.

Em dezembro do ano passado, o próprio instituto calculou a população em 207,8 milhões. Essa prévia foi composta por dados iniciais do Censo, além de projeções. A diferença é ainda maior na comparação com um dado anterior, divulgado em 2021, quando o IBGE estimava o número de habitantes em 213,3 milhões. Essa previsão levava em conta dados do Censo anterior, de 2010.

O resultado definitivo de 2022 mostra que a população brasileira cresceu desde 2010. O ritmo, porém, é cada vez menor. O número de moradores representa uma alta de 6,5% (12,3 milhões a mais) em relação ao Censo anterior, quando o país tinha 190,8 milhões de habitantes. Isso significa que a taxa de crescimento foi de 0,52% ao ano.

Trata-se do menor nível já registrado em um recenseamento no Brasil. O primeiro ocorreu 150 anos antes, em 1872. De lá para cá, o país soma 13 operações censitárias.

A série histórica divulgada pelo IBGE mostra que a taxa de crescimento anual já chegou a 2,99% na passagem de 1950 para 1960.

O percentual encolheu de forma consecutiva nas décadas seguintes, até atingir 1,17% em 2010 e 0,52% em 2022. É a primeira vez que o avanço fica abaixo de 1% em um Censo.

Esse movimento ilustra o que especialistas chamam de transição demográfica, que traz reflexos tanto em questões comportamentais quanto na área econômica. "A queda da fecundidade começou no final da década de 1960. Começou com uma queda pequena, mas a partir da década de 1970 se espalhou pelo Brasil todo", diz o demógrafo José Eustáquio Diniz Alves, pesquisador aposentado do IBGE. "De lá para cá, a fecundidade só cai. Ao mesmo tempo, temos um aumento da expectativa de vida e uma redução das taxas de mortalidade."

Com menos filhos, as famílias tendem a investir mais na formação de uma mesma criança, e as mulheres podem encontrar menos dificuldades para a entrada no mercado de trabalho, afirma Alves.

O crescimento menor da população, por outro lado, encaminha o país para o fim do chamado bônus demográfico, segundo o especialista. Isso traz desafios para a economia, já que a parcela da população em idade de trabalhar tende a diminuir, enquanto a de aposentados, aumenta. O segredo para superar o quadro, diz Alves, é elevar a produtividade –capacidade de produzir mais com menos.

"A transição demográfica é o maior fenômeno de mudança de comportamento em massa da humanidade. Está mexendo com a vida das pessoas, com a morte delas", afirma.

Higor Gonçalves, 37, trabalha como relações públicas e é filho único. Sua mãe vinha de uma casa cheia: tinha dez irmãos. "Minha mãe tinha pavor de família gigantesca e isso impactou na decisão de ter só um filho", diz ele, que não planeja ser pai. "Não queria colocar um filho no mundo para ser criado por babá. Queria dar atenção e cuidar. Mas, no mundo de hoje, está muito complicado pela rotina e pelo trabalho. Sou muito absorvido pelo trabalho e é algo que me satisfaz", afirma.

"Tínhamos mais tempo antes, trabalhávamos no horário comercial, hoje não. Com WhatsApp, isso fica impossível."

Com o casamento se aproximando, a assessora de eventos Jéssica Souza, 28, acredita que a pressão por ter filho deve aumentar. Porém, nem ela e nem o noivo desejam uma criança. "Tenho outras prioridades, outros objetivos, e ter um filho precisa de condições, casa, orçamento. Gosto da minha liberdade, chegar na hora que quiser", diz.

O presidente interino do IBGE, Cimar Azeredo, disse que o instituto ainda trabalha para entender o que está por trás do crescimento menor da população. Segundo ele, também é necessária uma análise mais detalhada a respeito de eventuais impactos da mortalidade provocada pela pandemia de Covid-19.

A divulgação do Censo 2022 será feita em etapas. A primeira, ocorrida nesta quarta, não trouxe dados sobre as características etárias e de gênero dos brasileiros. Ficou centrada na evolução do número de habitantes e de domicílios. "A gente precisa esperar o trabalho que os demógrafos do IBGE estão fazendo para que a gente possa entender melhor o quanto o Brasil pós-pandemia está sendo influenciado por fecundidade, mortalidade, migração internacional, uma série de fatores que podem contribuir de forma expressiva para a queda da taxa de crescimento anual", afirmou Azeredo.


A coleta das informações do Censo começou no dia 1º de agosto do ano passado, e o IBGE planejava encerrar as entrevistas em três meses, até outubro. O instituto, contudo, encontrou uma série de dificuldades para avançar nos trabalhos. Por isso, foram feitas coletas de dados residuais até o final de maio deste ano. Ou seja, a operação levou quase dez meses.

Restrições orçamentárias, atrasos em pagamentos para recenseadores e o clima de tensão em meio à corrida eleitoral estão entre os motivos apontados para a demora. A taxa de não resposta ao Censo foi de 4,23% no Brasil. É o percentual de domicílios onde o IBGE constatou que havia moradores, mas não conseguiu fazer as entrevistas.

Já a taxa de recusa alcançou 1,38%. Trata-se do percentual de domicílios onde as pessoas não quiseram prestar as informações. Essas porcentagens foram maiores no estado de São Paulo, o mais populoso do país. A taxa de não resposta local alcançou 8,11%, e a de recusa, 2,34%.

Questionado se os percentuais de São Paulo impactaram o resultado geral da população brasileira, Azeredo disse que a cobertura está "muito consistente" e que o IBGE está "bastante contente" com os resultados.


O presidente interino lembrou que, em pesquisas como o Censo, e não só no Brasil, é usada a técnica de imputação em domicílios ocupados cujos moradores não participam das entrevistas. Trata-se de uma estimativa.

Segundo Azeredo, a imputação não prejudicou o resultado geral. "Hoje, a gente tem total certeza de que a população é essa que está colocada, os 203 milhões", disse.

Em 2022, a população imputada no Brasil foi de quase 8 milhões, o equivalente a 3,92% do total. A contada alcançou 195,1 milhões.

No Censo de 2010, a parcela resultante do processo de imputação havia sido de 2,8 milhões, segundo o IBGE. Foi menos de 2% do total à época.

População recenseada é menor do que estimativa

A nova edição do Censo tem o dia 31 de julho de 2022 como data de referência. Assim, as pessoas nascidas após essa data não foram incluídas na contagem. Durante a operação censitária, especialistas alertaram que a coleta prolongada traria riscos de imprecisão para os dados, mas o IBGE argumentou que o uso de novas tecnologias minimizaria as ameaças.

Os dados da contagem da população, contudo, mostram diferenças em relação às estimativas populacionais do instituto.

Em 2021, o órgão havia projetado a população brasileira em 213,3 milhões de habitantes, ou seja, em torno de 10 milhões a mais do que a contagem do ano passado.

As estimativas populacionais são feitas a partir da edição mais recente do Censo. Um dos procedimentos recomendados por especialistas para calibrá-las é a realização de uma nova contagem, mais enxuta do que o Censo, no meio de cada década. Porém, em 2015, essa contagem foi cancelada por falta de verba.

Azeredo afirmou que os demógrafos do IBGE estão "debruçados" sobre os dados para entender as diferenças entre as estimativas e o Censo. Ele, contudo, chamou atenção para a falta da contagem no meio da década passada. "Essa diferença, ela tem uma associação, nós não tivemos a contagem de população no meio da década. É fundamental que, em 2025, a gente faça a contagem da população", disse.

"Temos que fazer uma contagem para que a gente não se depare com diferenças grandes. Acho que a pandemia teria sido muito mais branda se nós tivéssemos tido uma contagem de população no meio da década. A pandemia pegou o Brasil num apagão de dados", acrescentou.












sábado, 24 de junho de 2023

Mulheres na ciência

 O efeito-tesoura para mulheres na ciência

Amanda Gorziza e Renata Buono, piaui,19/06/2023

Pela primeira vez na história brasileira, mulheres comandam dois dos órgãos mais importantes para a ciência no país: Luciana Santos é a ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação, e Mercedes Bustamante preside a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). A presença feminina na docência aumentou 13,5% em dezesseis anos. Apesar de todos os avanços, mulheres ainda estão sub-representadas nos postos mais elevados da pesquisa científica no país. Elas são 55% no mestrado  e 53% no doutorado – mas só 42% do corpo docente. Dados da Capes e do CNPq, analisados pelo Parent in Science e Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa/Iesp-Uerj), mostram a dificuldade de ascensão feminina. A análise do Gemaa foi feita com um software que atribui gênero a partir do nome, o que restringe a pesquisa ao gênero binário. A piauí contou a história de mães bolsistas e suas dificuldades para se manter na área acadêmica pela pressão da produtividade e a pouca flexibilização das instituições com a maternidade. O =igualdades desta semana faz um raio X nos dados de mulheres na ciência no Brasil.

Dos 20,9 mil bolsistas do CNPq em 2022, 65% são homens e 35% mulheres. Já no nível 1A, o mais alto, a discrepância de gênero é maior. Dos 1,4 mil bolsistas, 73% são homens e 27% são mulheres.

De 2004 a 2021, o CNPq investiu cerca de R$ 4,7 bilhões em bolsas de produtividade. Os homens levaram R$ 3,13 bilhões (66,5% do orçamento), enquanto as mulheres receberam R$ 1,6 bilhões – ou seja, eles receberam quase o dobro que elas. A discrepância de valores se deve ao fato de os homens receberem mais bolsas e de as mulheres estarem concentradas no nível 2, que tem um valor menor investido.

O efeito-tesoura é o corte de proporção do gênero feminino na medida em que a carreira acadêmica progride, ou seja, na redução da presença de mulheres na passagem do mestrado ao doutorado, ou do doutorado à ocupação de cargo docente estável. Segundo dados da Capes, elas representam 55% dos alunos no mestrado, reduzindo para 53% no doutorado, mas apenas 42% no corpo docente.

Apesar da discrepância atual, há duas décadas o cenário de mulheres na ciência era mais desigual. Em dezesseis anos, a presença feminina na docência aumentou 13,5%. De 2004 a 2020, também houve um crescimento geral da participação das mulheres no mestrado (4%) e no doutorado (6%).

Muitas áreas de conhecimento da Capes ainda não alcançaram a equidade de gênero na docência. Das 50, apenas 30% apresentam 50% ou mais na proporção de mulheres entre docentes da pós-graduação, são elas: arquitetura, urbanismo e design, ates, ciência de alimentos, ciências biológicas, comunicação e informação, educação, enfermagem, ensino, farmácia, linguística e literatura, nutrição, odontologia, psicologia, saúde coletiva e serviço social.

O efeito-tesoura afeta diversas áreas se comparados os dados de doutoras e docentes. A área de ciências agrárias tem a maior desigualdade dessa proporção, são 51% de doutoras, mas apenas 26% de professoras titulares. Já as ciências biológicas também têm a maioria das docentes do gênero feminino (65%), mas apenas 50% das docentes.

As oitos fichas de avaliação da Capes que fazem menção à maternidade são de ciências biológicas II, direito, administração pública e de empresas, ciências contábeis e turismo, economia, sociologia, antropologia/arqueologia e ensino interdisciplinar. A área de educação menciona licença, mas não especifica a maternidade. As outras quarenta áreas não especificam nenhuma ação relacionada à maternidade.

Fontes: Dados da Capes e do CNPq organizados pelo Parent in Science e Gemaa/Iesp-Uerj


 Amanda Gorziza (siga @amandalcgorziza no Twitter)

Renata Buono (siga @revistapiaui no Twitter)


sexta-feira, 23 de junho de 2023

A vergonhosa morte da esquerda brasileira

Ainda que crítica do ponto de vista estético e discursivo, a esquerda brasileira age cinicamente como se admitisse para si mesma que é impossível superar os pressupostos neoliberais. Por Heribaldo Maia | Revista Opera

Por Heribaldo Maia - junho 20, 2023

É que o anzol da direita fez a esquerda virar peixe” (Criolo, Esquiva da esgrima)

“É que o anzol da direita fez a esquerda virar peixe”: a isca neoliberal

Em 2016, logo após o golpe que retirou a presidenta Dilma Rousseff de seu cargo, Michel Temer, um dos articuladores políticos do golpe, deu o pontapé em uma agenda política e econômica para o Brasil chamada de “Uma ponte para o futuro”, elaborada em 2015. O programa, fruto da articulação golpista, visava, principalmente, a aceleração e radicalização da agenda neoliberal. Digo “aceleração” e “radicalização” porque, refém da própria política de pactos conciliatórios pelo alto que a encurralou pelo centrão, por um lado, e pelas forças do mercado de outro, a ex-presidenta Dilma já havia aberto mão de suas promessas eleitorais, quando disse que não cederia às pressões neoliberais “nem que a vaca tussa”. Anunciou um neoliberal de carteirinha para o Ministério da Fazenda, o chicago boy Joaquim Levy, que já havia integrado o governo Lula, anteriormente, como Secretário do Tesouro Nacional e, bem posteriormente, se tornaria Presidente do BNDES, evidenciando a continuidade neoliberal brasileira durante a gestão de Jair Bolsonaro.

