terça-feira, 30 de julho de 2019

Filmes - parte 2

Diários de um cinéfilo

Letter from an Unknown Woman (Carta de uma desconhecida), Max Ophuls, 1948
Ship of Fools, Nau dos insensatos, 1965, Stanley Kramer
Amores expressos, 1994, Kar-Wai Wong
Caesar and Cleopatra, 1945, Gabriel Pascal (com Vivian Leigh), de George Bernard Shaw
Mu-roe-han, (The Shameless), Seung-uk Oh, 2015
Bite the bullet (Risco de uma decisão), 1975, Richard Brooks
Dead End, (Beco sem saída), 1937,  William Wyler com roteiro de Lillian Hellman
Julia, 1977, Fred Zinnemann
The Children's Hour (Infâmia), William Wyler, 1977
El abrazo de la serpiente, O abraço da serpente, 2015, Ciro Guerra
Iyana onna (Girassóis desesperados), Hitomi Kuroki, 2016
O pão nosso (Our Daily Bread), 1934, King Vidor
A turba (The Crowd), 1928, King Vidor
La passion de Jeanne d'Arc (O martírio de Joana d’Arc), 1928, Carl Theodor Dreyer
 Caravaggio – minissérie, 2007, Angelo Longoni
The Professor (O professor), Wayne Roberts, 2018  (com Johnny Depp)
Greta (Obsessão), 2018, Neil Jordan
No man of her own  (Casei-me com um morto),1950, Mitchell Leisen
Forty Guns, Dragões da violência, 1957, Samuel Fuller
Domino, Brian de Palma, 2019
Pájaros de verano (Pássaros de verão), Cristina Gallego e Ciro Guerra,  2018
The kid, Billy the Kid: O fora da Lei, Vincent D'Onofrio, 2019
Run for the high country, Paul Winters, 2018
Red Joan, A espiã vermelha, Trevor Nunn, 2018
Quo Vadis, Mervyn LeRoy e Anthony Mann, 1951
Amem, Costa-Gavras, 2002
Le capital (O Capital), Costa-Gavras, 2012
Samba, Olivier Nakache e Éric Toledano, 2014
Man without star (Homem sem rumo), King Vidor, 1955
Oeste sem lei, 2015, John Maclean
Los perros (Cachorros), 2017, Marcela Said


06/04/2019
Letter from an Unknown Woman (Carta de uma desconhecida), Max Ophuls, 1948


O destino, os amores frustrados e os desencontros são temas recorrentes nos filmes de Ophuls. Em vez de trata-los de modo tristonho ou negativista, o diretor preferia encena-los como uma valsa, fazendo seus pares girarem com suavidade e elegância, combinando melancolia e ironia. (Cassio Starling Carlos, Movimento e repetições combinam estilo e visão do mundo, Max Ophuls – Grandes diretores no cinema, Coleção Folha, Folha de São Paulo, 2018) 

09/04/2019
Ship of Fools, Nau dos insensatos, 1965, Stanley Kramer



Fazer de espaços limitados microcosmos representativos do comportamento da sociedade é um recurso bastante utilizado pela literatura, pelo teatro e, claro, pelo cinema. A Nau dos Insensatos, que Stanley Kramer dirigiu em 1965, pega carona nesse filão. O roteiro de Abby Mann, adaptado do romance de Katherine Anne Porter, nos conduz por uma viagem de navio que dura pouco mais de um mês. A ação se passa no início dos anos 1930 e começa em Vera Cruz, no México, com destino à Bremen, na Alemanha. Dentro da embarcação, os passageiros representam e antecipam ideias, posturas e ações que seriam adotadas pelo nazismo. É curioso constatar que Kramer vinha de Julgamento em Nuremberg, elogiado drama de guerra feito quatro anos antes, e de Deu a Louca no Mundo, comédia maluca de muito sucesso popular, de 1963. Em A Nau dos Insensatos, de certa forma, ele dialoga com o filme de 1961. É como se aqui tivéssemos o prólogo e no outro, o epílogo. Diretor habilidoso, Kramer reuniu um elenco dos mais ecléticos e produziu essa sutil e ao mesmo tempo contundente parábola sobre a natureza humana, vencedora do Oscar nas categorias de direção de arte e fotografia, ambas em preto e branco. 

Vivian Leigh no filme

Simone Signoret (1921 - 1985)

Simone Signoret (1921-1985)

10/04/2019
Amores expressos, 1994, Kar-Wai Wong


Wong Kar Wai foi um dos fortes representantes das modificações no campo cinematográfico que ocorriam no triângulo Hong Kong – China – Taiwan em meados dos anos 80. Seu cinema é pontuado por uma forte vitalidade e estética primorosas, algo que já percebido em sua estreia, Conflito Mortal (1988).
A partir de Dias Selvagens (1990), seu segundo filme, identificamos a presença de uma identidade criativa, não apenas estética, mas também temática. Figurinos estilizados, pessoas comendo, pessoas fumando, a passagem do tempo através de contadores na tela (relógios, calendários), a violência e o amor em todas as suas complicações passaram a ser a alma de suas películas. Essa alma ainda recebe uma inesquecível trilha sonora e uma fotografia notável, elementos que recebem cuidados especiais do diretor, muitas vezes em detrimento do roteiro, o que é uma pena.
Mas engana-se quem acredita que ver um filme de Wong Kar Wai é apenas contemplar um desfile de ingredientes autoriais próprios e escrupulosa realização técnica. Em todas as suas incursões pelo ambiente do amor, o diretor conseguiu trazer uma visão particular para o tema, seja pela continuação do drama de personagens em seus filmes (não vamos nos aprofundar nesse tema, mas Kar Wai é responsável por uma verdadeira saga de indivíduos que atravessam décadas em cada um de seus longas), seja pela abordagem social diferenciada, ou do micro ambiente geográfico em que elas se encontram. (Luiz Santiago,) 

10/04/2019
Caesar and Cleopatra, 1945, Gabriel Pascal (com Vivian Leigh), de George Bernard Shaw




Vale pelo registro e pela Vivien.

11/04/2019
Mu-roe-han (The Shameless), Seung-uk Oh (2015)


Thriller coreano ótimo 

12/04/2019
Bite the bullet (Risco de uma decisão), 1975, Richard Brooks


O vaqueiro Sam Clayton que acaba de ser demitido, seu amigo pistoleiro, uma prostituta que precisa de dinheiro, um cavaleiro, um atleta e outros dois vaqueiros - um velho e um jovem - se inscrevem para competir na mesma corrida de cavalos, patrocinada pelo ex patrão de Clayton. Eles devem percorrer mais de mil km pelo deserto, atravessando todo tipo de obstáculos e submetendo os cavalos a terríveis condições, tudo para conseguir o prêmio final. Weak

Em 1906, o vaqueiro Sam Clayton leva uma égua até uma estação de trem no Colorado, mas no caminho se atrasa e se desencontra de seu patrão, ao salvar um potro que estava perdido. A égua pertence ao dono de um grande jornal de Denver e irá participar de uma corrida de cavalos de 700 milhas (cerca de 1.100 quilômetros) pelo interior, patrocinada por ele. O atraso faz com que Sam seja despedido. Sem nada para fazer, ele resolve se inscrever na corrida. Os outros concorrentes são: seu amigo pistoleiro e jogador Luke Matthews, com quem lutara em Cuba, na guerra contra os Espanhóis; uma prostituta que quer ajudar o marido preso;um esportista inglês; um cavaleiro mexicano com uma terrível dor-de-dente; um velho vaqueiro que chamam de "Mister" e um jovem vaqueiro de má índole e falastrão.

O filme mostra os maus-tratos de animais num faroeste, com cenas de cavalos agonizantes e mortos permeando a narrativa. Baseado num evento verdadeiro, uma corrida de cavalos no interior dos Estados Unidos no início do século XX, o filme teve locações no Novo México e Nevada.

14/04/2019
Dead End, (Beco sem saída), 1937,  William Wyler com roteiro de Lillian Hellman



Toda rua em Nova York termina em um rio. Por muitos anos as margens do Rio East ficaram cobertas pelo lixo vindo dos cortiços, mas os ricos, vendo que o curso do rio era pitoresco, moveram suas moradias na direção leste e assim as varandas de apartamentos grandes têm a vista para as janelas dos cortiços. Após 10 anos de crimes, que envolvem o assassinato de oito pessoas, "Baby Face" Martin (Humphrey Bogart) volta para Nova York para ir até o cortiço onde cresceu até ser mandado para o reformatório, pois quer rever sua mãe (Marjorie Main) e Francey (Claire Trevor), sua ex-namorada. Ele tentou disfarçar a aparência fazendo uma plástica mas não adiantou, pois foi reconhecido por Dave Connell (Joel McCrea), um antigo amigo que escapou da criminalidade e se formou em arquitetura. Porém Dave está frustrado, pois é mais um na lista dos desempregados que luta por alguns dólares. Dave o ter reconhecido não preocupa Martin, pois sabe que ele conserva a boca fechada. Martin está com Hunk (Allen Jenkins), seu guarda-costas, que sempre o relembra que ele é o maioral e que não precisa daquilo. Mas Martin não deixará o local até achar Francey, pois quando achou a mãe ela bateu no seu rosto e o renegou, então precisa fazer com que sua viagem tenha algum sentido. Quando a encontra suas doces lembranças são destruídas, pois ela se tornou uma amarga prostituta.

Filme vale pela direção e Lilian Hellman (roteiro)

15/04/2019
Julia, 1977, Fred Zinnemann


Duas amigas de infância trilham caminhos diferentes: a mais rica, Julia (Vanessa Redgrave), foi estudar em Viena e a outra, Lillian Hellman (Jane Fonda), se tornou escritora, que quando alcança a fama é convidada para ir a União Soviética. Julia, que vive na Europa, lhe pede que contrabandeie dinheiro através da Alemanha para ajudar as vítimas do nazismo, que se encontrava em ascensão meteórica. A missão apresentava perigo, pois Lillian era uma intelectual judia que rumava para a Rússia comunista. As duas têm um rápido encontro e a escritora fica sabendo que Julia tinha uma filha. Logo após retornar para a América do Norte, Lillian fica sabendo que sua rica amiga foi assassinada. Ela então viaja para a Inglaterra na esperança de encontrar a filha de Julia, a quem tinha prometido cuidar.

