A desigualdade de renda no Brasil é alta. E vai piorar
Marcelo Roubicek, 11/05/2020, Nexo Jornal
Números do IBGE destrincham as disparidades nos rendimentos dos brasileiros em 2019. Economistas ouvidos pelo ‘Nexo’ apontam por que as diferenças devem se aprofundar na crise do novo coronavírus
O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) publicou em 6 de maio números que retratam a desigualdade de renda no Brasil em 2019. Por meio dos dados, é possível entender como se manifestam as diferenças nos rendimentos dos brasileiros em termos de gênero, cor ou raça, região do país e grau de instrução.
Os números foram obtidos pela realização da Pnad Contínua – a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. A cada três meses, o instituto visita 211 mil domicílios de todo o território nacional e coleta informações sobre trabalho e renda, entre outros itens. Em 2020, em meio à pandemia, a coleta de informações está sendo feita por telefone.
A Pnad tem uma versão divulgada mensalmente, mas os dados que destrincham os rendimentos e que permitem identificar diferentes desigualdades na renda são publicados com frequência anual. Abaixo, o Nexo traz cinco recortes diferentes sobre a desigualdade de renda no Brasil em 2019, conforme registrado pelos dados do IBGE.
A desigualdade por faixa de renda
Os números do IBGE mostram o tamanho da diferença dos rendimentos entre aqueles que recebem mais e os que recebem menos a cada mês. Dividindo os brasileiros em dez faixas (chamadas “decis”) – começando pelos 10% que menos recebem e indo até os 10% que mais ganham –, a diferença que aparece é significativa.
Na média, quem está no topo recebe mais de 36 vezes do que ganha quem está na parte de baixo. Os números ainda mostram que os 10% com maior renda ficam com 43% de todos os rendimentos do trabalho do país.
Olhando com mais detalhes para os extremos da renda do trabalho no Brasil, a diferença fica ainda maior. O 1% com maior rendimento mensal ganha, em média, 180 vezes o que ganha a pessoa que está na parcela dos 5% com menor renda.
R$ 160 é o que ganha por mês uma pessoa que está entre os 5% com menor rendimento habitual do trabalho
R$ 28.659 é o que ganha por mês uma pessoa que está no 1% com maior rendimento habitual do trabalho
O recorte por cor ou raça
Em 2019, não houve alteração no quadro de desigualdade de renda sob a ótica da cor ou raça, que se manteve expressiva. Assim como em todos os anos desde 2012, que marca o início da série do IBGE, a população preta e a população parda receberam valores médios praticamente idênticos pelo trabalho do mês. Já a população branca, na média, recebeu consideravelmente mais.
O gráfico acima mostra a evolução recente da desigualdade de renda pelo recorte da cor e raça. Em todos esses anos, uma pessoa branca recebeu, em média, entre 70% e 80% mais que uma pessoa preta ou parda em um mês. Em 2019, essa diferença significou uma renda do trabalho maior em cerca de R$ 1.300 a cada mês.
O recorte por gênero
O IBGE também mostrou nos dados como a desigualdade de renda entre homens e mulheres no Brasil aumentou em 2019 em relação a 2018. O rendimento médio mensal do trabalho de um homem em 2019 ficou praticamente estável em relação ao ano anterior, subindo de R$ 2.551 para R$ 2.555. Já o rendimento médio da mulher caiu de R$ 2.010 em 2018 para R$ 1.985 em 2019.
Desigualdade entre homens e mulheres
Olhando desde 2012, a diferença entre o que ganham homens e mulheres caiu. Em 2012, um homem ganhava em média 35,8% a mais que uma mulher; em 2018, essa diferença havia caído para 26,9%. Mas em 2019, voltou a aumentar, e os homens receberam em média 28,7% a mais que as mulheres naquele ano.
Grau de instrução
A desigualdade de renda aparece também no recorte da escolaridade (ou grau de instrução) dos brasileiros. Em 2019, o rendimento mensal de quem tem ensino superior completo foi consideravelmente maior que de outros níveis de escolaridade.
