Diário de um cinemeiro
I Know This Much Is True, TV Mini-Series (2020), Derek Cianfrance
O paraíso deve ser aqui (It must be heaven), 2019, Elia Suleiman
O diabo riu por último (Beat the devil), 1953, John Huston
Tempos modernos (Modern time), 1936, Charles Chaplin
Shock corridor (Paixões que alucinam), 1963, Samuel Fuller
Soberba (The Magnificent Ambersons), 1942, Orson Welles
Deus é mulher e seu nome é Petúnia (Gospod postoi, imeto i' e Petrunija), 2019, Teona Strugar Mitevska, Macedônia
O menino selvagem (L'enfant sauvage), 1970, François Truffaut
O pagador de promessas, Anselmo Duarte, 1962
Intolerância (Intolerance: Love's Struggle Throughout the Ages), 1916, D.W. Griffith
Flores gêmeas (Fiore gemello), 2018, Laura Luchetti
O chifre da cabra (Kozijat rog), 1994, Nikolay Volev, Bulgária
Cão branco (White Dog), 1982, Samuel Fuller
O Enigma de Gaspar Hauser (Jeder für sich und Gott gegen alle), 1974), Werner Herzog
Azali, 2018, Kwabena Gyansah, Suécia
Senhorita Oyo (Oyû-sama), 1951, Kenji Mizoguchi
Wasp network, 2019, Oliver Assayas
O jardim dos Finzi Contini (Il giardino dei Finzi Contini), 1970, Vittorio De Sica
O desprezo (Le mépris), 1963, Jean-Luc Godard
Dente de leite (Babeteeth), 2019, Shannon Murphy - Austrália
The old gard, 2020, Gina Prince-Bythewood
Um de nós morrerá (The Left Handed Gun), 1958, Arthur Penn
Estado zero (Stateless), 2020, Emma Freeman e Jocelyn Moorhouse
15/06/2020
I Know This Much Is True, TV Mini-Series (2020), Derek Cianfrance
'I Know This Much Is True' traz Mark Ruffalo em sua melhor atuação
Na primeira cena do primeiro episódio de "I Know This Much Is True", Thomas, um dos irmãos gêmeos interpretados por Mark Ruffalo, está em uma biblioteca falando alto e chamando a atenção dos outros frequentadores. Até que, para horror de todos, tira uma navalha e decepa sua mão direita. É assim, com passagens angustiantes, que a história dessa ótima série dramática é contada. Talvez o momento não seja ideal para lançar um produto tão sinistro como esse, mas quem der uma chance ao primeiro episódio vai ficar interessado até o fim. O programa é muito bem produzido e mostra cuidado com o cenário, a música, a iluminação, todos sufocantes. De quebra, tem o melhor trabalho de Mark Ruffalo até agora, seja na TV, seja no cinema.
Tecnicamente apurada, "This Much..." conta uma história triste e profunda sobre a batalha de um par de gêmeos idênticos que nasceram em uma família cheia de segredos. No presente, que na série é o fim dos anos 1990, aos 40 e poucos anos, Thomas é esquizofrênico, enquanto Dominick é um homem angustiado que se sente em eterna dívida com o irmão.
A mãe dos dois (Melissa Leo, ótima) nunca revelou a identidade do pai. O padrasto controlador e abusivo pegava no pé de Thomas na infância, pois o considerava fraco. Décadas depois, quando a trama se passa, Dominick tem uma vida estável comparada com a de seu irmão, que vive em uma instituição para doentes mentais. Até que acontece o incidente de abertura da série.
Depois de passar por um hospital, Thomas é levado para um manicômio e tirar o irmão dali vira a obsessão de Dominick. A diferença entre Thomas e Dominick não está só no fato de o ator ter convencido os produtores da série a fazer um intervalo de sete semanas para poder engordar 13 quilos e voltar para interpretar o irmão esquizofrênico.
A atuação dele é tão primorosa que Thomas e Dominick têm vozes diferentes, expressões diversas, posturas próprias. Não há o menor risco de o espectador confundir um e outro, ou, mais grave ainda, perceber que os dois são interpretados pelo mesmo ator. Por mais que a minissérie seja sombria, testemunhar o enorme desafio encarado por Mark Ruffalo é um prazer.
Baseado no romance de 1998 da escritora americana Wally Lamb ("Eu Conheço a Verdade" e "Ela é Desfeita"), o enredo em seis capítulos de mais ou menos uma hora cada um, que a HBO vem botando no ar semanalmente, é narrado por Dominick, o protagonista, em sua saga para libertar o irmão da prisão. Dominick também tem um passado cheio de sofrimento e um casamento desfeito por causa de uma tragédia.
Atualmente, ele tenta explicar para a assistente social da prisão (Rosie O'Donnell, que está muito bem) porque Thomas não deve estar ali, e a partir dessa passagem o personagem principal guia o espectador por memórias do passado. A série viaja por flashbacks até a infância dos irmãos e o tempo em que passaram juntos na universidade, para dar elementos que explicam o que pode ter provocado a circunstância atual.
E o que levou Dominick a se tornar um homem raivoso, circunspecto, que não consegue conviver em paz com sua namorada atual, Joy, uma menina mais nova e animada, papel de Imogen Poots. Ele ainda alimenta a esperança de se reunir com sua ex-mulher, Dessa (Kathryn Hahn, de "Transparent").
A série foi toda escrita e dirigida por Derek Cianfrance ("O Lugar Onde Tudo Termina", "A Luz Entre os Oceanos", "Namorados para Sempre") e captada em filme mesmo, como se fazia antes das câmeras digitais tomarem conta da indústria. Ter só um roteirista e diretor garante consistência ao programa. É de verdade um produto autoral, que se baseia tanto nas ideias de Cianfrance quanto na atuação de Mark Ruffalo.
O resto do elenco também é forte, dá para perceber que tem direção de atores e um bom trabalho de casting por trás. Juliette Lewis faz uma participação interessante. "This Much..." não é exatamente uma série agradável de se ver. É muitas vezes incômoda, aflitiva, mas vale o desconforto. Mesmo nessa época em que talvez muita gente não esteja a fim de se envolver com tanta desgraceira. Esse é um programa raro. (
Teté Ribeiro)
19/06/2020
O paraíso deve ser aqui (It must be heaven), 2019, Elia Suleiman
Na sala de espera de uma grande produtora norte-americana, o cineasta Elia Suleiman (interpretando a si mesmo) é apresentado à mulher apressada: “Ele está fazendo um filme sobre a paz no Oriente Médio, mas é uma comédia”. Ela responde: “Sim, isso já é engraçado por si só”. Suleiman sai do local sem qualquer promessa de financiamento. “Boa sorte com o seu projetp”, finaliza a mulher, em falso tom de cordialidade. Instantes tragicômicos como este se multiplicam ao longo de It Must Be Heaven, comédia sobre as dificuldades sociais na Palestina e a impressão de superioridade dos países ricos (França e Estados Unidos, no caso) em relação ao mundo árabe.
Em suas últimas ficções, o cineasta tem investido neste tipo muito específico de humor que provém unicamente da construção da imagem e de gags visuais, sem o apoio de diálogos nem explicações de qualquer tipo. Ele propõe esquetes que se colam de maneira livre, até formar um panorama político do tema em questão – numa clara herança de Buster Keaton e Jacques Tati, e em diálogo direto com as ironias visuais dos contemporâneos Roy Andersson e Aki Kaurismaki, por exemplo. As cenas podem soar tão lúdicas quanto violentas, dependendo da interpretação. De qualquer maneira, não há espaço para ingenuidade no roteiro que propõe a viagem de um palestino a Paris e Nova York, apenas para perceber que estes lugares supostamente desenvolvidos possuem problemas sociais tão graves quantos os de sua terra natal... (
Bruno Carmelo)
Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Cannes, em maio de 2019.
20/06/2020
O diabo riu por último (Beat the devil), 1953, John Huston
Uma quadrilha criminosa de atuação internacional une-se ao casal de golpistas Billy (Humphrey Bogart) e Maria Dannreuther (Gina Lollobrigida) e partem todos para a África. Lá, usando a desculpa de que são vendedores de aspiradores de pó, eles tentam se apropriar de terras que supostamente têm uma grande quantidade de urânio, mesmo objetivo do casal Chelm (Edward Underdown e Jennifer Jones).