No início do filme tem a citação clássica de Lilian Hellman:
“À medida que o tempo passa, a tinta velha de uma tela muitas vezes se torna transparente. Quando isso acontece, é possível ver, em alguns quadros, as linhas originais: através de um vestido de mulher surge uma árvore, uma criança dá lugar a um cachorro e um grande barco não está mais em mar em mar aberto. Isso se chama pentimento, porque o pintor se arrependeu, mudou de ideia. Talvez se pudesse dizer que a antiga concepção, substituída por uma imagem ulterior, é uma forma de ver, e ver de novo, mais tarde. Essa é a minha única intenção a respeito das pessoas neste livro. A tinta ficou velha, e quis ver como me pareciam antigamente, e como me parecem agora.” (Lilian Hellman, Pentimento, 3ª edição, Francisco Alves, 1981.)

Sobre o filme? Sensivelmente impecável para quem já conhece ou não conhece Lilian Hellman. 

16/04/2019
The Children's Hour (Infâmia), William Wyler, 1977


Karen Wright (Audrey Hepburn) e Martha Dobie (Shirley MacLaine) são amigas há muitos anos e, juntas, administram um colégio interno só para meninas. Depois de ser punida pelas professoras por contar mentiras, uma aluna reclama com sua avó e inventa que Martha tem ciúmes de Karen, que é noiva do médico Joe Cardin (James Garner). A senhora fica horrorizada e tira a menina da escola, além de espalhar o boato. As duas mulheres começam um batalha contra essas acusações, e suas consequências. (Versatil)

Sobre o filme

25/04/2019
(El abrazo de la serpiente) O abraço da serpente, 2015/

Ver neste Blog O abraço da serpente

26/04/2019
Iyana onna (Girassóis desesperados), Hitomi Kuroki, 2016


Filme bem japonês e muito bom

29/04/2019
O pão nosso (Our Daily Bread), 1934, King Vidor



O próprio King Vidor deu estes detalhes sobre um filme que lhe falava muito ao coração: “A juventude não tem idéia do que foi a crise americana no início dos anos 30, com desemprego e a depressão, as passeatas de fome. Eu quis retomar então os dois personagens de A Turba, como um casal típico americano vivendo esse período difícil. John (Tom Keens) e Mary (Kareen Morley), desempregados numa grande cidade, herdavam uma fazenda em ruinas. Ali se instalavam e, admitindo-se incompetente, John se juntava a um camponês desempregado, um carpinteiro, um pedreiro, um bombeiro, um mecânico, um contador etc. Até o momento em que uma centena de homens tiram seu sustento de uma terra fértil.”
Embora demasiado utópico em suas soluções, o filme era sincero.
Sequencia famosa: a chegada da água sobre a terra a ser irrigada, após longos e difíceis trabalhos. (Georges Sadoul, “Dicionário de filmes”, LPM, 1993, p.300).

Minhas impressões: o filme exala um clima de solidariedade para não dizer socialismo. Clima perceptível na época da depressão nos USA.

30/04/2019
A turba (The Crowd), 1928, King Vidor



Presentación de "Y el mundo marcha" (King Vidor, 1928)

"Este filme sem dúvida muito amargo foi bastante corajoso, mostrando a vida do homem do povo americano. É a obra-prima de Vidor" (Georges Sadoul, “Dicionário de filmes”, LPM, 1993, p.400).


07/05/2019
La passion de Jeanne d'Arc (O martírio de Joana d’Arc), 1928, Carl Theodor Dreyer


O processo de Joana (Marie Falconetti) desde a abertura até a fogueira. O roteiro de Dreyer e Delteil concentrou num dia o processo e a morte. Dreyer baseou a parte mais importante de sua dramaturgia num diálogo tirado das minutas autênticas do processo.
Valerine Hugo disse da atmosfera criada por Dreyer: 
“Essa atmosfera opressora de terror, de processo iníquo, de eterno erro judiciário, nós a sofremos o tempo todo... Vi os atores mais desconfiados, arrebatados pela vontade e a fé do diretor, continuarem encarnado seus papéis inconsistentemente após as tomadas de cena: como o juiz que resmungava, após uma cena na qual parecia sensibilizado pela dor de Joana.”
... “foi particularmente impressionante o dia em que, num silêncio de sala de operação, sob a luz de manhã de execução, rasparam-se os cabelos da Falconetti. Nossa sensibilidade, ainda subjugada a antigos preconceitos, estava tocada, como se a marca da infâmia realmente se aplicasse ali. Os eletricistas e maquinistas retinham a respiração, e os olhos enchiam-se de lágrimas.”  Falconetti chorou de fato: “Então o diretor aproximou-se lentamente da heroína, recolheu com os dedos algumas das lágrimas e levou-as em seguida aos próprios lábios.
Dreyer quis reter apenas o sentido profundamente humano do processo e da morte de Joana D’Arc. A opção pelo realismo, a punjança aguda das imagens, acentuam essa vontade, tanto assim que nada mais surge, desse desenrolar implacável, que o jogo de uma pobre moça inspirada, nobre e infeliz, presa de juízes dispostos a tudo. O tribunal adquire significado simbólico e eleva-se quase à síntese. Sua hipocrisia e baixeza o colocam no banco dos réus, de tal modo que não se tem a impressão de assistir a um processo cuidadosamente situado no tempo, mas, fora de uma época convencional, a um drama do qual se descobriram tantos exemplos mais obscuros na história da luta de classes”.
A verdade desta afirmação foi comprovada pelo fato de que jamais se pode projetar durante 1940 – 1944 este A paixão de Joana D’Arc em nenhum pais da Europa ocupada.
Filme narrado por Pierre Bost. Prefácio de Valentine Hugo, Jean Cocteau, Lacretelle, Paul Morand (Gallimard). 
(Georges Sadoul, “Dicionário de filmes”, LPM, 1993, p. 207 e 208).


Sobre este filme: chocante a dramaticidade. É imperdível. Viva o cinema!! Vale comprar o DVD da Versátil.






09/05/2019
Caravaggio – minissérie, 2007, Angelo Longoni

Sobre esta série ver neste Blog Caravaggio imortal

22/05/2019
The Professor (O professor), Wayne Roberts, 2018  (com Johnny Depp)


Richard (Johnny Depp) é um professor universitário que é diagnosticado com uma doença terminal e tem sua vida transformada da noite pro dia. Se sentindo tão próximo do fim, ele decide jogar todo tipo de convenção pela janela e viver sua vida o mais intensamente e com maior liberdade possível, sem nenhuma preocupação.

Sobre: tem Johnny Depp. Que por sinal vive hoje um inferno astral como neste filme. A vida imitando a arte.

23/05/2019
Greta (Obsessão), 2018, Neil Jordan


Frances (Chloë Grace Moretz) é uma jovem mulher cuja mãe acaba de falecer. Recém-chegada em Manhattan e cheia de problemas com o pai, ela divide apartamento com a amiga Erica (Maika Monroe) e trabalha como garçonete de um luxuoso restaurante. Um dia, voltando para casa, Frances encontra uma bolsa abandonada em um dos assentos do metrô, e, ao devolvê-la, acaba iniciando uma amizade improvável com a dona do acessório, uma senhora viúva chamada Greta (Isabelle Huppert). Os problemas começam a surgir quando Frances percebe que a necessidade de atenção de Greta é muito mais perigosa do que ela imaginava.

Sobre: tem Isabelle Huppert. Já basta.

Seguindo Barbara Stanwyck

26/05/2019
No man of her own  (Casei-me com um morto),1950, Mitchell Leisen 



Dirigido por Mitchell Leisen (A Porta de Ouro e Lembra-te Daquela Noite), traz Stanwick no papel de Helen Ferguson, uma mulher grávida que é abandonada pelo namorado, o mal caráter Stephen (Lyle Bettger). Dispensando-a, Stephen lhe dá dinheiro e uma passagem de trem. Durante a viagem ela conhece o simpático casal Harkness, que viaja de volta para casa. A esposa está grávida e vai conhecer a família pela primeira vez. Fazendo amizade com o casal, Helen prova o anel de Patrice Harknes (Phyllis Thaxter) quando o trem em que viajam descarrilha. Helen acorda em um hospital, e todos pensam que ela é Patrice Harknes. À princípio ela pensa em negar, mas percebendo se tratar de uma boa família decide manter a farsa. Helen é aceita como uma filha e logo passa a ser a querida dos “sogros” e do cunhado Will (John Lund), que logo se apaixona por ela. Como ela nunca conhecera o amor de fato, sente-se totalmente acolhida por todos e pensa viver um dos momentos mais tranquilos de sua vida. Até que ela recebe um bilhete anônimo e sua vida começa a mudar. Stephen a encontra, finalmente, e começa a chantageá-la para receber dinheiro da abastada família. Narrado em flashbacks, No Man of Her Own foi inspirado no livro Married a Dead Man, lançado por Cornell Woolrich em 1948. O livro ainda seria adaptado para as telas duas outras vezes, em 1982 (J’ai Épousé une Ombre) e em 1996, em forma de comédia (Mrs. Winterbourne). O final é bem surpreendente e acaba configurando-o mais como um melodrama do que como um noir, embora possua características de ambos os movimentos.

Sobre: melodrama sim, mas tem Barbara Stanwyck.

Forty Guns, 1957, Samuel Fuller


Eve Brent (1929–2011) vista sob o cano de uma arma

Sobre: tem Barbara Stanwyck, mas o filme é de Samuel Fuller. Não existe cinema sem Samuel Fuller  

05/06/2019
Domino, Brian de Palma, 2019


Sobre: último filme de Brian de Palma. Continua muito bom. A estética de sempre. 

