A vida, a obra e as marretadas de Júlio Lancellotti
Angélica Santa Cruz
Piaui, Edição 178, Julho 2021
No livro O Visconde Partido ao Meio, de Italo Calvino, o jovem Medardo di Terralba se mete em uma batalha pela cristandade, leva um balaço de canhão e sai cortado em duas metades: o lado esquerdo é benigno, o direito é insidioso. Se fosse possível dividir o padre Júlio Renato Lancellotti em dois, a banda boa seria de uma simpatia comovente. O religioso tem fraqueza por doces retrôs, como marzipã e marrom-glacé, especialmente o espanhol. Reserva os sábados para regar plantas. Vive rodeado por uma coleção de imagens de seus santos preferidos, a maioria deles com histórias de vida dificílimas. Gosta de citações. Em momentos graves das conversas, encaixa uma da escritora existencialista Simone de Beauvoir: “O opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos.” Em horas mais descontraídas, lembra da frase atribuída ao bovino Homer, o pai na animação Os Simpsons: “Se a culpa é minha, eu coloco em quem eu quiser.” Orgulha-se de nunca ter tirado férias e só ter ido ao exterior rapidamente e a trabalho, em rasantes pela Itália, Colômbia, Nicarágua, Panamá e El Salvador. Parece muito feliz com sua opção de não ter carro, roupas de marca, sapatos caros ou títulos imponentes demais dentro da Igreja Católica. Transita, embevecido, entre pilhas de livros espalhadas pela casa onde mora com três sobrinhos no bairro do Belém, na Zona Leste de São Paulo – só na sala, são três, escoradas umas nas outras; no corredor, quatro, que sobem do chão até o teto como cobras. Às vezes, fica pensando quem é que cuidará desse acervo quando morrer.
A metade atroz do padre partido ao meio seria casca-grossa. Ele tem iracúndias sagradas – e não raro estoura alguma gritaria fenomenal na sacristia da Paróquia São Miguel Arcanjo, uma pequena igreja, bem no limite entre os bairros do Belenzinho e da Mooca, que comanda há 36 anos. Personalista, tende a narrar os feitos de sua comunidade na primeira pessoa, o que às vezes irrita e espana alguns colaboradores. Como, ao longo da vida, já visitou vários círculos do Inferno de Dante, é desconfiado e solta frases que parecem delírios persecutórios como “o próximo ataque, eu nunca sei de onde virá…”. Exige, sempre, soluções imediatas para o que quer e arma circos homéricos quando não consegue – como sabem todos os últimos prefeitos de São Paulo. E, por causa desse conjunto, pode provocar decepções nos que esperam virtude total dos líderes espirituais, mais ou menos como aquele desapontamento planetário de 2019, quando o papa Francisco, num arroubo de irritação extrema, tascou uma palmada nas mãos de uma peregrina que o puxou pelo braço.
Na vida pública, o padre Júlio Lancellotti é há décadas realmente cortado ao meio, em duas fatias irreconciliáveis. Por um lado, é beatificado em vida por seu destemido trabalho de assistência aos excluídos dos excluídos: os sem-teto, a população carcerária, os menores infratores, as crianças órfãs portadoras de HIV, os jovens LGBTQIA+ que são marginalizados. Por outro, é demonizado como aproveitador da população carente, um “esquerdopadre” viciado em mídia. Lancellotti reage suspendendo os ombros, num misto de indiferença e desânimo, sempre que fala desse pêndulo frequente sobre sua cabeça. “Na verdade, eu acho é que muita gente me vê como um enigma”, diz, ajeitando o longo crucifixo que usa no pescoço.
Mesmo dentro da Igreja Católica, o padre Júlio ocupa um lugar próprio, sujeito a rapapés e pedradas. No Brasil, a instituição é formada por uma tropa de 268 bispos, 48 cardeais na ativa e 19 428 padres distribuídos por 12,2 mil paróquias. Para se manter dentro dos preceitos, todos precisam andar na linha hierárquica e fechar questão em temas fundamentais de fé e moral, o que não é pouco. De resto, a Igreja é um cintilante regime democrático. Qualquer integrante do clero tem o direito de ser um conservador, um moderado ou um progressista. Nesse aquário colorido, a maioria esmagadora dos sacerdotes com influência que vai além de seus altares integra a categoria dos cantores e/ou youtubers ligados à Renovação Carismática, corrente de orientação conservadora. Dono de um magnetismo envolvente, o padre Marcelo Rossi é o expoente dessa ala.
Aos 72 anos, vigário episcopal para a Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo, o padre Júlio Lancellotti é também um nome famoso, mas acomoda-se numa gaveta mais solitária. Ele é, hoje, o padre mais político do Brasil.
Nos meses excruciantes da pandemia, ficou visível a diferença entre uns e outros. Em sua maioria, os padres carismáticos usam sermões e redes sociais para confortar seus fiéis com palavras de fé. Júlio Lancellotti foi para o pau. Até receber as duas doses da vacina contra a Covid-19, preocupou os amigos ao se jogar na linha de frente do atendimento aos sem-teto, apesar de integrar o grupo de risco – não só pela idade, mas porque, no começo do ano passado, chegou a ficar duas semanas hospitalizado para tratar de uma pneumonia agressiva.
O religioso vai para as ruas todos os dias, com exceção dos sábados, em uma rotina arriscada. No quinto domingo da Quaresma, dia 21 de março, por exemplo, o céu estava limpo, e as ruas, desertas. Às sete e meia da manhã, ele abriu o portão azul da entrada lateral de sua paróquia e saiu empurrando um carrinho de supermercado lotado com seis caixas de papelão – três delas recheadas com biscoitos, duas com pequenos potes de hidratante e uma com pãezinhos redondos. Magro, calvo e comprido, seguiu em marcha acelerada e deixou para trás quatro voluntários que o seguiam. Com o rosto protegido pela máscara com dois imensos filtros cor-de-rosa que virou sua marca registrada nos últimos tempos, vestindo jaleco branco e um avental amarelo, ele era uma combinação de guerrilha urbana e lirismo – parecia ter escorrido de um muro grafitado pelo artista de rua britânico Banksy para se materializar por ali, abrindo caminho em calçadas cumuladas por cocôs de cachorro.
O destino da trupe, pequena e quixotesca, estava a 400 metros dali: o Núcleo de Convivência São Martinho de Lima, umas das comunidades assistenciais do Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto (Bompar), mantido pela Igreja Católica por meio de convênios com a Prefeitura de São Paulo e a iniciativa privada. Quando alcançou a Praça Barão do Tietê, exatamente no meio do caminho, avistou um jovem febril, com as pernas inchadas e mal acomodado sobre um banco de concreto com assento cheio de ondulações. Sacou o celular e ligou para o Consultório na Rua, um programa de saúde para os sem-teto mantido pelo Bompar e pela prefeitura com verbas do SUS. Pediu que viessem atender o rapaz, e retomou seu caminho. Virou a esquina da Rua Siqueira Cardoso, onde fica o São Martinho de Lima, atravessou uma nuvem de desabrigados e começou a arrumar as doações em mesinhas. Três músicos formaram uma banda – na sanfona, um voluntário recém-chegado; nos violões, dois sem-teto. O religioso começou a partilha das doações – um incremento em tempos de pandemia ao combo café-pãozinho oferecido pela prefeitura no salão ao lado.