Humphrey Bogart: "Só os impostores acham engraçado. É uma bagunça." Sim, mas talvez seja a bagunça mais engraçada de todos os tempos. O filme brincava consigo mesmo, mas deu certo de uma maneira inovadora... (Pauline Kael in 1001 noites no cinema, Companhia das Letras, 1994, p. 143)
20/06/2020
Tempos modernos (Modern time), 1936, Charles Chaplin
1936: "Tempos Modernos", de Charlie Chaplin, chega às telas
Em 5 de fevereiro de 1936, Charlie Chaplin lançou "Tempos Modernos" em pré-estreia nos EUA. Ele dirigiu o filme e interpretou o papel principal. Na Alemanha e na Itália, a película "de tendência comunista" foi proibida.Na comédia Tempos Modernos, o autor, diretor e ator Charles Spencer Chaplin parodiava as facetas nefastas da crise econômica mundial e da nova fase da industrialização. Gente lutando contra máquinas, a exploração, a necessidade extrema. No centro da história, alguém tenta sobreviver aos difíceis tempos: um vagabundo, com chapéu-coco, bigode, sapatos enormes e bengala.
Devido a seus filmes de humor sofisticado, Charlie Chaplin pode ser considerado ainda hoje o comediante mais famoso de todos os tempos do cinema. Ele negava, porém, a imagem que faziam dele em função de seu trabalho. "As pessoas dizem que sou uma pessoa alegre. Não sou de jeito algum. Sou um homem bem sério. Com frequência não sei como devo expressar alguma coisa. Por isso meus filmes são sempre tão longos. E o mais difícil é dar-lhes a aparência de simples."
Marco cinematográfico
Chaplin precisou de quatro anos para concluir Tempos Modernos. O filme tornou-se um momento de ruptura em sua carreira. Pela última vez, o artista levava para as telas seu legendário vagabundo. E este entrou para a história do cinema como seu derradeiro filme mudo. Há tempos as películas haviam ganhado falas. Mesmo assim, Chaplin confiou mais uma vez em sua muda arte da pantomima, restringindo a sonorização à música e efeitos sonoros. Somente um personagem podia falar: o dono da fábrica, que vigiava seus operários através de uma gigantesca parede de projeção. "Pavilhão Número 5 está trabalhando muito devagar! Dobrem a velocidade! Capataz, os parafusos estão frouxos demais. Verifique o que está acontecendo! Ei, aqui não é lugar de se fumar, mas para trabalhar!", ditava ordens o patrão, interpretado por Alan Garcia...
Mensagem política ou pura diversão?
"Eu acho que passar mensagens é muito problemático. Elas podem ser indignas. Podem até mesmo serem ridículas. Não acredito em mensagens", comentou certa vez ao falar de Tempos Modernos. Chaplin não via seu último filme mudo como uma sátira política, mas como entretenimento. Mesmo assim, o governo americano sentiu-se incomodado, assim como os governos nazista da Alemanha e fascista da Itália, que proibiram a exibição da película. Após novos filmes e anos de atritos com o governo dos EUA, o artista britânico deixou o país que escolhera para viver, retornando à Europa.
Somente décadas depois Hollywood reconheceria o mérito das obras do criador do vagabundo.
Em 1971, Chaplin, já com 83 anos, recebeu um Oscar por sua "incalculável contribuição ao cinema".
Catrin Möderler (mw), Deutsche Welle, 05/02/2020
21/06/2020
Shock corridor (Paixões que alucinam), 1963, Samuel Fuller
PAIXÕES QUE ALUCINAM: UMA ANÁLISE DAS FORMAS DE MANIFESTAÇÃO DO INCONSCIENTE
O tema proposto para nossa investigação – as formas de manifestação do inconsciente nos três personagens do filme “Paixões que alucinam”, do diretor Samuel Fuller: Stuart, Tren e Boden – nos traz de início – e de acréscimo – duas outras questões fundamentais (ou ao menos preambulares): de qual inconsciente estamos falando e de que forma ele se dá a conhecer, isto é, de que maneiras ele se manifesta no sujeito.
Então, antes que possamos nos perder no exercício ao qual o trabalho nos convida – e nos seduz, nesse convite – devemos delimitar com algum rigor os conceitos dos quais lançaremos mão em nossa exposição. O apoio conceitual que nos irá guiar nesse empreendimento ousado virá, essencialmente, d´A Psicoterapia da Histeria. Contudo, advertimos desde já que o fato do filme lançar mão de algumas idéias derivadas do que poderia ser chamado de uma vulgarização do pensamento freudiano, nossos comentários poderão desatender, em algumas passagens, o rigorismo a que nos propomos no início.
Isso porque essa “vulgata freudiana” acabou por embaralhar conceitos, agrupando-os sem qualquer preocupação cronológica e ou coerência lógica, em total desatenção ao conjunto do pensamento freudiano, resultando na apresentação de fenômenos psicanalíticos de maneira um tanto grosseira, a ponto de torná-los de difícil reconhecimento. Voltaremos mais adiante a essas questões.
De todo modo, esses comentários que eventualmente não pertençam ao texto freudiano em referência serão apontados no curso do trabalho, como medida de esforço para conservar a sua coerência e a fidelidade à obra de Freud indicada... (
Otávio Augusto Moreira D`Elia)
24/06/2020
Soberba (The Magnificent Ambersons), 1942, Orson Welles
"A exemplo de Andre Bazin e seus discípulos na Revue du Cinéma e, depois, no Cahiers du Cinéma, Paulo Emilio Salles, preferia o mutilado Soberba (The magnificent Ambersons), renegado por Orson Wells, a Cidadão Kane." (Sérgio Augusto).
“Soberba” é aquele eterno grande filme em potencial
Depois da desconcertante estreia com “Cidadão Kane” (Citizen Kane, 1941), um dos melhores da história de todos os tempos na lista de qualquer cinéfilo, Orson Welles dirigiu “Soberba”, novamente com muitas boas ideias, algumas delas ainda presentes no filme. Infelizmente, a produtora, RKO montou o filme sem a presença do diretor, descartando 50 minutos de filmagem, que foram destruídos. Uma das maiores incógnitas do cinema, então, é supor se este poderia ser tão bom ou talvez melhor que “Cidadão Kane”.
George Minafer (Tim Holt) é o esnobe filho de Isabel Amberson Minafer (Dolores Costello), uma rica família em uma cidade pequena dos Estados Unidos. Eugene Morgan (Joseph Cotten), um antigo pretendente de Isabel, é um empreendedor da nascente indústria automobilística, que volta a cortejá-la após a morte do pai de George, a contragosto deste. Essa oposição ao novo relacionamento da mãe se torna um obstáculo para o namoro dele com Lucy Morgan (Anne Baxter), filha de Eugene. A inversão dos poderes, pelas perdas econômicas da família Amberson e pela ascensão da empresa dos Morgans, podem alterar esse desajustado estado.
O prólogo de “Soberba” é arrebatador. Orson Welles entra como narrador da estória, que começa em 1873, com a tela toda em preto por alguns segundos, até a entrada da imagem da enorme casa dos Ambersons, em tom sépia, enquanto se descreve o poder da família naquela cidade, com entonação cômica. A íris do filme deixa as bordas arredondadas, imitando os primeiros filmes mudos. A mise en scène somente se torna contemporânea quando na estória George se torna adulto, tomando o centro do quadro, com postura arrogante.
O interior da casa dos Ambersons, onde se passa a maior parte da narrativa, sempre surge nas telas com muitas sombras, enquadramentos deslocados, e com câmera em altura abaixo da cintura, dando a impressão de um teto com pouca altura, oprimindo os personagens. Quando o pai de George morre, os personagens olham para a câmera dentro do caixão, como uma impossível câmera subjetiva do falecido. Fica evidente como George foi criado em ambiente que o tornou em um rapaz tão insolente.
Orson Welles trabalha enfaticamente o antagonismo entre a tradição dos Ambersons e a modernidade dos Morgans. George menospreza o automóvel, como sendo uma invenção sem futuro, e prefere levar Lucy para passear em um trenó puxado por um cavalo, enquanto Eugene conduz sua mãe e outros convidados em um automóvel que atola na neve. O adorno de madeira em frente à casa dos Ambersons traz a figura de um cavalo. E será justamente a opção por investir na moderna indústria automobilística que tornará os Morgans mais ricos que os Ambersons.
