segunda-feira, 27 de abril de 2020

Fordismo científico

A necessária crítica a uma ciência mercantilizada: a quem servem o publicismo, o citacionismo e o lema "publicar ou perecer"?

"Privatizaram sua vida, seu trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar. É da empresa privada o seu passo em frente, seu pão e seu salário. E agora não contente querem privatizar o conhecimento, a sabedoria, o pensamento, que só à humanidade pertence. (Privatizando, Bertolt Brecht, 2007)

É com satisfação e, ao mesmo tempo, com indignação, que escrevo este editorial. Satisfação por ser este o ano em que a Psicologia completa seu cinquentenário como profissão no Brasil. É uma área profissional jovem, como também é jovem a ciência que a respalda, trilhando, por vezes, caminhos difíceis para delinear, explicitar e/ou revelar seu objeto, o psiquismo humano. Por outro lado, indignação, como resposta àquilo em que vem se transformando a ciência em geral, e particularmente, a Psicologia como ciência e profissão.

No caso da Psicologia, devido ao seu objeto - o psiquismo ou consciência humana - talvez caiba a ela uma responsabilidade ainda maior de denunciar o impacto de uma forma de produção científica que vem assumindo contornos de produção em série, com objetivos mercantilistas, cujo fim último não é "aliviar a miséria humana", como defendia Bertold Brecht (1977), mas alimentar bancos de dados, curvas estatísticas e currículos individuais, alienando aqueles que mais deveriam denunciar a alienação, porém enriquecendo uma grande fatia do mercado.

Em meu trabalho por três anos como Editora Geral da revista Psicologia em Estudo, foi comum o recebimento de mensagens de autores angustiados em saber sobre a tramitação de seus artigos, pois sua aprovação ou não punha em risco a conclusão de sua pós-graduação (mestrado ou doutorado). Professores pesquisadores de séria produção científica também escreviam, preocupados com isso devido às pressões impostas pelos programas de pós-graduação a que estavam vinculados, pois tinham que atestar uma boa quantidade de artigos produzidos em um determinado triênio, sob pena de serem deles sumariamente desvinculados, a despeito da solidez de suas pesquisas e da qualidade de suas aulas ou orientações - estas últimas, fundamentais para a formação de profissionais e pesquisadores compromissados eticamente com a ciência.

Por outro lado, pesquisas apontam um crescente adoecimento físico dos docentes pesquisadores, como, por exemplo, a pesquisa de Santana (2011). Nela o autor evidencia de modo contundente a correlação entre o aumento de produção científica e o número médio anual de orientandos por pesquisador, com maiores ocorrências médicas relacionadas a intervenções cardíacas.
Deste modo, além de estas exigências numéricas tornarem-se um problema de saúde física, esta lógica produtivista vem desencadeando uma competição desenfreada e uma "corrupção da personalidade humana", como atesta Vigotski (1930/2004), em que os valores se colocam de modo invertido na consciência dos pesquisadores, sob a pressão ideológica que Schlendlindwein(2009) denomina de "sistema de recompensa científica".

Procurando verificar o nível de adesão ou indignação quanto ao paradigma "publicar ou perecer", que, como exposto, vem adoecendo pesquisadores e comprometendo a qualidade das pesquisas, em uma busca rápida no Google, usando como descritores esse slogan, para minha surpresa, encontrei diversos artigos em blogs e periódicos científicos, das mais diversas áreas, apontando os severos riscos desta imposição à ciência. É óbvio que no espaço de um editorial não teria condições de expor todas as críticas encontradas, mas darei destaque a algumas delas que, por serem elaboradas por pesquisadores de áreas distintas, indicam que é não somente no âmbito das ciências humanas que se evidencia a crítica a esta política. Neste sentido, trago para reflexão de todos os colaboradores deste periódico as argumentações de Schlendlindwein (2009), Blattman (2007), Katchburian (2008) e dados de Righeti (2012).

Schlendlindwein (2009), em seu artigo, expõe que esta perspectiva "publicista" encampada pelos pesquisadores tem gerado um reducionismo dos fins da ciência e indaga qual é a necessidade de se ter um "sistema de recompensa" como o imposto aos pesquisadores. Requisita a todos que avancemos para discutir e revelar a gênese e as implicações de tal sistema, baseado na pressão constante para publicar, discutindo quem o engendra e por que o mantém, para avaliar quem dele se beneficia - portanto, a quem interessa sua manutenção. Destaca que tal sistema gera um "círculo vicioso" no qual "quem publica mais recebe mais recursos para pesquisa, que, por sua vez, possibilita aumentar o número de publicações, num ciclo de reforço contínuo". Como resultado disto tem-se que "os volumes mais expressivos de recursos para a pesquisa tendem a se concentrar cada vez mais por região, por instituição, por pesquisador".

O autor adverte quanto à formação de uma indústria científica pautada por um "fordismo científico", com artigos sendo produzidos em massa tal como "(...) numa linha de montagem: do estudante de iniciação científica ao pós-doc, todos juntando partes para o mesmo resultado final: o artigo científico" (Schlendlindwein, 2009), e observa que com esta lógica se tem mais repetição e menos criação, mais cientistas e menos ciência. Por isso, acrescento às ideias do autor a reflexão de que atualmente temos no âmbito científico a mesma alienação que se produz no operário das demais indústrias de produção em larga escala. O mesmo autor também denuncia a medida de produtividade calcada no Fator de Impacto (FI), uma vez que este pode ser facilmente fabricado ou forjado e tem como maior preocupação o fato de que o FI tornou-se instrumento de política científica ou de um "sistema de recompensa" estabelecendo-se o que ele denomina de "fundamentalismo científico", "em que os meios para se fazer Ciência, antes de serem valorizados, são desrespeitados". Outra falácia, para Schlendlindwein (2009) está na argumentação de que a pressão imposta para publicar é um modo de fazer o pesquisador "prestar contas à sociedade", ironizando que a "sociedade" não lê artigos científicos. Concordo com o autor, pois para a sociedade interessa o resultado das pesquisas, isto é, aquilo em que a ciência pode "aliviar as misérias humanas". De fato, o que vemos é a reprodução das misérias humanas na mesma velocidade da produção de "artigos científicos".

É preocupante pensar que para muitos pesquisadores esta tendência é "natural" ou fruto do desenvolvimento da ciência. Como saída, Schlendlindwein (2009) defende o movimento inverso, que vá na contramão desta ciência aligeirada, propondo um "slowpublishing"1, acrescido por ele de "pensar mais, publicar menos e publicar melhor".

Nesta mesma linha, Blattman (2007), a partir da resenha do livro de Lindsay Waters intitulado "Inimigos da esperança: publicar, perecer e o eclipse da erudição" denuncia a lógica capitalista que imprime sua marca na produção científica. A autora denomina de "perversão das universidades" o que se produz a partir das agências de fomento cuja moeda de troca para obtenção de financiamento advém da quantidade de publicação/ano do docente. Isto cria um "sistema desvairado de produção de celebridades" (p. 18, citado por Blattman, 2007, p.1-2), no qual se glorifica a quantidade de publicações ao invés do ensino, investigação e escrita sérios. Com isso se tem um "academicismo vazio emergente, mas cheio de forma na promoção do status quo acadêmico (na luta da preservação da própria espécie)" (Blattman, 2007, p.2-3).

Pelo viés da ironia crítica, Katchburian (2008) traz reflexões a respeito da crescente produção de lixo acadêmico descartável, gerada por esta exigência maciça de publicação em série, pautada na ideologia de que o "valor" da pesquisa está dado pela quantidade de acessos ao artigo publicado ou de suas citações em outros artigos. Expõe o jogo que se estabelece de "troca de favores" nas publicações científicas, além da exclusão do que não é publicado em inglês como de "menor valor". Ironiza a rede de relações que se estabelece e, por conseguinte, os expedientes para elevar o índice de citações, utilizando autocitação ou citando colegas, independentemente da relação com sua pesquisa.
Como exemplos de investigações e descobertas científicas que causaram alto impacto social e que seriam completamente desprezadas, se analisadas sob os critérios atuais, o referido autor cita as de Mendel, cuja pesquisa com ervilhas identificou as leis fundamentais da herança genética, mas só foi reconhecida como tal quarenta anos depois. De acordo com Katchburian (2008), Mendel levou oito anos para desenvolver a pesquisa e publicou apenas dois artigos. Na sequência traz a pesquisa de Fleming (Prêmio Nobel, 1945), que descobriu a penicilina, cuja importância foi reconhecida apenas doze anos mais tarde. Em sua área, ainda menciona as pesquisas de Marshal e Warren a respeito do tratamento de úlceras, e a de Watson e Cricksobre sobre a hélice do DNA, as quais apenas nove anos mais tarde, em 1962, obtiveram o Prêmio Nobel. Esses importantes trabalhos foram recebidos com indiferença pela comunidade científica na época, e só tiveram seu valor social reconhecido depois de vários anos.

Os grandes teóricos e pesquisadores, de diversas áreas, hoje considerados clássicos, também realizaram suas investigações durante anos, aprofundando e verificando suas descobertas. É o caso de Karl Marx (1818-1883), que trabalhou durante quarenta anos na elaboração de sua principal obra, intitulada O Capital. A Crítica da Razão Pura, publicada em 1781 e considerada a obra fundamental de Kant, resultou de dez anos de pensamento e meditação. As ideias de Darwin foram publicadas no ano de 1859 no livro "A origem das espécies", e a Teoria da Evolução nele formulada foi fruto de uma viagem de cinco anos por diversos países, coletando inúmeros exemplares de organismos. Com Einstein não foi diferente: em 1905 ele publicou a Teoria da Relatividade Especial, e somente dez anos depois publicou a Teoria Geral da Relatividade, versão mais ampla da teoria anterior amplamente reconhecida na atualidade. Pela lógica produtivista, todos seriam considerados candidatos a perecer no anonimato.