06/06/2019
Pájaros de verano (Pássaros de verão), Cristina Gallego e Ciro Guerra,  2018


Novo longa do cineasta Ciro Guerra (do maravilhoso “O Abraço da Serpente”, indicado ao Oscar 2016), agora em parceria com sua esposa e também realizadora Cristina Gallego, Pássaros de Verão (Pájaros de Verano) retrata o surgimento do tráfico de drogas sob o prisma dos wayúus, um povo indígena que vive da região de Guajira. A história, que se passa entre os anos 60 e 80, tem como personagem principal Rapayet (José Acosta), um wayúu que, depois de passar um tempo longe da sua terra, volta para casar com Zaida (Natalia Reyes). O filme começa com a bela cena do ritual em que a família anuncia que a moça já não é mais uma criança e está pronta para ser desposada. É neste momento que o jovem protagonista se apaixona por ela. Só que ele enfrentará a resistência de Úrsula (Carmiña Martinez), matriarca da Família Pushaina, mãe de Zaida e aquela que tem sonhos proféticos com mortos.
O que vemos na telona é uma autêntica saga familiar, no melhor estilo da trilogia de Francis Ford Coppola ou de “Era Uma Vez na América” (1984), de Sérgio Leone, mas sem abrir mão do viés antropológico existente na obra anterior de Ciro Guerra. Dividido em cinco capítulos, chamados de ‘cantos’, pois cada um deles começa ou termina com uma canção indígena que ajuda a narrar e a contextualizar a história, a película pode até soar didática para alguns, só que este suposto didatismo era necessário face a grande quantidade de elementos culturais estranhos a quem não é da região. Estas particularidades só seriam um problema se, em função delas, a narrativa se tornasse arrastada. O que não acontece. Calcados na exuberância da fotografia e da direção de arte, Guerra e Gallego fizeram um maravilhoso thriller de gângsteres com mortes, corpos e sangue. Era uma vez na Colômbia…


10/06/2019
The kid, Vincent D'Onofrio, 2019


“Só importa a história quando eles se foram.” Nova abordagem sobre Billy the Kid. Vale ver.

23/06/2019
Run for the high country, Paul Winters, 2018


Sobre: um manifesto em defesa dos indígenas.

24/06/19
Red Joan, Trevor Nunn, 2018


Em 1938, a britânica Joan Stanley estudava física em Cambridge quando se apaixonou por um jovem comunista. Na mesma época, ela foi convocada pelo Comitê de Segurança Russo (KGB) para atuar como espiã do Governo de Stalin no Reino Unido. Depois de mais de cinquenta anos de serviço muito bem sucedidos, ela foi descoberta e presa pela Serviço de Inteligência Britânico (MI5).
Este A Espiã Vermelha nos relata, de forma sutilmente ficcional, a saga da espiã inglesa Melita Norwood (1912-2005) que durante os anos de 1937 até 1972 forneceu informação confidencialmente lacrada à Russia e que, em 1992, foi apreendida, após décadas de sua atuação imperdoável aos olhos da Justiça, pelo Ministério de Defesa Britânico, leia-se, Serviço Secreto da Rainha; considerada pela imprensa contemporânea à sua terceira idade como uma “instável simpatizante dos soviéticos e dos comunistas”, ela não chegou a ser condenada por já estar com mais de oitenta anos de idade. (Armando Miranda, )


Sobre: Muito bom. A ver.

08/07/2019
Quo Vadis, Mervyn LeRoy e Anthony Mann, 1951


Sobre: Assisti este filme depois de ver Quo Vadis de 1912 (https://www.youtube.com/watch?v=QfZs-C0E1w0 ). Uma estória clássica vista de duas épocas cinematográficas diferentes.


07/07/2019
Amem, Costa-Gavras, 2002


Kurt Gerstein (Ulrich Tukur) é um oficial do Terceiro Reich que trabalhou na elaboração do Zyklon B, gás mortífero originalmente desenvolvido para a matança de animais mas usado para exterminar milhares de judeus durante a 2ª Guerra Mundial. Gerstein se revolta com o que testemunha e tenta informar os aliados sobre as atrocidades nos campos de concentração. Católico, busca chamar a atenção do Vaticano, mas suas denúncias são ignoradas pelo alto clero. Apenas um jovem jesuíta lhe dá ouvidos e o ajuda a organizar uma campanha para que o Papa (Marcel Iures) quebre o silêncio e se manifeste contra as violências ocorridas em nome de uma suposta supremacia racial. (Adorocinema)

Sobre: corajosa viagem de Costa-Gavras pelo mundo nazi. A mesma pegada de Hannah Arendt em “Eichmann em Jerusalém”, livro de 1963


10/07/2019
Le capital (O Capital), Costa-Gavras, 2012


Os cidadãos do século XXI são escravos do Capital: sofrem com os problemas e celebram os triúnfos. Esta é a história da ascensão de um escravo do sistema que transforma-se em seu mestre. O trabalhador Marc Tourneuil (Gad Elmaleh) se aventura no mundo feroz do Capital. Ao mesmo tempo, o chefe de um importante banco de investimentos europeu se apega ao poder, quando uma empresa americana tenta comprá-los. (Adorocinema)

“De maneira bem mais “comportada”, digamos assim, Costa-Gavras vai nos carregando pela mão junto com este Fausto moderno, que não deseja a eterna juventude, mas o eterno poder – ou, enquanto dure. Embora paradoxalmente consciente, Marc se deixa embriagar pelo poder, fechando os olhos para o inferno que lhe aguarda.” Sidnei C. 

12/07/2019
Samba, Olivier Nakache e Éric Toledano, 2014


Samba (Omar Sy) é um imigrante do Senegal que vive há 10 anos na França e, desde então, tem se mantido no novo país às custas de empregos pequenos. Alice (Charlotte Gainsbourg), por sua vez, é uma executiva experiente que tem sofrido com estafa devido ao seu trabalho estressante. Enquanto ele faz o possível para conseguir os documentos necessários para arrumar um emprego digno, ela tenta recolocar a saúde e a vida pessoal no trilho, cabendo ao destino determinar se eles estarão juntos nessa busca em comum. (Adorocinema)

Sobre: vale ver.

17/07/19
Man without star (Homem sem rumo), King Vidor, 1955



"Homem sem Rumo" é, basicamente, a história de um cowboy que foge do arame farpado. Todos sabemos que os cowboys fogem da civilização, rumo a uma vida mais livre. É uma das convenções centrais do faroeste. Mas Kirk Douglas (ou Dempsey Rae), aqui, é um pouco mais radical: é do arame farpado que ele foge.
E não pode haver sinal mais agressivo da chegada da civilização que o arame farpado, que designa o direito de propriedade. Quem transgredir, avançando sobre domínios do outro, vai se ferir seriamente.
Isso posto, a tendência de Dempsey é se retirar. Não fugir, pois é um exímio atirador. É também um "bon vivant", aprecia música e mulheres. A diferença entre fugir e retirar-se, no entanto, pode ser diminuta.
Existe uma facilidade em sua atitude básica -botar sua sela num trem e partir tão logo o arame farpado aparece.
Por isso ele é o "homem sem estrela" do título original: não tem estrela a seguir, não tem rumo. Ora, o rumo parece se mostrar na pessoa de Reed Bowman (Jeanne Crain), uma proprietária de gado que chega do Leste trazendo o espírito predatório: seu negócio é usar as terras do governo como pasto, devastá-las em poucos anos, constituir um rebanho enorme, enriquecer e retirar-se.
Ora, sabemos, não é para isso que o Oeste foi criado. E sim para que a terra fosse produtiva, gerasse trabalho e riqueza, geração após geração. O capitalismo predatório não é coisa que um americano aceite facilmente. Menos ainda um americano liberal, como King Vidor.
É em torno disso -como da atitude que Dempsey Rae terá quanto ao arame farpado- que gira a última obra-prima de King Vidor. Filme modesto, em termos de produção, que precede as superproduções ("Guerra e Paz" e "Salomão e a Rainha do Sabá") com que encerraria a carreira, mas às quais é superior em vigor e invenção. "Homem sem Rumo" é um dos grandes faroestes da história.

CRÍTICO DA FOLHA, São Paulo, domingo, 08 de junho de 2008


24/07/2019
Oeste sem lei, 2015, John Maclean

Um jovem apaixonado viaja em direção às fronteiras dos Estados Unidos em busca da garota que ama. Junto a ele vem o misterioso Silas, um pistoleiro e protetor talentoso, que pode ter os seus próprios objetivos nessa viagem pelo oeste selvagem.
“Todo este apuro estético ganha ainda mais força através das magníficas paisagens da Nova Zelândia, que serviram de locação para representar o oeste americano – assim como as paisagens espanholas e italianas dos spaghetti westerns nas décadas de 1960 e 1970. Neste cenário exuberante, Maclean ainda se permite inserir elementos por puro prazer visual, como a figura do pistoleiro vestido de padre. Talvez a quantidade de conteúdo abordada pelo cineasta seja muito densa para uma obra tão concisa, com menos de uma hora e meia de duração, o que apressa um pouco alguns desenvolvimentos, como a transformação de comportamento de Silas. Felizmente, não é algo que tire a credibilidade da narrativa, especialmente quando chegamos ao seu catártico ato final.” Leonardo Ribeiro

Um faroeste da Nova Zelândia. Não Roliudi. Show de bola.