Mais importante ainda, o fato que mudará o comportamento de George envolverá um carro. Welles defende a modernidade porque sentiu na pele as críticas que “Cidadão Kane” recebeu, por utilizar técnicas narrativas de forma tão intensa como nenhum outro filme havia ousado até então. Seu cinema moderno não foi tão bem compreendido na época, mas anos mais tarde, foi reconhecido como um dos marcos da história dos filmes, da mesma forma que ocorreu com os automóveis, considerado indispensável depois de algumas décadas.
Welles não abandona as técnicas utilizadas em filme de estreia, como usar os noticiários de jornais para contar eventos da estória, ou montagens com comentários de personagens. Seu uso não é tão enciclopédico quanto em “Cidadão Kane”, o que talvez tornasse “Soberba” mais fluido, e isso pode ser apreciado especialmente até sua primeira metade.
Porém, a mutilação da RKO tornou incompreensível o arco dos personagens, finalizando de maneira rasa a transformação de personagens construídos com profundidade até então. “Soberba”, como foi entregue ao público, não é um grande filme. “Soberba”, como foi filmado, talvez seja, mas nunca saberemos. (
Eduardo Kaneco)
Orson Welles interview on The Magnificent Ambersons and It's All True
25/06/2020
Deus é mulher e seu nome é Petúnia (Gospod postoi, imeto i' e Petrunija), 2019, Teona Strugar Mitevska, Macedônia
Sinopse: Em Stip, pequena cidade na Macedônia, é uma tradição anual que o padre jogue uma cruz de maneira no rio. Dezenas de homens mergulham atrás dela, visando sorte e prosperidade. Petúnia, no entanto, chega antes, suscitando a revolta dos que não entendem como uma mulher ousa participar do ritual. Mas ela se mantém firme, pois conseguiu sua cruz e não irá desistir.
Deus é Mulher e seu Nome é Petúnia
Petúnia está cansada. Petúnia está deitada, e tudo o que deseja é permanecer embaixo das cobertas. Petúnia não quer enfrentar os pais, os vizinhos, a vida lá fora. Petúnia não quer ir para mais uma entrevista de emprego, que vise uma posição muito abaixo da sua qualificação, e que mesmo assim não deverá lhe dar o valor devido. Petúnia não quer se humilhar, não quer implorar, não quer se sujeitar à avaliação dos outros.
Petúnia não quer ser incomodada no caminho até à fábrica, quando é perseguida pela própria mãe, que insiste em conselhos inapropriados de última hora, e muito menos quando está de volta, cerca por homens grosseiros preocupados muito mais com as regras e tradições do que com o bem-estar de quem passa ao lado deles. Petúnia não se importa com o que os outros podem pensar, e por isso, quando vê a oportunidade de fazer algo inesperado, simplesmente se atira. Afinal, se Deus é Mulher e Seu Nome é Petúnia, ela não pode estar errada, não é mesmo?
Inspirada em um evento verídico, a diretora e roteirista macedoniense Teona Struga Mitevska partiu para a ficção para tecer um olhar crítico e apurado sobre uma realidade que até hoje perturba e incomoda. Em diversas cidades e pequenas comunidades por todo o país, sempre no dia 19 de janeiro, o feriado da Epifania (batismo de Cristo) é celebrado em rios e córregos da seguinte forma: uma cruz é atirada na água, e à pessoa que for capaz de pegá-la estará reservada boa sorte e prosperidade para todo o ano seguinte. Quem mais do que Petúnia precisa de bons agouros nos meses que virão? No entanto, há um problema aí. Quando se dia “a pessoa que conseguir pegar a cruz”, lê-se “o homem que conseguir pegar a cruz”. Sim, pois esse é um mérito – e um direito – reservado apenas à ala masculina da nação. Às mulheres, resta apenas observar e aplaudir. Até que uma delas decida subverter essa ordem. E o nome dela, afinal, é Petúnia.
Petúnia nada faz de caso pensado. Apenas reage ao seu instinto. A situação se apresenta em sua frente, e ela decide seguir sua vontade. No entanto, sabe bem o preço de cada ação. Por isso, tem ciência também pelo que está lutando, e o que estão lhe exigindo para que abra mão. A cruz, em si, pouco importa. Nunca foi de dar atenção à religião, e bem sabe ela que todas as suas rezas e de sua família pouco ajudaram para mudar o rumo dos acontecimentos até ali. Sua birra, ou insistência – ou melhor ainda: resistência – se dá pelo gesto. Tem dois braços e duas pernas, uma cabeça pensante e uma respiração que a mantém viva da mesma forma que qualquer um dos homens que entraram na água e, sem tanta sorte – ou seria habilidade? – não conseguiram igualar o seu feito. Agora a cruz está com ela. Mas, mais do que isso, o que quer é o direito de tê-la. Tanto para guardá-la, como também para dela se desfazer, se assim desejar. Não é o objeto, portanto, e, sim, o princípio que motiva esse debate.
Antes disso, é bom estar atento ao universo que circunda nossa protagonista até o momento de virada. Mora com os pais – uma mãe autoritária e controladora, um pai submisso e ausente – e a única amiga, com quem imagina poder contar, está mais preocupada com frivolidades do que em fazer, de fato, diferença. Ao se apresentar para um possível trabalho, mais uma tentativa dentre tantas as quais tem se sujeitado ao longo dos anos, humilhação e assédio são moedas comuns, com as quais está acostumada. Seria de se esperar que os céus se iluminem, que os mares se abram, e que um príncipe lhe chegue sorrindo, montado num cavalo branco. Mas isso só acontece nos contos de fadas – ou na imaginação dos mais fervorosos. Petúnia, no entanto, não é apenas uma coisa ou outra, boa ou má, santa ou puta.
É tudo isso, e um pouco mais. Assim como qualquer um na audiência. Essa sua miríade, portanto, não apenas a faz humana, mas também digna de ser observada com cuidado.
Tentam calá-la. Se esforçam para desmoralizá-la. Gritam, ameaçam, esperneiam. A incompreensão começa em casa, vai para as ruas e se espalha por um país. A imprensa tenta cumprir sua missão, com um olho na urgência da notícia, e outro no sensacionalismo do episódio. A polícia a protege por obrigação, assim como a repudia nos bastidores. Tanto um, quanto o outro, no entanto, possui suas brechas – o cinegrafista que se revolta, o oficial que se compadece.
À Petúnia, portanto, cabe estar com os ouvidos – e todos os seus demais sentidos – bem atentos. Ela fez muito pouco, quase nada. Mas esse mínimo acabará por fazer significado num momento em que mais nada importa. Seu exemplo é que conta. É este que fará barulho, aquele que irá perdurar e provocar mudanças. Não hoje, talvez ainda não amanhã. Mas com certeza, um passo foi dado. Aqui a discussão começa, pois, quando menos se espera, um mundo inteiro poderá ser acordado. Com tudo de ruim – e de bom – que isso implica. (
RobledoMilani)
27/06/2020
O menino selvagem (L'enfant sauvage), 1970, François Truffaut
O menino selvagem no Vimeo
O Garoto Selvagem
Baseado no livro do Doutor Jean Itard, O Garoto Selvagem é um fascinante estudo social psicológico sobre o homem e a natureza, resgatando a ideia de Rousseau sobre o “bom selvagem”. Truffaut, com poucos recursos investe no projeto de forma bastante pessoal e logo na abertura procura deixar claro que se trata de um caso verídico, algo que transpassa ao tom de documentário da obra. Certamente não se trata de um filme “fácil”, mas que merece ser assistido e reassistido.
A opressão civilizatória do longa-metragem se apresenta de forma arrebatadora de imediato. Um garoto sujo de cabelos e unhas grandes é encontrado em uma floresta na França. Curiosos com o fato os homens “civilizados” ao redor organizam uma equipe de busca, ou de caça, para capturar a selvagem criatura. Desde já somos pegos de surpresa com o garoto em questão sendo tratado como um verdadeiro animal exótico, sendo perseguido por cães e tirado de seus esconderijos com fogo e fumaça. Ao ser praticamente raptado, o jovem que não passa dos doze anos passa por uma série de mãos de estudiosos, que buscam entender aquela persona tão incomum. Chega a ser perturbador a forma como os parisienses se aglomeram para, fascinados, observarem o pobre garoto.