Pela fila, passou aquele cortejo ao qual os pensadores do mundo todo dão nomes diversos. É a “ralé”, do brasileiro Jessé de Souza. “Os sobrantes”, do francês Robert Castel. As “vidas desperdiçadas”, do polonês Zygmunt Bauman. Ou, na definição do papa Francisco, os “descartados”. Ao vivo e em cores, eram corintianos, palmeirenses, jovens tatuados, senhoras com tranças, senhores risonhos, homens com os ombros desabados. Passaram trans – duas delas, falantes e de mãos dadas, levaram um pito do padre porque interromperam o fluxo para narrar as travessuras de seus cachorros. Passou um aposentado com cabelos penteados para trás que, depois de recusar o pãozinho e antes de aceitar os biscoitos, ouviu a música O Astronauta de Mármore, da banda Nenhum de Nós, e observou, com o dedo em riste: “Isso aí é Bowie!” Boa parte estendeu seus “galos”, jargão usado para as inseparáveis sacolas de plástico dos sem-teto, e pediu que as doações fossem colocadas diretamente ali dentro.
Em uma hora, 501 pessoas percorreram a fila.
Quando a partilha acabou, às 9 horas em ponto, a trupe pegou o caminho de volta. Passando mais uma vez pela Praça Barão do Tietê, o padre viu que o rapaz adoecido ainda estava lá, agora mais abatido. Impaciente, pegou o celular no bolso do jaleco, fez alguns telefonemas, sentou no banco e passou as mãos na cabeça do sem-teto. Dez minutos depois, uma Kombi do Consultório na Rua estacionou na pracinha. Um médico jovem, com dreadlocks nos cabelos, pediu desculpas pela demora e assumiu o caso.
De volta ao prédio bege da sua paróquia, o religioso colocou uma máscara menos radical, cirúrgica e descartável, e fez o de sempre: rezou uma missa recheada de recados políticos e de respostas aos detratores. Naquele domingo, a lambada foi para a primeira-dama do estado de São Paulo, Bia Doria, que em entrevista publicada pelo site UOL afirmara: “Tira um prato de comida do padre Júlio Lancellotti para ver como ele grita. Agora, pergunta quantas pessoas ele tira da rua? As pessoas precisam voltar para a sociedade, as pessoas precisam tirar da cabeça esse assistencialismo…” Diante de uma igreja vazia, com dezesseis bancos de madeira amarrados aos pares por fitas isolantes amarelas, ele improvisou um alto-falante. Colocou as mãos em concha em volta da boca e soltou um grito que provocou eco dentro da paróquia deserta e reverberou do lado de fora: “Todos os dias, a pastoral de rua encontra centenas de pessoas famintas, pedindo alimento. E se ouve: ‘Ah, o padre Júlio vai gritar se tirar um prato de comida.’ vou! vou gritar mesmo! não tirem comida do povo! não tirem alimento dos pobres!!”
No começo da tarde, a conta do padre no Instagram, hoje com mais de 600 mil seguidores, já mostrava cinco fotos em que ele aparecia confortando o rapaz que passou mal no banco de concreto, feitas por um dos voluntários que o acompanharam pelo caminho. A missa, editada em três vídeos curtos, foi postada no canal da paróquia no YouTube, O Arcanjo no Ar, e nos dias seguintes alcançou 14 mil visualizações. Em enxurradas de entrevistas e em lives sucessivas – há semanas em que ele participa de até duas por dia –, o religioso reporta o cenário de guerra que domina as ruas de São Paulo.
Antes da pandemia, a população dos sem-teto das capitais brasileiras já era um retrato com detalhes difíceis de desenhar. A primeira e única contagem nacional – o Primeiro Censo e Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua – foi feita entre 2007 e 2008. Na época, o levantamento contou que 32 mil pessoas com mais de 18 anos moravam em vias públicas, praças, galpões, albergues, sob viadutos e marquises em 71 cidades. Quase a metade delas (48,4%) vivia nessas condições há mais de dois anos, por razões quase sempre associadas ao vício, de drogas ou álcool, ao desemprego ou desavenças familiares. Eram brasileiros em sua maioria homens, negros, com baixa escolaridade, alguns com problemas de saúde (30%) e sem documentos (24,8%) – mas a maioria (70,9%) exercia alguma atividade remunerada e afirmava ter uma profissão (58,9%).
De lá para cá, o Brasil não voltou a fazer uma contagem oficial de seus habitantes mais vulneráveis. Mas, no ano passado, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) cruzou dados de duas fontes – o Censo anual do Sistema Único de Assistência Social (Censo Suas), que junta informações das secretarias municipais, e o Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), do governo federal – e analisou o período de setembro de 2012 a março de 2020. O Ipea descobriu que, ao longo desses oito anos, a população de rua aumentou 140% e chegou à marca de quase 222 mil brasileiros. Um crescimento que se deu em todas as grandes regiões, em municípios de todos os tamanhos.
Na cidade de São Paulo, o primeiro censo da população sem-teto foi feito pela prefeitura em 2000 e registrou 8 706 pessoas. Em 2015, já eram 15 905 pessoas sem casa. Em 2019, 24 344. Um número expressivo, mas subnotificado porque não considerou variáveis como moradores de barracos improvisados em vias públicas – os mocós – ou internados em clínicas de reabilitação.
Os meses a fio da pandemia engordaram esse contingente com um novo perfil. Começaram a chegar às ruas levas de desempregados e trabalhadores informais – vendedores ambulantes, pedreiros, guardadores de carro – que, depois de semanas sem renda, foram despejados de suas casas. Os que andam sozinhos por vezes vagam entre cidades. Os que têm família formam pequenas favelas sob viadutos. Em São Paulo, as barracas de camping que passaram a ser vistas a partir de 2013 abrigando sem-teto na região central se disseminaram, agora também pelas periferias. O cenário, desalentador, ainda está longe de ter contagem oficial. “É a tragédia dos esquecidos”, diz Lancellotti.
A atuação do padre em meio a essa hecatombe acabou por colocá-lo no patamar de símbolo nacional, uma espécie de popstar social. Nos últimos meses, à frente da Pastoral do Povo da Rua, ele girou uma máquina que distribui 20 mil marmitas por mês, passa adiante doações de roupas, providencia atendimento médico e lugares para dormir para legiões de desamparados. E também protagonizou uma lista estonteante de situações com grande repercussão. Não há semana em que o nome dele não apareça no noticiário.
Na manhã quente do dia 2 de fevereiro, o padre chegou ao Viaduto Dom Luciano Mendes de Almeida, no bairro paulistano do Tatuapé, no momento em que funcionários da subprefeitura da região começavam a remover blocos de concreto colocados ali para espantar a presença de sem-teto. A medida pegou mal. A própria prefeitura, esbaforida, providenciou a retirada das pedras que haviam sido cimentadas. Assim que saiu do carro e avistou o amontoado, o padre teve o estalo de fazer um ato simbólico. Pediu emprestada uma marreta de um dos trabalhadores, bateu em alguns dos blocos e postou uma foto com a legenda: “Tirando as pedras, debaixo do viaduto, a marretadas.” Em algumas horas, deu-se o milagre da multiplicação de engajamentos. Nas semanas seguintes, ganhou corpo um debate sobre arquitetura hostil, usada em lugares públicos para inibir a permanência das pessoas – como bancos com divisórias ou ondulações e batentes com pinos pontiagudos. Inspirado pelo ato simbólico do padre, o senador Fabiano Contarato (Rede-ES) apresentou um projeto de lei que veda o emprego de medidas do gênero em espaços públicos.