28/07/2019
Los perros (Cachorros), 2017, Marcela Said


Mariana (Antonia Zegers) faz parte de uma importante família chilena, mas, apesar dos privilégios, encontra-se inteiramente infeliz em sua própria casa. Sentindo-se desprezada pelo pai e pelo marido, ela encontra refúgio nos braços do seu professor de equitação Juan (Alfredo Castro), acusado de diversos crimes durante a ditadura. A partir deste caso amoroso, Mariana contempla o passado de sua família vir à tona.
“A postura da personagem em relação aos homens diz muito sobre seu ponto de vista em relação à História do país. A herdeira já ouviu falar no possível envolvimento do pai na ditadura militar; ela escuta diariamente insinuações de que o professor de equitação seja um coronel assassino, mas prefere fechar os olhos a esses fatos. A mistura de ignorância e alienação na burguesia chilena constitui o tema central de Cachorros. Mariana não é uma mulher pouco inteligente, nem propriamente cínica: ela filtra da realidade aquilo que a interessa, permanecendo na confortável bolha de submissão aos homens e privilégios financeiros.”  Bruno Carmelo

Que bom assistir a um filme (muito bom) chileno. E não é roliude.






































terça-feira, 9 de julho de 2019

Ítala Nandi


'Eu era o único símbolo sexual que não transava', diz Ítala Nandi

Ao comemorar 60 anos de carreira com livro, série de TV e filme, estrela lembra de quando protagonizou o primeiro nu frontal feminino do teatro brasileiro, em 1969: ‘Meu pai me mandou tirar o sobrenome da família’

Itala Nandi Foto Ana Branco  Agência O Globo


Nascida em Caxias do Sul numa família sem relação alguma com a arte, Ítala Nandi tem uma teoria: foi entregue a Dionísio, Deus do vinho e do teatro, quando veio ao mundo. É que depois de horas de um trabalho de parto que não evoluía, sua mãe deu à luz assim que virou uma taça da bebida. Neste momento, Ítala teria se tornado "uma bacante".

Nem o pai, um vitivinicultor italiano que comandou o exército de Mussolini, foi capaz de frear a filha, transgressora por natureza. Aos 27 anos, protagonizou a primeira cena de nu frontal feminino do teatro brasileiro (em 1969, na peça "Na selva das cidades", do Teatro Oficina), razão pela qual ele exigiu que a atriz tirasse o sobrenome da família. Ela ainda faria pior aos olhos do pai "completamente fascista", encarando treinamento militar e de espionagem em Cuba ("seria uma Mata Hari").

Criadora de grandes protagonistas femininas do Oficina, Ítala travou, na vida real, uma luta pela libertação sexual da mulher, ao lado da amiga Leila Diniz. Falava tanto o que dava na telha que uma entrevista sua, publicada na revista "Realidade" e intitulada "esta mulher é livre", foi censurada pela ditadura.
- Nela, eu perguntava por que o homem que transava com muitas mulheres era garanhão, e a mulher que fazia o mesmo, piranha - lembra Ítala que, depois disso, foi proibida de dar entrevistas por um ano.

Mas, na intimidade, ninguém imaginava que ela pouco ligava para sexo.
- Renato Borghi (ator), meu grande amigo, dizia que eu era o único símbolo sexual que não transava - diverte-se. - Só tive orgasmo quando passei a fumar maconha.
Aos 60 anos de carreira e inacreditáveis 78 da idade, a atriz continua a mesma mulher livre de sempre - ao ser perguntada se abaixaria as alças do vestido para deixar os ombros nus na foto, tira toda a roupa e posa com os seios de fora - e repleta de projetos.

No fim do mês, estreia como uma governadora linha dura na série “Baile de máscaras”, da TV Cultura. Em outubro, entra em cartaz com “Domingo”, pelo qual ganhou prêmio de melhor atriz no Festival do Rio 2018. Enquanto isso, dia 31, lança “Milagres”, livro com histórias fictícias dos bastidores de trabalhos (como a novela "Que rei sou eu?" e o filme "Amor e traição"), e comanda uma escola de formação de atores ao lado do único filho, o ator e diretor Juliano Nandi, pai de sua neta, Sofia, de 8 anos. Ano que vem, encena a peça "A caçada", de Evaldo Mocarzel.



"Milagres" é seu quarto livro. Sempre teve vontade de escrever?

Sempre quis ser escritora. Era muito solitária, minhas irmãs mais novas se davam bem entre elas, mas nunca tivemos uma aproximação. Lembro de um aniversário em que o Frei Beto me deu um jogo de tarô. Estava começando a escrever, e a taróloga disse: "Deixa sua mão te levar que a coisa vai". É exatamente assim.

Você se tornou atriz por acaso. Como isso aconteceu?

Tinha 15 anos, fui buscar minha melhor amiga no teatro da Aliança Francesa, e o diretor me convidou para fazer a empregada da peça "A cantora careca", do Ionesco. Aos 16 anos, casei (com o gaúcho Fernando Peixoto, crítico de teatro), me mudei para Porto Alegre, depois, para São Paulo. Quando estava trabalhando na administração do Oficina, a Rosamaria Murtinho ficou doente, e eu a substituí no espetáculo "Quatro num quarto". Aí, foi...

Criou muitas protagonistas femininas no Oficina, inclusive a Heloísa de Lesbos, de "O rei da vela", que te projetou. Como era a condição de mulher livre e atriz naquela época?

Muito forte. O Oficina era muito liberador, fui para o lugar certo. Mas eu não tinha ideia que podia ser assim. Quem tirou esse vigor, essa coisa forte de dentro de mim foi o Zé Celso (José Celso Martinez Corrêa, diretor do Oficina), é um super diretor de atores. Sem dúvida com Heloísa de Lesbos, dei um salto.

Tinha consciência do feito ao protagonizar a primeira cena de nu frontal feminino do teatro brasileiro?

Não tinha a menor ideia, achava que alguém já tinha feito. Eu usava um manto japonês roxo, sem sutiã, só com calcinha, nos ensaios dessa cena. Estávamos prestes a estrear, e a censura foi assistir. Eram cinco censores, entre eles o famoso doutor Coelho, que todo mundo se cagava de medo. Pouco antes de começar, o Zé passou por mim e eu perguntei se deveria tirar a calcinha. Jà tínhamos conversado sobre tirar. Ele disse: "Faz o que tu sentir na hora". Antes de entrar em cena, eu tirei, e fiz a cena. A peça durava oito horas e, quando acabou, eles estavam tontos. Doutor Coelho disse que a cena era muito angelical, que não tinha problema. Por causa disso, as outras peça que estavam proibidas foram liberadas.

Como foi a repercussão?

Foi um escândalo absoluto. Meu pai ficou enlouquecido, mandou trocar meu nome. Dizia que não podia estragar o nome Nandi. Aí, falei para o advogado dele: "Diga a ele para trocar de nome, porque hoje eu sou mais famosa que ele" (risos). Depois, ele veio assistir à peça e viu que não tinha nenhum problema. Só no Rio, no João Caetano, quando a mulher de um coronel mandou tirar a luz geral. Botaram luz de contracena e aí, sim, virou cena pornô.

Junto com Leila Diniz, você lutou pela liberdade sexual feminina. Como se conheceram? O que vocês gostavam de fazer? Debatiam assuntos?

Eu estava fazendo o filme (" Os deuses e os mortos") do Ruy Guerra (então casado com Leila) e ele a trouxe. Nos conectamos muito bem. Falávamos o que pensávamos. Ela estava casada com o Ruy, eu, com o André (o cineasta André Faria). Eles adoravam as nossas maluquices, então, a gente botava para quebrar. Compramos dois jipes militares e dirigíamos por Ipanema. Meu filho nasceu prematuro por causa dela. Quando eu soube da morte, fiquei tão abalada que levei um tombo. Juliano nasceu aos oito meses.

Vocês debatiam assuntos, refletiam?

Que nada! A gente nem pensava, éramos gozadoras, achávamos tudo engraçado, ridículo, nos considerávamos donas do mundo. Diante dos olhos dos outros, éramos prepotentes. Mas a gente não estava nem aí para o que diziam. Não íamos à boate, éramos do trabalho e da praia, do biquíni. Ninguém imaginava que uma mulher pudesse sair daquele jeito (refere-se a Leila, grávida, de biquíni ).

E teve a história da minissaia...

Era 1969, eu estudava na França, onde estavam lançando a minissaia da (estilista) Mary Quant. A "Manchete" (revista) fez uma matéria comigo em diversos lugares do Rio para testar a reação das pessoas. O engraçado é que em Copacabana foi o mais terrível, as pessoas paravam, ficavam olhando, achavam esquisito.

Você namorou muito? Foi uma grande pegadora?

Não. O Zé Celso dizia que eu gostava dos homens, mas não de transar. É verdade. Ficava anos sem transar. O Renato Borghi, grande amigo, falava: "Mulher, quando é que tu vai dar pra alguém?". Eu gostava de trabalhar. Tinha a chave do teatro, era a primeira a chegar e a última a sair. Era muito do trabalho, administrava o Oficina. Os diretores de banco me adoravam, todos queriam transar comigo. Eu ia de minissaia no Banco Econômico da Bahia, que nos deu uma grana poderosa para fazer o "Prata Palomares" (filme de André Faria, de 1972). O diretor do banco achava que eu ia dar pra ele. Só que não.

Você passou a gostar de sexo?

Eu tinha um problema sério: não tinha orgasmo. Meu primeiro orgasmo foi com André, pai do meu filho. Com o Fernando (com quem foi casada por quatro anos), eu nunca tinha tido nada. A gente nem transava, na verdade, éramos muito amigos. Depois, tive orgasmo com o André. Na verdade, só passei a ter orgasmo quando comecei a fumar maconha. O André descobriu que eu era muito tensa. Aí, a maconha me relaxava e eu tinha orgasmo.

Havia uma censura também em relação ao prazer feminino, não?

Acho que tinha. Porque eu não sabia me masturbar. Quem me ensinou foi a ( atriz ) Etty Fraser. Contei que não tinha orgasmos, e ela disse que eu tinha que me masturbar. Não  que fizéssemos juntas, mas me explicou. Comecei a fazer, mas também não achava grandes coisas. O Borghi falava: "É a única mulher que é símbolo sexual e não trepa". Era verdade. Eu não transava. Fui transar aos 30 anos, com o homem que casei e tive filho.

Você namorou o Chico Buarque?

