segunda-feira, 9 de novembro de 2020

O inferno das mulheres

Uma brasileira vai às ruas na Polônia pelo direito ao aborto num dos países mais católicos do mundo

LOUISE YELYNN, 05/11/2020, piaui

No dia 22 de outubro, o Tribunal Constitucional da Polônia acatou um pedido do Parlamento e decidiu que o aborto motivado por má-formação fetal agride a Constituição. Estima-se que nove entre dez interrupções legais de gravidez no país têm essa justificativa. A resolução da corte vem levando centenas de milhares de poloneses a protestar nas ruas. Os manifestantes não apenas pedem a revogação da decisão como criticam o Lei e Justiça, partido ultranacionalista que controla o Parlamento desde 2015 e pressiona o tribunal a endurecer a legislação antiaborto. A brasileira Louise Yelynn, moradora da Polônia há dois anos, narra como têm sido os protestos de que participa.

INTERVENÇÃO DE PAULA CARDOSO SOBRE FOTOS DE LOUISE YELYNN E JESSICA LOURENÇO

Em depoimento a Luigi Mazza

Recebi a péssima notícia na quinta-feira, 22 de outubro. Desde o começo do ano, dizia-se que o Tribunal Constitucional da Polônia iria endurecer ainda mais as leis contra o aborto, mas a decisão foi sendo adiada por causa da pandemia. Em abril, quando haveria a votação na corte, algumas pessoas foram às ruas fazer o que se chama aqui de ciche protesty – protestos silenciosos ou individuais. Eram poucos manifestantes, em silêncio, segurando cartazes nas praças. Isso chamou a minha atenção, e resolvi acompanhar mais atentamente o noticiário sobre o tema. O tribunal adiou a votação para junho, mas quando junho chegou o assunto foi postergado de novo. E aí veio essa bomba em outubro. No dia 22, o tribunal acatou um pedido do Parlamento e decidiu proibir o aborto em caso de má-formação grave do feto, alegando que o procedimento fere a Constituição. Essa é a causa mais comum de aborto legal na Polônia. A lei só permite abortar em outras três situações: quando há risco de morte para a mãe, ou quando a gravidez é fruto de estupro ou incesto.

Eu fiquei preocupada. Mesmo sendo estrangeira e não podendo votar, moro na Polônia, então a lei vale para mim também. Tenho 27 anos e nasci em Jaguariaíva, no interior do Paraná. Desde novembro de 2018, vivo com meu marido, Rafael, em Breslávia – ou Wrocław, em polonês –, uma cidade grande, com mais de 600 mil habitantes. A gente se mudou para cá, na companhia de três cães vira-latas, porque meu marido é analista de sistemas e conseguiu um emprego numa empresa francesa de TI (Tecnologia da Informação). Hoje ele não trabalha mais lá. Transferiu-se para um banco suíço.
Sou cabeleireira. 

Durante a pandemia, parei de atender os clientes e resolvi me dedicar a estudar polonês, que eu apenas arranhava. Meus antepassados mais próximos vieram de Portugal e da Itália, mas tenho tataravós alemães. Descobri há pouco tempo que eles nasceram justamente em Breslávia, quando a cidade pertencia à Alemanha e se chamava Breslau. Acompanho as notícias daqui principalmente pelos jornais Gazeta Wrocławska, todo escrito no idioma local, e Wrocław Uncut, que é em inglês. De uns tempos para cá, também comecei a me informar por meio de páginas feministas nas redes sociais, como a Strajk Kobiet (greve das mulheres). Foi sobretudo graças a elas que fiquei sabendo dos protestos.

Naquela quinta-feira de outubro, assim que o tribunal tomou a decisão, alguns grupos mais engajados protestaram diante do Parlamento, em Varsóvia. Teve muito confronto. A polícia foi chamada para proteger a Casa e atirou bombas de gás lacrimogêneo nos manifestantes. Os protestos se espalharam por outras sessenta cidades no dia seguinte. Eu estava bem receosa de ir e enrolei para sair de casa na sexta-feira. Tinha medo da polícia. Além do mais, sou imigrante e ainda não consegui minha permissão de residência temporária, então não convém vacilar. Mas, quando uma amiga brasileira me mandou mensagem dizendo que se encontrava no ato de Breslávia, resolvi arriscar. Pensei: “Vou, nem que seja só para fazer número.”

