“Não foi a privatização que ampliou acesso à telefonia, foi a tecnologia”
Duas décadas após privatização da Telebrás, Brasil tem uma das tarifas mais caras do mundo
Wallace Oliveira Brasil de Fato, 07/03/2019
Muitas promessas acompanharam a privatização do setor de telecomunicações no Brasil, no final dos anos 90: livre concorrência, ampliação do acesso aos serviços, barateamento das tarifas, redução da dívida pública, avanço tecnológico e um serviço melhor. Quem era contra sustentava que o fim do monopólio estatal não podia ser confundido com a entrega do setor para empresas privadas.
Passados 20 anos, dados da Anatel apontam que 2.221 municípios brasileiros possuem conexão de banda larga fixa limitada (menos de 5 Mbps) e 2.345 não possuem rede de transporte com fibra óptica. São cada vez mais frequentes as reclamações pelos serviços prestados na telefonia, enquanto temos, no Brasil, uma das tarifas mais caras do mundo. Será mesmo que a venda da Telebrás foi o sucesso que tanto se propagandeia no meio liberal?
Para discutir o assunto, o Brasil de Fato entrevistou o economista João Batista Santiago. Para ele, o avanço tecnológico e os investimentos públicos produziram benefícios que depois foram apropriados pelas empresas do setor privado, sem grandes retornos para a população e o desenvolvimento nacional.
Brasil de Fato - Qual era a situação do setor no Brasil nos anos 90? Por que a privatização interessava às empresas que participaram do leilão de 1998?
João Batista Santiago - Em 1991, pouco antes do impeachment do ex-presidente [atual senador] Fernando Collor (PRN), o Banco Mundial pressionava o governo brasileiro a assinar um acordo de privatização do sistema de telecomunicações. A privatização ocorreu sete anos depois. Havia ocorrido uma queda nos custos de instalação, por conta do avanço tecnológico da década de 80, especialmente com o advento da telemática (combinação entre telecomunicações e informática).
Na década de 1970, instalar um telefone na casa de uma pessoa, em BH, custava 5 mil dólares. Em 1998, passou a custar 20 dólares. Os mais velhos devem lembrar que, em determinada época, as pessoas deixaram de comprar telefone, passaram a alugar. Depois, até a tarifa básica desapareceu e as pessoas só pagavam por chamada.
Ora, a diminuição de custos aconteceu pelos investimentos que foram feitos no Brasil nos anos anteriores. O sistema Telebrás era altamente eficiente. Depois das quatro grandes gigantescas dos Estados Unidos, era uma das melhores empresas do mundo. Em 1998, a Telebrás deu mais lucro que a Coca-Cola internacional. Tinha problemas? Sim. No Rio de Janeiro, a Telerj era fraca, pois o regime militar abandonou o estado em termos de investimentos em telecomunicações.
O sistema Telebrás tinha empresas muito lucrativas, especialmente Telemig, Telesp e Teleparaná, algumas menores no Nordeste, que também davam lucro. Não podemos esquecer a Embratel, que foi a primeira empresa criada para ligações internacionais e longas distâncias, com grandes radiotransmissores.
A Telebrás deu em 1998 um lucro de 2 bilhões de dólares e foi vendida por 19 bi. Estamos falando de empresas que davam muito lucro, por terem uma gestão muito fiscalizada pelo Tribunal de Contas, que pagavam muitos impostos e muitos dividendos para a União.
Eu trabalhava no setor de estudos de viabilidade econômica de projetos. Como estatal, o estudo de viabilidade partia de rentabilidade de 12% ao ano. Após a privatização, eles só aprovavam projetos com rentabilidade acima de 24% ao ano. Como você tem uma rentabilidade de 24% em Santana do Garambel, em Lagoa Dourada, em Raposos? Então, a empresa muda o foco, de quem pensava que tinha um déficit de acompanhamento, com necessidade de alguma forma de subsídio cruzado para expansão, para uma empresa cujo foco exclusivo é o lucro.
Tínhamos uma empresa altamente lucrativa, com desenvolvimento tecnológico nacional para construção de fibra ótica, centrais telefônicas digitais e investimento social. Quem começou a arrebentar esse centro de pesquisas para o desenvolvimento das telecomunicações foi o governo Collor, em 1991.
Então, houve retirada de investimentos para viabilizar as privatizações?
O que houve, na verdade, foi redução de custos, especialmente trabalhistas, terceirização, precarização do trabalho, com contratação de empreiteiras, planos de demissão voluntária e incentivada, por um lado, e muitos investimentos, embarcando tecnologia, aumento de investimentos públicos, para depois privatizar a preço de banana. Arrumaram a casa, deixando-a cada vez mais eficiente para vender. Na Lei Geral de Comunicações, em 1997, havia um plano com metas para a telefonia fixa cumprir, de oito a dez anos. A Telebrás já tinha feito, em alguns lugares, entre 60% e 80% dos investimentos em digitalização.
Na privatização, venderam por 19 bi e liberaram empréstimos de 11 bi pelo BNDES, para financiar as empresas. E o ex-ministro Pedro Malan, depois da privatização, tomou medidas para permitir que as empresas descontassem o ágio (diferença entre o valor total das ações e o valor patrimonial) em impostos devidos à União. O governo pegou 11 bilhões de dólares e os devolveu pelo BNDES, além do ágio. Então, não entrou nada para o país na privatização da quinta melhor empresa do mundo no setor.
E as empresas privadas que hoje dominam o setor no Brasil? Elas dependem de recursos públicos?