Além disso, o crescente mercantilismo que subjaz a esta lógica do "sistema de recompensa", como diz Schlendlindwein (2009), já é evidente, tanto que cientistas de todo o mundo começam a se rebelar contra essa situação. Em nota publicada no jornal Folha de São Paulo (Righetti, 2011), destaca-se o boicote coletivo à Elsevier, a maior editora de periódicos científicos. Nesta nota a jornalista Righeti (2012) destaca que a iniciativa veio de um dos matemáticos mais conceituados, Timothy Gowers, da Universidade de Cambridge, sugerindo o boicote em seu blog, em janeiro deste ano.
Outro matemático, Tyler Nylon, doutor pela Universidade de Nova York, organizou um abaixo-assinado on-line contra a Elsevier3, com quase 5.000 assinaturas de cientistas "que se comprometem a parar de submeter seus trabalhos às cerca de 2.000 publicações científicas da Elsevier". Conforme a reportagem, o motivo da revolta é o custo que a Elsevier, como boa parte das editoras científicas comerciais, cobra para publicar um artigo aceito (após a "revisão por pares"), além da cobrança pelo acesso ao conteúdo dos periódicos. Deste modo, cria-se um mecanismo de exploração pelo qual os pesquisadores não somente pagam para publicar, mas também para ler as revistas científicas com seus artigos. Se considerarmos que o acesso e as citações dos artigos são mensurados como "qualidade" do pesquisador, tem-se aí facilmente o quadro de que tais medidas estão beneficiando economicamente grandes grupos editoriais, e não promovendo o desenvolvimento científico sério e comprometido com o "alívio da miséria humana".

A matemática simples apresentada por Righeti (2011) demonstra que só o governo brasileiro gastou R$ 133 milhões em 2011 para que 326 instituições de pesquisa do país tivessem acesso a mais de 31 mil periódicos científicos comerciais, tomando como base os dados da Capes (Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), do Ministério da Educação. Se somado a este valor o que os demais países devem desembolsar, com certeza as cifras crescem assustadoramente, o que demonstra a importância deste movimento coletivo de pesquisadores, fundamental para frear o mercantilismo científico, tendo-se clareza de que há muito ainda a ser realizado.

Como exemplo de que esta luta é e será árdua, Righeti (2012) destaca que o incremento do movimento contra a Elsevier deve-se ao apoio que esta tem dado ao "Research Works Act", projeto de lei que tramita no Congresso dos EUA desde dezembro de 2011, o qual visa impedir que as instituições de pesquisa divulguem de modo gratuito trabalhos de seus cientistas. Isto demonstra como há interesses econômicos e políticos fortíssimos sustentando as diretrizes científicas atuais, a despeito do discurso de "prestar contas à sociedade". A jornalista destaca que "o proponente original do projeto de lei é o deputado republicano Darrell Issa, que tem como copatrocinadora a democrata Carolyn Maloney", e que a Elsevier contribuiu para a campanha de ambos com grandes somas em dólares.

A partir do exposto, parece-me mais do que claro que estamos avançando de modo brutal para uma ciência cada vez mais mercantilizada. Como já dizia Marx (1985), "a desvalorização do mundo humano cresce em razão direta da valorização do mundo das coisas" (p. 105). Mais do que nunca é necessária a indignação e a resistência, seja pelos movimentos "slow science" e "slow publishing", seja por mecanismos coletivos de boicote a este processo, sob pena de cairmos num obscurantismo científico sem precedentes.

Se a ciência hoje se conforma a uma produção em série, a um "fordismo científico", nada mais atual do que atentarmos para a alienação a que neste contexto estamos submetidos nós, pesquisadores. Marx (1985) destaca que, mesmo quando atuamos cientificamente, estamos sendo também sociais, porque atuamos enquanto homens, como parte do gênero humano."Não só o material da minha atividade (como o idioma, à mercê do que opera o pensador) me é dado como produto social, senão que minha própria existência é atividade social, porque o que eu trago o trago para a sociedade e com a consciência de ser um ente social" (p.146). Quando nos alienamos disto, também nos alienamos da humanidade que há em nós.

Esta luta por uma ciência que "alivie as misérias humanas" é a mesma que se coloca na contramão do processo de alienação da e na ciência, que vem se reproduzindo em benefício do Capital. Deste modo, o lema deve ser: "Publicar menos e com qualidade", um manifesto pela ciência e pela produção e reprodução ética do trabalho científico.

Silvana Calvo Tuleski
Editora Assistente
Editorial

Psicologia em Estudo
Print version ISSN 1413-7372
Psicol. estud. vol.17 no.1 Maringá Jan./Mar. 2012

REFERÊNCIAS

Blattmann, U. (2007). Publicar ou perecer - quando menos é mais: resenha. Revista ACB: Biblioteconomia em Santa Catarina , 12(2),352-354.

Brecht, B. (1977). Vida de Galileu. São Paulo: Abril Cultural.

Brecht, B. (2007). Privatizando. In A. Citelli. Bertold Brecht: comunicação, poesia e revolução. Comunicação & Educação. [online]. 12(2), 109-112. Recuperado em 24 de abril de 2011, de

Katchburian, E. (2008). Publish or perish: a provocation. São Paulo Medical Journal. [online], 126(3), 200-203. Recuperado em 22 de abril de 2010

Marx, Karl. (1985). Manuscritos Economia y Filosofia. (11a ed). Madri: Editorial Alianza.

Righetti, S. (2011). Cientistas boicotam a maior editora de periódicos do mundo. Recuperado em 24 de maio de 2011Santana, O. A. (2011). Docentes de pós-graduação: grupo de risco de doenças cardiovasculares. Acta Scientiarum. Education, 33(2), 219-226.

Schlendlindwein, S. L. (2009). Viver e publicar. Boletim Informativo da SBCS. p. 10-11.

Vygotsky, Lev S. (2004). A Transformação Socialista do Homem. (Marxists Internet Archive, english version, Nilson Dória, trad.). URSS: Varnitso, 1930. Recuperado em 12 de março, 2011



sábado, 25 de abril de 2020

Uma república profanada

Detalhe de brasão antigo da República sem limpeza no Palácio Rio Negro 
Imagem: Ricardo Borges/UOL

A necropolítica. No campo, na floresta, na periferia. Em nome da família, crimes são cometidos. Os coveiros de nossa política externa também já fizeram o seu trabalho, enterrando as pontes construídas em cada gesto.

Saúde? Sem pânico, nem dinheiro, nem quarentena e nem pandemia. Vai passar. De pessoa a pessoa.

Na Educação, nem pensar.

Justiça? Com limites. Abusos? Diariamente e sob os olhares de Deus.

Caçarolas, panelas, frigideiras e outros utensílios de cozinhas se fazem ouvir. Seria algum rito para espantar ecos de um passado?

Cúmplices abandonam as naus em chamas, e não hesitam em continuar a explorar a ignorância alheia até mesmo quando batem a porta. 

Não é apenas o gabinete que é de ódio. O discurso é repleto de morticínio. Morte de uma república profanada. Morte de poderes vulgarizados. Uma imagem destruída, ridicularizada. Um futuro sequestrado numa sucessão de sonhos afogados.

Como não pensar em Flávio Rangel e Millôr Fernandes que, em Liberdade Liberdade, reproduzem uma cena em que o discurso da morte se confronta com uma alma inconformada de Miguel de Unamuno, reitor da Universidade de Salamanca.

Seu universo e sua universidade tinham sido tomados por falangistas. Transcrevo com os nomes dos atores o trecho da peça teatral que, em 1966, seria alvo da censura do governo militar, o mesmo regime aplaudido e reverenciado pelo atual presidente brasileiro:

"No Dia da Raça, uma cerimônia reuniu as mais importantes figuras do poder fascista. E o general Milan Astray, fundador com Franco, da Legião Estrangeira, discursava:

O militar, na voz do ator Oduvaldo Vianna Filho:

O fascismo vai restaurar a saúde de Espanha! Abaixo a inteligência! Viva a morte!

CORO
(Fazendo a saudação fascista.) Viva a morte!

VIANNA
Espanha!

CORO
Unida!

VIANNA
Espanha!

CORO
Forte!

VIANNA
Espanha!

CORO
Grande!

VIANNA
Viva la muerte!

CORO
Viva!

Caberia a Paulo Autran assumir o papel de Unamuno.

AUTRAN
Senhores!

Senhores! Meu nome é Miguel de Unamuno. Todos me conhecem. Sabeis que sou incapaz de me calar. Há momentos que calar é mentir. Desejo comentar o discurso - se é possível empregar esse termo - do general Milan Astray, aqui presente. Acabei de ouvir um brado necrófilo e insensato: "viva a morte". E eu que passei minha vida dando forma a paradoxos, devo declarar-vos, aos setenta e dois anos, que um tal paradoxo me é repulsivo.

O General Milan Astray é um aleijado. (Reação do coro.)

Não há nesta afirmativa o menor sentido pejorativo. Ele é um inválido de guerra; Cervantes também o era. Infelizmente há na Espanha neste momento um número muito grande de aleijados, e em breve haverá um número muito maior, se Deus não vier em nosso auxílio. Causa-me dó pensar que o general Milan Astray esteja formando a psicologia da massa. Um aleijado destituído da grandeza espiritual de um Cervantes tende a procurar alívio causando mutilações em torno de si.

VIANNA
Abaixo a inteligência! Viva a morte!

CORO
Viva!

VIANNA
Viva a morte!

CORO
Viva!

AUTRAN
Senhores! Este é o templo da inteligência! E eu sou seu sacerdote mais alto. Profanais este sagrado recinto. Ganhareis, porque tendes a força bruta. Mas não convencereis. Porque para convencer é necessário possuir o que vos falta: razão e direito em vossa luta. Considero inútil exortar-vos a pensar na Espanha. Tenho dito.

VIANNA
(Com ar triunfante)
Abaixo a inteligência! Viva a morte!

CORO
Viva a morte!

VIANNA
Viva a morte!

CORO
Viva!

 Jamil Chade
UOL, 25/04/2020

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Educação Básica no Brasil 2019

Censo da Educação Básica no Brasil 2019. Fonte Inep/MEC

Uma vista rápida nos dados estatísticos do Censo da Educação Superior no Brasil 2018, já publicado neste Blog, e da Educação Básica 2019 (resenhas de chamada para leitura e análise dos textos-fontes) nos atrevemos a uma consideração: o sistema de Educação Superior no Brasil é muito privatizado; a Educação Básica muito menos... ainda.

Um panorama da Educação Básica no Brasil 2019.