Apesar das diferenças, que não são irrelevantes, houve e ainda há uma espécie de linha vermelha de continuidade que costura o aparente caos de fatos e atores políticos: tanto em Levy sob a gestão de Dilma, quanto no projeto golpista de Temer com sua “ponte para o futuro”, e também na radicalização neoliberal promovida por Bolsonaro com Paulo Guedes, outro neoliberal ortodoxo, está a austeridade.

A lógica neoliberal da austeridade parte do senso comum, correto, de que é preciso que haja eficiência no gasto público, com o objetivo de evitar desperdícios desnecessários. Qualquer pessoa concorda que é fundamental que haja cuidado com o dinheiro público, afinal tal cuidado permite que se faça mais com a mesma quantia, potencializando o gasto público com foco no que é importante. O problema é o que se considera, pela lógica neoliberal, como “desperdício” e “importante”. O “importante” é um mercado livre, desregulado e que continue se expandindo ao máximo e infinitamente (como se isso fosse possível), mercantilizando tudo e todos. O “desperdício”, portanto, é tudo que escapa à lógica da mercantilização. Por exemplo: o investimento público que vise a construção de um aparato mínimo de solidariedade social que permita o acesso universal à saúde, educação, moradia, trabalho, alimentação e dignidade para a população. Afinal, para o neoliberalismo, como dizia Margaret Thatcher, não há Estado babá. Ao Estado não cabe oferecer algum tipo de bem-estar, mas – e aqui o que é importante –, intervir para “moldar politicamente as relações econômicas e sociais regidas pela concorrência”[1]. O critério de atuação do estado neoliberal não é o bem-estar humano, mas a manutenção e ampliação da lógica concorrencial, a tal ponto que, como afirma Hayek: “O estado deve ou não ‘agir’ ou ‘intervir’? – apresentar a alternativa dessa forma é desviar a questão. O termo laissez-faire é extremamente ambíguo e serve apenas para deformar os princípios sobre os quais repousa a política liberal. (…) o que importa é mais o caráter da atividade do governo do que seu volume”[2] (grifo nosso).

Cabe observar que toda política econômica não é “apenas” um modo de gestão técnica (ou seja: ideologicamente neutro) da economia, como se, independente de qual alinhamento político seguido, os pressupostos econômicos fossem os mesmos, como querem nos fazer acreditar. Toda visão econômica guarda, em seu núcleo, um modelo de organização social, de percepção do ser humano e de interação institucional. Assim, o neoliberalismo “não destrói apenas regras, instituições, direitos. Ele também produz certos tipos de relações sociais, certas maneiras de viver, certas subjetividades”[3], que naturalizam o neoliberalismo e, pior ainda, bloqueiam a capacidade humana de imaginar politicamente possibilidades para além dos seus limites. Em resumo, “o neoliberalismo, antes de ser uma ideologia ou uma política econômica, é, em primeiro lugar e fundamentalmente uma racionalidade e, como tal, tende a estruturar e organizar não apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados”[4].

Pensar a política econômica sob esse prisma complexifica bastante a forma como se percebe seus conflitos. A adoção do modelo neoliberal não é apenas a aplicação de técnicas neutras – isso é justo o que os ideólogos neoliberais querem nos fazer crer –, mas a aceitação, consciente ou inconsciente, de bases políticas concretas que reproduzem o modo neoliberal de vida baseado na absolutização da concorrência. Um neoliberalismo progressista ou um neoliberalismo conservador, para trazer suas facetas e complexificar a questão, ainda é neoliberalismo em sua essência. Como coloca Nancy Fraser:

“O bloco progressista-neoliberal combinou um programa econômico neoliberal e plutocrático com uma política de reconhecimento liberal-meritocrática. O componente distributivo desse amálgama era neoliberal. Determinadas a libertar as forças do mercado da pesada mão do Estado e da moenda dos ‘impostos e gastos’, as classes que lideraram esse bloco visavam liberalizar e globalizar a economia capitalista. O que isso significava, na realidade, era a financeirização: desmantelamento das barreiras e das proteções à livre circulação do capital; desregulamentação bancária e ampliação das dívidas predatórias; desindustrialização; enfraquecimento dos sindicatos e difusão dos trabalhos precários e mal remunerados”[5].

Um dos efeitos políticos da adesão acrítica ao neoliberalismo, ainda que de cunho progressista – acriticidade essa que no Brasil chega ao auge na argumentação de que criticar o neoliberalismo é fortalecer o neoliberalismo (?) – é, em especial: uma crescente despolitização e paralisia política de trabalhadores e intelectuais ou, em outros termos, a limitação da imaginação política a, no máximo, um progressismo neoliberal.

A expressão mais bem-acabada desse processo de adesão ao neoliberalismo e bloqueio da imaginação política é a famosa frase de Fredric Jameson: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Assim, a esquerda brasileira, ao se entregar à versão progressista do neoliberalismo, encarnou, como poucas no mundo, a expressão de tal bloqueio. Nada, absolutamente nada, pode ser tentado, a não ser a conciliação neoliberal sob uma versão “humana”, “progressista” – como se isso fosse possível. E não estou partindo da visão ingênua de que nossa esquerda hegemônica fosse chegar ao poder para “revolucionar” (até porque não é assim que funciona). Muito menos que Lula, o PT ou outros partidos progressistas partilhem de quaisquer convicções socialistas. Porém, entre o neoliberalismo e a revolução há, como a própria história da América Latina nos mostra, alternativas (vide Hugo Chavez na Venezuela, Evo Morales e Luis Arce na Bolívia, Gustavo Petro na Colômbia, dentre outros), mesmo que dentro das limitações ideológicas de cada um desses exemplos e das próprias dinâmicas institucionais. Ou seja, o argumento é que se a revolução não está palpável no imediato, ou se os comunistas não estão prontos para a revolução amanhã, então não há nada a se fazer e nem o que cobrar: ou se adere ao neoliberalismo ou, se não há uma revolução pronta amanhã, que calemos a boca, deixemos a ingenuidade de lado e aceitemos ainda mais neoliberalismo, em favor de uma suposta governabilidade – afinal, pelo menos não é a direita quem está no poder.

O resultado é que a esquerda brasileira é o retrato, até melhor do que o desenhado por Mark Fisher ao falar da Inglaterra, daquilo que ele chamou por realismo capitalista: “Não se trata necessariamente da ideia de que o capitalismo é um sistema particularmente bom, mas sim de persuadir as pessoas a acreditarem que é o único sistema viável e que a construção de uma alternativa é impossível”[6]. Ainda que crítica do ponto de vista estético e discursivo, a esquerda brasileira age cinicamente como se admitisse para si mesma que é impossível superar os pressupostos neoliberais, quem dirá o capitalismo. Uma postura ideológica cínica, de quem critica e performa criticidade quando conveniente, mas reproduz politicamente a forma de vida neoliberal em sua prática política. Isso é o que Fisher chama de impotência reflexiva: “eles sabem que as coisas vão mal, mas mais do que isso, ‘sabem’ que não podem fazer nada a respeito”[7].

Ao assumir o neoliberalismo progressista como único horizonte possível, por um lado nossa esquerda bloqueia qualquer debate político – afinal, se não há mais alternativas a não ser uma falsa polarização (que nossa mídia ama dizer que existe) de formas de aplicação do neoliberalismo, não há disputa política de fato, pois toda eventual proposta política está inviabilizada de partida, recaindo sempre na impossibilidade a priori de qualquer alternativa –; por outro a esquerda neoliberal-progressista usa muito bem a ausência de alternativas para aparecer como única alternativa real para frear uma barbárie ainda maior, surfando na onda do que Slavoj Zizek apontava como chantagem liberal[8], em que o medo da extrema direita é instrumentalizado de forma a fazer o debate público aceitar de modo acrítico qualquer projeto político, por mais radicalmente neoliberal ou por mais próximo da extrema direita que seja, sob a justificativa de que é a única saída para evitar o pior, num eterno jogo de menos pior em menos pior que só piora com o tempo, alargando a implantação da racionalidade neoliberal e fazendo a alegria da burguesia, que ganha independente de quem ganhe.

Agora podemos fazer o caminho do abstrato ao concreto e pisar em solo brasileiro. A Carta aos brasileiros, a agenda golpista da Ponte para o Futuro, a ascensão bolsonarista capitaneada por Paulo Guedes e a capitulação completa do terceiro governo Lula ao neoliberalismo, mostram que a essência neoliberal, que ganhou maior musculatura com a PEC do Teto de Gastos de Temer e visava limitar o investimento público em serviços e no social em prol de um suposto equilíbrio fiscal que só beneficia os ricos – ou seja, a burguesia brasileira –, se mantém mais viva do que nunca, confirmando a vitória neoliberal e mostrando que, se há alguém ainda não sabe que vivemos numa luta de classes, esse alguém é a esquerda, porque a direita sabe muito bem – tanto assim que estão ganhando com extrema facilidade (ouso dizer que em poucos países tem sido tão fácil ser de direita como no Brasil). Mesmo quando perdem eleitoralmente, suas pautas permanecem sendo aplicadas independentemente da cor da bandeira do governante ou da intensidade de sua aplicação. Assim, o governo Lula III se orgulha de seu pacote de austeridade, que gerará insatisfação popular a médio e longo prazo, insatisfação popular que, certamente, será a bala de prata da extrema direita diante de um governo que, sem forças, negocia dando tudo em troca de nada.


No Brasil o neoliberalismo (do bem) veste vermelho

Porém, o que mudou do golpe para hoje? Certamente a reação e a postura das esquerdas é algo que se nota rapidamente. A forma como a esquerda tem reagido a um governo rendido, e que reforça sua posição de rendição por ter cedido antes da luta, arrogante em sua fraqueza, é um mordaz sintoma de sua morte. Em 2016, naquele fatídico ano do golpe, ocupamos as universidades, escolas e ruas contra a tal PEC do Teto. Na época, uma política tão radicalmente neoliberal e com consequências sociais tão violentas era considerada um absurdo que viria a destruir por inanição a população brasileira, bem como jogar fora a oportunidade de construirmos um país melhor. Eu, que fazia parte da União da Juventude Comunista do Partidão, assim como diversos camaradas e lutadores de todo Brasil, organizados em diversos movimentos e partidos, fomos para Brasília lutar. Por óbvio, a vitória não era certa, como nada na vida é certo e em nenhuma luta há vitória antes da luta. Por isso Mao dizia “ousar vencer”, pois vencer requer coragem de se jogar num horizonte indeterminado. Mas ao menos tivemos a decência e a coragem de tentar, como durante toda história do Brasil o seu povo nunca deixou de lutar. Se não for para lutar contra a desumanização, para que serve a esquerda? A derrota faz parte – já o fetiche pela derrota e a desistência pertence aos covardes.

Sete anos depois, após passarmos por uma pandemia que levou centenas de milhares de brasileiros à morte e serviu como estopim para o aprofundamento do golpismo com o fascismo de Bolsonaro, a esquerda volta ao poder com a eleição de Lula em 2022. Durante a campanha, Lula falou, inúmeras vezes, que não haveria teto em seu governo, e apontou, corretamente, o quanto esse tipo de política era fruto de uma entrega do país aos especuladores e rentistas, representando uma falta de projeto político, que causa miséria, desigualdade e aprofunda opressões – os mais afetados com a escassez do investimento estatal no social são sempre os mais pobres, que no Brasil são a população negra, periférica, sem esquecermos de indígenas, quilombolas, LGBTQIAP+ et al.