Dez dias depois das marretadas, em reconhecimento à sua atuação durante a pandemia, o padre foi convidado pelo governador de São Paulo, João Doria, para acompanhar uma coletiva que, entre outras coisas, falava sobre a vacinação contra a Covid-19 da população sem-teto com mais de 60 anos. Horas antes, o padre fora vacinado também, com uma dose que sobrara do mutirão para imunizar os desabrigados idosos. No mês seguinte, assinou a Carta Aberta à Humanidade, um manifesto também apoiado por intelectuais e artistas que pedia ao Tribunal Penal Internacional a condenação da “política genocida” do governo Bolsonaro. O filho Zero Três, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), reagiu, mirando o padre: “Não é a primeira vez que o padre Júlio Lancellotti faz ataques direcionados contra o presidente, mas esse ficou bem vil.”
Não foi, de fato, o primeiro embate entre o religioso e o político. Em 2017, quando Jair Bolsonaro já borbulhava nas redes sociais, mas ainda era um nanico nas pesquisas para a Presidência da República, o padre aproveitou uma missa às vésperas do Dia da Mulher para dizer que não entendia como alguém com posições machistas e homofóbicas poderia ter tantos seguidores. Bolsonaro entrou com uma ação na 7ª Vara Cível do Rio de Janeiro, alegando danos morais. Em novembro do ano passado, a Justiça entendeu que o padre exerceu um direito constitucional de emitir sua opinião e condenou o presidente a pagar as custas do processo. Bolsonaro não recorreu.
Nas últimas semanas, a usina de notícias em torno do padre continuou queimando lenha. No fim de maio, tocado pelo aumento dos jovens LGBTQIA+ que vão às ruas pedir comida, resolveu incluir nas sugestões de leitura que faz em suas missas de domingo o livro Teologia e os LGBT+, escrito pelo padre Luís Corrêa Lima. Foi bombardeado por mensagens, enviadas por perfis de pessoas que se identificam como religiosas, que o chamavam de “excomungado comunista”, “terrorista”, “herege”. Em uma das mensagens, o livro que aparecia em suas mãos foi trocado por Catecismo Anticomunista, clássico do pensamento católico conservador escrito pelo bispo dom Geraldo de Proença Sigaud, morto em 1999. O padre denunciou essa movimentação em suas redes e, imediatamente, passou a ser procurado para dar entrevistas sobre o assunto.
“Eu me surpreendi com toda essa repercussão dos últimos tempos”, diz ele, sentado no sofá de madeira de sua sala. “Mas é preciso estar antenado e às vezes criar situações para multiplicar a sua mensagem.” E enumera exemplos em que considera ter dado bem o seu recado. Participou dos atos organizados pelo Movimento do Passe Livre (MPL), que começaram protestando contra o aumento da tarifa de ônibus em São Paulo e viraram um caldeirão de demandas. Apareceu de braços dados com jovens da tática black bloc, o controverso grupo de ativistas que vai às ruas com máscaras e usa o vandalismo como forma de protesto. A certa altura, a Polícia Militar jogou bombas de gás lacrimogêneo para dispersar a multidão e o religioso se escondeu, com outros manifestantes, em uma lan house sem janelas.
“Todo mundo passou mal, ali achei que iria perecer”, relembra ele. Depois dessa, ganhou dos ativistas uma máscara antigás, com enormes filtros azuis, que passou a usar nas manifestações seguintes. “Eles não são nada perigosos, como dizem. São jovens que se manifestam e viram alvo fácil da polícia. Jesus, hoje, seria meio black bloc.” Na Copa do Mundo de 2014, a Pastoral de Rua criou um torneio entre os sem-teto que usaram camisetas com a frase: “Povo da rua, primeiro eliminado da Copa.” Em 2018, organizou a Via-Sacra de Jesus e do Povo da Rua, com uma carroça cheia de flores para entregar aos membros da Polícia Militar e da Guarda Civil Metropolitana que avistavam pelo caminho. “A ideia era dizer: Vocês atiram balas em nós, a gente responde com flores.” Nesses três casos, e em mais um punhado do gênero, o padre imediatamente virou notícia.
Em todo esse looping midiático, nada trouxe tanta autoridade para suas mensagens do que o surpreendente telefonema que recebeu, há oito meses, do papa Francisco. Convencido de que não viveria o suficiente para visitar o líder da Igreja Católica em Roma, o religioso cultivou por anos a ideia fixa de fazer chegar ao pontífice uma carta contando das dificuldades que encontra no trabalho pastoral. Em três tentativas, recebeu apenas respostas protocolares, escritas por assessores do Vaticano. Até que a quarta correspondência teve destino diferente. Em 2015, o padre Luiz Eduardo Pinheiro Baronto, cura da Catedral da Sé, em São Paulo, foi a Roma e conseguiu entregar ao papa um pacote enviado por Lancellotti, com fotos do povo da rua. Francisco foi olhando tudo e perguntando: “O que é isso aqui? O que eles estão fazendo? Cadê o padre?” Depois apontou o dedo e disse: “É essa a Igreja que eu quero!” Tocado, mandou seu solidéu branco de presente para as pessoas em situação de rua. O barrete está em exibição na sacristia da paróquia do padre Lancellotti. Protegido em uma caixa de acrílico transparente, parece flutuar, lembrando umas das ocas de Oscar Niemeyer. É chamado pelos desabrigados de “bonezinho do papa”.
O contato com o pontífice parecia destinado a ser só epistolar. Até que no sábado, 10 de outubro de 2020, às 14h15, o celular do padre Lancellotti tocou e, do outro lado, um homem se identificou: “Papa Francesco.” Admirado, o pároco soltou um animado: “Santità!!” A conversa, em italiano, fluiu no tom piedoso dos líderes católicos. Francisco o incentivou a continuar, como Jesus, do lado dos mais pobres, e afirmou: “Eu rezo por você.” Na manhã seguinte, durante o Angelus, na sacada do Vaticano, o sumo pontífice anunciou: “Ontem, consegui ligar para um idoso padre italiano [sic], missionário da juventude no Brasil, mas sempre trabalhando com os excluídos, com os pobres. E vive a sua velhice em paz, passou a sua vida com os pobres. Esta é a nossa Mãe Igreja. Este é o mensageiro de Deus que vai às encruzilhadas dos caminhos.” Para o padre Júlio Lancellotti, foi o paraíso na Terra, a cacifada das cacifadas. Um cavalo de pau surpreendente, considerando que ele, por ser meio gauche na vida, teve duas malsucedidas passagens por seminários – na primeira vez saiu correndo, horrorizado. Na segunda, foi expulso.
Na década de 1950, a vizinhança no bairro do Belenzinho achava que aquela criança era um dos capetas de pés virados. O pequeno Júlio chegou a colocar bombinhas em caixas de correio ou tungar charretes dos feirantes para dar uma volta. Quando os moradores da área souberam que, aos 12 anos, ele decidira estudar no seminário da Congregação dos Missionários do Verbo Divino, em Araraquara, a 300 km de São Paulo, o alívio foi tamanho que resolveram ajudar a bancar o enxoval: duas camisetas brancas, dois pares de meia e dois shorts azul-marinho com fitilhos costurados no avesso mostrando sua identificação – o número 21. A passagem pelo seminário durou seis meses. Júlio gostava dos colegas, das rezas em latim e das cantorias em voz altíssima. Mas o lugar era muito rígido. Apanhou com vara de bambu nas mãos e na batata das pernas, levou tabefes, ajoelhou aos pés da cruz por horas. No primeiro retorno de férias à casa da família, pediu para sair.
