Em 1975, Portugal abandonou a África sem ter chegado a compreender os povos dos territórios que havia colonizado. Já os africanos alcançaram a independência conhecendo muito bem Portugal e os portugueses
José Eduardo Agualusa 24/07/2021
O colonialista olha o colonizado e não o vê. A incapacidade de ver o outro, mesmo quando o tem diante dos olhos, mesmo enquanto o filma ou fotografa, faz parte da natureza profunda do colonialismo. Se o colonialismo visse o outro não seria colonialismo.
Confirmei esta ideia na última segunda-feira, ao assistir, em Lisboa, ao mais recente documentário da diretora portuguesa, natural de Angola, Joana Pontes. Em “Visões do império”, Joana visita arquivos e colecionadores, públicos e privados, procurando postais e fotografias produzidas nas antigas colônias portuguesas, sobretudo em Angola e Moçambique, nas primeiras décadas do século XX. Essas imagens mostram o feliz cotidiano dos colonos portugueses, na praia, em festas, caçando ou pescando. Os africanos surgem apenas como material etnográfico, representando etnias ou profissões, ou então como uma incômoda e silenciosa paisagem de fundo.
O mesmo se passa, aliás, na literatura colonial. Mais estranho é constatar que até a literatura portuguesa produzida após a independência de Angola e Moçambique padece de cegueira semelhante. Nos romances portugueses cuja ação decorre na África, os africanos raramente falam ou pensam. São como fantasmas desprovidos de história e de identidade. Nos últimos anos isso mudou um pouco. Nas obras de escritores mais jovens, como Francisco José Viegas, já se vai dando voz aos personagens negros. Por outro lado, surgiu entretanto uma geração de escritores portugueses de ascendência africana, cujo rosto mais conhecido é o de Djaimilia Pereira de Almeida, cujos romances, disponíveis nas livrarias brasileiras, criam pontes entre Angola e Portugal.
O processo de descolonização português aconteceu há quase meio século. Contudo, a descolonização do olhar, isto é, dos espíritos, ainda está longe de acontecer.
Curiosamente, nos romances de autores angolanos e moçambicanos, escritos quer antes quer depois das independências, os colonos portugueses sempre tiveram voz. Escritores como Luandino Vieira, Pepetela ou Manuel Rui esforçaram-se não apenas por escutar o outro — no caso, os colonos portugueses —, mas por retratar a diversidade e a complexidade humana desse grupo. Nos livros dos autores africanos há personagens representando tipos muito diversos de portugueses, desde aqueles que foram para a África com o único propósito de enriquecer depressa até os que conseguiram superar a cegueira colonial, interessando-se pelas sociedades africanas, e integrando-se nelas.
Em 1975, Portugal abandonou a África sem ter chegado a conhecer e a compreender os povos dos territórios que havia colonizado. Os africanos, pelo contrário, alcançaram a independência conhecendo muito bem Portugal e os portugueses. Esta desigualdade reflete-se até hoje na relação entre as antigas colônias e Portugal. Os dirigentes políticos angolanos, em particular, têm sabido explorar com grande inteligência (e uma certa crueldade) as contradições, fraquezas e hesitações dos sucessivos governos portugueses, sejam estes mais à direita ou mais à esquerda, para fazer valer as suas posições. Hoje, Angola influencia mais a política portuguesa do que o oposto. A isto se chama justiça poética.
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