Contrariando seu discurso eleitoral, ao iniciar seu governo, Lula toma como principal agenda política justamente um novo teto de gastos, tocado por seu ministro, o mais tucano dos petistas, Fernando Haddad, o assim chamado “arcabouço fiscal”. Tudo isso sem debate com a população. Segundo o próprio Haddad, o arcabouço fiscal é uma das regras “mais duras do mundo”. Em resumo, o arcabouço petista limita o gasto público, impondo uma série de gatilhos que irão travar o investimento estatal no social, na abertura de concursos públicos, na valorização salarial do funcionalismo etc. Tudo isso para garantir o pagamento dos juros da dívida. A título de comparação: o arcabouço só permite que o Estado invista e gaste entre 0,6% e 2,5%  acima dos gastos do ano anterior , retirado desse percentual o pagamento dos juros da dívida (ou seja, preservando quem se beneficia com o recebimento desses juros). Lula, para conter a crise de 2008, subiu os gastos públicos em mais de 10% para garantir que a crise não tivesse tanto impacto no Brasil – e tal medida, impossível dentro da normativa do arcabouço, se mostrou acertada. Caso o arcabouço fiscal vigorasse desde 2003, início do primeiro governo Lula, o Brasil teria perdido cerca 8 trilhões (!) em gastos e investimentos, o que impediria a implementação de diversos projetos que sustentam o capital político de Lula (a exemplo da expansão universitária, que seria limitada ou até inviabilizada), como mostra texto do economista da bancada do PSOL na Câmara dos Deputados, David Deccache

“O segundo governo Lula, para sair da crise internacional, cresceu os gastos acima da inflação em 9,59% e 16,30% nos anos de 2009 e 2010. Agora temos economistas e políticos dizendo que 0,6% é um mecanismo anticíclico que garantirá ao terceiro governo Lula um piso para sair de eventual turbulência.

Para se ter uma ideia, se as regras propostas no Novo Arcabouço Fiscal estivessem em vigor desde 2003, teríamos cerca de R$ 8,8 tri a menos em serviços públicos oferecidos à população no período!”.

Essa “dureza” quem irá sentir não serão os amigos de Haddad, que formam parte do mercado financeiro e da burguesia, os quais ele tanto se empenha em agradar, mas o povo – esse que elegeu o PT e seu programa que afirmava que não haveria mais teto de gastos. Será a educação, enfermagem, saúde, as políticas públicas, os funcionários públicos, a juventude negra, os povos indígenas, as pessoas com deficiência, as mulheres, as LGBTQIAP+, enfim, todos que subiram a rampa na posse de Lula. Agora descem-na escorraçados depois de terem sido feitos de token para construir uma aparência progressista que, ao final, se mostrou um engodo para a manutenção neoliberal. O brilho da estrela vermelha ilumina apenas os ricos. Como sabemos, toda estrela um dia morre, vira um buraco negro e suga com sua força gravitacional tudo que estava ao redor, deixando de brilhar. O arcabouço, a longo prazo, irá retirar muito dinheiro que, ao invés de ser usado para melhoria da vida do povo brasileiro, irá para o bolso dos barões que financiaram o golpe e o bolsonarismo, eles mesmos, os idealizadores, financiadores e executores do golpe e responsáveis pela ascensão fascista, serão os maiores beneficiários. Basta ver que João Dória, Paulo Guedes e banqueiros (esses, que até ontem eram nossos inimigos, ao que me lembre), não cansam de elogiar a medida.

O Arcabouço Fiscal foi votado na calada da noite. Lembrando os piores momentos das implementações neoliberais da era FHC, que votava projetos no final da noite e início da madrugada para evitar repercussões e protestos. Sabemos bem que é na calada da noite que os ratos fazem a festa. Porém, naqueles tempos em que o neoliberalismo usava azul, ao menos havia luta. Hoje, quando veste vermelho, só há silêncio ou, pior, é considerado um “avanço civilizatório”. As figuras progressistas adoram frases de impacto como “pânico de nada”, “fogo nos racistas”, “venceremos!”, “nunca tenha medo do seu inimigo”, mas apenas no sentido retórico, a fim de aparentar uma militância que tão somente serve para angariar simpatia pessoal, alavancar projetos individuais ou amenizar o peso na consciência diante de sua própria impotência reflexiva.

O que parece é que o problema nunca foi o neoliberalismo, mas apenas a cor vestida por quem nos impõe sua lógica de exploração e opressão. Uma espécie de estetização[9] da política, onde os neoliberais do bem vestem vermelho e os malvados vestem a camisa amarela da seleção brasileira. Como vivemos tempos onde o governo nos estrangula com o boné vermelho da moda, então presenciamos a paz de uma morte anunciada, de uma esquerda que morreu, mas que, como um zumbi, continua andando por aí controlada pelo fungo da austeridade. Um cadáver podre que por apego, negação ou cumplicidade, não enterramos, mas cujo cheiro fétido não deixa de nos alertar de sua morte. O pouco que sobrou é apenas um igualitarismo meritocrático que, apesar de ter sua importância pontual, não afeta a totalidade das relações sociais, não alterando em nada o solo de exploração e opressão. Sobrou – e este é o ponto de separação entre o neoliberalismo progressista e conservador –, “uma política progressista de reconhecimento”[10] profundamente liberal.

“Servindo-se das forças progressistas da sociedade civil, eles difundiram um ethos de reconhecimento superficialmente igualitário e emancipatório. No centro deste ethos estavam os ideais de ‘diversidade’, ‘empoderamento’ das mulheres, direitos LGBTQ+, pós-racialismo, multiculturalismo e ambientalismo. (…) Igualdade significava meritocracia.

A redução da igualdade à meritocracia foi especialmente fatídica. O programa neoliberal progressista para uma ordem ‘mais justa’ não visava abolir a hierarquia social, mas ‘diversificá-la’, ‘empoderar’ mulheres ‘talentosas’, pessoas de cor[11] e minorias sexuais para que chegassem ao topo. Esse ideal é inerentemente específico a uma classe, voltado para garantir que indivíduos ‘merecedores’ de ‘grupos sub-representados’ possam alcançar posições e estar em pé de igualdade com os homens brancos e heterossexuais de sua própria classe. A variante feminista é reveladora, mas, infelizmente, não é única. Focados em ‘fazer acontecer’ e ‘quebrar o teto de vidro’, seus principais beneficiários só poderiam ser aqueles que já possuíssem o necessário capital social, cultural e econômico. Todos os outros continuariam presos no porão”[12].

Os efeitos nefastos do neoliberalismo sempre se voltam contra a esquerda, além de continuarem esmagando o já machucado povo brasileiro. O estrangulamento das políticas públicas promovidas pelo arcabouço irá criar um clima de insatisfação que poderá ser crescente e fatal. Afinal, em lugar nenhum as políticas neoliberais surtiram efeitos positivos, nem para a economia nem para produzir ganhos políticos permanentes. A insatisfação popular contra a política, que já sentimos no Brasil (e que foi tão mal interpretada pela esquerda, afinal a limitação da imaginação política também empobreceu a capacidade analítica da própria condição e realidade), se mostrou potencialmente explosiva, ainda que sem direção. Por mais difusa que seja, me parece fazer sentido tal insatisfação: afinal, o neoliberalismo corroeu e corrói a condição de vida da população, precariza as relações, retira direitos e produz a impressão de uma falsa polaridade política (neoliberalismo progressista vs. conservador) que aparece, sintomaticamente, pelo discurso do “todos os políticos são iguais”. Para piorar, a esquerda parece ter vocação para o estelionato eleitoral, desde a Carta aos Brasileiros até 2022, quando Lula é eleito como candidato antineoliberal e, assim que toma posse, mergulha no neoliberalismo. Depois, quando as pessoas se irritarem e apontarem o dedo dizendo, “precisamos mudar tudo isso que está aí porque todos são iguais”, vamos chamar o povo de burro, ignorante e manipulado, voltando para o lugar seguro da superioridade moral, mas de incapacidade política de produzir alternativas. 

Espero, talvez ingenuamente, que ao invés de transferirem a responsabilidade dos resultados de suas escolhas para quem os critica, para os que ousam resistir ao charme melancólico do neoliberalismo progressista (como fizeram e fazem até hoje sobre o golpe e o bolsonarismo, cuja a responsabilidade é de todos, menos de quem esteve no poder por 14 anos!), se responsabilizem. Mas, como a história nos apontou, isso não vai acontecer. Haverá, como já começou a haver, a famosa transferência acrítica de responsabilidades. Vão culpabilizar quem critica, quem protesta, quem resiste, quem quer avançar etc., afinal é sempre muito mais fácil fugir dos seus próprios erros transferindo-os para o outro do que tomar para si as responsabilidades das próprias escolhas. O que temos é uma finada esquerda que tem alergia à crítica, medo de rua e incapacidade cognitiva de aprendizado com o passado recente e com os próprios erros. Essa transferência de responsabilidades também é um sintoma do cinismo que todo neoliberal ama, o cinismo do não há alternativas – ou é isso ou algo pior, exatamente como dizia Margaret Thatcher, Mises, Milton Friedman e companhia.


A esquerda que foge da luta, abraça a derrota

Por que não cuidar de introduzir uma desconfiança nessa desconfiança, e não temer que esse temor de errar já seja o próprio erro?” (Hegel, Fenomenologia do espírito)

Recentemente, o colombiano Gustavo Petro, eleito o primeiro presidente de esquerda em seu país, nos mostrou que sim, é possível tentar (e numa conjuntura pior que a brasileira). Petro, cercado por uma legislatura conservadora, tal qual nosso Congresso, rompeu com sua coalizão, forçou uma agenda o mais à esquerda possível e mobilizou suas bases, usou sua popularidade para educar o povo da necessidade das reformas à esquerda e o convocou para as ruas

Por aqui há um apego ao obstáculo e à derrota antecipada, que impede a percepção de alternativas. O mais comum é dizer que o Congresso é conservador – como se alguém imaginasse que, em nossa conjuntura, teríamos um legislativo progressista. Porém é preciso ser taxativo: apesar de ser óbvio que, com um Congresso conservador, haveria uma tensão que imporia uma agenda à direita ao Brasil, a postura do governo nunca foi de enfrentamento, tornando tal argumento apenas uma desculpa pouco consistente para desistir de tentar por antecipação. E, pior ainda, enxergando nessa desistência, que só demonstra impotência, habilidade política e realismo. Vamos tomar o caso da votação do arcabouço fiscal. Não é que o Congresso precisou neoliberalizar e tensionar à direita uma proposta avançada do governo; foi o governo que, por conta própria, enviou uma proposta em cujo núcleo está a austeridade – e que, por óbvio, foi piorada no Congresso. Ou seja, não houve guinada à direita do projeto, o projeto já era essencialmente neoliberal e foi apenas ajustado para ficar ainda mais rígido.

Vejamos, então, como o próprio governo apresentou a proposta. “Há uma banda (piso e teto) para o crescimento real (descontada a inflação) das despesas do governo entre 0,6% e 2,5%”. Perceba que o eixo do projeto coloca o PT diante de um problema: como o crescimento do gasto público depende de um aumento da arrecadação, ou se amplia a arrecadação com o aumento da tributação – e mesmo que a arrecadação seja enorme, o investimento do governo não pode passar do teto de 2,5% em relação ao ano anterior –, ou o governo terá que estrangular áreas sociais importantes para fazer as despesas caberem na nova regra. Por óbvio, a escolha é nítida para os neoliberais progressistas: o governo tem sinalizado para a segunda alternativa, qual seja, a de atacar direitos conquistados com muita luta, que são os mínimos constitucionais para Saúde e Educação, deixando essas áreas submetidas a um teto que, a depender do governo, poderá estrangular ainda mais tais áreas e com respaldo legal, já que não contam mais com uma pressão normativa que os impedia de retirar investimentos

“Atrelados à arrecadação, os gastos mínimos com saúde e educação determinados pela Constituição serão reavaliados, disse nesta quinta-feira (30) o secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron. […] ‘Entendemos que há critérios que podem ser melhores que a mera indexação [em relação às receitas]’, disse Ceron”. 

Por outro lado, há sim uma área que ficará fora do teto: o pagamento dos juros da dívida, que beneficia rentistas, banqueiros e o mercado. “O principal balizador dessas normas é a fixação de uma trajetória consistente para o resultado primário do governo Central, que são as receitas menos as despesas deste ente, descontadas as despesas financeiras com a dívida pública”. Perceba que o foco principal do projeto é resguardar as despesas com a dívida e não garantir o investimento (piso esse de apenas 0,6%). Para tal objetivo o próprio governo – e, frise-se, não o Congresso – pretende sacrificar os pisos constitucionais com Saúde e Educação, resguardando o mercado do teto.