De volta à infância típica dos bairros proletários da Zona Leste de São Paulo, retomou pequenos luxos hoje impossíveis até para garotos bilionários, como sair de barquinho com uma tia para pescar lambari em um Rio Tietê límpido. O interesse religioso, no entanto, continuou. Todo domingo, vestia calça curta, paletó e gravata e saía, da escola até a Paróquia Cristo Rei, no Tatuapé, tocando um sino para chamar as crianças para a missa. Os amigos da rua reagiam jogando bolas de barro em suas meias brancas. Desde a infância encantou-se pelo catolicismo e pelo mundo habitado por freiras marcantes dos colégios religiosos nos quais estudou. Como a irmã Inezita, que usava óculos fundo de garrafa e lhe dava aulas de reforço em matemática. Ou a irmã Teófila que, de tão branquinha, parecia feita de açúcar e usava um hábito com o Imaculado Coração de Maria pintado no peito, um símbolo que misturava fogo, água, flores, cruz e espinhos – e, em sua psicodelia, o fascinava.
Quando terminou o ginásio, resolveu tentar a vida religiosa de novo. Partiu para o Seminário Santo Agostinho, em Bragança Paulista, a 100 km de São Paulo, onde concluiu o antigo nível médio e recebeu o hábito. O começo dessa segunda tentativa foi um idílio. Ele teve a ideia de usar duas tardes da semana, depois das aulas de grego e latim, para estudar enfermagem na Santa Casa de Bragança e em seguida montou uma enfermaria no seminário. Assim que avançou para o noviciado, chegou um novo mestre – rígido, conservador e com uma ideia peculiar de como se forma um bom sacerdote: educando a sua vontade, o que significava fazê-lo abrir mão de tudo aquilo que lhe dava prazer. O noviço gostava de cantar? Não cantava mais. De tocar violão? Que deixasse de lado. O inverso também valia. Não gostava de varrer? Ia varrer. O jovem foi proibido de tocar a enfermaria, de ler o que queria, de falar com os amigos que ainda não eram noviços e de dar respostas impertinentes ao mestre. Descumpriu todas as regras, especialmente a última. Nove meses depois, o superior o chamou em sua sala e decretou: “Você não serve para a vida religiosa.”
Aos 19 anos, agora ex-frei, ele foi colocado em um trem e despachado de volta para casa – deixando para trás uma confusão dos diabos no seminário, porque um grupo de padres se opôs à expulsão. Quando chegou a São Paulo, ouviu do pai outra frase de impacto: “Da primeira vez você saiu do seminário. Da segunda, foi expulso. Agora, vai trabalhar para pagar a faculdade.” Ele relembra: “E eu achei que aquilo também não era mais para mim.” Anos depois, todos os treze seminaristas de sua turma que foram ordenados padres haviam largado a batina.
Impedido de ser padre, foi estudar pedagogia, com influência profunda das ideias de Paulo Freire. Formado, passou a dar aulas em faculdades, que conciliava com uma carreira recém-iniciada na antiga Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (Febem), hoje Fundação Casa. Ali, conheceu a psicóloga Maria Cecília Soares Santos. Hoje, aos 67 anos, com seu jeito jovial de falar, ela ri para os lados enquanto puxa pela memória daqueles tempos. “Fui namorada do padre!”, diverte-se, jogando a cabeça para trás. Aos 25 anos, recém-formada, ela ia trabalhar nos trinques, com os longos cabelos soltos, maquiada e, às vezes, de salto alto. Em poucos dias, conheceu Júlio Lancellotti. Educado, meio lacônico, às vezes vestido com roupas estilo safári, o pedagogo causou ótima impressão na jovem psicóloga: “Olhei pra ele e pensei: Hum… nossa, que diferente…”
No fim da década de 1970, a Febem era formada por unidades que abrigavam crianças abandonadas e outras que mantinham jovens infratores sob custódia. Em plena ditadura militar, alguns desses lugares eram campos de concentração de crianças, com maus-tratos indizíveis. Jovem, idealista e recém-chegado, um grupo de funcionários arriscava o escalpo para apurar casos de torturas e depois denunciá-los – quase sempre com a ajuda das pastorais sociais da Igreja Católica montadas sob o guarda-chuva de dom Paulo Evaristo Arns, à época arcebispo metropolitano de São Paulo, e de dom Luciano Mendes de Almeida, bispo auxiliar.
Depois de prestar exame de admissão, Júlio Lancellotti entrou na Febem como assessor técnico na Unidade de Triagem 6, que abrigava meninas abandonadas. Mas já conhecia a instituição por dentro. Seu pai, Milton, fora diretor de material do Serviço Social de Menores, precursor da Febem. Como funcionário de confiança, ganhou a deferência de morar com a família em uma casa antiga e espaçosa – tinha até lareira – dentro de uma unidade que se dedicava às crianças abandonadas. Júlio cresceu em uma Febem, brincando com os meninos de sua idade, e só saiu aos 20 anos, quando a família comprou o sobrado de dois andares onde ele mora até hoje.
Rapidamente, virou líder dos jovens funcionários que iniciaram denúncias em série, as quais, mais tarde, resultaram no fechamento de unidades e em demissões por justa causa de diretores – até a extinção total da Febem, em 2006. “Era perigoso, tenso. A gente recebia ameaças o tempo todo, um horror. Mas Júlio era de uma insistência impressionante”, lembra Maria Regina Cortes, que entrou na unidade escolar como professora de educação física e logo se juntou ao grupo.
Certa vez, internos de uma das unidades fizeram chegar até eles a denúncia de que, embora não tivessem marcas no corpo, eram continuamente espancados com cassetetes. O grupo foi até a sala onde estariam guardados os instrumentos de tortura. Lancellotti precisou se exaltar para que os funcionários abrissem o armário. Quando a porta enfim se escancarou, dezenas de pedaços de madeira enrolados em panos caíram sobre eles. “O Júlio pegou aquilo tudo em uma braçada, foi até a sala do diretor e, transtornado, jogou tudo na mesa dele”, lembra Cecília Santos, a antiga namorada.
Enquanto a convivência se estreitava, Santos pensava: “Será que ele também me olha de um jeito diferente?” Os dois engataram um namoro discreto e pouco convencional. “Nos fins de semana, minhas amigas iam para discotecas com os namorados. A gente pegava um trem e ia para a Febem fazer atividades pedagógicas com os menores.” Ele escrevia longas cartas para ela e a enchia de presentes – como um pote de madeira entalhado e um pulôver com apliques que pareciam renda. Observando os casais no seu entorno, ela, às vezes, achava tudo isso incomum.
Por causa das denúncias que faziam, Lancellotti e seu pequeno grupo conviviam com reações internas que se alternavam entre ameaças explícitas, armadilhas veladas e tentativas de cooptação. Ao longo dos anos, a situação foi ficando insuportável. “Eu vi meninas com corpos massacrados por torturas, vi jovens em filas, de joelhos, um tendo que urinar no outro. Ou colocados em solitárias com mais quarenta, onde só cabiam dez”, lembra ele. Em 1979, jogou a toalha e avisou que pediria demissão. Dom Luciano Mendes de Almeida soube e conseguiu que ele fosse transferido, como comissionado, para a Pastoral do Menor. Ali, rapidamente chamou a atenção da cúpula da Igreja Católica. Em 1980, logo depois da comoção geral criada com a passagem do papa João Paulo II pelo Brasil, dom Luciano perguntou: “Quando você vai virar padre?” Lancellotti enxergou de novo a sua vocação, piscando diante de seus olhos.