Curiosamente, porém, de todas essas indignidades a maior pela qual Victor (Jean-Pierre Cargol) passa é justamente a tentativa de educação por parte do Dr. Jean Itard (interpretado pelo próprio Truffaut). O roteiro aqui é preciso, deixando claro que tais médicos procuram ajudar a criança, quando, de fato, ela não precisava de ajuda – estava perfeitamente bem em seu estado selvagem (a tal ponto não há como não ver o argumento de Rousseau se construindo). Do andar sobre as duas pernas até aprender a falar, o menino vai se tornando cada vez mais como nós, mas sempre retomando suas origens com fugas e olhares distantes para as árvores. Com o tempo a personalidade exótica vai desaparecendo, se transformando a algo próximo de uma criança comum.
A presença do diretor em cena, apesar de apenas cumprir o papel de seu personagem, sem impressionar, é crucial para a direção da criança. Em diversos momentos um olhar atento perceberá que François direciona a movimentação de Jean-Pierre, sempre prezando o realismo da obra. De fato, temos aqui a maior qualidade de O Garoto Selvagem – como dito, a linguagem documental tem forte presença, em especial através dos movimentos de câmera precisos que acompanham cada personagem. Além disso, porém, Truffaut opta por uma ênfase no caráter de época do longa e, além do óbvio preto e branco, utiliza transições típicas aos primórdios do cinema.
A caracterização não se limita à linguagem da narrativa e marca forte presença desenho de produção, surpreendente considerando as limitações financeiras da obra. Somos perfeitamente transportados para 1798, ao ponto que verdadeiramente acreditamos estarmos assistindo gravações de tal época (ainda que seja algo impossível por razões óbvias).
Diante de tal busca pelo naturalismo, contudo, o roteiro acaba pecando por uma relativa repetitividade. Como já dito, o filme funciona como um fascinante estudo social e psicológico, mas como narrativa cinematográfica ele pode nos cansar pelas sequências atrás de sequências dos estudos de Victor. Felizmente, o diretor está ciente de tal fato e trabalha em uma duração bastante limitada de 83 minutos que termina exatamente quando o cansaço atinge o espectador de fato.
Esse fator, porém, não influi na qualidade de O Garoto Selvagem, que parece somente aumentar sua força sobre nós com o passar dos anos – quanto mais nos afastamos da época retratada, maior nosso estranhamento em relação a ela. Novamente reitero que não se trata de um filme fácil de ser assistido, mas que merece ser apreciado por qualquer espectador – preferencialmente mais de uma vez. Jean-Jacques Rousseau em essência. (
Guilherme Coral)
28/06/2020
O pagador de promessas, Anselmo Duarte, 1962
Anselmo Duarte fez história como primeiro – e único, em 2020 – brasileiro a receber a Palma de Ouro no Festival de Cannes. Foi em 1962, há quasse 60 anos... A Novaes Teixeira, ele disse que queria contar a história de um Cristo terceiro-mundista. Não a maior história de todos os tempos, mas algo muito mais simples e humano. Cristo como um carteiro (mensageiro de Deus?), filho do carpinteiro e da lavadeira. E, num rompante, para espanto de Novaes, chegou a dizer que voltaria a Cannes com seu Cristo e levaria a Palma. Por mais que Anselmo possa ter aumentado e até inventado a história, prevaleceu o conceito fordiano em O Homem Que Matou o Facínora – 'Print the legend'.
Ele, realmente, voltou a Cannes em 1962 e ganhou a Palma de Ouro com O Pagador de Promessas. Não era bem a história de Cristo, mas era a história da crucificação de um brasileiro comum pela intolerância, e não apenas religiosa... Trabalhou durante seis meses e aí começou a desanimar. A coisa não andava. Seu Cristo estava emperrado. E então um jovem diretor de teatro, de muito prestígio na época, Flávio Rangel, convidou-o para ver sua nova montagem.
Era de uma peça de Dias Gomes. Anselmo foi, e no palco, em Zé do Burro, encontrou o seu Cristo. Indescritível a sua emoção. Juntando o que não tinha, comprou os direitos, embora não tenha sido fácil convencer o autor. Dias Gomes era um homem engajado, de esquerda. Desconfiava daquele galã. Ao comprar os direitos, Anselmo armou-se de uma cláusula, que lhe assegurava o direito de fazer mudanças no original. Dias Gomes assegurou-se de outra cláusula. Flávio Rangel teria de ser diretor assistente...
Na história, o nordestino Zé faz uma promessa para salvar seu burro, que está morrendo. Promete carregar uma cruz até a igreja, em Salvador. Mas ele fez sua promessa num terreiro de candomblé, e ao chegar o padre o impede de entrar na igreja. Cria-se um caso. A imprensa explora o episódio. A mulher de Zé, Rosa, é atraída pelo gigolô Bonitão e isso provoca a ira da prostituta Marly, que acusa a 'santinha' de estar querendo roubar seu homem. Engalfinham-se numa briga de arranhões e puxões de cabelo. Cria-se um 'carnival' semelhante ao que Billy Wilder armou em A Montanha dos Sete Abutres, mais de dez anos antes. Zé do Burro, amarrado à própria cruz, só entra morto na igreja, nos braços do povo...
Chegou o grande dia em Cannes. A seleção daquele ano era pródiga em grandes nomes. Michelangelo Antonioni (O Eclipse), Luís Buñuel (O Anjo Exterminador), Robert Bresson (O Processo de Joana D'Arc), Pietro Germi (Divórcio à Italiana), Sidney Lumet (Longa Jornada Noite Adentro), Otto Preminger (Tempestade sobre Washington), Agnès Varda (Cléo das 5 às 7), etc. Um filme da Grécia, Electra, a Vingadora, de Michael Cacoyannis, foi aplaudido sem parar, durante dez minutos, algo nunca visto na história do festival.
Mas veio O Pagador, e algo se passou. (
Luiz Carlos Merten)
29/06/2020
Intolerância (Intolerance: Love's Struggle Throughout the Ages), 1916, D.W. Griffith
... Intolerância é um triunfo narrativo, uma produção espetacular que consegue eclipsar até mesmo obras monumentais que viriam décadas depois como Cleópatra e Ben-Hur em termos de escala, suntuosidade e até mesmo técnica.
No entanto, o espectador moderno, mesmo o mais ávido e eclético apreciador de filmes, precisa ter paciência e tranquilidade para assistir as quase três horas de projeção (há outras versões, algumas até 20 minutos mais longas, mas em razão da velocidade do frame rate da fita em si, não pela adição de conteúdo – a versão objeto da presente crítica é a “Killiam Shows”, de 176 minutos), além de uma mente programada para ver muito mais um momento marcante e fundamental da História do Cinema do que um “filme comum”. As quatro histórias contadas de forma entrecortada ao longo de toda a duração do filme são, em ordem cronológica:
– Ano 539 a.C. – Na Babilônia, um conflito religioso leva à guerra entre o Rei Nabonido (Carl Stockdale) e seu filho, o Príncipe Belsazar (Alfred Paget) e Ciro, o Grande, da Pérsia (George Siegmann), o que resulta na Queda da Babilônia e o fim de sua independência. A história, baseada em fatos reais, é vista sob o ponto de vista da Moça das Montanhas (Constance Talmadge), levada por seu irmão para o “mercado de noivas” na cidade e que acaba se apaixonando pelo príncipe e lutando em seu exército.
– Ano 27 a.C. – A história de Jesus Cristo, o Nazareno (Howard Gaye) – do primeiro milagre até sua crucificação – que ganha enfoque reduzido.
– Ano 1572 d.C. – Massacre da Noite de São Bartolomeu, na França, em que Caterina de Médici (Josephine Crowell) fomenta os católicos a assassinar os protestantes huguenotes.
– Ano 1914 d.C. – O foco principal do filme e única história fictícia, ainda que baseada em questões sócio-políticas até hoje relevantes. Nela, a Doce Menina e o Rapaz enfrentam o preconceito e a hipocrisia puritana para sobreviver e criar seu filho, depois que uma greve e suas consequências obrigam suas respectivas famílias a se mudarem de cidade... (
Ritter Fan)
Não existe outra conexão entre esses segmentos senão o fato de abordarem a intolerância (religiosa, política e social) ao longo da História.
Projetado na URSS em 1920, Intolerância exerceu ali grande influência sobre os jovens cineastas soviéticos Eisenstein, Pudoviskin, Kulechow, mas sobretudo por suas primeiras sequencias, que mostram uma greve e sua selvagem repressão. (George Sadoul)
Intolerância no youtube
Comentários sobre Intolerância de
André Sturm
03/07/2020
Flores gêmeas (Fiore gemello), 2018, Laura Luchetti
Fiore gemello (tradução livre)
Há flores que nascem naturalmente juntas. Sem managem e sem intervenção humana. Eles têm um caule, mas duas flores. Como em Fiore gemello, o segundo filme de Laura Luchetti que, antes de chegar aos cinemas italianos, percorreu o mundo com a estreia mundial no Festival de Cinema de Toronto, onde ganhou o prêmio Fipresci (ou seja, a Federação Internacional de Impressão de Filmes) e depois também chegou à Itália em Alice na cidade, a seção independente do Festival de Roma.