Namorei, antes da Marieta. Namoramos muito em praça pública, a gente se beijava, se agarrava, mas não transava. Uma vez, na Praça Roosevelt, chegou um camburão da polícia para nos prender. Pessoas do prédio em frente tinham dito que havia uma sacanagem... Por sorte, um dos policiais reconheceu o Chico, que estava no sucesso do "Pedro Pedreira". Aí, nos liberou. Na Passeata dos 100 mil a gente ainda estava namorando.

Você está namorando?

Não. Não que eu tenha desistido. Às vezes, eu transo com alguém, pintou um cara interessante em Veneza (no festival, onde ela foi apresentar "Domingo" ). Mas não mantenho um relacionamento. Não gosto de nada chiclete, essa colação. Sou muito sou muito independente.

Além da maconha, como era a sua relação com as drogas. Usou muito? É a favor da legalização?

Percebi que não era a minha jogada. Tanto que hoje eu fumo raramente. Começou uma liberação com o LSD, que eu nunca provei. As pessoas tomavam e iam fazer sexo grupal, nunca gostei disso. Saí do Oficina por causa disso, não quis participar. O Zé ficou puto comigo e a  gente ficou mal. Nunca tive esse lance de vício. Todos tomavam LSD e achavam estranhíssimo eu não provar. Eu não tinha vontade, a minha loucura é normal. Sou totalmente a favor da legalização.

E da legalização do aborto? Já fez?

Totalmente a favor. Eu fiz um, mas porque perdi e tive que tirar.

Você fez treinamento militar em Cuba. Como foi isso?

Acho que foi por causa do teatro e do Fernando, que tinha muita ideologia e me influenciou muito. Não quer dizer que eu tivesse esse tendências. Fui para França com uma  bolsa de estudos, era 1968, ano das passetas, Che Guevara era o herói da humanidade. A polícia entrou na Sorbonne, e eu pulei do segundo andar para fugir. Conheci o Thiago de Melo ( poeta e, na época, diplomat a), nos apaixonamos e eu falei: "Quero ir para Cuba". Ele conseguiu visto e eu fui com passaporte falso, com o nome de Rosa Hernandes. Me ensinaram espionagem, a revelar foto dentro do armário. Eu ia ser uma Mata Hari. Pedi para ir para Sierra Maestra, onde só tinha homem. Aprendi a montar metralhadora e a dar tiro.

Você está completando 60 anos de carreira. Olha para trás e gosta do que vê?

Gosto muito. Não sei como fiz coisas tão arriscadas e deram certo. Não tenho traumas. Tanto que quando voltei ao Brasil de Cuba não aconteceu nada, porque não fiz nada errado. Não exerci as coisas para as quais fui treinada. Fiquei logo grávida, veio a Leila, era como se aquele treinamento transformasse numa reivindicação feminina. No Brasil estava tudo cerceado, então, vamos liberar a mulher! O tempo em que fiquei em Paris, Maio de 68, a ideia da libertação popular, das mulheres, dos estudantes, foi muito forte para mim.

Como alguém que sempre valorizou a liberdade enxerga o conservadorismo atual?

O mundo está uma droga,  sem personalidade. Hoje é tanta liberdade sexual que ninguém mais transa, fica todo mundo no celular. Estamos vivendo um período apocalíptico, sem humanidade nenhuma. Todo mundo com medo da uma terceira guerra mundial, apavorado com o Trump. Todo mundo encurralado, cabisbaixo. Por isso elegeram ele ( Bolsonaro ). Não que eu seja Lulista, absolutamente. Acho que teve tanta merda igual, mas havia uma liberdade. Estou falando com você e tendo receio de falar certas coisas.



Maria Fortuna, O Globo
08/07/2019


https://oglobo.globo.com/cultura/eu-era-unico-simbolo-sexual-que-nao-transava-diz-itala-nandi-23783541  09/07/2019

domingo, 7 de julho de 2019

Serra Pelada e o desastre ambiental

SEBASTIÃO SALGADO NA AMAZÔNIA
Serra Pelada: Em 1979, a descoberta de ouro no interior do Pará arrastou multidões de sonhadores para aquela que foi a maior mina a céu aberto do globo; da saga resultaram um buraco na terra arrasada, a mineração clandestina em área indígena e este documento visual que comoveu o mundo
40 anos depois de Serra Pelada, garimpo é fonte de conflito e devastação

'Formiga', trabalhador cuja função é carregar saco de até 40 kg, 
chega ao alto da mina via escada batizada de 'adeus, mamãe', em imagem de 1986 na Serra Pelada


Leão Serva, Folha de São Paulo, 07/07/2019

SÃO PAULO - Tudo aconteceu há 40 anos. Uma criança encontrou uma pedrinha dourada na beira de um riacho, em uma fazenda no interior do Pará. O pai levou o achado ao dono da terra, que enviou a pedra à cidade de Marabá para ver se o que reluzia era mesmo ouro.
Garimpeiros dizem que nada é mais rápido do que fofoca de ouro. Era o final de 1979. Junto com a confirmação da pepita descoberta à flor da terra, na região de Carajás, já chegaram de Marabá alguns garimpeiros. Em poucos dias, muitos outros.
O dono da terra tentou controlar o processo atribuindo a alguns homens a exclusividade da exploração e cobrando 10% do ouro extraído. Mas, em dias, eram milhares de garimpeiros, em meses, dezenas de milhares, e, em um ano, pelo menos 50 mil.
Por dez anos, Serra Pelada foi a maior mina a céu aberto do mundo. Quando a febre terminou, em 1990, houve migração de homens para Roraima, na terra yanomami. Lá, hoje, a mineração ilegal é foco de instabilidade e devastação e reúne cerca de 20 mil garimpeiros, segundo lideranças indígenas.
Duas semanas atrás, um soldado perdeu parte da mão em um confronto com garimpeiros. A Funai anuncia a abertura de postos fixos de vigilância na próxima quinzena. Garimpo e devastação andam juntos: o surgimento de Serra Pelada coincidiu com a intensificação do desmatamento no Pará, que desde os anos 1980 perdeu uma área de floresta equivalente ao estado do Ceará.
Desde o começo, os pioneiros do ouro de Carajás dividiram entre si a área sobre uma colina de 150 metros e a desmataram para cavar. Cada lote tinha 2 x 3 metros. Surgiu assim o nome que se tornaria conhecido em todo o planeta: Serra Pelada.
Ao longo dos anos, a colina foi dando lugar a um buraco com 200 m de profundidade e 200 m de diâmetro. Levantamentos do governo no início dos anos 1970 já apontavam aquela como uma região mineral rica. Tudo estava reservado para a então estatal Companhia Vale do Rio Doce. Quando a empresa quis retomar o controle, percebeu que seria impossível fazê-lo sem o uso de forças de segurança.
O governo do general João Figueiredo (1979-1985) enviou então ao local, como interventor, o major Curió, apelido de Sebastião Rodrigues de Moura, que tinha participado da repressão à Guerrilha do Araguaia. O militar chegou no início de 1980. Prometeu aos garimpeiros que a Vale não os expulsaria e extinguiu o dízimo cobrado pelo fazendeiro. Virou herói. Em contrapartida, delimitou uma grande área em torno da mina em que proibiu o porte de armas, a presença de mulheres e o consumo de álcool. Também obrigou que todo o ouro fosse vendido ao posto local da Caixa Econômica, que pagava à vista, mas abaixo do preço de mercado.
A repressão no centro de garimpo fez surgir a 30 quilômetros de distância a Vila Trinta, às margens da rodovia PA-175. O que Curió proibia na mina era livre ali. “De dia é 30, de noite é 38”, era a referência aos constantes tiroteios na vila. Bebidas e prostituição seguiam preços praticados em boates de luxo no Rio e em São Paulo. Em meados de 1980, Curió decidiu organizar a Vila Trinta também, assumindo a função de “prefeito”.
O governo militar fez passar no Congresso uma indenização de cerca de US$ 55 milhões para a Vale do Rio Doce, que estava pressionada por acionistas minoritários. Com isso, os direitos de mineração ficaram com a cooperativa dos garimpeiros. Em dez anos, uma quantidade impressionante de ouro saiu da mina - os cálculos chegam a mais de 100 toneladas, sem contar o contrabando. O Brasil, que fora o maior produtor do metal entre 1750 e 1850, voltou ao ranking graças à Serra Pelada.
Na segunda metade dos anos 1980, porém, a produtividade começou a cair. Em 1989, foram só 13 quilos, insuficientes para sustentar milhares de homens e manter equipamentos, como bombas que drenavam água no fundo da cratera. Em 1992, o então presidente Fernando Collor decidiu cancelar a concessão aos garimpeiros e fechar o local. Serra Pelada virou o alvo de disputas judiciais entre garimpeiros e mineradoras.
Com as bombas desligadas, o lençol freático inundou o buraco, formando um reservatório com mais de 600 mil metros cúbicos de água, algo como 250 piscinas olímpicas. Devido à poluição por mercúrio, no entanto, o lago não pode ser aproveitado nem para a criação de peixes.
Sebastião Salgado fotografou Serra Pelada em 1986, ao iniciar a documentação sobre o fim do trabalho manual, no seu projeto “Trabalhadores”. As imagens que captou, publicadas na Europa no final daquele ano, causaram grande repercussão. Cerca de 30 fotos foram editadas, e os demais negativos, arquivados.
Agora, aos 40 anos da descoberta do ouro, Salgado e a mulher, a curadora Lélia Wanick, reeditaram os originais. A nova seleção será exposta a partir de 17 de julho no Sesc Paulista, em São Paulo, onde também vai ser lançado o livro “Gold”, impresso em diferentes línguas para distribuição mundial pela editora Taschen.