Só faltava contar para a namorada. “Eu tive que dizer: Olha, vou voltar para a teologia… Ela achou um absurdo”, lembra ele. Santos dá mais detalhes: “Fiquei revoltada, me rebelei contra a Igreja. Reclamava que se pastores podiam casar, padres deveriam poder também. Pensava: Será que dom Luciano não tem mais o que fazer? Juntei tudo o que o Júlio me deu, bati na porta dele pra devolver. Ele não quis pegar, aí rasguei as cartas e doei o resto.”
Quatro anos depois, Santos comprou uma saia nova para assistir à celebração em que o ex-namorado seria nomeado diácono e prometeria obediência ao bispo. “No meio da cerimônia, saí da igreja correndo para vomitar lá fora. Foi como um expurgo.” Os dois seguiram trabalhando juntos e viraram grandes amigos. Anos depois, apaixonadíssima, ela engravidou do namorado, e o padre foi a segunda pessoa para quem ela contou a novidade. Lancellotti enfeitou a capela da Universidade São Judas Tadeu, a 600 metros de sua paróquia, para celebrar o casamento lotado da ex e brincou: “Cecília, não sei se as pessoas vão vir aqui pra ver você ou pra ver a minha cara!”
Ordenado aos 35 anos, virou padre diocesano, categoria que responde diretamente à Arquidiocese e não pertence a uma ordem religiosa. Receber a batina depois de uma formação de quatro anos em teologia, sem precisar de outra passagem pelo seminário, foi uma exceção aberta por dom Luciano Mendes de Almeida para ele e outros três colegas com comprovada vivência religiosa. Entre eles, Fernando Altemeyer Junior, hoje chefe do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Chegamos para dom Luciano e falamos: ‘Olha, essa coisa de seminário, de instituição total, parece Exército. Isso forma iguais e não queremos ser padres assim.’ Ele era um jesuíta gigante, poliglota, doutor em filosofia e tão lúcido que falou: ‘Vocês fiquem fora do seminário, já são maiores do que ele. É botar vocês lá dentro para estourarem tudo!’ Isso já nos fez malditos de cara diante de todo o clero, éramos outsiders que podiam estudar e trabalhar”, lembra Altemeyer, que acabou deixando a batina em 2000 e hoje é casado, pai de um filho e uma filha.
Lancellotti nasceu no Belenzinho, descende de italianos. Altemeyer é da Vila Prudente, também na Zona Leste de São Paulo, e vem de uma família de espanhóis e alemães. Ambos têm origem na classe popular, são meio iconoclastas e receberam homenagens das comunidades de suas paróquias no dia em que foram ordenados, em festas tão lotadas que acabaram acompanhadas pela imprensa. A única diferença marcante na formação dos dois era dona Wilma, a mãe de Lancellotti, que destoava das donas de casa do entorno e era figura forte na família: poliglota, curiosa, devorava livros e havia sido secretária executiva de um grande escritório de advocacia antes de casar. Lancellotti e Altemeyer viraram grandes amigos.
É para Altemeyer que o padre Júlio recorre quando está na pior. “Ele liga quando dá aqueles curtos-circuitos dele lá. As lutas são árduas, então às vezes cai em depressão e fica meio Dom Quixote em busca do Sancho Pança. É um homem solitário, óbvio, pela função de padre. E não vai telefonar pros arcebispos e bispos, que estão em outra, são de outro modelo eclesial. Ele optou por trabalhar com o subterrâneo do subterrâneo, com os descartados, e isso lhe cobra muito. Todos nós colocamos uma máscara psicanalítica para dizer: ‘Opa! Até aqui eu vou, depois eu não aguento.’ O Júlio vai. Mesmo que isso o rasgue inteiro.” Os dois amigos têm ainda outro fio que os une: são herdeiros puro-sangue de uma Teologia da Libertação que transformou a Igreja Católica urbana de São Paulo – e explica em tudo o mergulho do padre Júlio entre os sem-teto, sobretudo em plena pandemia.
Teólogo, filósofo, escritor e professor, o catarinense Leonardo Boff tem 82 anos e mora em uma casa cercada pela reserva ecológica de Araras, em Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro. O núcleo duro do lugar é uma imensa sala com uma mesa, sofás de madeira e estantes de alumínio que formam um corredor e abrigam cerca de 30 mil livros. Deles, mais de sessenta foram escritos por Boff.
Apontado com frequência como grande formulador da Teologia da Libertação, Boff fica mais à vontade para situá-la no espírito de um tempo – o do clamor por liberdade que se alastrou no fim da década de 1960 e inspirou multidões de jovens nas sociedades ocidentais. “Ela surgiu nesse ambiente. Não caiu do céu, nem foi inventada por algum teólogo inspirado. No início, foi pensada por teólogos em quatro lugares diferentes: aqui no Brasil; no Peru, com Gustavo Gutiérrez; no Uruguai, com Juan Luis Segundo, e na Argentina, com Enrique Dussel. E nenhum de nós se conhecia!”
A Teologia da Libertação tem cinco décadas de existência e certidão de nascimento fincada na América Latina. Em um texto escrito quando ela completou 40 anos, Boff explica que, grosso modo, é uma corrente teológica que encara de um modo diferente a tarefa de emancipar os pobres da pobreza e da opressão. Uma estratégia eclesial e política possível interpreta o pobre como “aquele que não tem” e mobiliza os que têm para ajudá-lo, em uma lógica bem-intencionada, mas que gera assistencialismo e paternalismo. Outra entende o pobre como “aquele que tem”: força de trabalho, capacidade de aprendizado, habilidades. Então forma o pobre para que ele seja integrado ao processo produtivo, mas não faz reparos ao sistema social e, portanto, mantém a desigualdade. E uma terceira estratégia interpreta o pobre como “aquele que tem força histórica” para transformar o sistema em um outro modelo, mais igualitário e participativo. “É essa terceira estratégia, libertária, que a Teologia da Libertação ajudou a formular”, escreve ele.
Rapidamente, ela se transformou em corrente dominante no episcopado brasileiro, uma hegemonia que foi da década de 1970 até 1990. “De todos os bispos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, só uns três ou quatro eram contrários”, diz o teólogo, em entrevista pelo Zoom. Com vento a favor, Boff sentia-se não apenas contando com apoio total da cúpula da Igreja, mas também como um organizador das ideias que ela defendia.
Em Roma, no entanto, deu ruim. Em 1981, Boff escreveu o livro Igreja: Carisma e Poder, conjunto de ensaios que esmiuçava as teses da Teologia da Libertação. A obra alvoroçou o Vaticano, tomado por um incômodo acerca dos perigos da politização da fé e da disseminação pouco crítica das teorias marxistas. Três anos depois, Boff foi obrigado a, como ele define, “sentar na cadeirinha de Galileu Galilei” – em alusão ao astrônomo italiano que, em 1633, foi condenado por heresia e teve que renegar suas ideias diante do Tribunal da Santa Inquisição. Mais de três séculos depois, Boff foi chamado diante da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, o antigo Santo Ofício, comandada pelo então cardeal Joseph Ratzinger, o futuro papa Bento XVI.
Foi um constrangimento danado. Teólogo de mente afiada, Ratzinger era amigo de Boff. Ambos trabalharam como editores da Concilium, revista internacional de teologia publicada em sete línguas. Durante cinco anos passaram juntos a semana do Pentecostes, discutindo teologia e elaborando temas para a publicação. Depois continuaram em contato, trocando cartas. Até que Ratzinger foi feito cardeal, virou presidente da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé e assumiu a missão de julgar o amigo. “Ele me disse: ‘Olha, Boff, esse julgamento não deve romper nossa amizade. Estou na missão ingrata como funcionário da Igreja de te interrogar, mas, como pessoas, continuamos como era.’”