Um resumo estatístico das especificidades deste setor em dados pesquisados pelo Inep/MEC
  • No ano de 2019, foram registradas 47,9 milhões de matrículas nas 180,6 mil escolas de educação básica no Brasil, cerca de 582 mil matrículas a menos em comparação com 2018, o que corresponde a uma redução de 1,2% no total
  • Em 2019 das 47,9 milhões de matrículas da Educação Básica, 9,13 milhões (19%) estavam no setor privado. No setor público (38,73 milhões) 48,1% estavam nas escolas municipais, 31,9 % nas estaduais e 0,84 % nas federais.
  • Em 2019 das 7,46 milhões de mátriculas do Ensino Médio, 934,3 mil (12,5%) estavam no setor privado. No setor público (6,53 milhões) 0,54% estavam nas escolas municipais, 83,9 % nas estaduais e 3 % nas federais. 
  • Em 2019 das 3,27 milhões de mátriculas da Educação de Jovens e Adultos 210,2 mil (6,4%) estavam no setor privado. No setor público (3,06 milhões) 39,8 % estavam nas escolas municipais, 53,2 % nas estaduais e 0,43 % nas federais.
  • As matrículas da educação básica se encontram majoritariamente na área urbana (88,9%). Na rede privada, 99% das matrículas estão em escolas urbanas. Na rede pública, as escolas municipais são as que apresentam a maior proporção de matrículas na área rural, com 19%, seguida das escolas federais, com 12,3% das matrículas.
  • O número de matrículas na educação infantil cresceu 12,6% de 2015 a 2019, atingindo 8,9 milhões em 2019. Esse crescimento decorreu, principalmente, do acréscimo de 706 mil matrículas em creches no período.
  • A rede municipal é a principal responsável pela oferta dos anos iniciais do ensino fundamental (67,6% das matrículas), e nos anos finais, apesar do equilíbrio entre as redes municipais (42,8%) e estaduais (41,5%), a variação entre os estados é grande. Exemplo: São Paulo (Estadual: 71,6 %, Municipal: 28,4 %) e Espírito Santo (Estadual: 38,9 %, Municipal: 61,1 %)
  • Foram registradas 7,5 milhões de matrículas no ensino médio em 2019. O total de matrículas do ensino médio segue tendência de queda nos últimos anos, o que se deve tanto à redução da entrada proveniente do ensino fundamental (a matrícula do 9º ano caiu 8,3% de 2014 a 2018) quanto à melhoria do fluxo no ensino médio (a taxa de aprovação do ensino médio subiu 3,1 p.p. de 2014 a 2018). Nos últimos cinco anos, o número total de matrículas do ensino médio reduziu 7,6%.
  • O número de matrículas da educação de jovens e adultos (EJA) diminuiu 7,7% no último ano, chegando a 3,2 milhões em 2019.
  • Em 2019, foram registrados 2,2 milhões de docentes na educação básica brasileira. A maior parte deles atua no ensino fundamental (62,6%), no qual se encontram 1.383.833 docentes. Do total de docentes que atuam nos anos iniciais do ensino fundamental, 84,2% têm nível superior completo (80,1% em grau acadêmico de licenciatura e 4,1% de bacharelado) e 10,6% têm ensino médio normal/magistério. Foram identificados, ainda, 5,2% com nível médio ou inferior.
  • O Brasil conta, em 2019, com 180.610 escolas de educação básica. Desse total, a rede municipal é responsável por aproximadamente dois terços das escolas (60%), seguida da rede privada (22,9%).
  • O percentual de escolas de ensino fundamental com biblioteca ou sala de leitura é de 41,4% na rede municipal, praticamente a metade do valor observado nas redes privada (80,5%) e estadual (81,4%). Ainda em relação à infraestrutura, verifica-se a existência de banheiro na maioria das escolas; porém, os banheiros para pessoas com deficiência estão presentes em apenas 37,5% das escolas de ensino fundamental da rede municipal. Quando comparadas às escolas com oferta de ensino médio, as de ensino fundamental usualmente demonstram pior infraestrutura.
Educação Básica 2019 Cmaps

domingo, 19 de abril de 2020

Educação Superior no Brasil 2018

Um retrato da Educação Superior no Brasil. Censo em 2018. Fonte: Inep/MEC

Um resumo selecionado destes dados mostram o grau de privatização do Ensino Superior no Brasil e o avanço do Ensino a Distancia na última década.

Dados relevantes

  • No período compreendido entre 2008 e 2018, a rede privada cresceu 59,3%. A rede pública aumentou 7,9% no mesmo período. 88,2% das instituições de educação superior são privadas.
  •  A rede privada ofertou 93,8% do total de vagas em cursos de graduação em 2018. A rede pública teve uma participação de 6,2% no total de vagas oferecidas.
  • No período compreendido entre 2008 e 2018, a rede privada cresceu 59,3%. A rede pública aumentou 7,9% no mesmo período.
  • Em 2018, 3,4 milhões de alunos ingressaram em cursos de educação superior de graduação. Desse total, 83,1% em instituições privadas
  • O aumento do número de ingressantes entre 2017 e 2018 é ocasionado, exclusivamente, pela modalidade a distância, que teve uma variação positiva de 27,9% entre esses anos, enquanto nos cursos presenciais houve uma variação de -3,7%
  • Entre 2008 e 2018, o número de ingressos variou positivamente 10,6% nos cursos de graduação presencial e triplicou (196,6%) nos cursos a distância
  • Apesar do crescimento de 11,3% no número de ingressantes na rede pública em 2017, observa-se que em 2018 houve queda de 1,5% ocasionada pela redução, na rede federal, de 34.763 (55,8%) vagas oferecidas nos cursos a distância
  • Entre 2008 e 2018, as matrículas de cursos de graduação a distância aumentaram 182,5%, enquanto na modalidade presencial o crescimento foi apenas de 25,9% nesse mesmo período.
  • A rede federal foi a única das categorias públicas que teve aumento no número de matrículas entre 2008 e 2018 (89,7%). Quase 2/3 das matrículas em cursos de graduação da rede pública estão em instituições federais
  • No Brasil, em cursos presenciais, há 2,4 alunos matriculados na rede privada para  cada aluno matriculado na rede pública
  • O número de matrículas na modalidade a distância continua crescendo, atingindo mais de 2 milhões em 2018, o que já representa uma participação de 24,3% do total de matrículas de graduação
  • Pela primeira vez na série histórica, o número de alunos matriculados em licenciatura nos cursos a distância (50,2%) superou o número de alunos matriculados nos cursos presenciais (49,8%).
Mapa Conceitual via Cmap



segunda-feira, 13 de abril de 2020

A falsa cordialidade dos brasileiros

Violência, intolerância e a falsa cordialidade dos brasileiros

Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 9 de abril de 2020

Lilia Schwarcz 

Professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP) e visitante em Princeton, a escritora e antropóloga Lilia Schwarcz declina do rótulo de historiadora mais importante da atualidade no Brasil. “Agradeço, mas não sou”, avisa a autora de Raça e Diversidade e As barbas do Imperador. Modéstia à parte, seu mais recente trabalho, Sobre o autoritarismo brasileiro (Cia. das Letras, 2019, 280 p.) foi publicado pela Princeton University Press sete meses após o lançamento no Brasil e, agora em abril, será lançado em Portugal pela Objectiva. Doutora em Antropologia e ganhadora de três edições do Prêmio Jabuti, em 1999, 2009 e 2010, Lilia recebeu também em 2010 a Ordem Nacional do Mérito Científico. Nesta entrevista exclusiva ao Extra Classe, a autora discorre sobre o mito do brasileiro no exterior, que se passa por povo cordial, tolerante, que engana aos outros e engana a si mesmo. Há uma década lecionando na Princeton University, ela relata que a imagem dos brasileiros sofreu uma regressão desde a ascensão de Jair Bolsonaro e da ‘nova direita’ brasileira à presidência da República. Se antes os estudantes estrangeiros vinham em busca de um Brasil exótico, atualmente procuram entender o que está acontecendo sob Bolsonaro, que na sua avaliação não é apenas um conservador, “é retrógrado”.

Extra Classe – Em seu novo trabalho, você é categórica: a imagem do brasileiro como um povo tolerante, aberto, pacífico e acolhedor é um mito. Como chegou a essa conclusão?

Lilia Moritz Schwarcz – Eu mostro que, enfim, os brasileiros desde sempre tentam passar essa imagem de um povo muito pacífico, avesso à violência, e o que a gente vê é que isso não é uma realidade. Basta que pensemos que o Brasil foi uma colônia durante tantos anos, depois passou a ser um Império e, de alguma maneira, assentou o poder muito vinculado às grandes elites agrárias. Grandes elites essas que controlavam todo o processo político de uma maneira muito violenta na maioria dos casos. Basta lembrar, também, que o Brasil foi o último país a abolir a escravidão mercantil. Eu não falo de outros tipos de escravidão que continuam a existir – nós sabemos – mas eu me refiro à escravidão mercantil, à escravidão de africanos, sobretudo. O Brasil só aboliu o tráfico em maio de 1888, depois de Estados Unidos, Porto Rico e Cuba.

EC – Qual a relação entre essa perspectiva histórica e a desconstrução do mito da cordialidade do brasileiro?

Lilia – Hoje nós sabemos que dos 12 milhões de africanos e africanas que foram obrigados a deixar o seu continente, 10 milhões pararam nas Américas, de uma forma geral, e 4,8 milhões no Brasil. Isso quer dizer que o Brasil recebeu metade dessa população. Não é possível falar em um país calmo, pacífico, com esse tipo de sistema que supõe a posse, a propriedade de uma pessoa sobre outra. Essa posse só pode ser garantida de forma violenta e, também, só deixa àqueles que são tomados como propriedade um caminho: se revoltar, organizar insurreições, todo o tipo de resistência. Hoje nós sabemos como o sistema do Brasil não foi só muito duro na manutenção da escravidão, mas, também, que os escravizados se revoltaram a todo momento e de inúmeras maneiras.

EC – Entramos na questão da intolerância.

Lilia – Então, não se pode ser um país tolerante porque nós herdamos e aprimoramos um racismo estrutural, um racismo institucional e o que impressiona muito no Brasil é como existia essa insistência na ideia de um povo cordial e como cada vez mais, nos dias de hoje, ocorre o contrário. Muitos brasileiros estão se manifestando e aparecendo, usando a representação de pessoas muito intolerantes. Intolerantes aos feminismos, aos novos movimentos negros, aos movimentos indígenas, aos movimentos de ecologia e de meio ambiente. O que impressionou muito quando eu escrevi esse livro é que durante muito tempo houve uma negação desse lado violento e nada cordial dos brasileiros, como também o que ocorre nessa nossa contemporaneidade é uma mudança pública na representação, com muitos brasileiros se definindo como absolutamente intolerantes

EC – Não lhe parece que até há pouco tempo o brasileiro conseguia enganar bem, passando a imagem de povo simpático, receptivo?