Ela é Anna (Anastasiya Bogach), uma garota sardenha de cara limpa. Ele só está carregando a mochila e está fugindo de algo, alguém. Este é Basil (Kallil Kone), um imigrante ilegal da Costa do Marfim e chegou à Sardenha através de mensageiros contrabandistas (mais tarde dirigido pelos italianos Aniello Arena e Mauro Addis). Eles se encontram por acaso. Eles se tocam. E então eles caminham juntos, talvez, para um novo futuro. Os níveis temporais em que a história é construída são dois: o presente refere-se ao passado, o de Anna. O único que você quer descobrir a razão da fuga. A compreensão imediata de Basil sobre seu desejo, sua necessidade. Anna, por outro lado, uma jovem italiana, quer entender por que não tem mais nada nas mãos. Não é uma afeição, nem uma referência. E ele também sorri, adoece, tem medo, mas nunca fala. Ele confiou suas mãos e seu olhar com ação e decisão.
Filmado na Sardenha arcaica, entre saleiros, bosques, praias primitivas, países brancos e estreitos, Fiore gemello é um filme italiano muito bom, diferente na fatura feita na Itália e na construção dramatúrgica. Poderia, mas não, recorrer às manobras narrativas fáceis para contar a dor de dois meninos jovens e solitários. Ela é branca, ele é negro, e ainda não é um filme sobre a necessária integração de dois mundos diferentes, talvez oposto, mas no final semelhante. Sua amizade, que então se torna uma história de amor natural, é o resultado da união de duas almas nunca se entregando que não estão contentes em sobreviver.
Eles são frágeis, aparentemente sem esperança, mas sua fraqueza é sua própria força. Porque os torna semelhantes, faz com que eles olhem para dentro e se recuperem, um para o outro, a inocência. E graça. O mesmo que vem do amor, muitas vezes terreno narrativo escorregadio, que em vez disso em Flor Gêmea se torna um gerador de força.
Uma força que também é apoiada pela música de Francesco Cerasi composta de instrumentos (intenso, talvez às vezes demais, a presença do violoncelo) e da natureza. O da Sardenha, cheio de lugares arcaicos, fauna incomum e uma vegetação de cores mutantes. Os lugares, portanto, tornam-se evocativos dessa liberdade que todo homem deve conquistar.
Não é coincidência que o filme (que tem um final magnífico) também seja filmado no sul da Sardenha, na ilha de Sant'Antioco, cujo nome vem do patrono da Sardenha que era apenas um mártir negro que fugiu da Sardenha da Mauritânia. (
Emanuela Genovese)
05/07/020
O chifre da cabra (Kozijat rog), 1994, Nikolay Volev, Bulgária
Bulgária, século XVII, uma terra dominada pelos turcos. Um casal de jovens que vivem perto das montanhas, tem uma filha. Um dia, o pai, que é pastor, até as montanhas com seu rebanho, a tragédia acontece, entretanto, a sua família: um grupo de turcos vêm em sua cabine e estuprar e matar sua esposa na frente de sua filha. O pai desolado vendo o seu infortúnio, ele leva sua filha para as montanhas e educação, como se fosse um menino, sua formação como um menino. Preparando a vingança da morte de sua mãe. Um chifre de cabra acentuado será o instrumento de sua vingança.
Este filme, ambientado no século XVII, é uma história que centra a sua atenção sobre o ambiente séculos dolorosa das mulheres camponesas dominado e estuprada pelos turcos, contada com uma linguagem simples, quase sem diálogo, um cinema, quase puro e A história é contada apenas com imagens, ações e gestos dos protagonistas.
06/07/2020
Cão branco (White Dog), 1982, Samuel Fuller
‘Cão Branco’: um filme maldito, mas uma poderosa obra anti-racista
Samuel Fuller entra facilmente no Hall de diretores desprezados no mundo cinematográfico. Em suas mãos, temas rotineiros ganham ótimos contornos dramáticos enquanto ideias triviais se transformam em virtudes. Martin Scorsese falou que o cinema de Fuller é aquele que entra sorrateiramente pela “porta dos fundos” através de filmes que desenrolam-se convulsivamente e violentamente, tal como o cotidiano da vida, composto por emoções genuínas.
Não à toa, que Sam foi intitulado de “contrabandista do cinema”, já que dentro dos seus melodramas tradicionais, encontrava-se um vespeiro subversivo repleto de temas polêmicos, e que transformava o cinema em um campo de batalha para discutir o embate ético e moral das questões hipócritas da sociedade americana, como bem visto nas suas obras-primas Paixões que Alucinam (1963) e O Beijo Amargo (1964).
Na filosofia “fulleriana”, seus filmes são pura emoção: amor, ódio, violência e morte. A ação está sempre a serviço do campo estético – de enquadramentos e movimentos refinados – e narrativo, de narrar através das imagens, os exageros da vida e expor a ferida ao público, para tirá-lo da zona de conforto e permitir que seus filmes, dialogassem diretamente com os sentidos do espectador.
Cão Branco (White Dog, 1982) é um excelente exemplo disso.
Foi o último filme do cineasta em solo americano e se tornou um filme maldito para ele, que viu a Paramount, dona dos direitos, sequer lançá-lo no cinema depois que circularam “boatos” de bastidores que a obra era de cunho racista e incitaria a violência racial nos EUA. Fuller ficou amargurado pelo filhote ficar retido na prateleira do estúdio, sem que ninguém mais o visse – na terra de Trump, o filme estreou “só” 10 anos depois da morte do diretor, em casas de arte.
O fato é que essa desilusão, é o seu canto de cisnes cinematográfico, uma espécie de “Jaws” sob quatro patas realizado no final da sua carreira. De filme maldito na época, é possível enxergar Cão Branco como uma poderosa obra anti-racista, que mostra o prenconceito com uma profundidade fascinante, expondo essa crença irracional na metáfora de um cachorro condicionado a atacar negros. Um filme a cara do seu insinuante cineasta: provocador, que revela a estupidez e irracionalidade do racismo na nossa sociedade.
Na história, a atriz Julie (Kristy McNichol, papel imaginado na época pelo diretor a uma jovem Jodie Foster) atropela um pastor alemão branco. À medida que cuida dele, ela se afeiçoa ao animal, até o momento em que descobre que ele foi condicionado a atacar indivíduos negros – inspirado nos ‘cães brancos’ da África do Sul, daí o título original do filme, White Dog. Desesperada, a garota procura ajuda de especialistas em adestramento como última tentativa de salvar seu “urso polar”. E, aí entra a figura Keys (Paul Winfield, eterno coadjuvante em filmes policiais e ótimo no papel) e Carruthers (o veterano Burl Ives). O primeiro é um treinador de animais, negro por natureza, que assume a incumbência de tentar reeducar o animal.
A partir desse ponto de partida, Fuller realiza uma investigação fascinante sobre a intolerância racial, onde a real intenção não é condenar a ação do animal e sim eliminar o racismo que ele adquiriu do seu dono – o texto é genial ao indicar que assim como a irracionalidade do animal, o racismo e a violência seguem o mesmo caminho. Há boas reflexões por parte do roteiro assinado pelo diretor e o ainda jovem Curtis Hanson (diretor de Los Angeles – Cidade Proibida, falecido ano passado) de dissecar se o racismo que é aprendido, pode ser recondicionado – nossas crenças já estão presentes quando nascemos ou somos moldados pela sociedade? O preconceito deve ser punido ou podemos curá-lo? A razão pode extirpar o racismo? São várias provocações que o filme lança na cabeça do público.
É o olhar complexo sociológico e psicológico fascinante de Fuller sobre a doença do ódio, uma metáfora reveladora, que a maldade humana ainda se faz ainda presente na nossa sociedade atual por meio da segregação racial, de inferiorizar o outro pela sua cor da pele “Quem o tornou doente, o tornou doente para sempre” diz Keys para Julie em certo momento do filme e isso é bem a cara da nossa realidade quando entramos nas redes sociais.