Numa espécie de repetição sintomática que remete à Carta aos brasileiros, Haddad, em carta para o FMI (Fundo Monetário Internacional), defendeu seu arcabouço para demonstrar ao mercado e ao grande capital internacional sua devoção aos dogmas neoliberais: “As despesas crescerão abaixo da arrecadação e as metas de resultado fiscal primário serão definidas de forma consistente com o objetivo de manutenção da sustentabilidade da dívida”. E prosseguiu: “Neste novo cenário, o governo poderá registrar um superávit fiscal primário de 1% do PIB em 2026.”. E, me tornando repetitivo, não foi o Poder Legislativo quem produziu o texto do arcabouço e nem mandou carta ao FMI. O Congresso, claro, piorou o projeto, radicalizando-o, mas não o tornando neoliberal, dado que neoliberal o arcabouço já era desde seu princípio. O Executivo lutou pelo arcabouço e não por outra proposta mais avançada, não porque sabia que não iria passar, mas por convicção, tanto que o deputado federal Lindberg Farias, do PT, foi barrado pelo próprio partido na CPI dos atos golpistas por ter criticado o projeto, numa clara sinalização de bloqueio a qualquer debate à esquerda de sua proposta. O Congresso, por óbvio, ao ver que o próprio governo não apenas enviou uma proposta neoliberal, como também que pune quem a critica, partiu para a ofensiva. Do mesmo modo, a bancada do PT e dos demais partidos progressistas, com exceção do PSOL, rejeitou fazer destaques ao texto votado, o que poderia diminuir o impacto do teto nas áreas sociais fundamentais, como afirmou Zeca Dirceu: “A bancada do PT não fará emendas ao arcabouço fiscal”.

Claro que a correlação de forças nas instituições não é favorável, até pela própria característica da circulação de poder nelas, pois as instituições são reflexo do poder dominante de uma sociedade e, por isso mesmo, tendem sempre a ser expressão mais conservadora possível desse poder dominante. Mas a correlação de forças não é um dado da natureza, que só muda por intervenção divina. Como o próprio nome já diz, correlação de forças remete a uma disputa onde quem impõe mais força tende a diminuir os impactos do adversário, numa espécie de cabo de guerra. Por isso mesmo ela é constantemente mutável; cada movimento a altera. Quando um dos lados já parte, de cara, com um projeto que o próprio adversário aplaudiu, o sinal dado é de fraqueza, e não de força. Para ilustrar o ponto, aproveitando o sinal de fraqueza, o Congresso passou a boiada com a MP dos Ministérios – que esvazia as pastas de Meio Ambiente e dos Povos Indígenas. Em ofensiva, a Câmara dos Deputados também aprovou o Marco Temporal, o sonho de ouro do golpismo e do bolsonarismo. Ou seja, a tão temida boiada não passou com tudo no bolsonarismo porque havia alguma resistência, mas diante de nossa complacência do “não pode criticar”, “é o que dá para fazer” etc., a boiada, enfim, está passando – e silenciosamente. Contraditoriamente, apesar da prepotência em que brada sua superioridade diante de seus críticos à esquerda, a impotência petista reflete apenas uma esquerda hegemônica tão medrosa do fracasso que prefere ela mesma fracassar de antemão. Não é preciso o adversário forçar uma neoliberalização. A própria esquerda faz isso para evitar que a direita o faça, assim se percebe como vitoriosa, ainda que tal mecanismo de defesa não faça nenhum sentido de um ponto de vista racional.

A morte da esquerda guarda algo de trágico: um tipo específico de negacionismo que por óbvio não quer ouvir críticas, afinal não quer ter que se deparar com a realidade de seu próprio esgotamento político e incapacidade de capturar demandas populares.

“Se a extrema direita ao recorrer à desinformação ou a qualquer outro subterfúgio, conseguiu mobilizar as paixões de milhões de pessoas que se sentem desassistidas e deixadas para trás, é porque esses sentimentos existem. Isto é, a mensagem da extrema direita só é convincente porque um grande número de pessoas acredita que há, de fato, algo profundamente errado com o sistema político e econômico atual. Combater essa mensagem não se resume, portanto, a combater as mentiras em que ela vem embalada, mas exige, em última análise, dar respostas às questões que estão na raiz desses sentimentos. Isso não poderá acontecer, enquanto continuarmos negando a existência dessas questões. […]

A maioria das vozes que se dizem ‘realistas’ hoje repete dogmas de uma realidade que sequer existe mais. Desde a crise de 2008, não há perspectiva segura no horizonte global de um novo ciclo de crescimento econômico que produza empregos e reduza a desigualdade. As tendências apontam, pelo contrário, para um capitalismo de baixa produtividade, voltando à extração de renda, e um aumento do desemprego estrutural. Além disso, a evidência inescapável da crise ambiental põe em xeque qualquer promessa de progresso infinito e os cálculos imediatistas de corporações e países. Se uma quantidade crescente de pessoas está se abrindo a posições que antes seriam tidas como ‘extremas’, tanto à direita quanto à esquerda, é em primeiro lugar porque o ‘centro’ não consegue mais convencê-las de que tem condições de manter suas promessas. É por isso que o meio-termo entre o neoliberalismo-conservador e neoliberalismo-progressista perde sua aura de ponto de equilíbrio natural” [13].

Errar não é e nem nunca foi um problema, mas, como diz o dito popular, permanecer no erro é burrice. Continuar na mesma estratégia e esperar resultados diferentes é um tipo bem específico de negação de seu próprio erro, muito comum em nossa esquerda. Como a própria história recente nos mostra, voltando a um passado bem recente: “Dilma não caiu por ter partido para a ofensiva, mas porque já não tinha mais para onde recuar. […] Depois de fazer uma campanha em que se colocava como a única candidata antiausteridade, Dilma adotou um severo programa de ajuste fiscal que alienou sua base de apoio”[14]. Hoje, presenciamos o governo e seus defensores se enxergando como grandes mestres da realpolitik, quando na verdade não passam de falsos realistas que buscam ocultar sua própria incapacidade de enfrentamento e de influir na correlação de forças de maneira efetiva. Até quando o recuo vai sustentar a esquerda no poder, não sabemos. Mas sabemos quem certamente sentirá na pele o preço da genial estratégia política da esquerda.

Eu sei que é doloroso admitir e pode até parecer fatalista, mas não é. Pelo contrário, é preciso uma certa dose de realidade, ainda que ela seja extremamente dolorida. Faz parte do luto a negação e resistência aos fatos, a fim de manter o objeto perdido vivo de alguma forma. Mas isso que chamávamos de esquerda – ou ao menos sua histórica estratégia de conciliação por cima –, sejamos honestos e encaremos os fatos, morreu. Sua morte não começou hoje, como já nos alertou Vladimir Safatle. Sua morte, a despeito de um possível tom melancólico que esse texto aparente ter, não significa seu fim, mas a necessidade de renascimento, como já tinha colocado Safatle:

“Melhor seria dizer que um longo ciclo que se confunde com sua própria história termina agora. O pior que pode acontecer nesses casos é ‘não tomar ciência de seu próprio fim’ repetindo assim uma situação que lembra certo sonho descrito uma vez por Freud na qual um pai morto continua a agir como se estivesse vivo. A angústia do sonho vinha do fato do pai estar morto e nada querer saber disto. Se a esquerda brasileira não quiser ver sua morte definitiva como destino, seria importante se perguntar sobre qual é esse ciclo que termina, o que ele representou, quais seus limites”[15].

Isso nos força a encarar o momento histórico e qual tarefa temos adiante – não como obrigação, mas como luta por sobrevivência. Cabe agora entender: o que nos levou à morte? Quais caminhos nos levaram ao esgotamento desse ciclo político? Como chegamos até essa situação de impasse político? Para dar um passo firme e definitivo, é preciso antes admitirmos nossa própria luta de vida ou morte. Ter coragem de encarar a possibilidade de nosso próprio desaparecimento é o que nos torna humanos livres e não escravos, permitindo-nos tomar nossa própria história em nossas mãos, e não a entregar de mãos beijadas aos senhores, pois

“é na luta, em que a força do negativo se manifesta pela aceitação voluntária do risco de vida ou pela angústia provocada pelo aparecimento consciente da morte, que o homem cria seu Ser humano, transformando assim, como por magia, o nada que ele é, e que se manifesta a ele e por ele como morte, em uma existência negadora do combatente e do trabalhador criadores da história”[16].

Sem sabermos como chegamos até aqui, tanto como esquerda e como país, como é possível termos as condições de nos percebermos enquanto lutadores entre a vida e a morte? Sem nos depararmos com a verdade que o risco de desaparecimento nos impõe, não saberemos encontrar os rumos necessários para um renascimento. É preciso conter a busca por soluções desesperadas, que só nos leva a repetições improdutivas, quase que neuróticas. Uma luta de vida ou morte está longe de ser uma luta desesperada; é preciso muita perspicácia, estratégia e firmeza para encará-la. Precisamos entender que nas últimas décadas fomos incapazes de capturar dinâmicas de revolta difusas na sociedade, de tal forma que não sobrou nada a não ser uma performance (uma estética) vazia. Os movimentos “de revolta perdem-se no ar por não ter nenhuma sustentação ou coordenação de médio e longo prazo. Foi assim que ela morreu. Se ela quiser voltar a viver, toda essa história tem que chegar a um fim. Ela deverá tomar ciência de seu fim”[17]. Sem encarar nossa própria morte, seremos incapazes de renascer livres das amarras do medo. Encarando-a, ressurgiremos com força suficiente para dizer em alto e bom som: sim, há alternativas!


Para além de uma estética comunista… Por um projeto político comunista

A crítica consequente sempre é radicalmente ampla e, portanto, não pode poupar nem o campo ao qual me alinho (inclusive a dureza deve ser a mesma), que chamarei de esquerda radical. Apesar das poucas vozes que tentaram e tentam dar combate ao arcabouço fiscal, e de sua coragem incrível e louvável, é preciso reconhecer nossa incapacidade de influir de fato no debate público, de mobilizar as ruas e de produzir resistência e avanços efetivos. As poucas vozes que se esgoelam, infelizmente com pouquíssimos resultados em apontar os limites do neoliberalismo progressista, para além da conveniência do momento (como no caso de progressistas que criticavam o neoliberalismo ontem, mas hoje se calam ou tergiversam), só confirmam o quanto há para percorrer no campo radical.

Claro que nossa influência aumentou nos últimos anos, porém ainda é bastante minoritária[18]. Não temos protagonismo em nenhum espaço político, salvo ações muito, mas muito, pontuais – ou seja, estamos longe de construir hegemonia. A esquerda radical, para citar um exemplo, não tem força para convocar um protesto efetivo e, se por um acaso, convocar um protesto e ele fosse massivo, como pensou Fisher, não saberia o que fazer. Afinal, “o realismo capitalista não exclui certo tipo de anticapitalismo” – ou seja, até nos cabe espaço para uma atitude subjetiva de crítica ao capitalismo, contanto que ela não seja efetiva, não tenha impacto e nem estratégia prática, fazendo com que, no fundo, “saibamos” que é impossível superar tal estado de coisas, ainda que nunca se vá admitir[19].

Portanto cabe ao campo radical encarar também sua morte. Para isso, muito humildemente, aponto três quesitos centrais para superarmos nosso próprio esgotamento: 

1) sair de um comportamento de superioridade moral ante as demais forças políticas e sociais, como se, por serem os “representantes e conhecedores da ciência imortal do proletariado”, estivéssemos acima das demais forças e possuíssemos um acesso maior à verdade, ainda que sem nenhuma reverberação política. 

2) Deixar de lado uma mera verborragia improdutiva de bradar palavras de ordem sem conteúdo prático – como “pelo poder popular”, mas sem um projeto de país que aponte a esse mesmo povo como de fato será esse tal de “poder popular”, o que será feito, quais serão as medidas imediatas, de médio e longo prazo, e como elas irão impactar na vida das pessoas de fato. O problema é “sua incapacidade e indisposição para entender o que ocorre a sua volta, para oferecer e articular medidas concretas e objetivas de melhoria da vida das pessoas, em torno do qual elas se sintam impelidas a lutar coletivamente para realizar. Pois, ‘ir ao povo’ significa ser e resolver com o povo os problemas do povo”[20]. 

3) Deixar de lado certo narcisismo que por um lado gera um autoelogio distante da realidade, que aparece como glorificação da URSS, Coreia Popular, Cuba etc. (e cabe atentar que há diferença entre reivindicar as experiências socialistas como aprendizado histórico e que esse comportamento se torne uma mera exaltação que reafirma o comunismo como identidade subjetiva), enquanto não consegue expor com profundidade os problemas do povo brasileiro (pela voz do povo brasileiro); e por outro lado, acarreta uma postura que faz pequenas divergências se tornarem barreiras intransponíveis ao diálogo, como a famosa polêmica Trotsky versus Stalin (os debates e diferenças são importantes quando produtivos e aliados à capacidade de aplicação à realidade local; quando não, se mostram mera incapacidade política de diálogo, deixando de lado o mais importante: a transformação radical do Brasil, que deveria, ao menos, servir como paradigma apesar das divergências). Só quando superarmos tais entraves, enfim, vamos poder sair do campo utópico para pisar em solo científico e político. Pois Poder é quando nossa linha política se torna comum, não no sentido de saber os textos marxistas, mas de circulação de um lugar de enunciação popular:

“a esquerda não se dissemina socialmente apenas quando seus ideais circulam por aí, mas quando sua posição de enunciação se torna cada vez mais comum. E isso não acontece quando os outros passam a assumir a nossa postura, mas quando nossas organizações, sistema de valores e enquadres teóricos são marcados de cabo a rabo pela problemática da reprodução concreta da vida, que é o ponto de inserção da militância no mundo. […] se a gente não confia que a força social de uma organização se mede pela sua capacidade de acolher a fraqueza individual, nem que essa força de transformar a ‘miséria neurótica em infelicidade comum’ é uma orientação capaz de produzir entusiasmo nas pessoas, então acho que não vamos ver graça nem mesmo no comunismo”[21].