Lilia – Eu acho que sim. Não só enganamos aos outros, como enganamos a nós mesmos. Isso me impressiona. Não se trata apenas de um plano feito explicitamente para enganar os estrangeiros. Durante muito tempo os brasileiros também estavam enganados, tanto que Sérgio Buarque de Hollanda, que publicou Raízes do Brasil na década de 1930, já dizia que a cordialidade era uma espécie de superficialidade, um ponto alto de um iceberg, cuja base não tinha nada de cordialidade. Dizia que cordialidade veio de cor e que os brasileiros, de fato, sempre quiseram se definir como cordiais. Mas isso que ele falava nos anos de 1930, na verdade o que encobre? Encobre como os brasileiros misturam esferas públicas com esferas absolutamente privadas. Se nós quisermos trabalhar com um exemplo contemporâneo, nosso atual presidente usa sua rede social de forma pública e quando é criticado por conta das mensagens que envia, ele diz: ‘não, isto aqui é meu e é privado’. Esse uso pouco discriminado do público e do privado sempre foi uma realidade no Brasil; patrimonialismo sempre foi um conceito que se aplica ao Brasil. E, nesse nosso momento da força das redes virtuais, estamos falando de novos patrimonialismos. Como essas fronteiras se borram e produzem mais ‘mito’, mais violência e mais dicotomia. No nosso caso presente, mais intolerância.

EC – O antropólogo Artur Ramos (1903-1949) chegou a cunhar o termo “Democracia Racial” para ajudar a definir um pouco o Brasil de então. Uma falácia?

Lilia – O termo Democracia Racial foi cunhado por Artur Ramos, mas foi muito divulgado e difundido por Gilberto Freyre. Eu acho que falar em falácia do mito da Democracia Racial não corresponde à força que ele tem. Eu penso o conceito de mito não como mentira. Essa é uma falsa concepção do mito. O mito é um tipo de discurso que ganha força, continuidade, perenidade muitas vezes, por causa não do que ele esconde, mas, no caso da Democracia Racial, ele se comporta dessa maneira. Ele trata de contradições fundamentais da nossa sociedade. A escravidão foi e é uma mácula, uma marca, um problema na nossa sociabilidade contemporânea. Então, o mito da Democracia Racial tenta transformar uma situação de muita discriminação e muito racismo numa situação paradisíaca que não é. Qual é a questão e qual é a perversão do racismo que nós praticamos no Brasil? Ele combina inclusão social com imensa exclusão social, econômica, cultural, o que for. Muitas vezes as pessoas se valem desses exemplos ‘Ah, temos cantores famosos, temos jogadores de futebol famosos’, como se isso fosse um antídoto para não lidar com a realidade que é a discriminação em nível escolar – e as pesquisas vêm demonstrando; a discriminação nos índices de vida e de morte; a discriminação nos empregos; a discriminação nas instituições onde nós vemos que as posições mais altas nas hierarquias são todas ocupadas por brancos e não por negros. Então, o mito da Democracia, diferente do que você diz, não é uma falácia, é uma realidade. Ou seja, é a maneira como nós brasileiros tentamos transformar essa questão numa invisibilidade. Uma invisibilidade social. No Brasil existe uma grande ideologia do branqueamento e essa ideologia se pauta numa grande contradição – por isso a força do mito – que é não destacar que essa é uma sociedade de privilégios muito estabelecidos. E são privilégios brancos.

EC – O fato de uma das mais conceituadas editoras acadêmicas do mundo, a Princeton University Press, resolver editar o Sobre o Autoritarismo Brasileiro sete meses após o seu lançamento no Brasil indica que essa imagem do brasileiro lá fora pode ser revertida?

Lilia – Essa sua pergunta é muito interessante. Se isso é um dado importante, acho que é. Também a editora portuguesa Objectiva resolveu editar o livro, que sai agora em abril. Isso mostra como a imagem dos brasileiros no exterior vai sendo trincada. Um bom exemplo é o que aconteceu com o caso do assassinato de Marielle. A notícia ressoou muito no exterior. Ficou muito evidente como há questões ainda muito mal explicadas. Agora são quase dois anos da morte de Marielle e ainda estamos querendo saber quem matou. Esse tema impactou grandemente no exterior, como tem impactado grandemente uma série de medidas do nosso chefe do Planalto que tem censurado, tem intimidado, tem acusado moralmente, tem atuado contra o jornalismo, contra a academia, contra os novos agentes sociais inscritos nos discursos das minorias. Alguém que simplesmente demitiu um cientista ilibado que apenas falou a verdade, que a nossa Amazônia está ardendo e nunca existiram tantas queimadas como agora. Então, eu acho que a imagem do brasileiro, a imagem do Brasil, tem se alterado largamente nesses últimos anos.  (Nota do Editor: as referências são à vereadora Marielle Franco (PSol/RJ) assassinada por milicianos em 14 de março de 2018 no Rio junto com seu motorista, Anderson  Gomes; e ao presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Ricardo Galvão, exonerado em agosto de 2019 por Bolsonaro por divulgar dados sobre o desmatamento da Amazônia).

EC – Você tem uma grande experiência acadêmica no exterior. Realmente é perceptível essa mudança de imagem?

Lilia – Eu dou aula em Princeton há mais de dez anos e, se antes os alunos vinham em busca de um Brasil exótico – da capoeira, do Candomblé, dos costumes cruzados, dos costumes mestiços – agora, cada vez mais, os próprios alunos vêm atrás do Brasil pra entender o que está acontecendo, o que se passa agora na nossa agenda. Vou lhe dar mais um exemplo: neste semestre, eu estou dando uma aula sobre a Amazônia na história; de que maneira a Amazônia e as suas populações apareceram desde o século 16, 17, 18, chegando até a contemporaneidade. É um curso que para os moldes de Princeton é muito grande e as pessoas, os alunos, estão muito bem informados sobre o problema da Amazônia. Eles não vão ao encontro de um curso que vai falar da Amazônia como um paraíso perdido no Brasil, portanto, como o Brasil da grande natureza. Eles estão muito preocupados com a situação atual e com a falta de medidas por parte do nosso governo. Sobretudo, estão muito preocupados com a atuação de um Ricardo Salles, que é um ministro que deveria proteger o meio ambiente, mas que claramente tem no exterior uma imagem contrária. Portanto, sim, voltando à sua pergunta anterior, a imagem do Brasil está sendo, de fato, revertida.

EC – Essa imagem do brasileiro cordato, aberto, começou a reverter para a intolerância com a ascensão da nova direita?

Lilia – Eu considero, sim, que a ascensão do governo Bolsonaro, que é essa ‘nova direita’, muito vinculada a uma postura do Trump foi decisiva, sim. E ela é vista aqui no exterior com muita preocupação e com muito espanto também. Por que, de fato, se trata de uma reversão de expectativas
EC – Tens recebido muitas perguntas sobre a atual conjuntura do Brasil?
Lilia – Sim. Há muitas questões sobre o problema do environment (meio ambiente), muitas questões sobre o racismo pautadas por Marielle Franco e outras questões atuais. Muita preocupação com relação à censura: o documento que circulou no contexto da indicação do Oscar para o filme da Petra (Democracia em Vertigem) teve grande ressonância aqui nos Estados Unidos. A questão não era tanto se era preciso ser a favor ou não do filme. O fato de o presidente declarar publicamente que não havia assistido, mas que o considerava um filme de ficção. Então, esse tipo de atitude do governo Bolsonaro, aquele vídeo feito pelo secretário Nacional da Cultura, o Alvin, no qual ele de alguma forma aludia o nazismo foi visto com imensa preocupação.

EC – Já cansou de tentar explicar (risos)?

Lilia – Eu (risos) não me cansei de explicar. Você ri e eu também. Vejo que é o meu papel explicar, assim como eu tenho me colocado publicamente no Instagram.  Cada dia eu posto uma nova notícia, informo, mas também dou a minha interpretação. Eu, como intelectual que sou, tenho visto com grande preocupação a atual conjuntura brasileira e sou partidária da ideia de que essa série de ataques à nossa democracia e à nossa República precisa ser repudiada tanto no Brasil como no exterior. Então, eu não tenho aberto mão dessa postura. Ao contrário. Eu tenho me manifestado com muita frequência tanto no Brasil como no exterior contra as atitudes desse governo, sobretudo no que se refere à censura e a tentativa regressista.

EC – Falando em regressista, como você vê o ataque aos direitos conquistados pela sociedade?

Lilia – Direitos nós precisamos conquistar sempre, não é? Não existe direito definitivamente conquistado, mas o que nós temos assistido no Brasil é, de fato, um projeto de Estado que pretende reverter ganhos arduamente conquistados nesses 30 anos, se não de democracia absolutamente realizada, mas de democracia plena. Esse é um governo que tem tentado reverter várias conquistas do feminismo, adotando uma postura muito conservadora, muito retrógrada, em relação a esses temas, em relação aos movimentos quilombolas, aos movimentos indígenas, enfim, um governo que tem uma postura que eu diferencio de uma postura conservadora.

EC – Por exemplo?

Lilia – Acho que para uma democracia funcionar bem, bons conservadores são muito importante. A democracia funciona melhor nas diferenças, no embate. O conservador é aquele que pretende conservar o status quo, mas não abre mão do diálogo. Nós estamos falando de um governo que não dialoga, de um governo que fala e depois volta atrás e se desdiz. Esse é antes um governo retrógrado, o que é muito preocupante. Eles querem fazer uma espécie de backlash no sentido de anular conquistas que foram sendo realizadas durante esse período tão largo dessa nossa história brasileira.

EC – Na introdução do seu livro você diz que história ajuda a produzir uma discussão mais crítica sobre o passado, presente e sonho de futuro. Qual o sonho de futuro da cidadã Lilia Schwarcz?

Lilia – Bom… Qual é o meu sonho de futuro. Eu penso que nós precisamos de um Brasil não tão distópico, como é esse Brasil que nós estamos conhecendo. Um Brasil não tão odioso, como é esse Brasil que vai aparecendo nas falas dos ministros da Educação, das Relações Exteriores, da nossa ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Um Brasil mais amplo, um Brasil mais plural, um Brasil mais variado. Um Brasil mais utópico! Nós precisamos de mais sonhos e de menos pesadelos.

sábado, 11 de abril de 2020

'Desta terra nada vai sobrar a não ser o vento que sopra sobre ela'

'A reação já começou com a desobediência civil', diz Ignácio de Loyola Brandão, autor de distopia política

Paula Sperb, FSP, 11/04/2020

De dentro do seu apartamento no bairro de Pinheiros, em São Paulo, o escritor Ignácio de Loyola Brandão, 83, escuta as panelas batendo pontualmente às 20h30 nos últimos dias. “Pego uma frigideira, pego o que for e vou bater”, contou à Folha, em entrevista por telefone.
Para Brandão, porém, os panelaços contra o presidente Jair Bolsonaro não são a única forma de protesto adequadas ao momento. “Parece que a reação já começou com a desobediência civil”, diz. Para ele, “governadores, prefeitos e o povo estão na contramão das ordens do presidente”.
Antes que Bolsonaro fosse eleito, Brandão escreveu uma distopia que mostra um Brasil governado por um presidente sem cérebro, assolado por epidemias onde caravanas passam transportando os mortos.