Detalhe da subida de trabalhadores pela encosta da mina de ouro de Serra Pelada, no interior do Pará


Mina de ouro parecia formigueiro caótico, mas era um sistema bem organizado

A impressão que se tem ao olhar as fotos de Serra Pelada é de um formigueiro de gente em uma confusão absoluta. Mas no caos aparente havia uma ordem minuciosa. “Logo aprendi que aquilo que à primeira vista parecia um movimento desordenado era, na verdade, um sistema muito sofisticado, no qual cada um dos mais de 50 mil trabalhadores sabia que papel havia escolhido desempenhar”, explica o fotógrafo Sebastião Salgado.
Para começar, é possível observar que as paredes da cratera não eram completamente verticais nem lisas. Elas mais pareciam uma composição geométrica, semelhante às gravuras do artista holandês Maurits Escher (1898-1972), com escadas subindo e descendo de pequenos espaços de terra de 2 m x 3 m, do tamanho de uma vaga de automóvel, que se projetavam como se estivessem pendurados na parede. Esses lotes, chamados de “barrancos”, pertenciam aos pioneiros, os garimpeiros que chegaram nas primeiras semanas logo após a descoberta do ouro na região. Eles formaram uma cooperativa, lotearam a mina e sortearam em 1979 e 1980 quem ficaria com qual dos mais de 200 “barrancos”.
Os donos dos lotes contratavam cinco tipos de trabalhadores. O primeiro era o “meia praça”, que definia quem iria escavar um certo local e que recebia 5% sobre o ouro encontrado no lote. Sua roupa estava sempre mais limpa que a dos outros, e ele não portava ferramentas. Todos os demais eram assalariados: o “cavador” era quem rompia o solo com picaretas; o “formiga” levava para fora da cratera os sacos de terra que pesavam cerca de 40 quilos, subindo as escadas apelidadas de “adeus, mamãe”.
Esses trabalhadores eram monitorados pelo “apontador”, que contava quantos sacos subiam e que podia ser visto, com a camisa mais limpa, segurando um caderno de anotações. Fora da cratera, os sacos eram entregues ao “apurador”, que lavava a terra, usando a bateia (bandeja redonda e funda), e depois fazia a separação do ouro usando mercúrio. Por último, era feita a queima do mercúrio, para purificar o metal.
O ouro encontrado era fundido em barras ou pepitas e vendido ao posto da Caixa Econômica Federal a um preço 15% menor do que o praticado no mercado internacional. Quando um barranco produzia ouro, o garimpeiro-empresário ia bem, pagava as contas de seus empregados e embolsava o lucro. Quando passava algum tempo sem conseguir extrair, acabava por tomar empréstimos ou vender participação em seu barranco.
Quem fazia esse papel de banqueiro eram os pioneiros bem-sucedidos ou gente de fora que financiava os donos de lotes em troca de participações nos resultados do trabalho.
Muitos garimpeiros que trabalharam em Serra Pelada repetem ainda hoje uma lenda segundo a qual há, sob a antiga mina, uma laje de 50 toneladas de ouro puro. É um mito. Segundo Felipe Tavares, geólogo que estudou a serra de Carajás em seu doutorado, ali existe mesmo um depósito de ouro, mas está disperso em pequenos traços de rocha. “Tem muito minério, mas não há um modelo de exploração que permita extraí-lo de forma economicamente viável”, diz Tavares, que é chefe da divisão de geologia econômica da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais.
Segundo pesquisadores, há mesmo 50 toneladas de ouro na rocha profunda de Serra Pelada. Mas seria preciso triturar toneladas de pedras e submetê-las a processos químicos para obter alguns gramas do metal. Tavares conta que a Colossus, uma empresa canadense, investiu muito dinheiro em túneis para tentar acessar a rocha sob o lago, e percebeu que precisaria de muito mais para conseguir voltar a extrair algum ouro de Serra Pelada. A empresa acabou falindo em 2014.
O que explica a existência de reservas de ouro tão ricas em alguns lugares do Brasil, como o Pará, é a antiguidade do terreno. “Toda a serra de Carajás, que inclui Serra Pelada, foi formada no período arqueano, entre 2,7 bilhões e 3 bilhões de anos atrás”, diz o geólogo. Nesses lugares, movimentos geológicos podem fazer com que um veio mais antigo aflore e fique exposto. Em Serra Pelada, o ouro aflorou há “apenas” 40 milhões de anos. “Já no final dos anos 1960, os estudiosos sabiam que ali seria uma região rica porque foi encontrada a grande reserva de ferro de Carajás, em 1967. E onde há muito ferro, tende a ter outros minérios também, como ouro”, diz o geólogo.
Embora Serra Pelada tenha se tornado um símbolo, ela não é a maior mina do Brasil. “Na Amazônia, a reserva de Salobo, em Marabá, que vem sendo explorada pela Vale, é muito maior do que Serra Pelada. Ali, o ouro é secundário, o cobre é o principal”, afirma.
Se em Serra Pelada, como em Minas Gerais, o ouro aparece em depósitos subterrâneos profundos, em outros lugares da Amazônia ele está quase na superfície, como na areia das margens dos rios que atravessam a terra dos yanomamis, em Roraima, ou dos mundurukus, no Pará, na bacia do rio Tapajós.
É dessas áreas demarcadas que sai hoje boa parte da produção de ouro do país, extraído de maneira ilegal.

BRASIL FOI O PAÍS QUE MAIS PRODUZIU OURO NO MUNDO ENTRE 1750 E 1850


O Brasil há muito deixou a posição de maior produtor mundial, que ocupou entre 1750 e 1850. No fim do período colonial, com produção de 16 toneladas ao ano, o país extraiu o ouro que financiaria a Revolução Industrial, na Inglaterra.
Com o esgotamento do garimpo de Minas Gerais, perdeu relevância no mercado internacional. A produção nacional só voltaria a crescer depois da descoberta de Serra Pelada, em 1979: em 1980, foram extraídas 40 toneladas; em 1985, 62 toneladas (4,1% do total mundial). A queda da produção em Serra Pelada, na segunda metade dos anos 1980, foi compensada pelo garimpo na área yanomami, o que elevou o total para 80 toneladas em 1990.
O fechamento de Serra Pelada e a expulsão dos garimpeiros ilegais de Roraima, a partir de 1992, derrubaram o volume produzido, que chegou a 38 toneladas em 2005. Com a crise de 2008, o preço do ouro subiu e gerou um novo ciclo de garimpo em vários pontos da Amazônia, como nas áreas dos yanomamis e dos mundurukus.
Essa extração ilegal se refletiu na produção, que foi para 58 toneladas em 2010 e 70 toneladas em 2012, último dado do Instituto Brasileiro de Mineração. Segundo o Conselho Mundial do Ouro, em 2018 foram produzidas 97 toneladas, mais que todo o período de Serra Pelada.

Vaivém na área de apuração, onde era feita a separação de terra e ouro


MULHER SE DISFARÇOU DE HOMEM PARA TRABALHAR EM SERRA PELADA


Marina Cantão é miúda, morena e franzina. No pescoço, leva pendurada uma pequena pepita de ouro. É a memória dos tempos de garimpo, que há muito ficaram para trás. Seu restaurante em Boa Vista, capital de Roraima, o Marina Meu Caso, é apontado na internet como um dos melhores da cidade. Serve quase um só prato e uma bebida: peixe com baião de dois e cerveja. O que falta em variedade gastronômica ela preenche com o principal tempero da casa: suas histórias.
Os casos preferidos são os que ela vivenciou em Serra Pelada. Como uma mulher pequenina conseguiu driblar a proibição imposta pelo poderoso major Curió, apelido de Sebastião Rodrigues de Moura, militar que, ao assumir o controle do garimpo no início de 1980, proibiu mulheres na área? Sua resposta é semelhante à de outras mulheres que furaram o cerco: fazendo-se passar por homem.
Nascida na Ilha de Marajó (Pará), Marina chegou a Serra Pelada para trabalhar em um restaurante. Como milhares de brasileiros, sonhava garimpar e ficar rica. Um dia, morreu um travesti de Goiás, que também trabalhava em um restaurante da região. Marina falsificou a identidade do morto e se pôs a trabalhar no garimpo disfarçada de homem. Logo constatou o que as histórias das corridas do ouro revelam: pouquíssimos ficam ricos e muitos não encontram nada. Quem se dá bem são os fornecedores de serviços essenciais aos trabalhadores.
Marina abriu um restaurante na violenta Vila Trinta, formada a 30 quilômetros do garimpo, e mantinha sempre à mão o revólver que lhe rendeu o apelido de “Goiana do 38” (ela seguia usando a identidade do morto, passando-se por travesti). Quando o ouro de Serra Pelada começou a secar, em 1987, ela partiu em busca do novo Eldorado: as florestas de Roraima.
Com algum dinheiro, voltou ao garimpo, desta vez como empresária, operando na área chamada Paapiú. Controlava uma balsa com vários empregados e equipamentos necessários para o trabalho na margem de rios -bombas para jatear as barrancas, motor para dragar a lama e esteiras para apurar o ouro.
Os ventos viraram quando Collor reconheceu a Terra Indígena Yanomami e expulsou os garimpeiros, em 1992. Marina foi então para a Venezuela -ela diz que não se deu conta de que estava além da fronteira. Em seguida à ação do governo brasileiro, o país vizinho realizou uma série de ações repressivas para impedir a ocupação de suas terras por garimpeiros ilegais. A aventureira perdeu sua balsa em uma blitz e ficou perambulando vários dias pela floresta, até encontrar um outro grupo de garimpeiros, com quem chegou a Boa Vista.
Ao se instalar na capital de Roraima, decidiu com o marido, Boboco, parar com as aventuras e voltar a se dedicar à culinária. Seu primeiro restaurante funcionou em um barco no porto da cidade. Depois, instalou-o em um terreno às margens do rio Branco, onde está até hoje.