É claro que eu não estou desconsiderando todos os problemas por que passaram a esquerda radical. Há de se atentar para o fato de que a Ditadura Militar, com incentivo dos Estados Unidos, impôs uma forte perseguição em todo Brasil que modificou profundamente o quadro das esquerdas. Também há uma forte influência do movimento comunista internacional que, com o fim do socialismo real, gerou uma grande perda de imantação do marxismo e das ideias anticapitalistas, impulsionando, ainda mais, a já pesada propaganda anticomunista (isso sem desconsiderar, claro, os erros da principal experiência de transição socialista, a URSS). O momento de perda de força do campo radical culminou na consolidação do bloco neoliberal no mundo inteiro e também no Brasil, com Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso – com suas políticas de abertura.

É evidente que essa conjuntura não só não era favorável, como quase liquidou com a esquerda radical. Porém, ela já mostrou força para renascer uma vez, podendo sim superar o que a mantém numa posição, por vezes confortável, de minoria que, como numa torre de marfim, se dá ao luxo de tudo criticar sem proposição factual que influa na vida cotidiana das pessoas. Afinal, é na vida cotidiana que a classe operária vive suas alegrias e dores e sente na pele o que é exploração e opressão. Hoje há difusas demandas antissistêmicas evidentes em circulação na sociedade, havendo um claro movimento de ida aos extremos.

Também é explícito observar um efeito importante no imaginário popular acerca do espectro político: do ponto de vista simbólico e do imaginário social, o Partido dos Trabalhadores é a esquerda no Brasil. Os demais partidos de esquerda são apenas uma espécie de extensão do petista. Sempre me recordo que em atividades de rua, como venda de jornais e diálogo com trabalhadores, mesmo com a camisa e material do PCB, as pessoas perguntavam se era do PT. Afinal, por óbvio e até pelo que circula na mídia hegemônica, o PT é a esquerda brasileira. Então seja você progressista, socialista, anarquista, social-democrata, trabalhista ou comunista, sua imagem e discurso estarão ligados, em algum nível no senso comum circulante, ao PT. Essa colonização simbólica faz com que o fracasso petista seja visto como o fracasso da esquerda como um todo, ainda que saibamos que a esquerda é plural e com um amplo campo de divergências (até demais).

Infelizmente o chavão “o socialismo cresce”, excelente para produzir likes na bolha comunista na internet, não passa disso, um chavão para amenizar subjetivamente nossa própria pequenez. É preciso ultrapassar a fetichização de um comunismo estético que vive de URSS, Coreia Popular, China, Cuba, tudo, menos Brasil e seu povo. Vive de treta de cadáveres, como Stalin vs Trotsky vs Mao vs (escolha seu marxista preferido), só não vivencia seu país, que é onde se vive, onde as pessoas passam fome e são destruídas e legadas à desumanidade. Há um déficit de escuta da esquerda que, ao tentar explicar tanto a realidade, ouve muito pouco quem melhor a conhece, que são os próprios trabalhadores, a alma de qualquer revolução. Assim, o “espetáculo confundiu-se com toda a realidade”[22], fazendo da performance em ser visto enquanto o maior de todos os comunistas, criando uma rede de comunistas mais preocupados em se fazer parecer comunista, com uma postura extremamente esquerdista, do que em influir, de fato, na realidade, onde ocorre a luta de classes, pois as pessoas “não parecem buscar apenas a reconfortante compaixão do sofrimento compartilhado, mas uma forma minimamente produtiva – para voltarmos à Igreja, ao tráfico, aos aparelhos do Estado – de encaminhá-lo. O que temos nós a oferecer nesse caso? Onde estamos falhando?”[23]. “Já não existe Ágora”[24], portanto não existe espaço para debate público, além da performance vazia.

Se somos, as forças anticapitalistas, o instrumento da libertação humana, essa libertação não ocorrerá sem ouvirmos esses sujeitos que, em nossa pretensão, dizemos representar – sem sabermos que representar significa justamente a ausência do sujeito que está representada e, portanto, um falar por outro que, se não ouvido, nunca irá se reconhecer naquele discurso pretensamente libertador. Nossa tarefa é para ontem, afinal, por mais apocalíptico que pareça, a existência humana na Terra está ameaçada pela crise climática, e a sociedade padece com a superexploração do trabalhador, guerras imperialistas, retorno do nazifascismo, precarização da vida e altas taxas de adoecimento mental e suicídio. Embora a tarefa seja urgente, a pressa não pode ser inimiga da estratégia, para parafrasear o dito popular. É preciso, antes de agir por impulso (repetindo assim nossos mesmos erros), refletir. Práxis não significa sair fazendo de qualquer jeito, afinal pensar também muda nossa relação com o mundo, mudando assim as questões e respostas para os problemas concretos.

Sim, precisamos renascer também e, por menores que sejamos, um comunista e anticapitalista consequente não se esquiva de suas responsabilidades e da implacável autocrítica, por mais doloroso que seja mexer em nossas próprias fraquezas e feridas. Não há nada a temer em expor nossas vulnerabilidades, pelo contrário, a vulnerabilidade, justamente por ser parte constituinte da existência humana, causa empatia. Não precisamos ser, a todo momento, comunistas ferrenhos, precisamos só nos abrir ao outro de modo a “suspender a exigência da identidade pessoal, ou, mais especificamente, da coerência completa, (que) parece contrariar certa violência ética, que exige que manifestemos e sustentemos nossa identidade pessoal o tempo todo e requer que os outros façam o mesmo”[25]. Ser vulnerável nos livra da obrigação de sermos perfeitos perante o outro, nos aproximando ao nos mostrar humanos como todos – contraditórios, com defeitos, alienados, explorados, com alegrias e tristezas, como qualquer um. Sejamos vulneráveis e seremos capazes de ouvir, compreender e, aí sim, pleitear poder falar, não mais por, mas com os vulnerabilizados pela barbárie capitalista. Como dizia Walter Benjamin, é preciso olhar nossos cacos, não para juntá-los novamente, pois é impossível voltar, mas para nos mobilizar em prol de uma luta justa e consequente contra quem nos oprime e explora. Do jeito que estamos, a realidade, apesar dos chavões, é que não venceremos, afinal, eles não cansam de vencer. E cada vitória deles é o anúncio insistente de nossa morte.

E já que morremos, retornemos para Marx: sejamos novamente o espectro vermelho que ronda o mundo.

Notas:

[1] DARDOT; LAVAL. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. 1ª Ed. São Paulo: Boitempo, 2016. P. 68.

[2] HAYEK. O caminho da servidão. Apud. Idem. P. 158.

[3] DARDOT; LAVAL. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. 1ª Ed. São Paulo: Boitempo, 2016. P. 16.

[4] Idem. P. 17.

[5] FRASER. O velho está morrendo e o novo não pode nascer. São Paulo: Autonomia Literária, 2020. P. 38.

[6] FISHER. Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. 1ª Ed. São Paulo: Autonomia Literária, 2020. P. 152.

[7] Idem. P. 43.

[8] Nesse texto Zizek, ao analisar o caso francês em paralelo com os Estados Unidos, mostra como, por um lado, a esquerda neoliberal se articula politicamente para bloquear qualquer alternativa consolidada ou em construção mais à esquerda e, por outro, e somente por conta de tal bloqueio, se colocar como única capaz de impedir a chegada da extrema direita ao poder – separação essa que não toca o coração das políticas econômicas, ambas neoliberais. https://www.ihu.unisinos.br/categorias/186-noticias-2017/567374-a-chantagem-liberal

[9] Remete, sem aprofundar, a um movimento onde o conteúdo político sai de cena em prol de um fazer parecer, se mostrar como de determinada vertente política, ainda que isso não diga nada sobre a essência do que dizem defender

[10] FRASER. O velho está morrendo e o novo não pode nascer. São Paulo: Autonomia Literária, 2020. P. 39.

[11] No Brasil o termo “pessoas de cor” é visto pelo movimento negro como pejorativo, porém nos Estados Unidos, de onde escreve a autora da citação, Nancy Fraser, esse termo é aceito pelo movimento negro, se tratando de todo grupo de pessoas que não são brancas.

[12] FRASER. O velho está morrendo e o novo não pode nascer. São Paulo: Autonomia Literária, 2020. P. 39, 40.

[13] RODRIGO NUNES. Do transe à vertigem: ensaios sobre bolsonarismo e um mundo em transição. São Paulo: Ubu, 2022. P. 63-135, 136.

[14] RODRIGO NUNES. Do transe à vertigem: ensaios sobre bolsonarismo e um mundo em transição. São Paulo: Ubu, 2022. P. 151.

[15] Idem

[16] KOJEVE. Introdução à leitura de Hegel. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014. P. 513.

[17] Idem

[18] Ver: https://www.youtube.com/watch?v=7sGbK2ou7jw

[19] FISHER. Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. 1ª Ed. São Paulo: Autonomia Literária, 2020. P. 25.

[20] EDEMILSON PARANÁ; GABRIEL TUPINAMBÁ. Arquitetura de arestas: as esquerdas em tempos de periferização do mundo. São Paulo-SP: Autonomia Literária, 2022. P. 92, 93.

[21] Idem. P. 83 e 85.

[22] DEBORD. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. P. 173.

[23] EDEMILSON PARANÁ; GABRIEL TUPINAMBÁ. Arquitetura de arestas: as esquerdas em tempos de periferização do mundo. São Paulo-SP: Autonomia Literária, 2022. P. 98.

[24] DEBORD. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. P. 181.

[25] BUTLER. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. 1ª Ed. 3ª Reimp. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. P. 60.

E mais

A esquerda está morta? O polêmico texto de Heribaldo Maia


domingo, 18 de junho de 2023

Masturbação e a evolução

Masturbação tem papel-chave na evolução humana, mostra estudo

Trabalhos anteriores apontam que a autoestimulação também promove bem-estar e melhor saúde sexual

Acácio Moraes, FSP, 18/06/2023

Foi graças à masturbação que a espécie humana chegou até aqui. É o que indica um estudo científico publicado neste mês na revista internacional Proceedings of the Royal Society B: Biological Sciences. Segundo os autores, é possível que a autoestimulação seja um traço adaptativo e tenha cumprido papel chave na evolução da nossa espécie.

Trabalhos anteriores também apontam a prática como benéfica para o bem-estar e a saúde sexual, além de melhora do desempenho no sexo. "Toda questão que envolve sexo interessa para o estudo do nosso processo evolutivo", afirma o professor Tiago Falótico, da USP (Universidade de São Paulo).

Uma estátua clássica de mármore de uma mulher cobrindo os órgãos genitais com as mãos - Bede/Adobe Stock

A masturbação, porém, é um comportamento que à primeira vista parece deletério, um desperdício de tempo, energia e recursos que não traz vantagens adaptativas. Desta forma, o hábito foi visto por anos como uma consequência natural da sensibilidade na região genital. Alguns especialistas chegaram até a tratá-lo como patologia. Mas as novas descobertas jogam luz sobre a prática.

Para chegar aos resultados, os autores do estudo reuniram informações de 400 fontes, das quais 60% eram publicações científicas e 40% contribuições fornecidas por primatologistas e tratadores de zoológico. Depois, cruzaram os dados com as árvores filogenéticas desses animais e sua coevolução com outras características.

Com os resultados em mãos, os pesquisadores levantaram duas hipóteses para explicar o papel da autoestimulação no jogo de sobrevivência das espécies. A primeira apontava que a prática aumenta as chances de fertilização, fenômeno principalmente associado a ambientes nos quais muitos machos competem com uma fêmea. A segunda como uma forma de prevenção de infecções. Ao ejacular, segundo os especialistas, animais machos limpam a uretra, eliminando ao menos uma parte de possíveis agentes infecciosos da região.

