O dia em que meu pai, um ateu, foi convertido
Milly Lacombe, UOL, 08/04/2023
Em 1980, o papa João Paulo II veio ao Brasil pela primeira vez.
O país ainda vivia uma ditadura, mas isso não parecia incomodar João Paulo ou parcela significativa de sua Igreja. Nem um pio foi dado por sua santidade a respeito.
Foi recebido como herói, celebridade, santo.
Ruas lotadas para vê-lo passar.
Minha mãe, italiana de Roma que nunca ligou para religião, foi invadida por força misteriosa e, durante o almoço, disse para mim, minhas irmãs e meu irmão: arrumem-se: vamos ver o Papa passar.
Éramos crianças, não sabíamos direito do que se tratava, mas era um programa.
Meu pai, ateu, recusou-se: não vou e pronto, disse.
Fomos.
Vimos um borrão lá longe atrás da multidão.
É o Papa?, perguntávamos.
Minha mãe dizia que sim e repetia: pronto, podemos dizer que vimos o papa. Vimos o Papa! Vimos o Papa, gritávamos.
Em casa, meu pai não deu a mínima para nossa aventura.
Meses depois, Vasco e Fluminense decidiriam a taça Guanabara e a torcida tricolor começou a cantar uma canção que havia sido feita exclusivamente para a visita do Papa: a benção João de Deus.
A música era cantada até aquele dia com "A benção Fluzão de Deus", mas durante a decisão, o time perdendo para o Vasco por um a zero, saiu Fluzão e entrou João.
Sem que houvesse sido combinado, sem ensaio, sem nada.
Vendo o jogo pela TV com meu pai, torcedor do Fluminense, notei que ele estava incomodado com a torcida.
Pra que cantar isso?, ele dizia. Ridículo, sugeria.
Mas o gol de empate saiu e de imediato foi atribuído à cantoria.
Prorrogação, penaltis, a benção João de Deus cantada sem parar, título do primeiro turno conquistado.
Pronto. Foi o bastante. A música jamais deixaria de ser cantada pela torcida do Flu.
Mas meu pai não estava convencido.
Na decisão do título, contra o mesmo Vasco, meu pai quis ir ao estádio.
Fomos.
Mais de 100 mil almas também foram.
Estádio dividido, torcida do Fluminense mandando ver em a benção João de Deus, meu pai injuriado e calado.
Jogo indo para o final, música mais forte, meu pai mais tenso.
E então o impossível se deu: meu pai começou a cantar uma música que em nada o representava.
O gol saiu pelos pés de Edinho e o milagre estava sacramentado.
Titulo. Lágrimas. Meu pai em transe.
"Quem é ateu e viu milagres como eu sabe que os deuses sem Deus não cessam de brotar" - salve Caetano.
João Paulo II não é das figuras mais adoráveis que já passaram por esse planeta.
A Igreja que ele representa, embora bastante diversa, tampouco faz por merecer honrarias.
Mas, depois de ver meu pai ser convertido - pelo menos durante aqueles minutos - entendi que a canção fala menos do Papa do que de fé.
Menos de catolicismo do que de confiança.
Na arquibancada, cantada por milhares, trata-se de uma congregação que reúne católicos, judeus, umbandistas, kardecistas, candomblecistas, evangélicos, espiritualistas, agnósticos e ateus.
A religião em questão é o time das Laranjeiras.
A única devoção em jogo é a camisa tricolor.
Eu mesma já testemunhei a música ser cantada e virar placares.
Eu estava no Maracanã quando Washington marcou o gol contra o São Paulo aos 5.648 minutos do segundo tempo e classificou o Fluminense para a semi da Libertadores em 2008.
Eu sei o que vi.
Bobagem, dirão os senhores da objetividade. Isso não existe. Faça um levantamento e verá.
Eu argumentaria o contrário: quando a fé é muita e a causa é a paixão de milhões isso talvez exista sim.
Quem pode provar que não?
Encerro com o final da letra de Milagres do Povo, de Caetano Veloso:
Ojuobá ia lá e via
Ojuobahia
Xangô manda chamar Obatalá guia
Mamãe Oxum chora lagrimalegria
Pétalas de Iemanjá Iansã-Oiá ia
Ojuobá ia lá e via
Ojuobahia
Obá
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