Essa batalha sobre a natureza do ódio é encenada em uma sequência memorável: o ataque do cão a um negro no interior de uma igreja. É uma cena perturbadora e forte, porque Fuller, logo após o ataque, direciona a câmera a subir lentamente para mostrar a figura de um santo como testemunha inerte do ato, a representação que a violência, além de física, é também espiritual por acontecer dentro do recinto sagrado. É a mise-en-scène Fulleriana, de que o cinema serve de encenação para as batalhas da vida.
Não falta ao longa, o formalismo visual característico do cineasta: enquadramentos milimétricos, os planos e ângulos incomuns, a câmera ao nível do chão, closes nos rostos dos atores e do cão que ajudam a intensificar o impacto emocional no espectador. É interessante como ele transforma Cão Branco em um thriller ambíguo que transita entre o suspense atmosférico, o horror brutal e o western. Deste último, ele apresenta o duelo “westerniano” visual entre Keys e o cão, com os planos típicos do gênero como os closes nos olhos e pés dos personagens, unindo a forma cinematográfica ao seu dinamismo técnico apurado.
Este elemento ganha ainda fortes contornos místicos na magistral trilha sonora de Ennio Morricone (outro artista do western) que minimilista e nervosa, intimida toda vez que a fera ataca; e na rica fotografia de luz e sombras, branco e vermelho de Bruce Surtees – responsável pela estética de vários westerns de Clint Eastwood – que personifica a ambiguidade e os contrastes constante da obra. Por fim, deve-se valorizar a ótima montagem, que faz o cão oscilar entre a irracionalidade pura e a doce figura de melhor amigo do homem.
Isso não impede o longa metragem de ter seus “probleminhas”: a atuação de Kristy McNichol é esforçada, mas pouco convicente e há vários fatos que ficam sem explicação, como o namorado da protagonista que some de uma hora para outra da história e a falta de profundidade emocional por parte do texto em trabalhar as consequências concretas dos ataques do cão às pessoas.
São entraves pequenos para atrapalhar essa aula de cinema sobre o racismo. Se mesmo ao final do filme, você tiver alguma dúvida sobre isso, lembre-se de uma cena particular no ato final: o uso de um plano circular (travelling) que se movimenta entre dois personagens abraçados. Nele, Fuller revela o quanto o racismo está incrustado no interior da alma, a corroendo e por isso é difícil de ser combatido. Em apenas um movimento de câmera, o diretor comprova sua competência para resumir sua discussão. É coisa de gênio.
O fato é que dentro da sua simples história animal, Cão Branco é um ótimo manifesto antirracional, a despedida por cima de um mestre em solo americano. Mais do que domar uma fera irracional personificada na figura de um cão, o longa mostra a importância da humanização de nossas crenças e valores.
Sem dúvida, uma obra atemporal que dialoga muito bem com o mundo de hoje. (
Danilo Areosa)
06/07/2020
O Enigma de Gaspar Hauser (Jeder für sich und Gott gegen alle), 1974), Werner Herzog
O filme no youtube
Um homem jovem chamado Kaspar Hauser (Bruno S.) aparece de repente na cidade de Nuremberg em 1828, e mal consegue falar ou andar, além de portar um estranho bilhete. Logo é descoberto que sua aparição misteriosa se deve ao fato de que ele ficou trancado toda sua vida em um cativeiro, desconhecendo toda a existência exterior. Quando ele é solto nas ruas sem motivo, muitas pessoas decidem ajudá-lo a se integrar na sociedade, mas rapidamente Kaspar se transforma em uma atração popular.
O enigma da aquisição da linguagem de Kaspar Hauser à luz do gerativismo
Margarete G. M. de Carvalho e Carmem Elisabete de Oliveira
Resumo: Este artigo relaciona a trajetória do comportamento linguístico do protagonista do filme de 1974, O Enigma de Kaspar Hauser, do diretor alemão Werner Herzog, aos fenômenos de aquisição da linguagem e da competência linguística inata, postulados pelo gerativismo e investiga como eles se revelam na prática de um falante que adquiriu tardiamente a linguagem verbal. A Teoria Gerativista postula a existência de um dispositivo de aquisição da linguagem com o qual o indivíduo nasce e que, em contato com uma língua natural, gera a gramática da língua a que estiver exposto, desenvolvendo a capacidade de comunicação. O presente trabalho é uma análise ficcional em forma de estudo de caso, do tipo descritivo e exploratório, de cunho qualitativo. Esta análise ficcional, relacionada ao gerativismo, corrobora a ideia de que é possível alguém que tenha ficado sem contato com outros humanos, como foi o caso de Kaspar, desenvolver a linguagem verbal ainda que tardiamente, porém com algumas limitações, especialmente relacionadas ao pensamento abstrato que possibilita a compreensão da representatividade dos signos linguísticos...
08/07/2020
Azali, 2018, Kwabena Gyansah, Suécia
Azali (tradução livre)
Uma jovem, Amina, vive com sua mãe, avó e tio em uma pequena vila nos arredores de Accra. Ela vive uma vida confortável, mas chata, à qual sua mãe deseja libertá-la. A avó dela deseja que Amina se case com um homem mais velho de sua aldeia. A mãe de Amina protesta e, sem saber, vende Amina a estranhos na esperança de que ela encontre uma vida melhor na cidade. Em sua jornada, Amina encontra um jovem que também foi vendido quando jovem e, de alguma forma, torna-se seu único amigo. Os dois fugiram com um pequeno grupo de crianças que também foram vendidas. Enquanto os dois embarcam em várias tarefas através de Accra eles tentam ganhar o seu sustento.
O jovem, Seidu, torna-se popular por ser um trabalhador rápido e trabalhador. Amina é desajeitada e não consegue acompanhar o trabalho dado a ela. Ela rapidamente se encontra vivendo em um complexo de uma mulher que exige aluguel diariamente. Aqui Amina aprende para ficar ela deve sempre ter dinheiro, no entanto seu trabalho como head-porter não é lucrativo o suficiente. Ela decide se juntar ao vizinho, o favorito do proprietário, como prostituta para ficar. Por um tempo isso vai bem, mas ela fica mais triste à medida que o trabalho continua. Eventualmente, ela tenta se reunir com Seidu. Ele a afasta porque não pode se dar ao luxo de ser um estranho em seus recém-encontrados arranjos de vida/trabalho como porteiro. Amina retorna ao composto tributante e se torna complacente com o passar do tempo. Durante este tempo, o tio de Amina, Akatok, vai procurar Amina em Accra depois que sua mãe descobre a notícia de que sua filha está "desaparecida".
Durante meses, Akatok procura, mas sem sucesso. Ele decide que vai desistir depois de apenas três meses de busca, mas é colocado de volta nos trilhos por um velho amigo com um grande conselho. Amina, agora mais acostumada ao seu trabalho, dorme com um homem que se recusa a pagar-lhe o salário prometido. Ela, por sua vez, quebra um copo na cabeça dele e rouba o dinheiro da carteira dele. Amina corre para encontrar Seidu para dizer a ele que deseja voltar para casa. Em vez disso, ela encontra o chefe de Seidu que a chama para esperar seidu juntos. O chefe de Seidu ataca Amina enquanto eles estão sozinhos e se força a ela. Seidu volta à cena terrível e pede desculpas por interromper seu chefe. Enquanto ele se afasta, ele está visivelmente perturbado com o que acabou de testemunhar.
Seidu, mais tarde, bate em seu chefe pelo que ele fez deixando-o sangrando na rua. Amina retorna ao exigente proprietário e seu vizinho que tenta cuidar dela após o ataque. Logo após Amina e o proprietário saberem da gravidez de Amina, a qual o proprietário a repreende. Amina não pode ter um bebê no complexo, então ela vai viver nas ruas de Accra enquanto está grávida de apenas algumas semanas.
Oito meses se passam e Amina tornou-se um head-porter novamente, desta vez mais gracioso e mais pesado; ela está em seu último trimestre de gravidez. Akatok e seu amigo continuam a busca nas proximidades. Enquanto trabalha Amina encontra uma multidão de pessoas que estão tentando espancar um homem até a morte. Eles chamam este homem de animal e derramam gasolina sobre ele. Uma vez que ela se aproxima Amina percebe que o homem ensanguentado e espancado é Seidu. Com nojo e horror, ela se afasta enquanto o jogo está sendo aceso. Ela também nota o chefe de Seidu na multidão cuidando de tudo enquanto a fumaça escura começa a subir atrás dele. Neste momento Akatok e seu amigo de longa data avistar Amina na multidão e ir até ela. Akatok está muito feliz, mas é de curta duração quando ele nota o chefe de Seidu. Ele aponta o homem para Amina como seu pai, Razak; Amina imediatamente desmaia ao ouvir a notícia.