A masturbação feminina, entretanto, não foi explorada. Suas motivações ainda permanecem pouco claras para os pesquisadores. Uma das razões, de acordo com eles, é a falta de dados científicos, visto que existem menos relatos desse comportamento no mundo animal.

A masturbação ocorre naturalmente entre várias espécies do reino animal. Apesar de não ser exclusividade humana, sua popularidade entre nós, primatas, é inegável. Segundo o novo estudo, a autoestimulação acompanha nosso tronco evolutivo há cerca de 40 milhões de anos. No período, humanos aprenderam a ser criativos na hora de ter prazer sozinho. Foi assim que começou o uso de brinquedos sexuais para alcançar o orgasmo.

Ano passado, pesquisadores relataram na revista científica Ethology como macacos usavam pedras para manipular os órgãos sexuais. Mais do que uma atividade ocasional, a utilização desses recursos era um hábito recorrente do grupo observado, principalmente entre os machos jovens. Por outro lado, as fêmeas se revelaram mais criteriosas na escolha do brinquedo, dando preferência para pedregulhos com bordas afiadas ou texturas.

Urologista e professor da UFF (Universidade Federal Fluminense), Rodrigo Barros diz que a masturbação pode trazer vários benefícios para o bem-estar e saúde sexual. Segundo ele, além de ser uma maneira de atingir a satisfação sem correr o risco de ISTs (infecções sexualmente transmissíveis), é também uma forma de conhecer melhor as zonas erógenas do próprio corpo.

Como bônus, a ejaculação acompanha a liberação neurotransmissores que promovem bem-estar. Em alguns casos, também podem estar associada a melhora do sono, da auto-estima e até do desempenho sexual – benesses bem relatadas em estudos científicos. Uma pesquisa feita entre homens e mulheres noruegueses de diversas idades, por exemplo, revela uma associação entre masturbação e satisfação sexual

O urologista Rodrigo Barros adverte que a prática compulsiva pode ser prejudicial aos adeptos. "Existem pessoas com tendência maior à hipersexualidade que podem criar dependência", afirma.

Outro fator de risco é a prática associada ao consumo excessivo de pornografia, que pode gerar expectativas irreais sobre o sexo e levar ao chamado estilo masturbatório idiossincrático, isto é, o costume a um certo tipo de estímulo que não pode ser reproduzido durante a relação.

Além disso, a compulsão pode trazer problemas para o cotidiano, seja na vida conjugal ou na laboral. Nesses casos, o urologista recomenda a busca de ajuda de profissional especialista em sexualidade humana. Para os demais, a recomendação é seguir o exemplo dos nossos antepassados, e continuar buscando o prazer com as próprias mãos.

sexta-feira, 16 de junho de 2023

Filmes parte 32

A Esposa Solitária, Charulata, 1964, Satyajit Ray

A Canção da Estrada, Pather Panchali, 1955, Satyajit Ray

O Invencível, Aparajito, 1956, Satyajit Ray

O Mundo de Apu, Apur Sansar, 1959, Satyajit Ray

A Sala de Música, Jalsaghar, 1958, Satyajit Ray

A Deusa, Devi, 1960, Satyajit Ray

O Rio Sagrado, The River, 1951, Jean Renoir

A Ronda, La ronde, 1950, Max Ophüls

Céu Amarelo, Yellow Sky, 1948, William A. Wellman 


03/06/23

A Esposa Solitária, Charulata, 1964, Satyajit Ray

Crítica | A Esposa Solitária por Guilherme Almeida, 29 de novembro de 2018 

O cinema popular da Índia, distribuído em escala industrial pela chamada Bollywood, é a faceta mais famosa da produção audiovisual do país. Não sendo a única, porém, cabe atentarmos às vertentes que se opõem ao entretenimento de massas, pois é certo que encontraremos nessa luta contra a hegemonia de linguagem momentos de excelência que valem a pena ser fruídos. Ora, como fugir, seguindo essa trilha, da merecida fama de Satyajit Ray, o autor, dentre outros, da Trilogia de Apu (1955, 56 e 59) e de A esposa solitária (1964)?

Ray, como Luchino Visconti, nasceu em ambiente de cultivo das artes. Seu avó era poeta e pintor; já seu pai, um eminente nome da história da literatura Bengali. O gosto do jovem estudante pelo cinema e o desenvolvimento de uma apaixonada cinefilia não demoraram a vir, fã que era do cinema americano e do neorrealismo italiano. A criação de um cineclube, o contato com Jean Renoir (que filmava em Bengala, nos princípios da década de 50, seu Rio Sagrado) e a influência decisiva da magnum opus de De Sica, Ladrões de Bicicleta, foram fundamentais para engajá-lo na realização de filmes. Eis que sua estreia, entretanto, foi tudo menos ingênua: A Canção da Estrada (1955), um dos melhores primeiros filmes da história, ganhou prêmio em Cannes e, assim, ganhou o mundo.

Já podemos notar nessa obra de debutante algo que persistirá na sólida filmografia de Ray e que encontrará em A Esposa Solitária um ápice de qualidade. Um primeiro ponto é a condição da mulher numa sociedade machista, onde divide-se sexualmente o trabalho. Outro aspecto, talvez tributário do gosto pictórico da família do diretor, é a lucidez na construção dos quadros, sempre significativos, harmônicos sempre. Mas o que mais chama a atenção, agora num nível abstrato e moral, é a postulação de um humanismo à la Rossellini ou Kiarostami. Imprime-se na película a existência profunda de cada personagem, no que ela tem de belo e ambíguo; esgaravata-se também a penúria e o sofrimento, na contramão da vontade das autoridades oficiais, que buscavam impedir que as contradições sociais fossem denunciadas nas telonas.

Mas entremos em A Esposa Solitária já esclarecendo que as desigualdades de renda não terão tanta importância. Charulata (Madhabi Mukherjee) e Bhupati Dutta (Shailen Mukherjee) são um casal da elite. Os primeiros planos escancaram a solidão indicada pelo título: Charu, entendiada como uma personagem flaubertiana ou como a Luisa de Primo Basílio, não decide que fazer, ora bordando, ora lendo, algumas vezes bisbilhotando os passantes na rua. Por outro lado, Bhupati ocupa-se da publicação de seu jornal político, “A Sentinela”, que ataca o domínio do Império Britânico sobre a Índia (o enredo se passa em 1870). Quem conhece literatura realista do século XIX já espera o que vem por aí: a chegada de um outro, mais exatamente um familiar do marido, vai abalar o cotidiano enfadonho do casal, lançando a esposa num turbilhão de emoções.

Amal (Soumitra Chaterjee, que interpreta Apu no último filme da Trilogia) é essa nova figura que chega com a força de um tornado. Quase literalmente, uma vez que no momento de seu aparecimento a natureza, prefigurando os eventos, encontra-se em tormenta. Esse jovem estudante é um antípoda perfeito do marido absorvido por querelas políticas; amante da poesia, boa-vida e sensível, ele acaba por se aproximar de Charu, viciada nas narrativas amorosas de autores à época populares em Bengali, como Bankim e Manmatha Dutta. Se Bhupati está sempre indisponível, Amal pode, por sua vez, conversar sobre temas líricos e instigar a mulher a começar a escrever.

A citação, acima, da obra de Eça de Queirós pode dar uma impressão equivocada. Que fique claro que o idílio está bem longe de descambar no adultério e no amoralismo. Tudo é tratado com senso de pudor; no jogo dos sentimentos predomina antes o recato que o ímpeto. Um plano sequência belíssimo, certamente inspirado em Um Dia no Campo (1946), acompanha o vai e vem de Charu sentada num balanço. Seus desejos estão estampados no rosto, mas com tanta delicadeza, com tanta ternura, que fica impossível confundir seus dilemas morais com qualquer espécie de desejo animalesco.

A oposição entre Amal e Bhupati chega às vezes a ser demasiado esquemática. O segundo valoriza o senso prático, as grandes narrativas políticas. Para o primeiro, mais vale a disposição anímica, o estado da subjetividade. História versus Arte, em suma, como se os dois termos fossem inconciliáveis e como se, vejam bem caros leitores, um dos editores deste Plano Crítico, dedicado às artes, não fosse ele mesmo formado em História. Há entre os personagens um diálogo bastante cômico, no qual Bhupati não consegue compreender formulações poéticas como “a escuridão do sol” e “a luz da noite sem luar”. O editor do jornal é aquele tipo de gente que Nelson Rodrigues chamava de “idiota da objetividade”. Frente a frente com construções frasais em oxímoro, ele não consegue desprender-se dos grilhões da lógica, sendo estéril às metáforas. Se sua tibieza é divertida, a inteligência da trama perde um pouco, pois qualquer possibilidade de complexidade subjetiva é esvaziada (o mesmo acontece, por outra parte, com o próprio Amal).

Em compensação, a construção psicológica de Charu é impecável. O mais interessante é a relação simbiótica entre seu drama a constituição do espaço. O filme se passa quase inteiramente dentro da casa que, muito embora grande e opulenta, torna-se claustrofóbica pela inclusão ostensiva de pilastras, grades e gaiolas no quadro. O uso da profundidade de campo, sobretudo no terço final do filme, tem causalidade impressionante: por um lado expande longitudinalmente o lar, isolando ainda mais a protagonista; dispõe, ademais, vários personagens no mesmo plano, sugerindo entre eles relações secretas, apenas sugeridas, nunca explicitadas. Se havia algo de simplório em Amal e Bhupati, o roteiro de Esposa Solitária, escrito pelo próprio Satyajit Ray e baseado na narrativa de Rabindranath Tagore, acerta em cheio com Charu, o que evidentemente deve muito à ótima atuação de Madhabi Mukherjee.

A personagem principal, até então relegada a uma posição ancilar, encontra em Amal uma possibilidade de libertação subjetiva e objetiva. A princípio considerava-se incapaz de escrever, mas supera o recatamento através de uma narrativa autobiográfica, que chegou a ser publicada numa revista de grande circulação. No momento de êxito, não à toa, seu cabelo até então preso está solto, demonstrando força quase selvagem. Essa afirmação permite que em momento posterior ela sugira ao marido a participação no jornal, que poderia incluir, por que não?, uma seção literária.

Ocorre que a desestruturação do ninho familiar é acelerada por uma traição. Não uma traição, como se poderia imaginar, da esposa, mas do cunhado de Bhupatti, que rouba o dinheiro reservado à sobrevivência do jornal “A Sentinela”. Após o ocorrido Amal, que não quer ser mais um a quebrar a confiança de Bhupatti, afasta-se da família e principalmente de Charu. Sem querer, o marido entrevê pela porta a tristeza da mulher e consegue perceber tudo o que se passara. O final do filme deixa em suspenso se haverá ou não uma reconciliação entre ambos. As imagens param de correr e viram fotos a captar e potencializar a indefinição. Mais do que isso, resta saber se esse homem politizado, com olhos para a libertação nacional e os grandes temas internacionais, se sensibilizará com o drama de quem está sob seu nariz.

Vencedor de prêmios no Festival de Berlim, o filme pode ser uma ótima porta de entrada para quem não conhece os diretores indianos. Vale a pena visitar Satyajit Ray, cuja filmografia, longa e cheia de talento, contribui para enriquecer o repositório de obras-primas da sétima arte.

A Esposa Solitária (Charulata) – Índia, 1964

Direção: Satyajit Ray, Roteiro: Rabindranath Tagore (obra literária), Satyajit Ray

Elenco: Soumitra Chaterjee, Madhabi Mukherjee, Shailen Mukherjee, Shyamal Goshal, Gitali Roy, Tarapada Basu, Dilip Bose

05/06/23

A Canção da Estrada, Pather Panchali, 1955, Satyajit Ray

Ravi Shankar 

"Este primeiro filme magistral Satyajit Ray - possivelmente o mais solto e natural do diretores - é um devaneio tranquilo sobre a vida de uma família brâmane empobrecida, numa aldeia bengalesa. Belo, às vezes divertido, e cheio de amor, levou à tela uma nova visão da Índia. Embora as personagens centrais sejam o menino Apu (nascido logo no início) e sua mãe, pai e irmã, a personagem que nos deixa forte impressão talvez seja a parente anciã parasita e contadora de histórias, interpretada por Chunibala, uma atriz de oitenta anos que aparentemente gostou de retornar à luz da ribalta, após trinta anos de esquecimento - pagava com o salário os narcóticos que consumia diariamente. Como a "tia" é de uma simpatia tão fantástica que descobrimos a relação, muito dolorosa, entre ela e a mãe, que tenta alimentar os filhos e se preocupa com o quanto a velha come. Ray continuou a história de Apu em Aparajito e O mundo de Apu, e os três filmes, todos baseados num romance de B. B. Bandapaddhay, ficaram conhecidos como a A trilogia de Apu. (O estudo de de Robin Wood, The Apu trilogy, faz justiça aos filmes). Fotografado por Subrata Mitra; música de Ravi Shankar. Em bengalês e p&b." (Pauline Kael, 1001 noites no cinema, p. 86, tradução: Marcos Santarrita e Alda Porto, Companhia das Letras, 1994)

Chunibala Devi(1872-1955) 

Bigraha (1930) was the the first film in which Chunibala Devi acted. Earlier she had performed on the stage. However, after one or two more films she retired as an actress, only to be brought back after about thirty years by Satyajit Ray, who had started making his first film, A Canção da Estrada (1955). When he was on the look out for an elderly actress to play Indir Thakrun, he was informed about Chunibala by Reba Devi (playing Sejo Thakrun). He went to interview the grand old lady and was really impressed, especially her memory at an advanced age and also her willingness to cooperate - the film being shot away from Calcutta and the artistes were required to be at location daily from Calcutta. Unfortunately, Chunibala died before the release of the film although Ray had been to her house to show her a projection.

