domingo, 9 de abril de 2023

A benção Fluzão de Deus

 O dia em que meu pai, um ateu, foi convertido

Milly Lacombe, UOL, 08/04/2023

Em 1980, o papa João Paulo II veio ao Brasil pela primeira vez.

O país ainda vivia uma ditadura, mas isso não parecia incomodar João Paulo ou parcela significativa de sua Igreja. Nem um pio foi dado por sua santidade a respeito.

Foi recebido como herói, celebridade, santo.

Ruas lotadas para vê-lo passar.

Minha mãe, italiana de Roma que nunca ligou para religião, foi invadida por força misteriosa e, durante o almoço, disse para mim, minhas irmãs e meu irmão: arrumem-se: vamos ver o Papa passar.

Éramos crianças, não sabíamos direito do que se tratava, mas era um programa.

Meu pai, ateu, recusou-se: não vou e pronto, disse.

Fomos.

Vimos um borrão lá longe atrás da multidão.

É o Papa?, perguntávamos.

Minha mãe dizia que sim e repetia: pronto, podemos dizer que vimos o papa. Vimos o Papa! Vimos o Papa, gritávamos.

Em casa, meu pai não deu a mínima para nossa aventura.

Meses depois, Vasco e Fluminense decidiriam a taça Guanabara e a torcida tricolor começou a cantar uma canção que havia sido feita exclusivamente para a visita do Papa: a benção João de Deus.

A música era cantada até aquele dia com "A benção Fluzão de Deus", mas durante a decisão, o time perdendo para o Vasco por um a zero, saiu Fluzão e entrou João.

Sem que houvesse sido combinado, sem ensaio, sem nada.

Vendo o jogo pela TV com meu pai, torcedor do Fluminense, notei que ele estava incomodado com a torcida.

Pra que cantar isso?, ele dizia. Ridículo, sugeria.

Mas o gol de empate saiu e de imediato foi atribuído à cantoria.

Prorrogação, penaltis, a benção João de Deus cantada sem parar, título do primeiro turno conquistado.

Pronto. Foi o bastante. A música jamais deixaria de ser cantada pela torcida do Flu.

Mas meu pai não estava convencido.

Na decisão do título, contra o mesmo Vasco, meu pai quis ir ao estádio.

Fomos.

Mais de 100 mil almas também foram.

Estádio dividido, torcida do Fluminense mandando ver em a benção João de Deus, meu pai injuriado e calado.

Jogo indo para o final, música mais forte, meu pai mais tenso.

E então o impossível se deu: meu pai começou a cantar uma música que em nada o representava.

O gol saiu pelos pés de Edinho e o milagre estava sacramentado.

Titulo. Lágrimas. Meu pai em transe.

"Quem é ateu e viu milagres como eu sabe que os deuses sem Deus não cessam de brotar" - salve Caetano.

João Paulo II não é das figuras mais adoráveis que já passaram por esse planeta.

A Igreja que ele representa, embora bastante diversa, tampouco faz por merecer honrarias.

Mas, depois de ver meu pai ser convertido - pelo menos durante aqueles minutos - entendi que a canção fala menos do Papa do que de fé.

Menos de catolicismo do que de confiança.

Na arquibancada, cantada por milhares, trata-se de uma congregação que reúne católicos, judeus, umbandistas, kardecistas, candomblecistas, evangélicos, espiritualistas, agnósticos e ateus.

A religião em questão é o time das Laranjeiras.

A única devoção em jogo é a camisa tricolor.

Eu mesma já testemunhei a música ser cantada e virar placares.

Eu estava no Maracanã quando Washington marcou o gol contra o São Paulo aos 5.648 minutos do segundo tempo e classificou o Fluminense para a semi da Libertadores em 2008.

Eu sei o que vi.

Bobagem, dirão os senhores da objetividade. Isso não existe. Faça um levantamento e verá.

Eu argumentaria o contrário: quando a fé é muita e a causa é a paixão de milhões isso talvez exista sim.

Quem pode provar que não?

Encerro com o final da letra de Milagres do Povo, de Caetano Veloso:

Ojuobá ia lá e via

Ojuobahia

Xangô manda chamar Obatalá guia

Mamãe Oxum chora lagrimalegria

Pétalas de Iemanjá Iansã-Oiá ia

Ojuobá ia lá e via

Ojuobahia

Obá

.....

Em tempo


FSP, 9 abril 2023

O Fluminense conquistou o Campeonato Carioca pelo segundo ano consecutivo, de novo com vitória sobre o Flamengo. Neste domingo (9), em um Maracanã lotado, triunfou por 4 a 
Com dois gols de Germán Cano, um de Marcelo e um de Alexsander, o time tricolor dominou a equipe rubro-negra em campo na segunda partida da decisão do Campeonato Carioca — Ayrton Lucas descontou no fim. O jogo de ida havia sido vencido pelo Flamengo por 2 a 0.
O técnico tricolor, Fernando Diniz, enfim campeão de um torneio de maior expressão, foi exaltado por seus atletas e pelos torcedores. O comandante rubro-negro (até a publicação deste texto) foi xingado pela torcida de seu time. (...)

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