O escritor Ignácio de Loyola Brandão, 83 - Letícia Gullo/Divulgação

Na ficção, conselheiros do presidente elaboram campanhas com dizeres como “Não se entregue ao abismo, trabalhe” e “Para frente, Brasil. Siga”.
Romance mais recente do imortal da Academia Brasileira de Letras, “Desta Terra Nada Vai Sobrar a Não Ser o Vento que Sopra Sobre Ela” (Global, 2018), foi escrito nos quatro anos anteriores ao seu lançamento. A obra mostra um Brasil sem os ministérios da Saúde e da Educação e completa a trilogia iniciada por “Zero” (1975), censurado pela ditadura militar, e “Não Verás País Nenhum” (1981), em que o aquecimento global já é uma realidade.
“Não sou adivinho, não sou nada. Mas sou um homem que faz literatura a partir da ideia de que não existe absurdo nesse mundo, tudo é literatura e tudo é possível”, disse.

O autor cumpre o isolamento domiciliar para evitar o contágio e a proliferação do novo coronavírus. “Tem gente que quer abrir comércio imediatamente. Eu não quero sair, não sou suicida. Somos governados pelo gabinete do ódio”, disse.

De certa maneira, o senhor antecipa a realidade por meio da ficção. Isso ocorreu com 'Não Verás País Nenhum' e agora com 'Desta Terra Nada Vai Sobrar...'. Como o senhor faz isso?

Imagino coisas que podem ser absurdas, que podem nunca acontecer. Só que acabam acontecendo. A ideia do livro surgiu quando li no jornal a possibilidade de, no futuro, a ciência produzir um homem sem cérebro, sem emoção, sem sentimentos, sem nada.
No livro tem o primeiro presidente sem cérebro. Isso foi quase um ano antes da eleição [de 2018]. O que a gente tem hoje no poder? Um homem sem cérebro, sem sentimento, sem emoção, sem comoção, indiferente a tudo, ao povo que governa, frio.
Eu não tenho culpa da minha literatura vir na frente, a vida que vem bem atrás. Quando escrevi 'Não Verás País Nenhum' [1981], o aquecimento global e doenças estranhas eram possibilidades e está aí o coronavírus. Fico surpreso comigo mesmo. Não sou vidente. Sou um escritor que sabe que a literatura é uma coisa que faz você ver a possível vida que vem.

'A vida normalizara-se naquela anormalidade'. O senhor abre o livro com essa frase de Euclides da Cunha, em 'Os Sertões'. Por quê? 

No momento em que a anormalidade é o normal, com os índices de feminicídios, as milícias que comandam o Rio de Janeiro e as facções, isso não é o normal. Isso é uma anormalidade dentro do cotidiano. A gente vive uma situação de medo, de sobressalto.

Sob Bolsonaro, a vida 'normalizou-se na anormalidade'?

Mais do que nunca. Nós estamos sendo conduzidos como na fábula do flautista que toca e conduz os ratos que vêm atrás para o precipício. Este homem está nos jogando do precipício. Eu não estou atrás, mas muita gente está. O que ele pretende? Tenho 83 anos, nunca vi um presidente assim, tosco, sem cultura, analfabeto, autoritário, um soldadinho de chumbo que está lá. Tudo isso é anormal. Isso não é a normalidade, a normalidade seria respeito à lei, ternura com o povo, esse povo que precisa salvar. Porque estamos condenados à morte. Tem gente que quer abrir comércio imediatamente. Eu não quero sair, não sou suicida. Somos governados pelo gabinete do ódio.

'A caravana leva os mortos por dengue, zika, H1N1, chikungunya, varíola, obesidade mórbida, malária, febre amarela'. Em outro trecho, o senhor escreveu: 'A cada minuto, pessoas morrem nas ruas, ninguém toca nelas, é o medo. Ninguém sabe há quanto tempo não existe mais o Ministério da Saúde'. É o que está acontecendo com o coronavírus?

Está acontecendo. Esse presidente constrange o ministro dele, da Saúde, o único que estava fazendo alguma coisa, mas teve que alinhar ao lado dos absurdos dele. Faltam leitos, exames e se estourar, vai ser um sufoco. A caravana que descrevi está acontecendo na Itália. Basta ver as filas de caminhões levando os mortos para serem enterrados, queimados. O livro é muito mais que o Brasil hoje. Fiquei assustado [quando a repórter da Folha leu os trechos]. Tem muita coisa que às vezes se escreve até em transe. Depois que a gente lê, fala: 'Meu Deus!'. Não sou adivinho, não sou nada. Mas sou um homem que faz literatura a partir da ideia de que não existe absurdo nesse mundo, tudo é literatura e tudo é possível.

'Um daqueles presidentes obrigou todos a obedecerem aos preceitos elaborados pelos Comunicadores Aconselhantes, em remotas eram conhecidos como marqueteiros, raça inextinguível'. Entre os preceitos estavam 'Não se entregue ao abismo, trabalhe. Não atrapalhe, colabore. Não pense em depressão, acredite no mercado. Para frente, Brasil. Siga'. Lembra a campanha que Bolsonaro divulgou de que o 'Brasil não pode parar' em meio à pandemia, não?

Exato. Fiquei arrepiado, não lembrava disso. O título do livro é um poema do Bertolt Brecht, quando ele fala sobre Alemanha e vem o nazismo. É muito simbólico do momento. A história vai se repetindo e a literatura retrata tudo isso. Como é possível seguir um homem que prega tortura, fazer mal para o outro, fazer dor, fazer sofrer? Como pode ser um líder? Aliás, o mundo está carente de líderes com Trump nos Estados Unidos, Boris Johnson no Reino Unido, Orbán na Hungria, a coisa está feia. Nem o exemplo da Itália, cujas mortes aumentam justamente porque não se isolaram, amedronta este homem [Bolsonaro].

No seu livro, idosos estão autorizados a optarem por uma 'autoeutanásia', para que não sobrecarreguem as famílias. Com o coronavírus, os idosos são um grupo de risco.

No livro, largam eles para que morram, se jogam de uma montanha. Nós, idosos, estamos sendo jogados do alto das montanhas. Não poderiam sair, mas estão autorizando a sair na rua, que se trabalhe. Está autorizada a eutanásia no país. Meu livro não é o futuro, é o agora. Fico feliz e infeliz de constatar isso. Fiquei muito triste.

'Depois de sucessivos impeachments, a classe Astuta [políticos] e parte da população tomaram gosto e passaram a apoiar um impeachment atrás do outro. Para os parlamentares, foi um alto negócio. A cada pedido de impeachment, o presidente acuado passava a comprar os votos, disfarçados em emendas necessárias ao desenvolvimento da nação.' Assim como no livro, o senhor acha que teremos mais um impeachment?

Não tem muita condição. Tem os motivos, mas não tem um Congresso preparado. Tem um grupo, que vem diminuindo, que apoia [Bolsonaro]. Se um impeachment é posto em votação e não se realiza, aí teremos a instalação de uma ditadura fascista. Ele vai aproveitar e dá o golpe. Não é o momento de tentar impeachment, mas por meios legais [contê-lo]. Há uma história de provar a insanidade mental [do presidente], outros dizem que a insanidade é toda planejada. Mas também se disse que o Hitler era insano e não era, era tudo realidade.

'O governo desistiu de manter o Sistema Educacional, alegando que, para haver liberdade e poder formar a cidadania que leva à verdadeira democracia, cada um deve estudar como quiser, onde quiser, o que quiser, como puder, se puder' e foi 'erguido o Monumento Comemorativo ao Fim do Ensino.'

O que o Weintraub [ministro da Educação] está fazendo, senão isso? Um ano e quatro meses de governo e o que aconteceu? Nada. Os professores não sabem o que fazer, os planos são ideológicos. Esse ministro não existe. Um homem que diz para uma pessoa que 'está perto da égua sarnenta e desdentada da sua mãe'. O que é isso, meu Deus? Um ministro da Educação sem educação, grosso, horrendo, nojento. Esses pais [que defendem educação domiciliar] foram educados? Não são pedagogos. Vão desensinar. A gente está em cima de um esgoto.

O que pode ser feito para impedir retrocessos?

Parece que a reação já começou com a desobediência civil, pregada pelo filósofo autor de “Walden”. Obedecer a Henry Thoreau e não a Olavo de Carvalho. Governadores, prefeitos e o povo estão na contramão das ordens do presidente. Esta é a resposta. Deixá-lo cada vez mais isolado, não atender seus apelos, seus comandos. Ocorreu uma carreta pró-Bolsonaro na Consolação. Mas por que os seguidores dele não vão caminhando? Estão isolados dentro dos carros. Assim é fácil.

O senhor bate panela?

Bato panela. Quando não bato, minha mulher vai na janela bater. Pego uma frigideira, pego o que for e vou bater. Antes de ficar em isolamento no interior com sua família, meu filho veio aqui e bateu panela também. Bateu tão forte que amassou a panela inteira.
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Ignácio de Loyola Brandão, 83, é escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras, eleito como integrante por unanimidade em 2019. Nascido em Araraquara (SP), trabalhou no jornal Última Hora. Autor de contos, crônicas, livros infanto-juvenis e romances. Vencedor de prêmios como Jabuti, Biblioteca Nacional e Machado de Assis

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Filmes parte 4

Diário de um cinéfilo

Aurora, 1927, F.W. Murnau
Crepúsculo de uma raça, Cheyenne Autumn, 1964, John Ford
A Hora e a Vez de Augusto Matraga, 2011, Vinicius Coimbra
Arca russa, Russkiy kovcheg, 2002, Aleksandr Sokurov
7 Homens Sem Destino, 7 Men from Now, 1956, Budd Boetticher
Embrutecidos pela violência, Along the Great Divide, 1951, Raoul Walsh
Golpe de misericórdia, Colorado Territory, 1949, Raoul Walsh

1917, 2019, Sam Mendes

Moby Dick, 1956, John Huston
Nosferatu, 1922, F.W. Murnau
Sétimo selo, 1957, Det sjunde inseglet, Ingmar Bergman
O matador,  Dip huet seung hung, 1989, John Woo
As Duas Faces da Felicidade, Le bonheur, 1964, Agnès Varda
O homem do oeste, 1958, Man of the West, Anthony Mann


29/01/2020
Aurora, 1927, F.W. Murnau


Um homem pondera matar sua inocente esposa, mas é acometido pela culpa, e a mulher reage com terror quando suas intenções ficam claras. Enquanto isso, o marido que tenta levar adiante o plano é atormentado por uma sedutora mulher da cidade, que chega a assombrar os pensamentos do homem. O casal do interior acaba tendo suas vidas destruídas por causa dessa mulher que veio de fora.
"A partir de um excelente roteiro de Carl Mayer, Aurora, é a obra mais perfeita de Murnau. Apesar de realizada em Hollyood, permanece profundamente germânica. A mobilidade da câmera, que que domina a narrativa, é utilizada com tal maestria que quase não é percebida, numa sequência em que o jovem pescador espera a amante na neblina dos pântanos. (George Sadoul, Dicionário de Filmes, p.43, L&PM, 1993).