Não há uma estimativa de quantas pessoas compareceram ao protesto na cidade. Só sei que as ruas do Centro lotaram. Eu chutaria que eram pelo menos mil ativistas, muito mais gente do que me lembro de ter visto durante a Parada Gay, no verão passado. O movimento feminista que organizou o ato criou um evento no Facebook, mas, por segurança, só divulgou o local do protesto meia hora antes do início. Quem não pudesse ir – pediram as organizadoras – deveria botar para tocar bem alto, dentro de casa, a Marcha Imperial, do filme Star Wars: O Império Contra-Ataca, que virou uma espécie de hino das manifestações. Uma das frases que mais têm sido gritadas nas ruas é “to jest wojna” (isto é guerra). Também se ouve muito “piekło kobiet” (inferno das mulheres). Como o governo tornou a vida das mulheres um inferno, a ideia é que elas agora infernizem o governo.

Em Breslávia, por sorte, o prefeito, Jacek Sutryk, faz oposição ao PiS, o partido ultranacionalista Lei e Justiça, que comanda a Polônia desde 2015 e apoia o veto ao aborto. Não à toa, as manifestações foram pacíficas por aqui. Inclusive, quando o protesto estava acabando, um dos policiais pediu licença para usar um megafone e agradeceu aos manifestantes por terem feito uma caminhada ordeira. As pessoas aplaudiram. Como brasileiros, não estamos acostumados a ver esse tipo de coisa. Em Varsóvia, por outro lado, houve confrontos.

Nos dias 24 e 25, sábado e domingo, ocorreram alguns pequenos protestos isolados. Na segunda-feira, dia 26, as manifestações voltaram a crescer e se disseminaram por 150 cidades. Surgiram, então, os blokadas – bloqueios organizados pelos ativistas para fechar a região central dos municípios. O número de manifestantes triplicou. Uma amiga polonesa se encontrava no mesmo protesto que eu, mas não consegui achá-la, de tão cheia que estava a rua. Não pensei que haveria tanta gente, porque no sábado a Polônia havia baixado restrições mais rigorosas para combater o coronavírus. Eu mesma considerei não ir. Calculo que, naquela segunda-feira, andamos por cerca de 5 km. Foi tudo bem organizadinho: havia crianças e até alguns idosos em cadeira de rodas. Não vi ninguém sem máscara. Em quase todos os prédios pelos quais passávamos, as janelas estavam decoradas com guarda-chuvas pretos ou raios vermelhos. Os guarda-chuvas são um símbolo da luta pelo direito ao aborto desde 2016. 

Naquele ano, o governo do PiS tentou aprovar um projeto que proibia completamente a interrupção da gravidez, mesmo em casos de estupro ou de risco para a mãe. Milhares de mulheres saíram às ruas em protesto, todas vestidas de preto. Como isso aconteceu numa semana muito chuvosa, as fotos mostravam um mar de guarda-chuvas. Já o raio vermelho é o emblema do movimento feminista daqui. O prefeito de Breslávia também foi à manifestação para apoiar a campanha. Nesse dia, apareceram pela primeira vez algumas pessoas que se opunham ao ato, mas eram pouquíssimas – no máximo, trinta. Elas se concentraram em frente às igrejas da cidade e foram protegidas por policiais. Como o protesto se espalhava por várias ruas do Centro, aos poucos me juntei a um grupo que caminhava numa direção próxima à da minha casa. Paramos diante da Catedral de Breslávia. A previsão era de que o protesto durasse das 18 às 19 horas. Mas já passava das 21 horas e eu ainda estava na rua. 