De financiamento, sim. Recentemente, a Oi estava quebrando e o governo estava prevendo liberar outro empréstimo gigantesco para a Andrade Gutierrez, que foi quem acabou ficando com o controle acionário da Oi.
A telecomunicação fixa entrou em processo de decadência, pois, hoje, depende-se muito mais da internet. A NET é da Globo. A Telemig já tinha passado seus próprios cabos para competir com a NET, só que, na época, foi baixado um decreto proibindo as empresas de telecomunicações locais de criarem suas próprias empresas de transmissão de dados e TV a cabo. Tudo isso para impedir uma empresa estatal que tinha grande eficiência de competir no mercado com as privadas – e eu duvido que as privadas conseguissem fazer frente a ela.
Os defensores das privatizações alegam que o acesso à telefonia no Brasil foi ampliado. Ficou mais rápido e barato adquirir uma linha. Isso é, de fato, consequência das privatizações?
Não é questão de ser privado ou estatal, foi a tecnologia. Isso graças ao que aconteceu na década de 80, com o desenvolvimento da telemática, dos softwares, dos novos hardwares, a tecnologia digital, causando uma mudança total no sistema de telecomunicações. Bom, se tínhamos capacidade de investimento, capacitação dos trabalhadores e a tecnologia chegou de maneira muito mais barata, passou a ser possível atender de forma muito melhor.
Na década de 90, foram feitos investimentos para que a empresa chegasse onde ela chegou, com o Estado deixando de investir em habitação, saúde, hospitais e com endividamento, a fim de criar redes com milhares de quilômetros de fios e rádios, interligando estações, centrais telefônicas nas cidades. A telefonia celular não teve um plano. Os governos estaduais, para levar as antenas para o interior, tiveram que gastar recursos públicos.
Havia nos celulares a questão da transferência de tecnologia e produção no Brasil de telefones. Hoje, o Brasil é um grande montador, mas não tem pesquisa em desenvolvimento de tecnologia. O Brasil é um grande importador de tudo.
E o que a privatização da Telebrás mudou na vida dos trabalhadores do setor? E na economia brasileira?
A empresa sai da década de 1980 com 7 mil trabalhadores diretos para chegar aos anos 2000 com cerca de 1,5 mil trabalhadores diretos, mais 5 mil indiretos, terceirizados ou quarteirizados.
Em 1999, um ano após a privatização, houve um incêndio na Praça Milton Campos, em BH. Eles já haviam demitido os trabalhadores diretos. Acionaram um rapaz que não conhecia o tipo de chama desses incêndios em centrais digitais. Ele entrou na estação, fechou a porta, não conseguiu enxergar o fogo e morreu queimado.
Houve precarização do trabalho nos postes. Os trabalhadores da Telefónica, que comprou a Telesp, subiam no poste e as pessoas jogavam pedras neles. Eram trabalhadores sem qualificação profissional e, quando iam ligar um telefone, desligavam os outros.
Quando o ex-presidente Itamar Franco (PMDB) entregou o governo federal para Fernando Henrique Cardoso (PSDB), a carga tributária no Brasil era de 25% do PIB. Quando este entregou para Lula (PT), era 36%. Porém, o endividamento do Estado brasileiro saltou. Com todas as privatizações feitas com a desculpa de diminuir a dívida pública, o endividamento só aumentou. Só diminuiu no governo Lula, quando o PIB passou a crescer mais do que a dívida.
Como você avalia a regulação do setor pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel)?
Esse modelo partiu da Suécia e a experiência foi para outros países. Aqui no Brasil, ele não funcionou. A relação que se tem entre empresas privadas e o Estado brasileiro é muito forte. No livro de presença da Anatel, quem mais entrava para visitar os diretores e conselheiros eram empresas, muito mais do que clientes das empresas. Para você fazer uma reclamação e isso dar resultado, é péssimo.
Nos primeiros anos, não foram feitos concursos públicos para fiscalização. Quem fiscalizava eram engenheiros eletricistas contratados pela agência. Eles chegavam a uma empresa com a carteira da Anatel para fazer a fiscalização. Se o cara multasse a empresa, o que acontecia com o nome dele no mercado? E o cara não tinha estabilidade nenhuma, quando acabasse o contrato dele na agência, onde ele iria trabalhar? Empresas criavam listas sujas com nomes das pessoas e essas pessoas eram constrangidas, ao fazerem fiscalização.
Criaram o conselho de clientes. Na época FHC, o presidente do conselho de clientes, nomeado pelo presidente da República, era dono de uma empresa que prestava serviços de telecomunicações para o governo. Então, estava tudo dominado.
A ideia da regulação parte de uma teoria da neutralidade, supondo que se pode distribuir bem estar, não deixando que o poder das empresas faça o preço subir demais ou a qualidade cair. Ora, a qualidade das fixas caiu violentamente e, na telefonia celular, o Brasil tem uma das tarifas mais caras do mundo e áreas de abrangência repletas de falhas.
Não houve por parte da Anatel nenhuma meta para esse setor. Quando eu trabalhei na Telemig, em 1998, o setor de tecnologia da empresa já previa o fim do telefone fixo dentro das casas. Hoje, quase ninguém tem telefone fixo em casa. As pessoas falam mais pelo WhatsApp do que pelo telefone fixo.
O avanço tecnológico que veio de fora não foi apropriado pelas empresas que exploram telecomunicações no Brasil, o serviço é de péssima qualidade. Embora nós tenhamos 225 milhões de chips ativos, isso não quer dizer que tenhamos uma área de abrangência razoável. Ande com o celular falando dentro do metrô, do ônibus. Há vários buracos. Se isso acontece, é porque não houve o investimento necessário.
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