06/06/23

O Invencível, Aparajito, 1956, Satyajit Ray

"O filme central da grande Trilogia de Apu, de  Satyajit Ray, é de estrutura mais transicional que dramática, mas cheio de intuições e revelações. Ray traz a família desfeita de Pather Panchali de sua aldeia medieval para as ruas modernas de Benares, e acompanha o menino Apu em seu confronto com o sistema escolar, e, depois, quando ela abandona a mãe, com a vida intelectual da Universidade de Calcutá. (Há um momento luminoso, quando Apu recita um poema numa sala de aula - entende-se como a arte sobrevivendo no meio da pobreza). O filme faz a crônica do surgimento da moderna Índia industrial, mostrando que não é uma sociedade primitiva, mas corrompida. Contudo, o próprio Apu encarna a crença de Ray de que os indivíduos não precisam corromper-se." (Pauline Kael, 1001 noites no cinema, p. 41, tradução: Marcos Santarrita e Alda Porto, Companhia das Letras, 1994)

Karuna Bannerjee 

Crítica | O Invencível (1956) por Luiz Santiago 9 de maio de 2021

07/06/23

O Mundo de Apu, Apur Sansar, 1959, Satyajit Ray

Soumitra Chatterjee (1935-2020) 

Crítica | O Mundo de Apu por Luiz Santiago, 31 de maio de 2021

Apur Sansar é o filme de encerramento da Trilogia de Apu, iniciada por Satyajit Ray em 1955, com A Canção da Estrada. Aqui nós encontramos o momento da vida adulta do protagonista, vivido por um outro ator, estabelecido em um outro espaço e sempre acompanhado pela aura de tragédia ou de uma amarga alegria que estiveram, o tempo inteiro, nas fases de sua vida que presenciamos nos dois longas anteriores.

Nesse encerramento, o roteiro de Satyajit Ray explora ao máximo a passagem do tempo. Nós já vimos alguns saltos na linha do tempo do personagem nos longas anteriores, mas este aqui é o mais episódico de todos os três, uma escolha de saltos no andamento narrativo que acaba se encontrando com o novo momento da vida de Apu, desempregado e tentando emplacar a carreira de escritor. Mesmo com vários cortes temporais podemos dividir o filme em duas grandes partes muito importantes, a primeira delas antes e a segunda depois da morte de sua esposa Aparna (Sharmila Tagore).

A morte não é uma novidade para Apu, mas sim uma verdadeira marca de sua vida — uma das milhares de vidas pelo mundo que passaram pela mesma caminhada de perda de pessoas queridas desde muito cedo. Sua orfandade é tão presente e tão marcante e influente, que uma das coisas que seu amigo Pulu (Swapan Mukherjee) diz a Aparna como características de Apu é justamente o fato de ele ser órfão. Para uma sociedade onde a família possui um papel tão imensamente presente na vida dos filhos, alguém que perde a mãe e o pai antes da vida adulta madura acaba tendo um diferencial notável em relação aos outros — o que contribui, no presente caso, para o pensamento mais “desenraizado” ou “não tão tradicional” de Apu em relação a esse tipo de laço.

Com isso em mente, é muito interessante notar como tal ausência prepara surpresas até em forma de dilema para o protagonista despreocupado. Seu casamento às pressas, substituindo um noivo que entrou em crise nervosa e “enlouqueceu” justamente no dia da cerimônia, é uma prova disso, uma espécie de situação forçada que rapidamente ganha tons de bênção inesperada. A sequência em que Apu conversa com Aparna, no quarto nupcial, é de uma delicadeza tremenda, fazendo-nos conhecer mais sobre o personagem, seu modo de encarar as coisas e sua aproximação a um território que lhe é estranho: o campo do amor. No final da sequência ele está rindo, pensando sobre o que os vizinhos iriam falar para ele, que saiu dizendo que ia viajar para assistir a um casamento, e voltaria para casa com uma esposa.

Em O Mundo de Apu, vemos um homem conectar-se com algo que lhe foi progressivamente negado pela vida no decorrer dos anos: a companhia no lar. Irmã mais velha, mãe e pai lhe deixaram muito cedo, forçando-o a um entendimento do mundo e das relações interpessoais um tanto diferente da maioria das pessoas ao seu redor, contraste fortalecido quando Pulu entra em cena. O casamento, portanto, lhe abre toda uma nova forma de se comportar, de escolher um trabalho, de olhar para as responsabilidades. Mas a jornada de Apu não é apenas sobre sofrer e ser parcialmente reparado pelo sofrimento. É também uma jornada de encontro consigo mesmo, em meio à dor e ao desespero.

Quando Aparna morre, Apu diz que via “sair por aí”, vai viajar, perambular, procurar a paz. Ter algo que ele não mais esperava ter e, pouco tempo depois, perder essa conexão destrói tudo o que tinha construído para si até aquele momento. A novela que escrevia perde sentido (enquanto a vemos espalhar-se por uma mata, jogada do algo de uma rocha, onde Apu olha o Sol no horizonte, numa panorâmica de tirar o fôlego — aliás, os focos de luz capturados pela câmera aqui são belíssimos, com destaque para a cena em que Aparna segura um palito de fósforo queimando perto do rosto) e o filho parece não existir.

Esse seu sepultamento simbólico, representado pela rejeição de si e de seu rebento, começa a ser verdadeiramente curado com uma reconexão diferente, não livre de obstáculos. Mas esta é uma cura bastante amarga. O filho não reconhece em Apu o seu próprio pai. E um jogo de representação, para ser aceito, é engendrado por esse homem que tanto sofreu, para ao menos ter o último fio de esperança da vida ligado a ele. A parte de seu mundo que não poderia deixar de lado, abandonada. Finalmente, e de forma bastante dolorosa, o mundo de Apu estava completo.

O Mundo de Apu (Apur Sansar) — Índia, 1959

Direção: Satyajit Ray, Roteiro: Satyajit Ray (baseado na obra de Bibhutibhushan Bandyopadhyay)

Elenco: Soumitra Chatterjee, Sharmila Tagore, Alok Chakravarty, Swapan Mukherjee, Tushar Bandyopadhyay, Gupi Banerjee, Panchanan Bhattacharya, Shanti Bhattacherjee, Jiten Bhons, Abhijit Chatterjee, Jogesh Chatterjee, Asha Devi, Belarani Devi, Sefalika Devi, Biren Ghosh

08/06/23

A Sala de Música, Jalsaghar, 1958, Satyajit Ray

"Extraordinário estudo, por Satyajit Ray, do orgulho levado ao extremo. Um grnde filme, cheio de falhas, irritante - difícil de aceitar, mas provavelmente impossível de esquecer. Muitas vezes brutal e pobremente irritante, mas uma grande experiência. Preocupar-se com suas falhas é como se preocupar em saber se Rei Lear é bem construído; na verdade não importa. Ray fez este filme entre a segunda e terceira partes da Trilogia de Apu, para respirar. Com Chhabi Biswas como o aristocrata que não tem mais nada senão seu amor à música - oferece um concerto em sua mansão decadente. O roteiro de Ray baseia-se numa história de T. S. Bannerjee. Em bengalês." (Pauline Kael, 1001 noites no cinema, p. 252, tradução: Marcos Santarrita e Alda Porto, Companhia das Letras, 1994


09/06/23

A Deusa, Devi, 1960, Satyajit Ray

"Este filme de Satyajit Ray, de onírica sensualidade e muita ironia, sobre a supersticiosidade indiana foi originalmente proibido para exportação, até a intercessão de Nehru. A história, de um homem rico que convence a noiva do filho (Sharmila Tagore) de que ela é a encarnação da deusa Kalli, tem surpreendentes matizes freudiano. A sensibilidade de Ray para a inebriante beleza dentro do estilo de vida em desintegração da classe latifundiária do século XIX faz deste um dos raros filmes honestos sobre a decadênca. Com Soumitra Chatterji e Chhabi Biswas. Em bengalês. Em p&b," (Pauline Kael, 1001 noites no cinema, p. 139, tradução: Marcos Santarrita e Alda Porto, Companhia das Letras, 1994)


13/06/23

O Rio Sagrado, The River, 1951, Jean Renoir

“O primeiro filme em cores de Jean Renoir, feito na Índia, em inglês, foi adaptado do romance de Rumer Godden sobre uma família britânica e rodado ao longo das margens do Ganges pelo excelente fotógrafo, sobrinho de Renoir, Claude Renoir. É um estudo poético do contato de duas civilizações. Renoir não não usurpa a posição de uma pessoa do local; vê a Índia com olhar ocidental - olhar tão sensível e altamente treinado que sua visão da Índia é um poema mítico, passado no meio do rio indiano da vida. O rio abrange a morte ( o episódio da deusa Kalli, a cobra sagrada que mata a criança) de um maneira que o público americano tende a achar incômoda. Os temas e a linha narrativa de Rumer Godden fazem parte da textura, entrelaçados com rituais, as festas, os rítmos da música nativa; algumas pessoas, acostumadas a filmes montados com vistas a um crescendo dramático, não gostam do fluxo sereno - acontecem tantas coisas que elas acham que nada acontece. Há trechos estaticos de diálogos, e parte do elenco é discutível, mas o tema (estranhos numa cultura) funde-se de modo perfeito com a própria posição do diretor como um cineasta na Índia. Em termos visuais, o filme sereno mas apaixanadamente belo. Com a bailarina Radha, Nora Swinburne, Esmond Knight, Adrienne Corri, Patrcia Walter, Arthur Shieids e Thomas Breen. Adaptado por Renoir e Rumer Godden.” (Pauline Kael, 1001 noites no cinema, p. 422, tradução: Marcos Santarrita e Alda Porto, Companhia das Letras, 1994)

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Satyajit Ray

Da Índia para o universo

O milagre, em Ray, é este: que os espectadores tirem dos filmes algo que poderá nem sequer ter muito a ver com a Índia mas tem muito a ver com eles próprios, e com as suas vidas em Lisboa, Paris ou Nova Iorque

Luís Miguel Oliveira, 25 de Setembro de 2014

Como escreveu o próprio Satyajit Ray, “o que todo o mundo sabia era que a Índia produzia um enorme número de filmes com imensas danças e canções; não admirava que os calhamaços de história do cinema não dedicassem mais de meia página a este consumidor gigante de celulóide”. A percepção começou a mudar a partir do primeiro filme de Ray, Pather Panchali, igualmente o momento inicial da Trilogia de Apu, sucesso instantâneo no ocidente e, em particular, em Nova Iorque, onde se estreou em Setembro de 1958 e se aguentou oito meses em cartaz (como os tempos mudaram… alguém imagina isto hoje?).

A entrada de Satyajit Ray na cena internacional fez-se por Nova Iorque, raridade naqueles tempos em que a norma das “descobertas” implicava Paris, a crítica francesa e os grandes festivais – mas Pather Panchali tinha estado em Cannes 1956 e passado despercebido, apesar de ter ganho um daqueles prémios paternalistas (Melhor Documento Humano) com que os festivais gostavam (e às vezes ainda gostam) de agraciar o “cinema do mundo”. E Nova Iorque porque, num momento em que tinha a rodagem parada por problemas de produção, Ray conheceu um curador do MOMA (Monroe Wheeler) que fora a Calcutá preparar uma grande exposição de arte indiana e perguntou ao realizador se achava que conseguiria ter o filme pronto a tempo de ser exibido, nesse contexto, no museu novaiorquino, “daqui a um ano”. 

