domingo, 7 de fevereiro de 2021

Joan Didion

Joan Didion revela uma América sem maquiagem em seus ensaios
'Rastejando Até Belém' reúne ensaios de uma das responsáveis pelo surgimento do chamado Novo Jornalismo nos EUA
Sérgio Augusto, 06/02/2021

Rastejando Até Belém, compilação de ensaios da jornalista e escritora Joan Didion que a Todavia acaba de lançar, tem duas epígrafes. A primeira, de 22 linhas, é um verso do poeta irlandês W.B. Yeats, que explica o título. A segunda é uma confissão da cantora Peggy Lee: “Aprendi sobre coragem com Buda, Jesus, Lincoln, Einstein e Cary Grant.”
 

                          A escritora e jornalista norte-americana Joan Didion Foto: Chad Batka - NYT

Um dos charmes dos escritos de Didion é a importância que ela dá à cultura pop, notadamente ao cinema. Nascida e criada na Califórnia (em Sacramento, capital do Estado), ela viveu os mais agitados anos de sua vida entre Los Angeles e São Francisco, fazendo jornalismo de excepcional qualidade (há quem lhe atribua a maternidade do que rotularam de “jornalismo literário”, não obstante a precedência de Lillian Ross no ramo), escrevendo ficção sobre sofridas almas interligadas por freeways, além de roteiros para cinema.  

Uma das três grandes damas do ensaísmo americano que vieram do Oeste para vencer em Nova York, Didion, ao contrário das outras duas (Pauline Kael e Susan Sontag), ousou deixar Manhattan para voltar à sua terra natal, não para a provinciana e modorrenta Sacramento, mas para instalar-se num bangalô debruçado sobre as areias de Malibu, a praia dos astros e estrelas de Hollywood.
É este o bangalô que, alternando com o apartamento que ela mantém em Manhattan, aparece em parte das conversas que seu sobrinho, o ator Griffin Dunne (vocês o viram perdido na noite do Soho em Depois de Horas, de Martin Scorsese) filmou para o documentário Joan Didion: The Center Will Not Hold, produzido há três anos pela Netflix. Como ainda está disponível, recomendo que o vejam antes de iniciar a leitura de Rastejando Até Belém, se bem que a tia de Dunne dispense apresentações prévias para ser curtida em sua plenitude.

O título do documentário, aliás, saiu da frase de abertura (“O centro cedia”) do ensaio que serviu de batismo à coletânea em pauta, que há meio século esperava uma tradução brasileira.
O centro cedia, ou não aguentaria, porque os EUA eram, no final da primavera de 1967, um país de falência generalizada, assassinatos fortuitos, garotos e garotas foragidos mas não sequestrados, crianças criadas em lugares impróprios, lares abandonados, e vândalos semialfabetizados, que sequer sabiam escrever corretamente os palavrões que rabiscavam em muros e paredes. E nem havia uma revolução nas ruas. A América, ao contrário, respirava estabilidade, o PIB nas alturas, e no entanto...

Foi esse “no entanto” que instigou Didion a se mandar para São Francisco. Pois era na terra do sonho dourado que os garotos desaparecidos se juntavam, drogavam e viravam hippies. Era lá “o lugar onde as hemorragias sociais estavam dando as caras”. Foi observando, conversando e analisando com seu olhar aguçado o que os outros pareciam não ver, que ela pôs em foco uma América sem maquiagem, sem filtro solar, descrita com uma voz e um estilo genuinamente originais.

Didion arriscou-se em todos os gêneros narrativos: ficção, ensaios, reportagens, críticas literárias, perfis, confissões — até na crítica de cinema exercitou sua versatilidade, evolução natural, pois o cinema sempre esteve presente em sua vida e até em seu bagalô, frequentado por atores, produtores e cineastas das vizinhanças. Warren Beatty encantou-se por ela, quando ainda jovem e bonita. Harrison Ford tornou-se um habitué da casa ainda nos tempos em que ganhava a vida como marceneiro e mestre de obras.

Ao cobrir as locações, no México, do western Os Filhos de Katie Elder, Didion realizou um sonho infantil e uma fantasia adolescente: conhecer John Wayne em pessoa. E os leitores da revista The American Scholar ganharam um ensaio revelador, o segundo da coletânea. Não conversaram sobre política. Ainda bem. Em 1965, Didion ainda fechava com os Republicanos, uma tradição de família. Difícil imaginá-la votando no reacionário Barry Goldwater, mas ela votou, nas eleições de 1964, vencidas pelo democrata Lyndon Johnson.

Não se fala disso em Rastejando Até Belém. Nem de suas atividades como crítica de cinema, iniciadas em 1964, na revista Vogue. Sontag também escreveu em revista mundanas numa boa. Ambas tornaram-se igualmente célebres no mundo da moda.  Céline, a sofisticada marca de  artigos de couro e prêt-à-porter francesa, fez de Didion sua garota propaganda, quando ela há muito já deixara de ser aquela impassível moça, naturalmente fashion e de óculos escuros, ao volante de um Corvette, sempre com um cigarro entre os dedos.