02/02/2020
Crepúsculo de uma raça, 1964, John Ford


Após o desrespeito do acordo de entrega de suprimentos à tribo indígena Cheyenne por parte do governo, mais de 300 índios decidem deixar sua reserva rumo ao Wyoming, terra onde sempre estiveram. O capitão da cavalaria americana Thomas Archer (Richard Widmark) é designado para a missão de contê-los e evitar sua viagem. No entanto, Archer muda de ideia quando encontra com os indígenas.
Seguindo a onda de seu tempo histórico e da indústria que representava os índios sempre como inimigos selvagens, demorou 47 anos para que o diretor (John Ford) assumidamente fizesse um “filme de redenção” para com os povos indígenas, filmando um projeto inicialmente apresentado a ele por Richard Widmark e prontamente rejeitado. Anos mais tarde, quando um argumento que escrevia ao lado de seu filho Patrick Ford precisou de maior impulso (até então, a base para o texto era o livro The Last Frontier, de Howard Fast), o material antes apresentado por Widmark veio à tona, pois estava relacionado ao grande êxodo Cheyenne, um dos temas do argumento. Neste momento da pré-produção foi que o livro Cheyenne Autumn de Mari Sandoz entrou em cena e deu o contorno dramático necessário para o roteiro que seria escrito por James R. Webb. (Luiz Santiago, Plano Crítico)

04/02/2020
A Hora e a Vez de Augusto Matraga, 2011, Vinicius Coimbra


Augusto Matraga (João Miguel) é um fazendeiro orgulhoso, valente e mulherengo, que está à beira da falência. Sua esposa Dionóra (Vanessa Gerbelli) resolve abandoná-lo com a filha do casal, ao receber uma proposta feita por Ouvídio Moura (Werner Schunemann). A situação faz com que Augusto fique enfurecido e parta para a casa de Ouvídio, em busca de vingança. Lá ele é espancado pelos capangas de Consilva (Chico Anysio), que o marcam com ferro e o atiram em um precipício para morrer. À beira da morte, Augusto é encontrado por um casal, que cuida de sua recuperação. Cinco anos depois ele deixa o local, completamente mudado e agora temente a Deus.
O grande risco do longa é ser comparado ao clássico A Hora e Vez de Augusto Matraga (1966), obra absolutamente fabulosa dirigida por Roberto Santos e estrelada por Leonardo Villar e Jofre Soares. Restaurado recentemente, o filme conta com tomadas muito ousadas para sua época, sendo um dos grandes ícones do Cinema Novo.
A "sorte" do novo longa está no fato de que existe toda uma geração - na verdade, duas ou três - que não tem conhecimento da obra original, inspirado em conto homônimo de Guimarães Rosa. Sem a comparação, a nova produção ganha ainda mais força. A direção é de Vinícius Coimbra, em sua estreia em longas após uma carreira na TV.
Augusto Matraga (João Miguel) é um violento fazendeiro do sertão de Minas Gerais que descobre que sua esposa (Vanessa Gerbelli) foi levada por um rival da região (Werner Shunemann). Ele vai atrás de vingança e acaba batendo de frento com o Major Consilva (Chico Anysio). Matraga é cercado pelos capangas do major e acaba espancado e dado como morto. Mas é resgatado por um casal de idosos e tentará retomar sua vida sem a violência de antes.
O elenco conta ainda com as ótimas participações de José Wilker, José Dumont, Júlio Andrade e Irandhir Santos. Wilker e Anysio, que vieram a falecer antes do lançamento da produção, surgem em participações duras e bem desenvolvidas, mas o destaque da produção vai mesmo para João Miguel. O ator, que já havia brilhado em obras como Cinema, Aspirinas e Urubus, Estômago e outras, entrega uma performance marcante e muito complexa. Ele dá vida a um personagem perturbado pelo passado, com momentos de brutalidade e outros de espiritualidade.
A Hora e a Vez de Augusto Matraga conta com um vigor técnico impressionante. A direção de fotografia de Lula Carvalho, que contou com a assistência do pai Walter Carvalho, é primorosa, seja pela beleza das tomadas abertas ou pela sutileza dos planos-detalhe. Outro destaque é a utilização de uma fotografia mais granulada, que remete aos clássicos faroestes americanos. A direção de arte, o figurino e a maquiagem também merecem destaque, bem como a trilha sonora de Sasha Amback, que usa e abusa de temas de Tom Jobim, que caem como uma luva no cenário do filme. (Lucas Salgado, ADOROCINEMA)

03/02/2020
Arca russa, 2002, Aleksandr Sokurov


Arca Russa foi filmado em um único dia, pouco antes do solstício de inverno de 2001 e em um único e histórico plano-sequência de 96 minutos. Através dele, Aleksandr Sokúrov, que antes de ser cineasta é historiador, metaforiza a passagem bíblica do dilúvio e da Arca de Noé para nos fazer rememorar 300 anos de História da Rússia em um passeio pelo Museu Hermitage, o complexo monumental que inclui o famoso Palácio de Inverno dos Romanov e que serve como reflexão sobre a literatura, escultura, artes plásticas, música, arquitetura, teatro e, de maneira metalinguística e na ponta do iceberg, o cinema da “Grande Mãe” através dos tempos.
O filme é conhecido por seu pioneirismo técnico [notem que a ideia de plano-sequência não era inédita no cinema, mas nunca houvera sido feita com 96 minutos sem cortes com essa proposta narrativa — um filme de longo plano chamado Time Code, quase com a mesma duração, mas com proposta narrativa diferente, menor elenco e espaço, já tinha sido realizado dois anos antes], pela tremenda e admirável logística de filmagem pelo Museu, lidando com 2 mil atores, passando por 33 salas, filmando 3 orquestras em três diferentes ocasiões e, no plano conceitual, refletindo sobre a questão russa a partir da visão cultural e “disputa” com os medalhões europeus, tais como França, Itália, Alemanha, Áustria…
O filme é uma metáfora a duas arcas bíblicas, à já citada Arca de Noé, e também à Arca da Aliança, que era uma espécie de “museu ambulante” para o povo hebreu, carregando as coisas mais valiosas para sua identidade e prova dos milagres que Deus havia realizado para eles. Desse modo, o Hermitage tanto flutua sob as águas do dilúvio da História, arrastado pela memória, mas também mantido vivo por ela; quanto é simbolicamente carregado pelo povo russo, pois contém em seu interior algumas das mais valiosas realizações humanas, vindas de diferentes lugares e épocas.
Para aproveitar bem o filme, o espectador deve entender que Arca Russa é um exercício cinematográfico e histórico, uma viagem no tempo exposta de forma semidocumental e guiada por dois personagens, um cineasta do século XXI perdido no tempo (o próprio Sokúrov, cuja visão subjetiva é o foco da câmera) e Marquês de Custine, também chamado de O Estrangeiro e O Europeu. Desde a chegada de Sokúrov ao passado e o início de sua viagem temporal, onde cada grupo de salas representa décadas ou séculos diferentes (uma justaposição de tempos, pois o conteúdo artístico exposto nas salas é, na maioria das vezes, mais antigo do que o tempo histórico mimetizado nas cenas), vemos que um dilema é destacado: a europeização da Rússia, questão tão conhecida dos escritores nacionais no século XIX.
A partir da metade da obra, esse dilema vai aos poucos ganhando cores políticas e o diretor faz duras mas disfarçadas críticas ao comunismo e sua “arte para as massas” — talvez venha dessa interpretação o apontamento de que o filme seja reacionário e maneirista, o que evidentemente é uma bobagem — e fala sobre as mortes em massa no país, durante a invasão da Alemanha, na 2ª Guerra Mundial, e durante todo o período Stalinista (a sala dos caixões é um misto de terror e humor negro que traz isso à tona).
Os diálogos se dividem em pequenas frases, discussões ou acertos vistos de maneira solta, todos caraterísticos de sua época, a começar pelo Czar Pedro, o Grande (1672 – 1725), que é visto batendo em um General, logo no começo do filme, e terminando com o último baile dado no Palácio de Inverno (1913), quatro anos antes da Revolução Russa, evento que acabaria por depor e assassinar a família Romanov, da qual vemos um pequeno (e esteticamente belo) momento, logo antes do baile, quando se reúnem à mesa.
Entre esses dois extremos, o filme escorre por um ensaio de uma peça de teatro, assistido pela Czarina Catarina II, a Grande (1729 – 1796) e que mais à frente, já velha, vemos correr pelos jardins suspensos; à recepção do Embaixador da Pérsia feita pelo Czar Nicolau I (1796 – 1855), na Sala São Jorge do Hermitage, onde em 1906 se reuniria a Duma, no início da fragilidade da monarquia russa; a um momento com a família do Czar Nicolau II (1868 – 1918), onde também é destacada a mais travessa de suas filhas, a Princesa Anastásia; e, como um ponto histórico fora da curva, projetado para um “futuro próximo”, a citação ao Cerco de Leningrado (1941 – 1944).
É esse cenário histórico, sonhador, simbólico, metafórico, artístico e, por que não, caótico e confuso, que Sokúrov mergulha e manipula com maestria. Ele se desloca como um cineasta do século XXI (filmando Arca Russa em 2001) para o século XIX, sem saber aparentemente como, e retrocede para o século XVIII, avançando no tempo a partir daí, conhecendo personalidades históricas, encontrando-se com o Marquês de Custine e balbuciando, repetindo ou negando muitas das conclusões negativas que o Marquês faz sobre a Rússia.
A ambivalência narrativa aumenta e se torna mais deslocada — como em um verdadeiro exercício de memória, onde as coisas se confundem e as falas se tornam uma bagunça mista de lembrança e invenção — ao sabermos que as falas de Custine foram retiradas do conjunto de livros La Russie en 1839, escritos pelo Marquês após o período em que esteve na Rússia.
Passado, presente e perspectivas de futuro, sob diferentes pontos de vista, são pinçados no filme tendo obras de arte e salas do museu como motivadores críticos. Isto pode até afetar a experiência do público no início e travar um pouco a sessão no miolo da obra, que é menos incisiva do que o restante, mas se olharmos o filme como um fluxo físico da memória de uma nação, é natural que tenhamos, em trezentos anos, momentos vivos e momentos de bastidores; silenciosos e musicais; claros e escuros a serem considerados e representados.
A “Rússia de ontem” e a “Rússia de hoje” são espelhadas e geram perguntas, pessimismo e uma tomada de consciência sobre o que se é a necessidade de avançar na História, não parar no tempo, prosseguir. Isto é aplicado tanto ao contexto sociopolítico do filme quanto à maneira de fazer cinema de Sokúrov, com seu virtuosismo estético e o fato de aqui, optar filmar com câmera digital (em 2001, o formato metia medo na maioria dos diretores e havia a polêmica do “cinema pasteurizado” que o digital geraria), uma que ele mesmo mandou construir para poder suportar o armazenamento de material em disco rígido, tudo isso em um aparato que se ligava à steadicam diretor de fotografia Tilman Büttner, que baila pelo Hermitage contornando sombras, capturando diferentes nuances de luz natural e bem organizadas intervenções de luz da própria produção e fazendo de cada sala-e-época uma diferente experiência visual para o espectador.
Com um intenso trabalho de toda a equipe técnica e setores que precisaram fazer pesquisas diferentes para cada espaço visitado pela câmera (figurinos, cabelo e maquiagem, principalmente), Arca Russa termina com o limite do “futuro a ser descoberto“, como o mar cheio de monstros que os navegadores do final do século XV um dia enfrentaram. Amedrontador e cercando todo o Museu, o mar é a própria encarnação do tempo, isolando o passado em um [quase] inacessível lugar para o qual retornar é impossível, a não ser através da lembrança. Arca Russa é a máxima exposição dessa lembrança. Filmada em um único fôlego, fluindo como o tempo, a película se sagra não apenas como um memorável tour de force técnico, mas também como uma reflexão sobre a História da Arte durante um certo período da História da Rússia. Inegavelmente uma obra dirigida por um historiador. Um dos filmes mais interessantes do início do século XXI. (Plano Crítico, 17/08/2016)