Satyajit Ray contou que sem este impulso teria abandonado o projecto, que sofria “terríveis revezes”, e continuado a sua vida dedicada à publicidade (profissionalmente) e ao cineclubismo (como hobby de cinéfilo fervoroso que era). Depois até recebeu conselhos de John Huston, que fora à Ìndia já a pensar no Homem que Queria Ser Rei e, avisado pelo MOMA, procurou Ray e pediu-lhe para ver uma montagem provisória. Mais do que apenas “História”, e “História” como Ray, mais tarde, a contou, estes episódios encerram algum simbolismo, central à obra do cineasta – esse balanço entre “especificidade e universalidade”, segundo a fórmula de um crítico francês. Satyajit Ray filmou a Índia (e, sobretudo, Bengala) com os pés bem firmes nesse chão mas a cabeça a pensar no grande cinema universal, na “lição” de Renoir, de quem foi assistente quando o francês foi à Índia filmar O Rio Sagrado, por volta de 1950, ou nos mais de cem filmes, marcos da cinematografia mundial, que sorveu quando, nesses primeiros anos após a independência, se realizou em Calcutá o primeiro grande festival de cinema  organizado na Índia.

Ray, oriundo de uma família bengali da boa sociedade intelectual, filho e neto de escritores, ele próprio ex-discípulo de Tagore, sabia bem contra o que lutava: a “apatia” do público indiano, e particularmente do público de Bengala, que se orgulhava da sua tradição literária e ligava pouco ao cinema. Contas de Ray, a produção de Bengala representava apenas 10% do total da produção indiana, e se não produzia “filmes de canto e dança, produzia versões tépidas de novelas bengalis para um público reduzido a uma apatia total por anos de xarope cinematográfico”. A sua tarefa, enunciou-a mais tarde, como projecto premeditado: “era mais do que tempo de o cinema indiano crescer e sair do isolamento a que se votara, para se medir com os do Ocidente”.

Sem meias medidas, esta era toda a ambição de Satyajit Ray. O seu segredo, para além, evidentemente do indispensável talento? Mergulhar, a fundo e sem concessões, no património cultural, social, histórico, da Índia e especialmente de Bengala, pensar sempre, como “primeiro espectador”, no “espectador bengali”, o único naturalmente apetrechado para compreender plenamente as contradições, os rituais, a idiossincrasia subjacente às situações e às motivações das personagens – ainda Ray, sobre Devi / A Deusa, mas podia ser sobre qualquer um dos seis filmes incluídos nesta retrospectiva: “um crítico ocidental que queira fazer plena justiça ao filme tem que estar preparado para fazer muito trabalho de casa antes de se confrontar com o filme”. O milagre, em Ray, é este: que críticos e espectadores, mesmo sem fazerem todo esse trabalho de casa, tirem dos filmes algo que poderá nem sequer ter muito a ver com a Índia mas tem muito a ver com eles próprios, e com as suas vidas em Lisboa, Paris ou Nova Iorque.

Ninguém precisa de saber muitos pormenores sobre o que foi a Renascença Bengali de meados do século XIX para se comover com Charulata e com aquele lancinante casamento em estufa – como dizia Douchet de Mizoguchi, é preciso aprender “o Satyajit Ray”, não “o bengali” para entender os seus filmes, até porque “o Satyajit Ray” se fala com um léxico reconhecível a qualquer espectador não adormecido pelo “xarope cinematográfico” (e Charulata até tem um bom exemplo disso, naquele “paralítico” final que confessadamente Ray aprendeu nos 400 Golpes de Truffaut (Os Incompreendidos, Les quatre cents coups, 1959)).

Ninguém precisa de saber muito sobre o modo como se organizou o capitalismo indiano a seguir à independência para ficar fascinado e atemorizado pela espantosa personagem do marido, tão atractiva como repulsiva, nesse espantoso O Cobarde. Aliás, nesse filme, todos aqueles planos em que Ray enquadra marcas ocidentais (whiskys, maços de tabaco, maletas da Lufthansa) como se estivesse a fazer product placement, isso é uma extraordinária maneira de dar a presença ocidental na Índia, a continuação de um colonialismo “económico”, mas também é uma maneira de “ligar”, de inscrever a Índia num fluxo, dir-se-ia hoje, “global”. Ou ainda o Santo, filme que pega no misticismo e na religiosidade populares indianas para as virar do avesso, encenando o confronto entre as classes urbanas (que metem imensas palavras e expressões inglesas em cada frase) e a credulidade popular, vulnerável à banha da cobra: eis, na verdade, um filme que só é imaginável nas mãos de um cineasta indiano, e que é, em si mesmo, uma crítica perfeita ao “neo-exotismo”, para lhe não chamar mais, que tem marcado a recente descoberta da Ìndia pelas grandes produções americanas ou britânicas.

O mistério, ainda assim, perdurará. Voltamos a textos de Ray para terminar: “A verdadeira compreensão levará o seu tempo. Depois de ter sido tanto tempo desprezada, a Índia não desvendará muito facilmente os seus segredos ao Ocidente porque, neste país, as vacas continuam a ser sagradas e Deus ainda é um falo”.Como escreveu o próprio Satyajit Ray, “o que todo o mundo sabia era que a Índia produzia um enorme número de filmes com imensas danças e canções; não admirava que os calhamaços de história do cinema não dedicassem mais de meia página a este consumidor gigante de celulóide”. A percepção começou a mudar a partir do primeiro filme de Ray, Pather Panchali, igualmente o momento inicial da Trilogia de Apu, sucesso instantâneo no ocidente e, em particular, em Nova Iorque, onde se estreou em Setembro de 1958 e se aguentou oito meses em cartaz (como os tempos mudaram… alguém imagina isto hoje?).

A entrada de Satyajit Ray na cena internacional fez-se por Nova Iorque, raridade naqueles tempos em que a norma das “descobertas” implicava Paris, a crítica francesa e os grandes festivais – mas Pather Panchali tinha estado em Cannes 1956 e passado despercebido, apesar de ter ganho um daqueles prémios paternalistas (Melhor Documento Humano) com que os festivais gostavam (e às vezes ainda gostam) de agraciar o “cinema do mundo”. E Nova Iorque porque, num momento em que tinha a rodagem parada por problemas de produção, Ray conheceu um curador do MOMA (Monroe Wheeler) que fora a Calcutá preparar uma grande exposição de arte indiana e perguntou ao realizador se achava que conseguiria ter o filme pronto a tempo de ser exibido, nesse contexto, no museu novaiorquino, “daqui a um ano”. Satyajit Ray contou que sem este impulso teria abandonado o projecto, que sofria “terríveis revezes”, e continuado a sua vida Da Índia para o universo dedicada à publicidade (profissionalmente) e ao cineclubismo (como hobby de cinéfilo fervoroso que era). Depois até recebeu conselhos de John Huston, que fora à Ìndia já a pensar no Homem que Queria Ser Rei e, avisado pelo MOMA, procurou Ray e pediu-lhe para ver uma montagem provisória.

Mais do que apenas “História”, e “História” como Ray, mais tarde, a contou, estes episódios encerram algum simbolismo, central à obra do cineasta – esse balanço entre “especificidade e universalidade”, segundo a fórmula de um crítico francês. Satyajit Ray filmou a Índia (e, sobretudo, Bengala) com os pés bem firmes nesse chão mas a cabeça a pensar no grande cinema universal, na “lição” de Renoir, de quem foi assistente quando o francês foi à Índia filmar O Rio Sagrado, por volta de 1950, ou nos mais de cem filmes, marcos da cinematografia mundial, que sorveu quando, nesses primeiros anos após a independência, se realizou em Calcutá o primeiro grande festival de cinema  organizado na Índia.

Ray, oriundo de uma família bengali da boa sociedade intelectual, filho e neto de escritores, ele próprio ex-discípulo de Tagore, sabia bem contra o que lutava: a “apatia” do público indiano, e particularmente do público de Bengala, que se orgulhava da sua tradição literária e ligava pouco ao cinema. Contas de Ray, a produção de Bengala representava apenas 10% do total da produção indiana, e se não produzia “filmes de canto e dança, produzia versões tépidas de novelas bengalis para um público reduzido a uma apatia total por anos de xarope cinematográfico”. A sua tarefa, enunciou-a mais tarde, como projecto premeditado: “era mais do que tempo de o cinema indiano crescer e sair do isolamento a que se votara, para se medir com os do Ocidente”.

Sem meias medidas, esta era toda a ambição de Satyajit Ray. O seu segredo, para além, evidentemente do indispensável talento? Mergulhar, a fundo e sem concessões, no património cultural, social, histórico, da Índia e especialmente de Bengala, pensar sempre, como “primeiro espectador”, no “espectador bengali”, o único naturalmente apetrechado para compreender plenamente as contradições, os rituais, a idiossincrasia subjacente às situações e às motivações das personagens – ainda Ray, sobre Devi / A Deusa, mas podia ser sobre qualquer um dos seis filmes incluídos nesta retrospectiva: “um crítico ocidental que queira fazer plena justiça ao filme tem que estar preparado para fazer muito trabalho de casa antes de se confrontar com o filme”. O milagre, em Ray, é este: que críticos e espectadores, mesmo sem fazerem todo esse trabalho de casa, tirem dos filmes algo que poderá nem sequer ter muito a ver com a Índia mas tem muito a ver com eles próprios, e com as suas vidas em Lisboa, Paris ou Nova Iorque.

Ninguém precisa de saber muitos pormenores sobre o que foi a Renascença Bengali de meados do século XIX para se comover com Charulata e com aquele lancinante casamento em estufa – como dizia Douchet de Mizoguchi, é preciso aprender “o Satyajit Ray”, não “o bengali” para entender os seus filmes, até porque “o Satyajit Ray” se fala com um léxico reconhecível a qualquer espectador não adormecido pelo “xarope cinematográfico” (e Charulata até tem um bom exemplo disso, naquele “paralítico” final que confessadamente Ray aprendeu nos 400 Golpes de Truffaut).

Ninguém precisa de saber muito sobre o modo como se organizou o capitalismo indiano a seguir à independência para ficar fascinado e atemorizado pela espantosa personagem do marido, tão atractiva como repulsiva, nesse espantoso O Covarde. Aliás, nesse filme, todos aqueles planos em que Ray enquadra marcas ocidentais (whiskys, maços de tabaco, maletas da Lufthansa) como se estivesse a fazer product placement, isso é uma extraordinária maneira de dar a presença ocidental na Índia, a continuação de um colonialismo “económico”, mas também é uma maneira de “ligar”, de inscrever a Índia num fluxo, dir-se-ia hoje, “global”. Ou ainda o Santo, filme que pega no misticismo e na religiosidade populares indianas para as virar do avesso, encenando o confronto entre as classes urbanas (que metem imensas palavras e expressões inglesas em cada frase) e a credulidade popular, vulnerável à banha da cobra: eis, na verdade, um filme que só é imaginável nas mãos de um cineasta indiano, e que é, em si mesmo, uma crítica perfeita ao “neo-exotismo”, para lhe não chamar mais, que tem marcado a recente descoberta da Ìndia pelas grandes produções americanas ou britânicas.

O mistério, ainda assim, perdurará. Voltamos a textos de Ray para terminar: “A verdadeira compreensão levará o seu tempo. Depois de ter sido tanto tempo desprezada, a Índia não desvendará muito facilmente os seus segredos ao Ocidente porque, neste país, as vacas continuam a ser sagradas e Deus ainda é um falo”.

E mais

Satyajit Ray, 100 

O Fim - সমাপ্ত (samapt)

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14/06/23

A Ronda, La ronde, 1950, Max Ophüls

História sobre uma série de casos amorosos interligados na Viena de 1900. Soldado relaciona-se com mulher da noite e depois tem caso com uma moça que vira criada de uma família. Lá, ela seduz o homem mais jovem da casa. Este, por sua vez, envolve-se com uma mulher casada.


15/06/23

Céu Amarelo, Yellow Sky, 1948, William A. Wellman 

No iutubi aqui  

Um bando de ladrões de banco está na estrada, fugindo pelo deserto. Perto da morte, por falta d'água, tropeçam no que parece ser uma cidade fantasma e acabam encontrando um velho e sua neta morando lá. Os assaltantes descobrem que o homem velho foi minerador de ouro e planejam roubá-lo. Mas todo o plano muda quando o líder do grupo, Stretch, se apaixona pela neta, o que gera um confronto entre toda a gangue.

Duas cenas e seus respectivos fotógrafos dos filmes

Joseph MacDonald (1906-1968) 

Céu Amarelo, Yellow Sky, 1948, William A. Wellman 

Gregory Peck in Yellow Sky, 1948

Joseph F. Biroc (1903-1996) 

Dragões da Violência, Forty Guns, 1957, Samuel Fuller


Eve Brent in Forty Guns, 1957