Esse momento em frente à catedral foi bem emocionante. O pessoal subiu em monumentos e, lá do alto, ergueu cartazes gigantes. Alguns ativistas dispararam sinalizadores, que soltavam fumaça colorida. Parte dos manifestantes berrava palavras de ordem em inglês, como “revolution is female” (a revolução é feminina), já que há muitos estrangeiros na cidade. Eu não entendo tudo o que dizem em polonês, mas quando chego em casa procuro saber para usar as frases no próximo ato.

Na quarta-feira, dia 28, eclodiu a greve geral das mulheres. A iniciativa recebeu o título de Nie Idziemy do Pracy (não vamos trabalhar). Foi a maior ação até agora. O protesto levou uns 430 mil manifestantes às ruas de 410 cidades e vilarejos. Em Breslávia, primeiro houve um ato estudantil. Depois, às 18 horas, teve início a manifestação geral. Muitos conhecidos me contaram que seus chefes não foram trabalhar em apoio à greve. A verdade é que nós, estrangeiros, não esperávamos isso dos poloneses. Desde que cheguei aqui, tenho a sensação de que esse é um país católico e muito conservador. Mas, de repente, você vai para a rua e encontra tanta gente… Tem sido legal presenciar essa mobilização. Tenho visto mais homens do que via em protestos feministas no Brasil.

Embora numerosas, as pessoas mantiveram um bom distanciamento entre si. Não tinha gente se apertando. Alguns diziam “foda-se o PiS” e “a guerra foi declarada”. Os poloneses também usam muito a figura do pato amarelo para gozar de Jarosław Kaczyński, o presidente do partido. Isso porque as primeiras letras de Kaczyński remetem à palavra pato em polonês: kaczka. Além dos guarda-chuvas e raios vermelhos, inúmeros manifestantes levaram cabides de arame para o protesto. Era uma referência ao fato de que várias mulheres morreram ao tentar fazer abortos caseiros com arame.
Não vi brigas. Mas, assim que cheguei em casa, por volta das 21h30, li uma reportagem do Gazeta Wyborcza dizendo que ativistas avistaram dezenas de homens mascarados. Os caras portavam facas e atacavam manifestantes. Fiquei bem assustada. Num protesto, é impossível saber se alguém está vindo na nossa direção com uma arma.

O movimento feminista criou uma comissão para debater diretamente com o Parlamento questões relativas tanto às mulheres quanto aos imigrantes e à comunidade LGBTQ+ (aqui muita gente acredita que a homossexualidade é uma ideologia). Essa comissão exigiu que os parlamentares revogassem a proibição do aborto até o último dia 28. Nada aconteceu. Na sexta-feira, dia 30, cerca de 100 mil manifestantes protestaram em Varsóvia. Pessoas de diversas cidades seguiram juntas para a capital do país. Os ativistas continuam impondo prazos ao governo. Se o PiS não os acatar, eles persistirão em sair às ruas.

Kaczyński fez um pronunciamento dizendo que os ativistas querem destruir a Polônia. Mas os jornais já afirmam que ele vem perdendo apoio dentro da própria legenda. Alguns correligionários defendem que o político deixe a presidência do PiS. Na minha opinião, estão tentando tirar  Kaczyński para amenizar a situação. Querem tapar o sol com a peneira, afastar o homem e manter o veto ao aborto, entende? Na semana passada, o ministro da Educação avisou que as universidades que suspenderam aulas no dia 28, em apoio à greve das mulheres, poderão ser punidas com corte de verbas.

Receio que a coisa evolua para atos mais violentos, como aconteceu com o Black Lives Matter nos Estados Unidos. As limitações trazidas pela pandemia têm pesado bastante, mas pretendo continuar indo aos protestos. Anteontem, dia 3, os jornais noticiaram que o governo resolveu adiar a publicação da nova lei antiaborto. Numa situação normal, o Parlamento deveria tê-la oficializado na segunda-feira. O governo está ganhando tempo para discutir o assunto, depois de tantos protestos. Não sei no que vai dar. Mas existe uma fagulha de esperança no ar.


LOUISE YELYNN
Formada em estética e cosmética pelo Centro Universitário UniOpet, é cabeleireira. Vive na Polônia desde 2018


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