09/02/2020
7 Homens Sem Destino, 1956, Budd Boetticher

Minha admiração por Sete homens sem destino não me levará a concluir que Budd Boetticher é o maior diretor de western. Mas somente que seu filme talvez seja o melhor western que já vi depois a guerra. Com certeza é mesmo difícil discernir entre as qualidades desse filme excepcional, as que vêm especificamente da mise-en-scène, e as que devem ser atribuidas ao roteiro e a um diálogo fascinante, sem falar, é claro, das virtudes anônimas da tradição que só pedem para se expandir quando as condições de produção não as contrariam. (André Bazin, O que é o cinema? p.257, Cosacnaify, 2014).

12/02/2020
Embrutecidos pela violência, 1951, Raoul Walsh

 Embrutecidos pela violência, 1951, Raoul Walsh
O jovem oficial federal Len Merrick (Kirk Douglas) vive atormentado por se sentir responsável pela morte do pai. Ele encontra uma chance de se redimir ao salvar Timothy Keith (Walter Brennan), que foi acusado pelo assassinato de um jovem, de um linchamento iminente e o leva a uma outra cidade para que possa ter um julgamento justo. Apesar de condenado por esse crime, Tim contará com a ajuda de Merrick para encontrar o verdadeiro assassino e poder provar sua inocência.

13/02/2020
Golpe de misericórdia, 1949, Raoul Walsh


Walsh, tal como Ford, tinha predileção por seu grupo de atores e teve sorte de ter Henry Hull com ele em diversos papéis de caracterização (Um punhado de bravos, O Xerife do Queixo Quebrado). Malone, quase irreconhecível, vive a moça pura e sonhadora em contraste com a mais agressiva personagem vivida por Mayo. E de início já se constrói uma dúvida para o espectador: com qual das duas o mocinho ficará? Se a história, sobretudo em sua primeira metade, não chega a ser das mais atrativas, sua elaboração visual – planos longos e fotografia em p&b impecável – é bem mais convidativa. A extravagante Colorado de Mayo parece ecoar o tom over da Pearl de Jennifer Jones em Duelo ao Sol, mas pelo excesso com que é composta visualmente que propriamente por suas atitudes ou falas. A sequência do assalto ao trem é um verdadeiro primor da descrição da ação, com detalhes, guardadas as devidas proporções, dignos de um Melville ou Bresson. Como não é nada incomum no ethos do western (que o diga o clássico No Tempo das Diligências) as aparências enganam, e a sonhadora pura mostra seus dentes e olhos de traição ao final, enquanto a agressiva Colorado demonstra toda a fidelidade e apoio ao seu homem na hora mais difícil. Quando se observa a situação idílica demasiado antecipada logo se imagina que o casal não concretizará o seu enlace amoroso ao final, pois caberá a Wes ser punido por ter praticado o “último crime” antes da planejada regeneração, embora não o tenha feito exatamente por mal, mas por sinal de fidelidade ao mandante da ação, a quem, inclusive, assassinará depois. Se ao western é permitido ocasionalmente essas licenças de ambiguidade ao herói, é no filme de gangster dos idos da década anterior que imperará a identificação atravessada com o herói-bandido, tornando-se, por conta disso, o primeiro filme norte-americano a ser censurado na Alemanha Ocidental. Necessário é, nesse sentido, o processo de polimento que transforma Colorado de mulher de um mau caráter algo por inércia e McQueen, astuto e frio assassino quando é necessário sê-lo, em figuras com as quais se se possa identificar. Algumas imagens são simplesmente demasiado óbvias, em suas associações, como a que McQueen observa aves de rapina próximas de si, imagina que este será o seu futuro imediato e automaticamente antecipamos que um esqueleto humano será apresentado próximo. Ou a já esperada cusparada de repulsa da “honra dos feridos” que Colorado lança à proposta de dividir a recompensa pela captura de McQueen. Refilmagem de Seu Último Refúgio, dirigido pelo próprio Walsh oito anos antes, com Humphrey Bogart e Ida Lupino nos papéis principais. A cena decisiva final, com tiroteio trágico em meio aos despenhadeiros, também encerra o já referido Duelo ao Sol. Warner Bros. (Magia do real)

16/02/2020


A guerra em primeira pessoa por Barbara Demerov

Os cabos Schofield (George MacKay) e Blake (Dean-Charles Chapman) são jovens soldados britânicos durante a Primeira Guerra Mundial. Quando eles são encarregados de uma missão aparentemente impossível, os dois precisam atravessar território inimigo, lutando contra o tempo, para entregar uma mensagem que pode salvar cerca de 1600 colegas de batalhão.
São muitos os filmes que abordam a guerra num panorama que abrange diversos horizontes e pontos de vista, dando prioridade a consequências impressionantes que podem acontecer no ar, na terra ou no mar. Mas há outro tipo de olhar em filmes do gênero – um olhar que não vê a necessidade de começar pelo grandioso para, só então, chegar a algo realmente particular dentro deste universo. Não que armas, uniformes, trincheiras, destruição e morte sejam características limitadas em 1917, mas todo e qualquer elemento é inserido em medidas mais ínfimas se comparadas com o nível de humanidade exposto na jornada dos cabos Will Schofield (George MacKay) e Blake (Dean-Charles Chapman).

O grande foco do diretor Sam Mendes é contar uma história sobre o homem e não sobre a guerra em si. Com tal abordagem, 1917 nos faz refletir sobre o que pode levá-lo mais adiante: a vontade de voltar para casa ou o senso de responsabilidade para com sua pátria. E, dessa forma, o diretor transforma seu filme numa jornada repleta de emoção e altos e baixos. É uma experiência definitivamente imersiva e muito intensa – e o fato de Mendes ter estabelecido uma narrativa no formato de um falso plano-sequência é o que amplia as sensações que o público receberá sem qualquer resistência.
Assim, 1917 transcende o gênero "guerra" para atingir um valor humanitário e altruísta dentro de sua linguagem cinematográfica. Seus dois protagonistas (com a atenção mais voltada a Schofield) são bastante verossímeis e garantem a atenção do espectador não só por serem dois jovens adultos no meio de uma batalha desoladora, mas também por serem jovens inseridos brutalmente numa experiência muito particular: eles estão descobrindo um novo mundo, se conhecendo melhor perante ações e pensamentos enquanto soldados e indivíduos, e também embarcando num terreno incerto, que cobra muito mais (em certas ocasiões, em questão de segundos) do que cada um pode assimilar.

Por acompanharmos toda a história através de seus olhos e sua inocência, tudo o que os dois jovens adultos sentem é elevado a máxima potência para nós, espectadores. A câmera que os segue pelas costas em locais abandonados é a mesma que registra momentos de tensão em silêncio ou de um leve respiro entre uma surpresa e outra. Há apenas um único respiro que soa afastado demais da veracidade exibida 99% do longa, ainda que esta seja uma pausa necessária para compor um personagem.

Aliado ao excelente trabalho de fotografia de Roger Deakins (que aqui se faz tão presente quanto o trabalho de direção, pois tudo o que está nos cenários conta a história por si só), Mendes garante pulso firme do início ao fim. Tanto diretor quanto diretor de fotografia alimentam a história com elementos que ora nos fazem ver resquícios de esperança, ora nos fazem sentir a dor da guerra como ela é. Cavalos e soldados mortos que servem de escudo ou esconderijo chocam-se com a beleza de folhas de uma cerejeira no rio.

São essas nuances que permeiam a obra e é exatamente isso o que a torna diferente de filmes épicos de guerra como O Resgate do Soldado Ryan e Apocalipse Now; neste caso, elas se aproximam de obras como Platoon e O Franco-Atirador, pois tais histórias também ganham traços dedicados a expor o que a guerra faz com o homem enquanto indivíduo, e não só como as guerras são capazes de movimentar o mundo por completo.

Dedicado a deixar o espetáculo em segundo plano (com exceção da sequência em que Schofield corre no meio da primeira linha de soldados em meio a um ataque iminente, que é de tirar o fôlego), Mendes insere toda sua atenção ao fato de que esta é uma história que se desenrola ao longo de apenas um dia. O cenário é desolador, mas nem por isso ele nos impacta somente pela tristeza. Graças ao olhar do diretor para com seus atores, há esperança na melancolia e na urgência pelo sucesso da missão. Acima de ser uma grande experiência cinematográfica, 1917 também é uma prova de humanidade – e de como cada pequeno passo, seja numa caminhada ou numa corrida desenfreada, importa. (Adorocinema)

Em tempo: a primeira hora do filme é eletrizante.