O gráfico acima mostra o tamanho da distância entre quanto ganhou, em média, alguém com diploma de ensino superior em relação aos outros níveis de instrução. Mas essa discrepância com relação aos grupos com menor escolaridade vem caindo ao longo dos anos. Se em 2012 uma pessoa com ensino superior completo ganhava 6,4 vezes o que ganhava uma pessoa sem instrução, esse valor caiu para 5,6 em 2019.
A pesquisa mostra que, em 2019, a média do quanto recebeu quem tem fundamental completo foi maior do que a de quem não terminou o ensino médio. O dado parece contraintuitivo, mas não é uma novidade de 2019 – em todos os outros anos desde o início da série do IBGE em 2012 ocorreu o mesmo fenômeno.
A questão regional
O Brasil é um país onde há disparidades entre os rendimentos nas diferentes regiões. Nos números do IBGE, esse fenômeno apareceu nos rendimentos totais, que contabilizam a renda do trabalho e de outras fontes, tais como aposentadoria, aluguéis, pensões e benefícios como o Bolsa Família.
Segundo os números do instituto, Sudeste, Centro-Oeste e Sul mantiveram uma distância considerável nos rendimentos mensais em relação a Nordeste e Norte. Se Sul e Centro-Oeste registraram rendimentos médios mensais muito próximos de R$ 2.500, isso significou cerca de R$ 900 a mais do que a renda média no Norte e quase R$ 1.000 a mais do que a renda média no Nordeste.
Em 2019, o rendimento médio nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste permaneceram praticamente estáveis em relação a 2018. No Nordeste, houve crescimento de 3,1% nesse período; no Norte, houve queda de 6,4% em relação ao ano anterior.
A desigualdade em 2020
Ainda não há dados que mostrem exatamente como caminha a desigualdade de renda no Brasil em 2020. Mas perspectiva para este ano é que o Brasil registre uma das piores crises econômicas de sua história – se não a pior. Isso porque a pandemia do novo coronavírus está fazendo com que as pessoas circulem menos nas ruas, afetando o consumo e levando empresas a quebrarem ou reduzirem os quadros de funcionários para permanecer de pé.
Diante disso, o Nexo conversou com três economistas para entender como a pandemia deve afetar o quadro geral da desigualdade no país.
Juliana Inhasz, professora de economia do Insper
Guilherme Mello, professor de economia da Unicamp
Renan Pieri, professor de economia da FGV (Fundação Getulio Vargas)
Como a crise da pandemia pode impactar a desigualdade de renda no Brasil?
Juliana Inhasz: A crise que vivemos hoje com a pandemia pode impactar bastante a distribuição de renda; primeiro porque ela afeta as pessoas de forma muito diferente. Quando falamos de pessoas que estão sendo impactadas por essa pandemia, estamos falando que tanto o pequeno quanto o grande empresário estão sendo impactados. Mas os pequenos empresários no geral têm mecanismos de proteção muito menores do que os grandes.
Há uma outra característica que é o fato de que, hoje, quem consegue se manter minimamente dentro dessa situação são no geral as pessoas que têm trabalhos formais, que contam com algum tipo de segurança que vem da formalização no mercado de trabalho. É óbvio: nem todos os formais estão de alguma forma seguros. Mas, eventualmente, se pessoas que estão no mercado formal ficarem desempregadas, vão ter como acionar o seguro-desemprego, fundo de garantia – vão ter algum tipo de colchão de proteção. Isso não acontece com os trabalhadores informais, que são uma parte significativa hoje da população brasileira.
E esses trabalhadores informais, no geral, têm uma qualificação menor. Estamos muitas vezes falando da manicure ou da empregada doméstica, que moram nas periferias e que precisam dessa renda para sobreviver e alimentar sua família. Também utilizam essa renda em negócios na região onde moram. As pessoas vão ficar desempregadas, e uma parte da renda que antes iria para essas periferias não vai estar mais sendo canalizada para isso. É uma parte do fluxo de renda que é interrompido.