O centro do buraco cavado em Serra Pelada, que hoje virou um lago contaminado


Cresce em um ano a mineração ilegal na terra dos yanomamis

BOA VISTA (RR) - Nos últimos meses, a Terra Indígena Yanomami, em Roraima, sofreu uma verdadeira explosão no número de garimpeiros. O total deles passou de cerca de 3.000 a 5.000, no início de 2018, para 15 mil a 20 mil hoje, segundo a Hutukara, entidade que representa os indígenas, e agentes da Funai ouvidos pela Folha.
Desde o início dos anos 1990, quando a terra indígena foi criada e cerca de 40 mil garimpeiros foram expulsos, é a primeira vez que o número de mineradores chega à casa de dois dígitos de milhares. Há hoje na região quase um garimpeiro para cada yanomami brasileiro.
A Funai anunciou que, na segunda quinzena deste mês de julho, iniciará a reinstalação de bases de vigilância permanentes para o combate ao garimpo na terra indígena. A primeira delas será no rio Uraricoera, principal rota de entrada e abastecimento para os garimpos.
No segundo semestre de 2018, o Exército realizou uma operação de combate ao garimpo, implantando bases fixas nos rios Uraricoera e Mucajaí, os mesmos onde a Funai pretende atuar a partir de agora. Após a medida, cerca de 2.000 homens deixaram a área por falta de abastecimento para suas atividades.
A decisão de suspender a operação militar, em dezembro passado, e a eleição de Jair Bolsonaro, que fez da crítica às reservas indígenas uma das plataformas de campanha, foram um sinal verde para os garimpeiros. Desde a posse do novo governo federal, aproximadamente 10 mil novos garimpeiros chegaram à região, segundo os líderes indígenas.
O clima de tensão na área se acirrou no final de junho, quando uma embarcação de garimpeiros resistiu à ordem de parada dada por uma patrulha e arremeteu contra o barco do Exército. No incidente, um militar foi ferido e perdeu parte da mão. Um garimpeiro foi preso.

 'Formigas' com camisas listradas, usadas para que o 'apontador' identificasse o grupo 
que achava um filão de ouro em determinado lote

A nova ação da Funai atende a uma decisão judicial que definia o mês de junho como prazo para o restabelecimento das bases implantadas no início da década e suspensas em 2015 devido a cortes no orçamento. No ano passado, decisão da Primeira Vara da Justiça Federal em Boa Vista, em ação iniciada pelo Ministério Público Federal, determinou que a Funai, a União e o governo de Roraima implantem e mantenham as bases, garantindo o orçamento necessário para seu funcionamento.
Além de um posto na calha do Uraricoera, devem ser implantados em seguida dois outros, um no rio Mucajaí e o terceiro na serra da Estrutura, próximo a um local habitado por um grupo yanomami isolado, chamado “moxihatetea” em língua yanomami. Em julho do ano passado, houve um conflito entre garimpeiros e membros desse grupo.
Os garimpos ilegais têm provocado grande impacto ambiental na área. A concentração de mercúrio no corpo dos moradores se tornou excessiva, e as aldeias localizadas próximas de rios estão sendo levadas a perfurar poços artesianos para evitar o consumo da água poluída. Além disso, os índios têm sido obrigados a evitar o consumo de peixes.
Um estudo publicado pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) em 2016 apontou níveis alarmantes do metal na população indígena da Terra Indígena Yanomami. Em algumas aldeias, o excesso do metal no corpo atinge 92% dos indivíduos. O garimpo em Roraima é todo clandestino. Não há uma mina ou lavra oficializada em todo o estado, dentro ou fora de áreas indígenas.
Ao longo dos últimos cinco anos, esse garimpo se tornou mais intenso, profissional e organizado. E, mais recentemente, a atividade se internacionalizou: o órgão do governo federal que acompanha as exportações (Comex) aponta que Roraima exportou 200 quilos de ouro para a Índia desde setembro de 2018, mesmo sem ter minas registradas.
Os sinais de aumento da mineração ilegal são evidentes pelo tamanho da devastação e pelos equipamentos utilizados, como o repórter constatou ao visitar a Terra Indígena Yanomami nos anos de 2014, 2015, 2018 e 2019. Além de causar todos esses problemas, o garimpo também favorece a expansão da malária. A doença ainda está presente em toda a Amazônia, especialmente na periferia das cidades e nas pequenas vilas ribeirinhas. A sua incidência é potencializada com o desmatamento.
Quando se corta a floresta, a população de mosquitos cresce, porque desaparecem seus predadores. Somem também os animais que os mosquitos atacam. Os garimpeiros e os índios, portanto, se tornam os seus alvos. E, ao picar mineradores contaminados, os mosquitos transmitem a doença a outras pessoas.
Quando a malária se espalha, os garimpeiros procuram os postos da Secretaria de Saúde Indígena das aldeias próximas, consumindo os kits de testes e remédios. O órgão que deve cuidar da saúde dos índios acaba, assim, destinando parte de seu orçamento para tratar invasores brancos que levam doença para a área indígena.

 'Formigas' sobem as escadas

SUCESSO DE MAJOR CURIÓ NO PARÁ INSPIROU OCUPAÇÃO EM RORAIMA

Foi tamanha a popularidade do major Curió, o interventor enviado pelo governo à Serra Pelada quando ali explodiu o garimpo, que ele acabou atuando como “prefeito” da Vila Trinta, bairro que os garimpeiros passaram a chamar de Curionópolis. Em 2002, quando a vila se transformou em município -e foi batizada mesmo com o nome de Curionópolis–, o major foi eleito de fato como seu primeiro prefeito.
Segundo a Folha apurou na época, o sucesso em fazer dos garimpeiros uma força popular de apoio ao regime militar entusiasmou generais que, anos depois, quiseram ocupar a chamada Calha Norte da Amazônia. A ideia era afastar o fantasma das invasões estrangeiras e reduzir a porosidade das fronteiras. Muitos militares entenderam que, se o Exército não conseguisse ocupar as fronteiras, os garimpeiros poderiam servir de tropa.

 'Formigas' carregam sacos com terra para fora da mina

Logo no início do governo de José Sarney (1985-89), militares ligados ao gabinete da Presidência decidiram fomentar o garimpo de ouro em Roraima. Baseada em estudos do projeto Radam (Radar da Amazônia), realizado na década de 1970, uma conciliação entre militares, políticos, empresários e garimpeiros desenhou um plano cuja eclosão coincidiu com a decadência de Serra Pelada. Milhares de garimpeiros rumaram, então, para Roraima.
Quando a produção em Serra Pelada atingia o fundo do poço, em 1989, os garimpos no que hoje é a Terra Indígena Yanomami somavam 40 mil pessoas -quase três vezes a população indígena da área. Depoimentos de garimpeiros com 50 anos ou mais contemplam sempre esses dois momentos: a busca do ouro em Serra Pelada, no Pará, e, posteriormente, a corrida para a área dos índios, no estado de Roraima.

TÉCNICA DE ENFERMAGEM GANHA R$ 9.000 POR MÊS COMO COZINHEIRA NO GARIMPO ILEGAL

Antônia, 43, é técnica de enfermagem, mas no garimpo é cozinheira. A experiência em tratar doentes fez tocar rápido seu alarme quando sentiu os primeiros sintomas de malária. Preocupada em fazer o teste para saber que tipo da doença havia contraído -falciparum, mais grave, ou vivax, mais simples–, buscou atendimento no posto médico da Secretaria Especial de Saúde indígena (Sesai), na comunidade Ye’kwana de Waikás, na Terra Indígena Yanomami (Roraima). Ela não quis revelar seu sobrenome.
Nascida em Caititu, no Maranhão, diz que já “rodou a Amazônia inteira”. Na Prefeitura de Marajá do Sena (também Maranhão), ela é concursada e recebia um salário mínimo como enfermeira, mais um adicional por ocupar cargo de confiança. Em 2016, com a mudança do prefeito, perdeu o adicional, e decidiu tentar reforçar o caixa com o bico no garimpo ilegal.
Depois de uma experiência no Suriname, com uma amiga que ganha a vida viajando de barco e vendendo mercadorias aos garimpeiros, Antônia pediu licença no trabalho. Deixou os três filhos -de 24, 21 e 8 anos– no Maranhão e foi para o Tatuzão do Mutum (ou Mutum), onde cozinha para uma equipe de 11 pessoas. Dorme pouco, trabalha muito, mas faz um bom dinheiro, diz. Prepara o café da manhã, almoço, jantar e merenda para os trabalhadores, e só descansa das 22h as 4h. Em seis meses, calcula, deverá ganhar o correspondente a quase seis anos de trabalho na Prefeitura.
Ela recebe R$ 9 mil por mês em gramas de ouro ao preço menor. O salário é líquido: não paga para comer e nem para dormir. “Eu tenho meu rabo-de-jacu lá e durmo”, diz, referindo-se à tenda onde pendura a rede. Recebe assim, a cada mês, cerca de 70 gramas de ouro. Quando consegue que a amiga, que passa oferecendo suas mercadorias no Mutum, leve seu ouro para vender em Boa Vista, aumenta a receita em cerca de R$ 1,3 mil. Isso porque, no garimpo, o ouro vale cerca de 15% menos do que na capital.
Quem paga seu salário é o “chefão”, mas ele fica em Boa Vista, não vai até o Mutum. No garimpo não tem pista de pouso. Os aviões pousam na pista da comunidade indígena, que usam com uma anuência forçada dos índios. “No Mutum, pousa helicóptero. De vez em quando ele baixa lá, para buscar o ouro e deixar dinheiro”.
Agora a malária ameaçava atrapalhar seus planos. Diz que pegou a doença no esconderijo, na selva, onde todos ficaram entocados durante vários dias para fugir a uma das ações policiais de combate ao garimpo clandestino. Conta que nessas oportunidades, levam comida suficiente para 10 a 15 dias, período que conseguem esticar com a caça. Mas todos ficam ainda mais expostos aos mosquitos e, por isso, à malária. “Passamos 12 dias no esconderijo, um total de 15 pessoas, e ninguém nos achou. A gente aguenta o tempo que a polícia ficar na corrutela (a vila) do garimpo, 7, 9, 10 dias”. Enquanto conta a história, mostra a foto de um bicho que fez no celular quando estava escondida na floresta. Uma espécie de gafanhoto que mimetiza direitinho o galho da madeira onde está escondido, ninguém consegue vê-lo. Ela se compara ao inseto.
A malária havia aparecido semanas antes. Sem receita médica, tomou por alguns dias comprimidos comprados na própria vila do garimpo. Sarou, mas a febre voltou e ela não sabia se era a mesma malária, que havia sido mascarada pelos remédios, ou uma nova. Por isso procurou atendimento médico.
Depois de fazer o exame na Sesai, Antônia foi embora. De canoa a remo, levaria cerca de uma hora e meia para chegar ao Mutum, e depois ainda teria que caminhar 15 minutos. Levou uma cartela de remédios para a malária detectada: a vivax, menos agressiva.