21/02/2020
Moby Dick, 1956, John Huston


Houve um tempo em que o cinema se propôs a contar histórias. Histórias como contam tios e avôs às crianças da família, impressionando-as a ponto de arregalarem os olhos, aquietando os agitados, e fazendo com que a experiência permaneça pelo resto da vida. Para isso, os espectadores deixavam suas casas rumo a um lugar especial. A luz diminuía e o escuro isolava o apático cotidiano das pessoas do lado de fora, como se as defendendo do presente. Ao aumentar gradualmente, o silêncio eram as trombetas a anunciar o único recomeço possível. Como em A Rosa Púrpura do Cairo (1985), o delicado filme de Woody Allen, o cinema ocupava o espaço dos sonhos, possivelmente onde guardamos o melhor de nós.
John Huston foi um dos pilares desse momento mágico. A volúpia incontida por grandes histórias o fez levar à tela Moby Dick (1956), adaptação irretocável do clássico de Herman Melville. A história de Melville é a de Ismael, um homem à procura de aventuras que deem gosto e cor à existência. A busca o leva a embarcar no The Pequod, navio comandado pelo capitão Ahab. Homem de gênio complicado, entre as muitas peculiaridades do capitão está a obsessão com a baleia Moby Dick.
O trabalho de Huston para o seu Moby Dick é espantoso. Ainda que a comparação entre original e recriação seja sempre problemática – na maioria dos casos, um equívoco –, o diretor conseguiu igualar no cinema os méritos da obra literária. Narrado em primeira pessoa, o longa conta com Richard Basehart no papel de Ismael e o grande Gregory Peck como Ahab.
A sequência de abertura do filme, em que a narração em off, em primeira pessoa, nos apresenta o protagonista e os motivos para a viagem que empreenderá - e que, no fundo, sentimos estar empreendendo conjuntamente – é uma antecipação da escolha pela fidelidade literária. Assinado pelo diretor em dupla com o escritor Rad Bradbury, o roteiro equilibra as linguagens do cinema e da literatura em cenas antológicas, como a do sermão de Jonas e a baleia.
No início, o travelling nos leva à Igreja na qual podemos conferir uma série de inscrições alertando sobre os perigos do mar. Em seguida, o discurso impactante realizado por um Orson Welles pastor toma conta do filme. A sequência intercala os rostos amedrontados dos fiéis, entre eles o protagonista. Colocada pouco antes do início da aventura, a situação reforça a grandiosidade da empreitada em que estamos prestes a embarcar, assim como ressalta a possibilidade de não voltarmos vivos.
Reconhecidamente um realizador de épicos, Huston constrói Moby Dick apoiando-o sobre três ferramentas: as narrativas contundentes, as cenas grandiosas e a trilha sonora arrebatadora. Tal composição recria de maneira impressionante a atmosfera do gênero e os perigos em alto-mar. Tudo isso em sem deixar de lado o humor ácido característico do diretor, que encontra na figura da Igreja o alvo do momento.
Movido pela obsessão a um animal que amputara sua perna, Ahab é o personagem ideal paraJohn Huston. Atento às histórias em que os homens lutam contra fraquezas e inclinações, configurando batalhas psicológicas dificilmente passíveis de conciliação, Huston fez de Mody Dick o filme considerado impossível para muitos literatos. Da mesma forma, coroou a própria filmografia com uma obra retumbante. (Willian Silveira,)

24/02/2020
Nosferatu, 1922, F.W. Murnau


Nosferatu é um filme clássico do expressionismo alemão. Produzido em 1922, suas imagens de horror ainda conseguem nos surpreender. Foi baseado em Drácula, de Bram Stoker (1897). O diretor F. W. Murnau não conseguindo os direitos autorais com a viúva de Stoker, acabou produzindo uma versão independente, cuja narrativa preserva o enredo original de Stoker (uma das versões de Nosferatu apresenta o nome de cada personagem com seu equivalente no romance de Stoker).

Ao invés de Conde Drácula, Nosferatu é Conde Orlok, uma das mais fiéis representações filmicas do vampiro. Alto, esguio, esquálido, com orelhas, nariz e dentes pontiagudos, Murnau consegue representar com sucesso a figura do personagem macabro de Stoker. Na verdade, o horror se transfigura em Nosferatu. É a própria representação (e expressão imagética) do Mal e do estranhamento sugerido pela figura mítica do vampiro. O conteúdo do Mal se exprime com vigor na forma de apresentação do personagem. De fato, nunca o cinema de horror conseguiu expressar com tanta fidelidade a dimensão macabra da lenda do vampiro como em Nosferatu, de F.W. Murnau. O Conde Orlock, é, em si, uma figura estranha e aterrorizante. Como salientamos acima, sua imagem expressa o próprio conteúdo do seu ser maligno. Não existe em Nosferatu a dissimulação/ocultação da natureza maligna do vampiro. O horror se expressa em-si e para-si. O mal está entre nós e assim se apresenta em corpo, espírito e verdade. De certo modo, o vampiro de Murnau conseguiu ser a síntese estética do Horror que iria se abater sobre a civilização do Capital na década seguinte - nos anos de 1930 ocorreria a a ascensão do nazi-fascismo na Alemanha, pre-anunciando o horror da II Guerra Mundial. É o que Arendt considerou a “banalização do Mal”. Nosferatu poderia ser considerado a própria expressão da “banalização do Mal”. Como Mr. Hyde, o personagem de Robert Louis Stevenson em O Médico e o Monstro (de 1886), Nosferatu consegue ser a expressão em imagem da essência do Mal. Como diz a abertura do filme, “Nosferatu é a palavra que se parece com o som do pássaro da morte da meia-noite”.   .... (Giovanni Alves,)

07/03/2020
Sétimo selo, 1957, Ingmar Bergman


'O Sétimo Selo' segue atual como antídoto à intolerância religiosa
Para o bem e para o mal, "O Sétimo Selo" ficou marcado na história do cinema pela imagem da partida de xadrez entre o cavaleiro Antonius Block (Max von Sydow) e a Morte (Bengt Ekerot). Por um lado, tratava-se de uma metáfora fácil de codificar, que ajudou a ampliar o público de Bergman. Por outro, a alegoria foi tão imitada por diretores menos talentosos que se banalizou. Na revisão do filme em uma cópia tinindo de nova, tudo fica mais nítido: as cenas de xadrez têm mais nuances e mais humor do que a memória do crítico conseguia guardar. Aliás, o filme retorna como um espetáculo menos sisudo, menos pomposo, distante da impressão de autoimportância que marcou a visão anterior. Claro, ainda estão lá os densos questionamentos religiosos e existenciais de Block quando ele retorna das Cruzadas para uma Suécia devastada pela peste negra e dominada pela Inquisição. Mas há também muita leveza, até alguma picardia, nas sequências dos artistas mambembes com que Block cruza. Bergman alterna os dois tons com elegância, sem sobressaltos, para criar uma obra que instiga e entretém.
A revisão ainda coloca em xeque o senso comum de que se trata de um cineasta teatral. A contenção das atuações, a inteligência dos enquadramentos e a fluidez da câmera negam essa hipótese. Por fim, é preciso reforçar que "O Sétimo Selo" continua bastante atual na sua defesa da arte como antídoto à intolerância religiosa em tempos apocalípticos –sejam os da peste negra na Idade Média, os da Guerra Fria na época de lançamento do filme ou os de iminente catástrofe ambiental no presente.
Se a resistência ao tempo é o atestado da relevância de um filme, então não há discussão: "O Sétimo Selo" merece seu status de obra-prima.
Ricardo Calil, FSP, 23/07/2015

10/03/2020
O matador, 1989, John Woo


Um assassino (Chow Yun-Fat) aceita um último trabalho para juntar a quantia que falta para o pagamento da cirurgia oftalmológica de sua namorada Jennie (Sally Yeh), que ele cegou acidentalmente em uma missão. Traído por seu contatante, ele acaba tendo de juntar forças com o inspetor (Danny Lee) designado para prendê-lo. Nasce aí uma sangrenta parceria.

Em tempo: um filme com a marca John Woo. Perfeito.

12/03/2020
As Duas Faces da Felicidade, 1964, Agnès Varda


A vida de François, um jovem carpinteiro, não poderia ser melhor. O sol brilha constantemente, os pássaros sempre estão a cantar, ele ama sua esposa e ela o ama de volta e seus dois filhos são belos e alegres. No entanto, um simples encontro quebrará o equilíbrio da vida de François e quando o carpinteiro percebe o problema, já está apaixonado por Emilie, apesar de ainda amar sua esposa.
O filme abre com um close de um girassol. Alternam-se tomadas em close do girassol com tomadas em plano geral de um grupo de girassóis em primeiro plano e, lá ao fundo, num gramado, fora de foco, um casal e duas pequenas crianças. François e Thèrese (na foto), jovem e belo casal, está passando um domingo de sol, de verão, num grande bosque, com seus dois filhinhos, Gisou e Pierrot. Os dois são jovens, belos e felizes, se amam e amam os filhos, e no domingo fazem piquenique no bosque... François, o carpinteiro criado por Agnès Varda, homem simples, bom, honesto, marido feliz que ama a mulher e os filhos, acredita que pode ter uma felicidade a mais, somar duas felicidades. (Sergio Vaz )

Em tempo: um filme com marcas impressionistas de Agnès Varda.

15/03/2020
O homem do oeste, 1958, Anthony Mann

Link Jones (Gary Cooper) vai até a fronteira entre o Texas e o México para buscar uma professora. Quando o trem em que viaja é assaltado, Jones acaba abandonado em um local inóspito junto com uma cantora de cabaré (Julie London) e um trapaceiro (Arthur O'Connell). Ele decide então pedir ajuda a alguns de seus velhos amigos da região, que obviamente exigem algo em troca.
Anthony Mann, um dos maiores realizadores de westerns. Depois dele, Mann ainda faria a refilmagem Cimarron (1960), e em seguida lançaria duas grandes superproduções, El Cid (1961) e A Queda do Império Romano (1964), e terminaria a carreira gloriosa com um filme de guerra, Os Heróis de Telemark (1965), e um de espionagem, O Espião de Dois Mundos (1968).
O homem do Oeste do título é interpretado por Gary Cooper, e a segunda personagem mais importante da história foi feita por Julie London, a atriz e cantora de presença e voz sensualíssima que seduziu gerações inteiras.
Não foi muito bem recebido na época nos próprios Estados Unidos. Consta que o então jovem crítico Jean-Luc Godard, um adorador do cinema dos grandes realizadores de Hollywood, saudou L’Homme de l’Ouest como o melhor filme do ano, e aí os críticos americanos passaram a fazer uma revisão de seu julgamento inicial. Com o tempo, passou a ser respeitadíssimo; está, por exemplo, nos livros 1001 Filmes Para Você Ver Antes de Morrer e 501 Must-See Movies...