São regiões que já eram marginalizadas e que podem ficar ainda mais marginalizadas. Isso pode sim acirrar bastante a distribuição de renda, piorar bastante a desigualdade de renda no Brasil. A gente vai ter uma sociedade obviamente muito mais desigual.
Guilherme Mello: Para entender o impacto econômico da crise do coronavírus na desigualdade de renda, é importante ter um cenário de como vinha a evolução da desigualdade no Brasil nos últimos anos. O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, seja do ponto de vista da desigualdade de renda, seja do ponto de vista da desigualdade de riqueza. O cenário não é só de concentração, é de polarização de renda. Isso é estrutural no Brasil, tem a ver com nossa formação econômica e social.
Isso aparentemente chegou a mudar um pouco nos anos 2000 e também no início dos anos 2010. No entanto, as pesquisas mais recentes mostram que esses ganhos dos assalariados não foram suficientes para mexer tanto na estrutura polarizada de renda, porque os ganhos dos mais ricos com os seus estoques de riqueza – sejam imobiliários ou de títulos da dívida pública ou título privados – equipararam ou até superaram os ganhos dos assalariados. A partir de 2015, a concentração de renda volta a se agravar em todas suas medidas, até pelo menos 2018. Isso também vem junto não só com o aumento do desemprego e da precarização, mas da pobreza e da miséria. Esse era o cenário brasileiro quando chegou agora a crise econômica decorrente do coronavírus.
Essa crise tende, como na maioria das crises, a agravar as desigualdades de renda, que já vinham crescendo nos últimos anos. Isso ocorre porque a crise afeta de maneira desigual as diferentes classes sociais e classes de renda. Só do ponto de vista sanitário, por exemplo, já é possível perceber que a maioria das mortes e dos casos graves se concentram na população mais pobre, que mora na periferia das grandes cidades, e nos trabalhadores negros.
E, também do ponto de vista das rendas do trabalho, essas pessoas são mais afetadas, porque geralmente são trabalhadores precários, e a paralisação econômica afeta diretamente as suas atividades. Eles não têm nenhuma garantia de emprego e salário como teria um trabalhador formal ou um trabalhador do setor público. Isso vai aprofundar a desigualdade de renda que já observávamos nos últimos anos.
Renan Pieri: Nós já tivemos períodos na história em que o crescimento econômico esteve relacionado à queda da desigualdade ou até aumento da desigualdade. Olhando para os anos 1960 e 1970, o crescimento econômico estava mais associado ao aumento da desigualdade. Nesse último ciclo longo de crescimento do começo dos anos 2000, tivemos um crescimento econômico associado a uma redução da desigualdade. Então, explicar desigualdade é sempre difícil: depende muito das fontes do crescimento econômico, e não do crescimento econômico em si.
O que aprendemos dessa primeira década do século sobre crescimento e desigualdade é que se o emprego estiver relacionado (como esteve) ao aumento do número de vagas formais – que em geral pagam melhor e dão mais estabilidade ao trabalhador – e ao aumento da escolaridade média, você pode sim ter um movimento de redução da desigualdade social com crescimento econômico.
Estou dizendo isso porque esse novo ciclo da crise da pandemia possivelmente vai reduzir o crescimento econômico; não é óbvio, a princípio, se haverá um aumento da desigualdade por conta disso. Mas já é possível prever e analisar que muitas vagas formais vão ser perdidas. Também é possível verificar que temos uma dificuldade muito grande de boa parte dos alunos – sobretudo de escolas públicas – de se manterem estudando.
Juntando essas duas coisas – uma dificuldade maior dos mais pobres de ter acesso à boa qualidade de educação, e as vagas formais desaparecendo do mercado – é possível e provável que tenhamos um aumento da desigualdade nos próximos anos. A gente já vinha de um movimento de aumento da desigualdade desde a crise de 2015-16; observamos que conforme os empregos voltaram a acontecer, ainda que de forma lenta, a maior parte desses empregos era informal. São empregos que pagam menos e dão menos segurança para o trabalhador. Então nesse próximo ciclo de crise, é possível que o grau de informalidade aumente ainda mais. E menos formalização, menos acesso à educação: mais desigualdade.
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