“Gosto de filmes e os abordo com uma tolerância tão afetuosa que pode lhes parecer simplória”, confessou numa das primeiras e pequenas resenhas sobre cinema para a Vogue. “Para que prenda minha atenção, um filme não precisa ser um clássico de seu gênero, nem precisa ser A Aventura, Rio Vermelho, Casablanca ou Cidadão Kane; peço apenas que tenha bons momentos”.
Detestou A Pantera Cor-de-rosa, tinha simpatia por aquelas comediotas de jovens surfistas californianos, tão em voga na primeira metade da década de 1960. Como alternava a coluna com outro crítico, perdeu diversos filmes de maior envergdura para o colega, e, um pouco em função disso, entediou-se e foi buscar outro pouso para textos mais amplos, variados e consistentes.

Encontrou-o na revista Saturday Evening Post; mas o que ela mais desejava (cobrir a guerra no Vietnã) nem na New York Review of Books conseguiu. De todo modo, Robert Silvers, editor da NYReview, despachou-a para as pequenas guerras, também patrocinadas pelo governo americano, no Caribe. Foi aí que a californiana confessadamente “fraca, preguiçosa e despreparada para qualquer coisa além daquilo que sou paga para fazer, que é sentar sozinha e teclar com um único dedo”, desabrochou por completo. E deu uma guinada de 180º para a esquerda.

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Clássico mostra por que Joan Didion foi pioneira do 'novo jornalismo'
'Rastejando Até Belém', que enfim sai no Brasil após meio século, põe autora ao lado de Gay Talese e Norman Mailer


André Barcinski


Levou mais de meio século, mas um dos livros clássicos do chamado “novo jornalismo” foi publicado no Brasil – “Rastejando Até Belém”, de Joan Didion.

Lançado originalmente em 1968, o livro reúne artigos publicados em revistas americanas entre 1965 e 1967 e é considerado um precursor do que o escritor Tom Wolfe batizaria, pouco depois, de “novo jornalismo” –textos de não ficção em que o autor, usando técnicas literárias da ficção, se põe no centro da narrativa e traz uma perspectiva pessoal sobre fatos jornalísticos.
No grupo de pioneiros do estilo, segundo Wolfe, Didion estaria ao lado de Norman Mailer, Gay Talese e Hunter Thompson, entre outros.

                                    Joan Didion em sua casa, nos Estados Unidos - Julian Wasser/Divulgação

A divisão de capítulos de “Rastejando Até Belém” já evidencia essa mistura entre jornalismo e crônica pessoal. O livro é dividido em três partes. “Estilos de Vida na Terra do Ouro” traz reportagens sobre diversos aspectos da vida na Calífórnia, onde Didion nasceu e morou durante a maior parte da vida; “Pessoais” é uma coleção de reminiscências; e a terceira parte, “Sete Lugares da Mente”, reúne ensaios autobiográficos.

Um dos textos mais famosos de Didion dá nome ao livro. “Rastejando Até Belém”, reportagem sobre jovens hippies vivendo em San Francisco em 1967. Naquele ano, o mundo via a Califórnia como um lugar dourado e feliz, um oásis de liberdade e centro de uma revolução contracultural movida a LSD.
Didion mostrou que a realidade era outra. Ela entrevistou jovens e visitou as casas comunitárias —e infectas— onde moravam.

Viu crianças de cinco anos chapadas de ácido, famílias despedaçadas, mortos-vivos pedindo esmola para se drogar, enfim, viu a verdade por trás da colorida fachada da utopia psicodélica. “Adolescentes vagavam sem rumo de uma cidade destroçada para outra, tentando se livrar tanto do passado quanto do futuro, como cobras que trocam de pele; garotos a quem ninguém havia ensinado, e agora já não iam aprender, os jogos que mantinham a sociedade coesa”, ela escreve.

No prefácio, Didion faz uma confissão surpreendente para uma profissional da não ficção. “Sou ruim em entrevistar pessoas.” De fato, o que mais cativa em “Rastejando Até Belém” não são confissões de entrevistados ou grandes revelações investigativas, mas a prosa afiada e fluida de Didion (preservada na ótima tradução de Maria Cecilia Brandi) e a sensibilidade da autora para descrever pessoas e situações.
Um dos textos mais comoventes do livro é o primeiro, “Sonhadores do Sonho Dourado”, sobre uma mulher acusada de tramar a morte do marido.

A forma como Didion descreve a vida suburbana no vale de San Bernardino é uma paulada. “A terra dos penteados volumosos, das calças cápri e das meninas para quem a grande promessa de vida se resume a um vestido de noiva branco de cauda curta e a dar à luz uma Kimberly ou uma Sherry ou uma Debbi e depois divorciar-se em Tijuana e retomar o curso de cabeleireira.”

Mas nem tudo é melancolia. Um perfil de John Wayne é surpreendentemente carinhoso com o astro, então com 57 anos e filmando, no México, seu 165º filme, “Os Filhos de Katie Elder”.
A descrição dos papos entre Wayne e seus comparsas, como o cineasta Henry Hathaway e o ator e cantor Dean Martin, é divertida e revela como as coisas funcionavam em Hollywood nos anos 1960, mas sem perder a ternura por Wayne, ídolo de incontáveis matinês que Didion assistira nos anos 1940.

“Rastejando Até Belém” foi o primeiro de mais de uma dúzia de livros de não ficção de Joan Didion, autora também de romances e roteiros de cinema. Para quem quiser conhecer mais sobre a escritora, recomendo o documentário “Joan Didion: The Center Will Not Hold”, dirigido pelo sobrinho, o ator Griffin Dunne. Está disponível na Netflix e traz entrevistas recentes com Didion, que hoje tem 86 anos e vive em Nova York.

André Barcinski, 19/02/2021, Folha de São Paulo


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