A cratera de Serra Pelada dividida em lotes marcados pelas cordas; 
à direita, os lotes pendurados nas paredes de terra, e, à esquerda, os ‘formigas’


Extração de ouro destrói floresta com mercúrio e desmatamento

O garimpo e o desmatamento caminham lado a lado na destruição da floresta amazônica, como fenômenos que se reforçam. A degradação que a mineração desordenada provoca jamais é revertida. Os trabalhadores dessas explorações geram uma demanda por alimentos e por serviços que levam à ocupação e ao desmatamento das regiões do entorno das minas.
Próximo à Serra Pelada, na então vila de Curionópolis, que vivia do dinheiro dos garimpeiros, a população tinha o dobro do total de pessoas envolvidas diretamente na mineração.
O garimpo na área yanomami, em Roraima, que atraiu à região cerca de 40 mil trabalhadores no fim dos anos 1980, provocou à época um crescimento semelhante na população da capital, Boa Vista.
Hoje, muito tempo após o auge do ouro em Serra Pelada, quando 100 mil pessoas trabalhavam direta ou indiretamente na extração do metal, os municípios de Curionópolis e Eldorado dos Carajás têm somados 50 mil habitantes. Parauapebas tem 200 mil.
Os mapas também apontam que a intensificação do desmatamento no Pará coincide com o ciclo do ouro dos anos 1980. Desde aquela época, o Pará perdeu 148,3 mil km² de floresta, segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), o equivalente à área do estado do Ceará.
O final do garimpo em Serra Pelada espalhou homens por outras áreas de mineração na Amazônia. Desde então, Redenção (Pará), as reservas dos índios yanomamis e mundurukus (Roraima e Pará) e a área de Lourenço (Amapá) frequentam o noticiário por conta de problemas causados pelo garimpo, entre eles a ocorrência de trabalho em condições análogas à escravidão. “O garimpo e a devastação andam juntos em toda a bacia amazônica, não só no Brasil. A mineração ilegal é um fenômeno presente em todos os países, o que gera sérios impactos ambientais nesse ecossistema, bem como impactos econômicos e sociais, configurando um cenário de violação tanto dos direitos ambientais das populações que dependem diretamente destes ecossistemas para sua subsistência como dos direitos de todos os habitantes da região que são afetados pela destruição desse patrimônio”, diz Beto Ricardo, coordenador da RAISG (Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada), que reúne cientistas e entidades de vários países da região. Em dezembro passado, a entidade lançou um estudo inédito sobre o que denominou “epidemia de garimpo ilegal” na Amazônia, não só no Brasil mas também nos outros países da bacia.
Em dezembro do ano passado, a entidade lançou um estudo inédito sobre o que denominou “epidemia de garimpo ilegal” na Amazônia, não apenas no Brasil mas nos demais países da bacia amazônica. Os garimpos na calha do rio Tapajós atraíram nos últimos anos milhares de pessoas. Em torno do município de Itaituba, no Pará, por exemplo, existem garimpos há cerca de 50 anos. Mas a mineração ilegal atingiu escala industrial com a elevação dos preços do ouro no mercado internacional, no início desta década.

A CADA ANO, RIO TAPAJÓS RECEBE 7 MILHÕES DE TONELADAS DE DETRITOS

Em 2018, como parte da Operação Levigação, de combate ao garimpo ilegal, a Polícia Federal promoveu um estudo sobre a quantidade de detritos que a atividade vem jogando no rio Tapajós. Segundo o laudo do perito Gustavo Geiser, publicado em setembro, são jogadas nas águas do rio a cada ano cerca de 7 milhões de toneladas de sedimentos com alto índice de mercúrio.
Essa lama tóxica corresponde a mais da metade do que foi despejado na região de Brumadinho, em Minas Gerais, com o rompimento da barragem no início deste ano. Significa que, sozinho, o garimpo na área do rio Tapajós produz uma tragédia como aquela a cada dois anos.
O garimpo clandestino causa essa grande quantidade de dejetos porque é um fenômeno muito raro aparecer uma pepita grande. O normal é que sejam encontrados pequenos traços de ouro em grandes toneladas de pedra ou de terra.
Uma mina industrial, por exemplo, pode ser rentável se obtiver dois gramas de ouro por tonelada de pedra triturada. O mesmo acontece com garimpos nas barrancas dos rios: toneladas de terra são transformadas em lama e jogadas na água para um resultado de alguns gramas de ouro.
Usando bombas, os garimpeiros lançam jatos de água nas barrancas, que se desfazem em represas de lama; em seguida, outras bombas sugam e peneiram a lama em busca das pequenas pedrinhas que poderão conter ouro. Além dessa destruição, os garimpeiros usam mercúrio, um metal pesado, tóxico para os seres vivos e que pode provocar problemas neurológicos e má-formação fetal (a chamada doença de Minamata).
Quando em contato com o ouro, o mercúrio se junta a ele, formando um amálgama. É essa propriedade que o faz útil aos garimpeiros. O processo consiste em separar da terra o cascalho com ouro e passá-lo em uma esteira forrada de mercúrio. O ouro vai grudar no mercúrio, separando-se do cascalho. Depois, o amálgama é colocado em uma placa sobre o fogo. Os dois metais reagem de forma diferente à alta temperatura. Quando o mercúrio atinge 357 ºC, ele se transforma em um gás escuro. Já o ouro nem chega a derreter (seu ponto de fusão é aos 1.064 ºC). Livre do mercúrio que a separou das impurezas, surge uma bela pepita dourada.
O mercúrio que tinha virado fumaça vai condensar e se tornar líquido novamente. Mas, fora do ambiente de laboratório, como nos garimpos, aquela fumaça que se afastou do local vai pingar como mercúrio mais adiante, no mais das vezes no rio ou na água usada para lavar o ouro.

Serra Pelada em 1986


Imagens da febre do ouro chocam o mundo e reabilitam o preto e branco

O fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado, que estava exilado na França durante a ditadura militar, só obteve autorização para registrar o que ocorria em Serra Pelada em 1986.
Na época, a cena na fotografia era desfavorável ao preto e branco. Se antes a foto colorida era associada a publicidade e álbuns de família, ela ganhou status depois de 1976, quando o prestigiado fotógrafo norte-americano William Eggleston -antes ele próprio fiel ao preto e branco– fez a primeira grande exposição de imagens coloridas da história do MoMA, o Museu de Arte Moderna de Nova York. Além disso, o mercado editorial se rendia mais e mais à cor, posto que jornais e revistas já podiam ser impressos em cores com mais velocidade e precisão.
O preto e branco parecia destinado ao esquecimento quando, em março de 1987, Neil Burgess, então diretor do escritório de Londres da agência de imagens Magnum, recebeu as fotos de Serra Pelada feitas por Salgado. Imediatamente, ele as levou ao diretor de arte da revista do Sunday Times, referência no jornalismo britânico. A publicação daquelas fotos causou grande impacto não apenas na Europa, mas no mundo.
Vieram outras reportagens que comporiam “Trabalhadores”, o primeiro dos projetos de longo curso que o fotógrafo produziu nas últimas décadas, sempre em preto e branco.
Salgado conta que, ao chegar a Serra Pelada, procurou um conterrâneo de seu pai, um empresário de garimpo e nascido, também, no vale do Rio Doce, em Minas Gerais. A coincidência fez correr entre os garimpeiros o boato de que um estranho “da Vale do Rio Doce” estava ali para espionar, expulsar garimpeiros e recuperar a mina para a estatal.
Ao entrar na cratera, diz que sentiu ódio emanando de 100 mil olhos. Os escavadores bateram suas ferramentas para fazer um barulho de protesto. Nas primeiras horas de trabalho, tomou empurrões e esbarrões que o ameaçavam e tentavam fazê-lo tropeçar e cair no buraco.
Quando já estava sujo de lama como os trabalhadores, Salgado foi detido por um policial, que o julgou um estrangeiro contrabandista. Foi solto ao provar ser brasileiro. Ao mesmo tempo, os garimpeiros souberam que era repórter e também mudaram o sentimento. Na volta à cratera, foi aplaudido: havia sido aceito. “O ouro é um amante imprevisível. Enquanto alguns partiram de Serra Pelada com dinheiro e nunca se sentiram traídos, outros perderam tudo. O amigo de meu pai achou 97 quilos, reinvestiu em mais lotes e equipes adicionais de peões para deixar a mina de mãos vazias”, conta.
Com a mulher, Lélia Wanick Salgado, o fotógrafo decidiu revisitar todos os originais de Serra Pelada, com um olhar diferente daquele de décadas atrás. Ao final do trabalho, tinha um conjunto novo de imagens que se somou às que haviam sido mostradas nos anos 1980.
Coincidindo com os 40 anos da descoberta do ouro em Serra Pelada, essa nova seleção de imagens foi editada para o livro “Gold” e para a exposição que será aberta em São Paulo em 17 de julho, no Sesc Paulista.
Livro e exposição têm estreia internacional no Brasil e seguem depois para Estocolmo, em setembro; Madri, em novembro; Talin (Estônia), em dezembro; Milão, em abril, e Londres, em maio de 2020.
O fotógrafo se dedica atualmente a “Amazônia”, projeto que a reportagem da Folha tem acompanhado e que vai resultar também em um livro e uma exposição em 2021. Parte do conteúdo tem sido antecipada em especiais como este.


https://arte.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/sebastiao-salgado/serra-pelada/imagens-da-febre-do-ouro-chocam-o-mundo-e-reabilitam-o-preto-e-branco/  07/07/2019