Deu-se um forrobodó no Vaticano. Como tinha respaldo do episcopado brasileiro, Boff, na época frade franciscano, chegou lá acompanhado por dois cardeais: dom Paulo Evaristo Arns e dom Aloísio Lorscheider. Pela maneira como resume o episódio, enfileirando diálogos como se contasse uma parábola, Boff hoje parece até se divertir um pouco com o que viu:
“Dom Paulo foi lá pra dizer: ‘Como cardeais, nós queremos testemunhar que, se essa teologia tiver erros, devemos corrigir juntos. Mas ela é boa para o nosso povo.’ Aí o Ratzinger reagiu: ‘De jeito nenhum! É inaudito que cardeais venham aqui acompanhar o processo.’ Dom Paulo ameaçou: ‘Semana que vem estarei na Alemanha e vou denunciar as injustiças que vocês estão cometendo contra os pobres do mundo inteiro!’ Aí o papa João Paulo ii se rendeu: ‘Bom… então o julgamento terá duas fases, primeiro com o cardeal Ratzinger fazendo perguntas. Depois vocês falam.’”
Boff continua: “A primeira pergunta que o Ratzinger me fez foi: ‘Nas Comunidades Eclesiais de Base, vocês estão distribuindo armas?’ Eu respondi: ‘Como? Armas??’ E ele disse: ‘Sim, vocês sempre perguntam uns para os outros: Como vai a luta?’ Então eu tive que explicar: ‘É uma expressão brasileira pra perguntar como é que vai a vida!’ Era esse o nível de incompreensão que nós enfrentamos!”
O julgamento de Boff acabou no que ele interpreta como a melhor jogada para o tabuleiro de xadrez à disposição no momento. “Roma queria atacar não a mim, queria a CNBB. Mas bispo não come bispo, ela não pôde pegar toda uma conferência e foi no principal assessor. O episcopado aqui logo entendeu e disse: ‘Boff, aceite logo todas as condenações pra que você preserve a Igreja dos pobres, as comunidades de base que eles querem condenar.’ Eu me submeti a tudo porque sabia o que estava em jogo.”
Boff foi condenado ao silêncio obsequioso, em que não poderia publicar o livro e dar entrevistas. “Por pressão de dom Paulo, esse silêncio caiu depois. Mas o que importa é que nos anos seguintes pudemos continuar fazendo uma boa teologia. Não foi fácil, porque a Igreja em Roma era conservadora, voltada para dentro como um castelo fechado, contra a cultura moderna, e enxergava o comunismo por todos os lados. Mas avançamos”, avalia. Em termos práticos, deve-se a esse ideário a opção da Igreja Católica de São Paulo pelo trabalho imersivo com a população pobre. Sob o comando de dom Paulo, foram criadas 461 Comunidades Eclesiais de Base na periferia da cidade e 25 pastorais sociais. Entre elas, a Pastoral do Menor, com importância fundamental na criação de mecanismos de proteção como o Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990 – e território onde o padre Júlio formou seu modo de enxergar o trabalho pastoral.
Nas décadas dos pontificados conservadores dos papas João Paulo II e Bento XVI, a teologia militante que fez a cabeça de jovens sacerdotes latino-americanos foi se esvaziando. Agora, voltou ao coração do Vaticano com a chegada do papa Francisco, que também bebeu dessa influência quando trabalhava nas periferias de Buenos Aires – e dia desses enviou para Boff uma fotografia em que ambos aparecem juntos em 1973, jovens e com sorrisos abertos, depois de darem uma palestra na capital argentina. Hoje, a CNBB tem perfil moderado. “Mas a maioria dos jovens padres não fez opção pelos pobres. Querem casa, carro, andar com clergyman [gola branca no pescoço, indicando que é padre] e privilégios clericais. São de grupos que estão fazendo resistência ao papa Francisco”, reclama Boff.
Em 1992, Boff deixou a batina – e depois passou a dedicar-se à ecoteologia. “Dizem que eu era vermelho e depois fiquei verde”, brinca. Por causa dessa militância ambiental, desde o início da pandemia atende a todos os pedidos de live que recebe, do mundo inteiro, porque acha importante alertar: “É preciso falar mais do contexto de onde esse vírus veio, do Antropoceno, de um capitalismo que continuamente devasta a natureza.” Nesse esforço, perdeu 10 kg de massa muscular e ganhou a recomendação médica de não ficar muito tempo diante de telas. Mas todo domingo de manhã, ele e sua companheira de décadas, a educadora Marcia Maria Monteiro de Miranda, param tudo para assistir à homilia do padre Júlio, transmitida ao vivo.
Boff acompanha os sermões dominicais do pároco por identificar neles uma combinação de referências teóricas e capacidade de comunicação, e, também, porque quem está no púlpito é uma cria incontestável da Teologia de Libertação, hoje um bicho raro. “De um jeito simples, ele usa frases de um exegeta e quem tem formação nisso compreende. Mas, além da reflexão, ele tem a prática, como estamos vendo pelo mergulho dele nessa pandemia com a população que não tem onde colocar a cabeça. Por isso, a imagem que ele representa hoje irradia pelo Brasil inteiro”, analisa.
Convocado para comentar a eloquência sagrada do amigo nas missas dominicais, Fernando Altemeyer Junior explica em seus termos: “Há uma arte para fazer sermão chamada homilética. Os padres têm quatro anos para aprender isso no curso de teologia, mas a grande maioria não sabe e fica na Igreja fazendo moralismo, xingando quem não foi à missa. O Júlio se prepara muito, põe a Bíblia em cima daquele altarzinho e vai. Tem leitura heurística, que é a chave que abre a porta, tem carinho e competência histórica. É um discurso sapiencial também muito bem dominado pelo papa Francisco e que, hoje no Brasil, só uns três fazem bem. Às vezes, claro, ele exagera e leva chumbo do arcebispo, mas faz parte”, conclui.
Pouco antes de ser ordenado, Lancellotti ouviu de dom Luciano uma frase que se revelaria premonitória: “A sua vida não vai mudar muito depois que você virar padre.” Realmente, ele seguiu cutucando autoridades, transitando em ambientes barras-pesadas e usando a tática de gritar para ser ouvido. Primeiro, quando seguiu como elo entre a Pastoral do Menor e os bastidores de uma Febem em chamas. Depois, quando começou a se dedicar à população de rua.
O período Febem, sozinho, rende tomos de histórias aterrorizantes. No final de 1999, estourou uma grande rebelião no Complexo Imigrantes, um conjunto de pavilhões que abrigava até 1,2 mil menores. Quatro internos tiveram os corpos carbonizados. A cabeça de um deles foi jogada aos pés das autoridades que negociavam a rendição dos amotinados. Depois desse levante, o governo de São Paulo decidiu transferir os infratores com mais de 18 anos para outros presídios e cadeias da Febem, onde ficariam sob custódia até completar 21 anos. “Tínhamos uma parceria para conversar com esses internos e denunciar casos de tortura. Às vezes a gente saía dos presídios e encontrava bilhetes colocados por funcionários no para-brisa do carro: ‘Defensores de bandido.’ Alguns gritavam das janelas: ‘Vão morrer, desgraçados!’ Xingavam o padre, me xingavam”, lembra o advogado Ariel de Castro Alves que, à época com 19 anos, começou a trabalhar como assessor na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo e entrou para o grupo que acompanhava a Pastoral nas visitas. Nesse período, a Promotoria da Infância e Juventude colheu depoimentos de menores dizendo que eram espancados com pedaços de pau com a inscrição “Padre Júlio”. “Os funcionários da Febem batiam e diziam: ‘Protegidinho do padre’”, conta Castro Alves.