Finalmente, de volta à sua cidade natal, Amina, e Akatok, encontram sua mãe e avó em seu complexo. Eles se alegram por seu retorno, mas novamente Amina vacila, segurando seu estômago. Ela dá à luz no complexo de sua família sob o céu cheio de estrelas. Nas cenas finais ouvimos o bebê chorando e a avó cantando sobre o bebê. Ouvimos um homem, presumivelmente Akatok, falar em sua língua nativa. As palavras na tela enquanto ele fala diziam: Esta criança nunca será aceita pela tradição, então em nossos corações enterramos um segredo que só Deus sabe.
Azali é um filme de 2018 do gênero drama, dirigido por Kwabena Gyansah. Foi selecionado para o melhor longa-metragem internacional no 92º Oscar (2020), mas não foi indicado. Foi a primeira vez que Gana submeteu um filme ao Oscar de melhor longa-metragem internacional.
08/07/2020
Senhorita Oyo (Oyû-sama), 1951, Kenji Mizoguchi
Senhorita Oyu (Oyû-Sama – 1951)
Existe uma parcela de críticos que consideram esse um dos pontos mais baixos na carreira de Kenji Mizoguchi, mas eu discordo totalmente.
O alvo do estúdio Daiei era o público feminino do pós-guerra, então o diretor entregava para esse mercado, com rapidez e elegância, melodramas de qualidade superior, alternando-os a projetos mais pessoais e autorais, como “Oharu: Vida de Uma Cortesã”, que o consagraria no mercado internacional com um Leão de Prata, no Festival de Veneza.
Levando a trama, que originalmente no livro “Ashikari” de Junichiro Tanizaki se passava na Era Meiji, para o Japão contemporâneo, o roteiro de Yoshikata Yoda utiliza o erotismo inerente à obra do escritor ao delinear o triângulo amoroso. A história aborda uma cruel negociação entre a bela viúva Oyu (Kinuyo Tanaka), sua irmã submissa (Nobuko Otowa) e o cunhado (Yûji Hori), por quem ela realmente se apaixona, iniciando então um jogo de sedução e negação de desejo.
O aspecto mais interessante é que Oyu finge não perceber que o cunhado compartilha de seu sentimento, aproveitando em vários momentos para sadisticamente provocá-lo, numa intensa dominação psicológica elevada pela excelente interpretação de Tanaka. O mesmo roteiro, em mãos menos sofisticadas, com certeza não estaria sendo lembrado nesse texto.
A fotografia de Kazuo Miyagawa, em sua primeira parceria com o diretor após seu reconhecimento mundial por “Rashomon” (de Kurosawa), entrega verdadeiras pinturas em cada cena, como aquela que finaliza o drama do personagem vivido por Hori, caminhando sem rumo em direção à luz da lua, após ter afirmado com seu sacrifício a maior declaração de amor possível. É possível notar até certa influência de “Aurora”, de Murnau.
A contribuição de Miyagawa, com seus infinitos tons de cinza entre o preto e o branco, na carreira de Mizoguchi é crucial, pois transformou a identidade visual de seus filmes, trabalhando experimentalmente com profundidade de campo. (
Octavio Caruso)
Ainda sobre Mizoguchi
Wasp network, 2019, Oliver Assayas
Wasp Network: Rede de Espiões
Tendo em vista os filmes que fez nessa década, Wasp Network é um projeto diferenciado na carreira de Olivier Assayas. O diretor francês é conhecido por trabalhar com atenção o desenvolvimento de seus personagens, assim como por dar foco ao drama e às questões mais internas, humanas. Por este motivo, o filme de espionagem protagonizado por Edgar Ramirez (cuja história foi adaptada do livro Os Últimos Soldados da Guerra Fria, de Fernando Morais), representa outro olhar do diretor - por mais que sua personalidade possa ser vista com facilidade em certas passagens. Este é um olhar mais pautado pela ação e reação que as pessoas deste universo produzem do que propriamente por uma aproximação mais clara enquanto indivíduos. Seu novo filme e os personagens que nele habitam podem ser comparados a uma teia de aranha em que todos estão ali, juntos, mas de forma nada organizada.
Contando a história real de um grupo de cubanos que se infiltrou em uma rede anti Fidel Castro na Flórida, o filme possui uma narrativa um tanto padrão para o gênero de espionagem, mas o fator Assayas tem grande peso no tratamento de personagens. Ao invés de focar inteiramente no grupo formado por Wagner Moura, Ramirez e Gael Garcia Bernal, o diretor dá muita atenção ao fator familiar que os cerca. Penélope Cruz, intérprete de uma esposa cubana que é deixada na ilha pelo marido, ganha tempo mais que suficiente em tela para que suas dores sejam explícitas e tão marcantes quanto o fato da contrarevolução que o grupo de homens desertores está disposto a fazer.
Justamente pelo foco de Assayas ser o lado humano e reflexivo de seus personagens, o filme custa a evoluir narrativamente.
Por muitas vezes é inegável sentir um certo marasmo nas situações abordadas e nas dúvidas dos principais personagens, cujos diálogos raramente saem do mesmo lugar. Há um certo didatismo neles, assim como já é possível entender toda a trama em torno de uma hora de projeção. A partir daí, não existe evolução no texto ou na montagem.
Tal montagem foi criticada no festival de Veneza e fez com que o diretor reajustasse alguns detalhes. Isso deixa ainda mais claro o fato de que o filme não funciona como uma trama de espionagem, apenas como um drama familiar. Graças às suas boas atuações, Wasp Network toma fôlego quando há o dinamismo do trio (especialmente Ramirez) quando divide a cena com Leonardo Sbaraglia. O modo como Assayas filma as cenas de diálogos entre os homens na Flórida (sempre num plano e contra-plano em conjunção com um leve zoom enquanto falam) não é algo fenomenal, mas são engrandecidas por uma fala aqui e ali que destacam a importância daquele plano que, mesmo falho, significou muito... (
Barbara Demerov)
Filme visto durante a 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2019.
Opositores ao regime cubano querem tirar do ar 'Rede de espiões',
10/07/2020
O jardim dos Finzi Contini (Il giardino dei Finzi Contini), 1970, Vittorio De Sica
Lírica evocação, por Vittorio de Sica, de um grupo de pessoas desaparecidas (os cultos e aristocráticos terratenentes judeus italianos) e de um desaparecido estado de espírito. Baseado no romance semi-autobiográfico de Giorgio Bassani (1916 - 2000), o filme me lembra como Giorgio, um estranho a esse grupo da classe média (Lino Capolicchio), é atraido para o mundo decadente e encantado dos Finzi Contini pela imperiosa e voluntariosa Micòl (Dominique Sanda); ela e seu lânguido irmão (Helmut Berger) são pessoas mimadas e bonitas, sem vontade de salvar-se. Este filme extraordinário, com seu glamour melancólico, talvez seja o único que registre as tíbias medidas anti-judaicas da época de Mussolini - que, no entanto, foram suficientes para varrer os Finzi Contini e tudo o que eles representavam. (Pauline Kael in 1001 noites no cinema, Companhia das Letras, 1994, p. 252)
12/07/2020
O desprezo (Le mépris), 1963, Jean-Luc Godard
13/07/2020
Dente de leite (Babeteeth), 2019, Shannon Murphy - Austrália
A protagonista de Dente de Leite sofre de câncer, mas só descobrimos isso após cerca de meia hora de filme. Antes disso, conhecemos Milla (a ótima Eliza Scanlen) como uma simples adolescente que ama música e tem pais carinhosos, sempre presentes. O que Shannon Murphy executa logo nas cenas iniciais é tornar o que poderia ser apenas um drama numa história de amor, com foco em tudo o que será ocasionado pelo fato de Milla conhecer o conturbado Moses (Toby Wallace) em uma estação de trem.
A partir deste encontro inusitado, este é o fato que mais importa no enredo - mais do que o câncer da garota em si. Quando a relação entre Milla e Moses evolui para o nível dele frequentar sua casa, seus pais Henry (Ben Mendelsohn) e Anna (Essie Davis) não a encaram com bons olhos. É só após isso que a doença é apresentada ao espectador; mas tudo é feito sutilmente, com a delicadeza da diretora em nos mostrar com gestos, e não com palavras, a situação que Milla se encontra. Ela corta seu cabelo com Moses num ato de rebeldia e, só então, entendemos que esse é também um ato que já teria que acontecer de toda forma.
Aliado ao excelente trabalho de fotografia, que mescla cores frias com quentes como se elas dissessem como os personagens estão se sentindo, Dente de Leite administra bem todas as tramas que busca conectar. O filme não é só de Milla: seus pais ganham bastante atenção do roteiro enquanto casal e enquanto indivíduos, seja quando precisam lidar com a enfermidade da filha ou do próprio casamento, com incertezas e questionamentos. Da mesma forma que este também é um filme sobre vício em drogas (lícitas ou ilícitas), temática que ganha um arquétipo drástico através de Moses, que fora expulso de casa pela própria mãe devido à sua condição.
Mas é claro que o cerne da história se encontra na jovem protagonista, personagem esta que capta tudo ao seu redor e ao mesmo tempo orbita em seu mundo particular. É curioso como Milla parece ter mais entendimento da própria situação do que aqueles à sua volta, e também como consegue separar o câncer e seu tratamento de sua personalidade alegre. Tendo em vista a fase da adolescência, o ápice de experiências malucas e de grandes aprendizados, é impossível não se deixar cativar pelo espírito cheio de vida que Milla esbanja, mesmo enfrentando tantos problemas.
Ao mesmo tempo que trabalha num ritmo de estilo coming of age, Dente de Leite possui todos os altos e baixos de uma adolescência comum, mas conta com a impactante adição de uma doença terminal, o amor proibido regado à má conduta do "príncipe encantado" da protagonista e, mais do que tudo, o apoio e comanhia dos pais. O que poderia ser apenas mais uma história de amor na adolescência tranforma-se em uma série de oscilações imperfeitas, assim como é a vida real. (
Barbara Demerov)
Filme visto durante a 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2019.
Em tempo: muito bonito como o filme trata das relações entre filha, mãe e pai. O final é impactante. Belo filme
14/07/2020
The old gard, 2020, Gina Prince-Bythewood
Mad Max: Estrada da Fúria e Atômica são dois exemplos de filmes protagonizados por Charlize Theron que possuem ação para dar e vender, mas que ao mesmo tempo estão apoiados por um roteiro que justifica as ações e motivações dos personagens. De tal forma, estes filmes não fazem com que a narrativa fique amparada apenas pela violência, chegando a ir além da capacidade de impactar visualmente para deixar uma mensagem consolidada.
Em The Old Guard, no entanto, isso não chega a acontecer. O roteiro do filme dirigido por Gina Prince-Bythewood centra-se muito no impacto visual que a história em quadrinhos explora (algo claramente importante na composição do enredo), mas ao mesmo tempo o cenário total falha em entregar mais complexidade à história. E isso acontece especialmente quando o espectador passa a conhecer algumas informações sobre o background dos três personagens que atuam ao lado de Theron (mais uma vez dedicada em seu papel de líder). Ao mesmo tempo em que sabemos o que eles são, a explicação de suas origens são deixadas de lado. E isso faz falta para compreendermos tudo claramente.
Imortais há centenas de anos, o time de Andy (Theron) é forte, corajoso e não mede esforços para obter sucesso em suas missões secretas para salvar pessoas em perigo. Fica claro deste o início que Andy e seus parceiros, viajantes do mundo, querem se manter nas sombras e têm medo do que uma exposição maior poderia fazer com suas vidas. A premissa é instigante, uma vez que estes personagens já viveram em séculos tão longínquos e possuem experiências das mais diversas - em certo ponto, há até uma piada envolvendo Rodin... (
Barbara Demerov)
16/07/2020
Um de nós morrerá (The Left Handed Gun), 1958, Arthur Penn
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18/07/2020
Estado zero (Stateless), 2020, Emma Freeman e Jocelyn Moorhouse
Série sobre refugiados com Cate Blanchett sofre com soluções fúteis
Em primeiro lugar, “Estado Zero” não é uma boa tradução para o título original, “Stateless”, que significaria, antes, sem pátria, apátridas, sem lugar. Quase qualquer outro título, aliás, seria mais apropriado do que “Estado Zero”, que parece introduzir algum documentário sobre ideias econômicas neoliberais.
Nada disso. A minissérie nos lembra em seis capítulos de um problema maior, que a pandemia acabou por soterrar, o dos refugiados e, pior, dos campos de refugiados que hoje assolam a Europa, sobretudo, mas não só. Esse é o primeiro eixo da minissérie, o que impõe sua relevância temática geral.
O segundo é o caso real de desaparecimento de uma cidadã australiana nascida na Alemanha. O fato se deu na virada do século, onde se situa a ação da série, embora com nomes trocados. Insatisfeita com os familiares e frustrada com a vida em geral, Sofie Werner, papel de Yvone Strahovski, se joga nos braços de uma seita suspeitíssima e se dá mal. Ao deixar a seita, Sofie não sabe nem mais quem é, sofre de medo patológico e só quer sair da Austrália.
Desarvorada e sem identidade, acaba, ironicamente, recolhida ao campo como imigrante ilegal. Ela constitui o segundo eixo da história. Entre os refugiados, o centro é Ameer, vivido por Faissal Bazzi, afegão que tenta introduzir sua família na Austrália a partir do Paquistão e sobre quem desaba uma tempestade de catástrofes, mal-entendidos e baixezas que desaguam no comportamento kafkiano das autoridades australianas de imigração. Aí começam os problemas de “Estado Zero”. Colar a história de uma australiana de mente conturbada à de refugiados em situação material desesperadora pode ser até tentador, mas é tarefa delicada. São universos distantes e questões diversas.
Completa o quadro o drama dos agentes do campo. Os centrais são Clare, interpretada por Asher Keddie, burocrata durona e recém-empossada como gerente do lugar, com a missão de fazer com que ele suma do noticiário. Entre seus subordinados está Sandford, papel de Jai Courtney, que, tendo uma bela família, topa o emprego como guarda no local. Clare vai sendo aos poucos consumida pela tarefa amarga de despachar os refugiados de volta a seus países, sejam lá quais forem as consequências. Já Sandford, homem de bom coração, vai se deixando absorver pela violência daquela porta de inferno.
Temos então dois eixos –os de dentro da Austrália e os de fora; um caso coletivo (o dos refugiados) e alguns casos pessoais (australianos). Para fazer disso uma unidade, os responsáveis pela série recorreram ao trivial do cinema contemporâneo –a família.
Num mundo onde todos perdemos referência, resta a família como único ponto de apoio do sujeito. Ela pode ser problemática como a de Sofie, miserável como a de Ameer, quase feliz, como a de Sandford, destruída antes de existir, como a de Clare. Não importa, a família é o centro. O estratagema banal conduz à reiteração contínua das questões levantadas. Acima de cada personagem paira sempre a relação familiar. É possível temer, odiar, proteger, rejeitar essa relação et cetera. O fundo é sempre o mesmo.
Com alma de narrativa, a série passa pelos acontecimentos de forma mais ou menos indiferenciada, dando igual ênfase, não raro, às sequências interessantes e aos momentos banais. Com isso, o essencial e o convencional se confundem e desembocam, invariavelmente, em soluções melodramáticas fúteis. “Estado Zero”, em que Cate Blanchett comparece como cocriadora, corroteirista e quase figurante, poderia se reduzir a quatro capítulos dotados de certa energia, em lugar de seis com frequência chochos.
Mas, sim, os temas da sorte dos refugiados e da violência dos departamentos de imigração policial justificam sua existência e a atenção que o espectador lhe possa eventualmente dispensar. (Inácio Araujo)
A série termina com estes dados escabrosos
DESDE 2012, QUEM BUSCA ASILO NA AUSTRÁLIA POR BARCO, É DETIDO EM CENTROS DE IMIGRAÇÃO FORA DO PAÍS,INCLUINDO NAURU, PAPUA NOVA GUINÉ E ILHA MANUS. ADVOGADOS, MÍDIA E DEFENSORES TÊM ACESSO ALTAMENTE RESTRITO AOS CENTROS. NO MUNDO, HÁ MAIS DE 70 MILHÕES DE PESSOAS DESLOCADAS À PROCURA DE REFÚGIO DA GUERRA E DA PERSEGUIÇÃO. METADE DELAS SÃO CRIANÇAS.