O episódio de maior voltagem aconteceu em março de 2001, quando estourou uma rebelião na Unidade 30, em Franco da Rocha, na Região Metropolitana de São Paulo. Era uma espécie de presídio adaptado para ser Febem depois do fechamento do Complexo da Imigrantes, dois anos antes. O motim começou quando três visitantes armados tentaram resgatar dois menores presos. Batoré, apelido de um interno acusado de matar policiais, foi apontado como um dos líderes da rebelião, ao lado de outros menores que o padre Júlio e Castro Alves conheciam de suas visitas periódicas. Um dos monitores foi morto, outros foram jogados de cima do telhado. Durante as negociações, Batoré avisou que só se entregaria na presença do pároco, de Castro Alves, da presidente da Associação de Mães e Amigos de Crianças e Adolescentes em Risco (Amar) e de promotores de Justiça da Infância e Juventude. Todos foram chamados pelo governo estadual, todos toparam ir.
Castro Alves seguiu para a unidade conflagrada em um carro da Assembleia Legislativa de São Paulo. Foi recebido com pedras atiradas por alguns funcionários, revoltados com a morte do colega. O padre chegou logo depois. “Quebraram o carro onde ele estava, arrancaram o crucifixo, deram um soco no rosto dele. Ele ficou todo ensanguentado”, lembra o advogado. Quando todos conseguiram entrar, com a ajuda de funcionários menos exaltados, foram levados para uma das torres do presídio e as negociações começaram. No momento em que Batoré aceitou entregar as armas que estavam com os internos, a tropa de choque da Polícia Militar invadiu o lugar. “Virou uma confusão. O mesmo grupo de funcionários que nos agrediu na entrada atirou em direção à cabine onde estávamos. Pulamos no chão, os vidros estouraram na nossa cabeça. Ficamos cercados até que os promotores conseguiram ligar para o procurador-geral de Justiça.” O grupo acabou saindo às escondidas, dentro de uma ambulância do Corpo de Bombeiros, em uma tensa operação de resgate improvisada pelo governo.
Anos antes, em 1993, de repente e sem aviso, dom Paulo Evaristo Arns já havia afastado o padre Júlio Lancellotti da coordenação da Pastoral do Menor. “Houve muita pressão interna da Igreja e do governo. Eles ficavam incomodados porque eu estava sempre na porta das rebeliões e acabava entrando no teatro de operações. Achavam, e acham até hoje, que a minha posição é de muito confronto, que bato de frente com autoridades. É verdade, mas é por causa dos absurdos que eu vivencio”, conta o padre. Meses depois do afastamento, na tradicional Missa de Natal celebrada para os sem-teto na Catedral da Sé, dom Paulo saiu-se com outra surpresa. Do nada, anunciou: “Está criado o Vicariato Episcopal para Pastoral do Povo da Rua! E o vigário é Júlio Lancellotti!” A igreja irrompeu em palmas. “Para consertar, de certa forma, a decisão de me tirar da Pastoral do Menor, ele me colocou em outra posição, ainda maior”, conta Lancellotti.
Em uma tarde de agosto de 2007, Luiz Eduardo Greenhalgh – ex-vice-prefeito de São Paulo e ex-deputado federal que acabara de voltar ao seu escritório de advocacia, no Centro de São Paulo – recebeu uma visita esbaforida. Era o padre Lancellotti. Seu contato estreito com o universo dos menores infratores virara uma areia movediça que, por pouco, não o engoliu para sempre. “Ele, muito angustiado, me disse que vinha sendo vítima de extorsão por parte de um ex-interno da Febem. Eu aconselhei: ‘Ô, padre, o senhor tem que romper com isso! O extorsionário só se sacia extorquindo, ele não vai parar. Vamos fazer um boletim de ocorrência.’” Ambos procuraram uma delegacia, o pároco prestou queixa e contou que o ex-interno Anderson Marcos Batista e sua mulher, Conceição Eletério, ameaçavam fazer acusações de pedofilia contra ele se não recebessem dinheiro.
Dois meses depois, o caso vazou, virou um redemoinho em volta do padre e voltou-se contra ele. O advogado do ex-interno passou a dar entrevistas afirmando que o religioso iniciara um relacionamento com seu cliente quando ele ainda era menor de idade. Depois, disse que o padre passava para o rapaz dinheiro desviado da Bompar, uma das mais relevantes instituições assistenciais mantidas pela Igreja Católica em São Paulo. Apesar de a denúncia ter sido feita pelo próprio Júlio Lancellotti, ele virou o alvo a ser escrutinado. A casa onde mora foi cercada pela imprensa, amigos se afastaram, transeuntes nas ruas o hostilizavam. A Bompar teve convênios suspensos – o padre, então, precisou se afastar de seus quadros.
Anderson Batista, sua mulher e outros dois homens acusados pelo padre de participarem da extorsão foram todos presos. Mas sete meses depois foram absolvidos e soltos. Em 2010, três anos após o caso ter vindo a público, o Tribunal de Justiça de São Paulo manteve a absolvição dos quatro acusados. “Os desembargadores acharam que era uma palavra contra a outra, que não havia provas da extorsão. Foi um dos piores dias da minha vida. Fui dar a notícia e o padre ficou me olhando, mortificado”, lembra Greenhalgh. “Mas acabei dizendo: ‘O senhor fique atento, porque esse rapaz vai voltar.’”
Sete meses depois, o rapaz voltou. O pároco acordou Greenhalgh às seis e meia da manhã com um telefonema. Contou que Anderson Batista acabara de abordá-lo na saída de casa, exigindo dinheiro e ameaçando matá-lo com um tiro na cabeça. “Pedi para ele ir imediatamente fazer outro boletim de ocorrência e fui encontrá-lo.” Na delegacia, os investigadores e Greenhalgh resolveram percorrer a rua onde o religioso mora, em busca de câmeras de segurança que pudessem ter registrado a cena. Acharam uma, requisitaram as imagens e estava tudo lá: o rapaz esperando, o padre saindo de casa, o rapaz atravessando a rua, o padre andando, o rapaz indo atrás, o padre se encolhendo, o rapaz fazendo um gesto de arma com as mãos, o padre tentando parar um táxi. A versão de que jamais havia intimidado o religioso desmoronou. Green-halgh abriu outro processo, Batista foi preso e, em 2011, ele e a mulher foram condenados a sete anos e três meses de detenção.
Ela cumpriu parte da pena em regime aberto e hoje trabalha como auxiliar de limpeza. Ele, que já respondia a processos anteriores – um deles por matar um homem durante uma briga de bar –, acabou condenado, no total, a 17 anos, 2 meses e 24 dias de prisão. Em setembro do ano passado, ganhou o direito de migrar para o regime aberto. O relatório social que integra o pedido de progressão de pena afirma que ele demonstrou bom comportamento, teve trabalho formal na prisão – costurava bolas e reciclava materiais plásticos –, fez cursos profissionalizantes, virou evangélico e se arrependeu de seus crimes. No relatório psicológico, ele diz que se envolveu na extorsão contra o padre por ganância e influência de más companhias, mas garante que teve um relacionamento com Lancellotti. O padre, além de denunciar a extorsão, sempre negou qualquer relacionamento.
Da primeira denúncia à polícia até a condenação dos réus, o rolo durou cinco anos. “Minha vida foi revirada pelo Ministério Público, pela Polícia Civil, pela Igreja Católica, pela imprensa. Eu me considero um sobrevivente, porque não era pra eu ter sanidade mental, se é que eu tenho”, diz Lancellotti. Na época da crise, sua mãe ainda estava viva. Os dois irmãos do religioso, o mais velho e o mais novo, morreram por problemas cardíacos nesse período. “Ficávamos, eu e minha mãe, sentados aqui nesse sofá, imaginando o que mais poderia acontecer”, diz ele.
De vez em quando, o tema vira artilharia para novos ataques contra o padre. Em maio passado, depois de receber a visita do ex-presidente Lula na Casa da Oração do Povo da Rua, no bairro da Luz em São Paulo, ele foi chamado por Jair Bolsonaro de “Padre Pajero”. Era uma referência maldosa ao fato de que, além de dinheiro vivo, o padre, sob extorsão, chegou a dar um carro Pajero para o ex-interno e sua mulher. No ano passado, às vésperas da eleição para a Prefeitura de São Paulo, o assunto também veio à tona – sempre pelas mãos de algum bolsonarista. O segundo deputado estadual mais votado do estado e, na época, candidato à Prefeitura de São Paulo, o youtuber Arthur do Val, conhecido como “Mamãe Falei”, disse em entrevista ao canal TV Democracia: “Vou revelar aqui em primeira mão, e confesso que fiquei atônito com o que aconteceu. Recebi uma denúncia muito grave sobre o Júlio Lancellotti, de pedofilia. Uma denúncia, inclusive, com vídeos. Vou me preservar agora, estou consultando meus advogados e fui ao Ministério Público para ver como resolvo este problema.”
Arthur do Val não tratou mais publicamente do assunto. Mas, no dia 9 de outubro do ano passado, uma testemunha que se identificou apenas como uma jornalista chamada Maria das Dores – e pediu confidencialidade para todo o resto – apresentou requerimento na Promotoria de Justiça da Infância e Juventude de São Paulo pedindo que o padre fosse investigado pelo crime de pedofilia. Na denúncia, anexava um vídeo de catorze minutos em que, segundo afirmava, o religioso era visto trocando imagens de cunho sexual com um perfil do Facebook atribuído a um garoto de 14 anos.
As investigações preliminares mostraram que o perfil atribuído ao adolescente de 14 anos era falso e fora criado a partir de um provedor não identificado de Montevidéu, no Uruguai. A descoberta derrubou a denúncia, que acabou sendo arquivada. No mês seguinte, uma versão de 44 segundos do mesmo vídeo apareceu durante alguns dias numa plataforma de conteúdo pornográfico sob o título “Padre Julio Lanceloti (sic) praticando ped@filia”.
Até 1955, a cidade de São Paulo contava com apenas um albergue para dar algum tipo de assistência à população de rua que aumentava a olhos vistos, na esteira da intensificação dos movimentos migratórios. Mas, nos anos seguintes, freiras do grupo da Fraternidade das Oblatas de São Bento, um braço da Organização do Auxílio Fraterno (OAF), começaram a abrir casas para receber mães solteiras e crianças de rua. O trabalho delas era basicamente receber essas pessoas, com banho e cama limpa.
Em 1979, aconteceu algo de radical nessa assistência. Dom Paulo Evaristo Arns pediu que as irmãs reformulassem a maneira como a Igreja Católica lidava com os sem-teto. No embalo das ideias do educador Paulo Freire e da Teologia da Libertação, elas fecharam todas as casas de acolhimento e se lançaram nas ruas. Foram dormir embaixo dos viadutos, morar em cortiços e casarões abandonados, catar lixo, trabalhar como vendedoras ambulantes de café e de bolo. Foi uma imersão total em um mundo paralelo, formado por códigos próprios e muitas desconfianças, inclusive em relação às intenções dos representantes da Igreja.
Vasculhando por dentro as necessidades e o jeito de pensar do povo da rua, essas freiras lançaram as bases do que, mais adiante, seria um pedaço da estratégia da Igreja Católica nesse ambiente: ajudar os sem-teto a se organizar para produzir bens e, depois, denunciar o sistema que os excluiu. Do trabalho de mulheres como as irmãs Regina Maria Manoel e Dalva Ivete de Jesus, na Baixada do Glicério, no Centro de São Paulo, por exemplo, nasceu em 1989 a Cooperativa de Catadores de Papel e Papelão e Materiais Reaproveitáveis (Coopamare), a primeira de milhares de organizações do gênero que depois se espalharam pelo Brasil.
Quando assumiu o Vicariato do Povo da Rua, o padre Lancellotti seguiu adiante com esse plano estratégico – agora encorpado por seu carisma midiático, trânsito entre autoridades e, sobretudo, disposição para comprar briga.
Em 2003, quando Lula assumiu a Presidência da República, o pároco foi levado por um amigo para visitá-lo em Brasília. Era para ser um breve aceno em um evento público, mas Lancellotti acabou chamado para almoçar com ele e a primeira-dama, Marisa Letícia. Ali mesmo, convidou o então presidente para um encontro com um grupo de desabrigados, organizado todos os anos na semana do Natal pela Pastoral do Povo da Rua, em São Paulo. Lula topou – e o almoço natalino com os sem-teto entrou para a sua agenda oficial por oito anos. Desses encontros, saíram uma linha de crédito do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para cooperativas de catadores de materiais recicláveis, a ideia de fazer marchas da população de rua em Brasília (“Foi a primeira vez que eles foram recebidos no Palácio do Planalto”, exulta o padre) e, em 2009, a Política Nacional para a População em Situação de Rua, que reúne diretrizes que os municípios não são obrigados a seguir.
E é aí que entra a atual grande briga do padre. “No âmbito municipal, as respostas são muito institucionais. É tudo muito devagar”, queixa-se. Independente da filiação partidária do prefeito da vez, ele mete o sarrafo nos abusos do rapa, como é chamada a operação dos fiscais que vão às ruas apreender mercadorias ilegais de camelôs e levam também os bens dos sem-teto. Critica duramente os excessos da Guarda Civil Metropolitana e, também, o modelo dos albergues. “Nesses lugares, há um regime em que as pessoas são destituídas de qualquer vontade, como se fossem incapazes de gerir seu cotidiano da maneira que precisam. É uma regra única para todos. O modelo de locação social, com aluguel de lugares para pequenos grupos que administram a própria rotina, é mais barato, mais eficiente, mais viável para tirar as pessoas da rua. Mas é o tipo de solução que não entra na cabeça dos burocratas.” É tanta queixa que, na gestão do petista Fernando Haddad, de 2013 a 2016, o caldo entornou – e ele e o padre romperam por um tempo.
Mais magro, cansado e apreensivo com uma pandemia cujos efeitos desabam com força maior sobre a cabeça dos sem-teto, o padre promete briga, como se vê quase toda semana. Dom Paulo Evaristo Arns costumava explicar por que razão o escolheu para ser o vigário do Povo da Rua nos seguintes termos: “Eu perguntei para dom Luciano e ele me disse: ‘O Júlio morde nos dentes, mas não larga! Ele vai até o fim!’”
Angélica Santa Cruz
Jornalista, foi editora-executiva da revista Época e do Diário de São Paulo
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