segunda-feira, 30 de abril de 2018

Daniela Vega

No texto Epifania deste blog conto a estória de Marina, uma transexual e seus problemas com sua afirmação como mulher. Foi explicitamente baseada no filme "Una mujer fantástica" de 2017. 
Agora como está a atriz do filme, Daniela Vega.



Após triunfo no Oscar, Daniela Vega quer ampliar voz pela diversidade

Atriz chilena transgênero estrela longa independente e prepara autobiografia

POR CARLOS HELÍ DE ALMEIDA*
30/04/2018  O Globo

RIO — Era mais uma edição de uma festa para celebrar o cinema ibero-americano, mas quem monopolizou olhares e atenções do V Prêmio Platino, encerrado ontem em um resort de Cancún, foi uma jovem chilena de 28 anos, com apenas dois filmes no currículo. A cena se repetia onde quer que Daniela Vega surgisse no balneário mexicano: um redemoinho de fãs, jornalistas e curiosos se formava em torno da carismática protagonista de “Uma mulher fantástica” (que ainda está em cartaz) — filme vencedor do Oscar de produção estrangeira —, que fez história ao se tornar a primeira atriz transgênero a participar da cerimônia em Hollywood apresentando um prêmio.
‘Sei o lugar que ocupo na sociedade chilena, que é fruto do trabalho que faço. Mas sei também que há os que não ficam confortáveis com a minha presença.
Aquela noite no palco do Dolby Theatre de Los Angeles, em março, foi o ponto alto da carreira do longa-metragem de Sebastían Lelio e de sua estrela, que virou símbolo da luta pela diversidade sexual desde a primeira exibição no Festival de Berlim de 2017, onde conquistou o troféu de melhor roteiro.
No filme, Daniela interpreta Marina, garçonete transexual de Santiago que enfrenta um périplo de humilhações e preconceitos para se despedir do companheiro morto. No Platino, ela levou levou o prêmio de melhor atriz — uma das nove categorias disputadas por “Uma mulher fantástica” — e também foi eleita na mesma categoria pelo júri popular.

Homenagem a ela na sexta (27/04/2018), no Prêmio Platino, 
onde mobilizou o público - Infoglobo


— Estar naquele auditório, cercada de artistas que admiro, em uma cerimônia vista por milhões de pessoas, foi um momento maravilhoso. Foi a primeira grande ligação entre minha arte e o mundo — diz Daniela ao GLOBO. — Tenho sentido o carinho das pessoas. Sei o lugar que ocupo na sociedade chilena, que é fruto do trabalho que faço. Mas sei também que há os que não ficam confortáveis com a minha presença. Mas acredito que quanto mais diversidade de cores houver, mais bonito o mundo será.
O sucesso internacional do filme transformou Daniela em símbolo dos direitos identitários, dentro e fora do Chile. Apesar de tanto alarde, ela mantém os pés no chão: seu próximo filme é uma produção de baixo orçamento (leia mais ao lado).
Ela estreou no cinema com “La visita” (2013), de Maurício López, primeira produção chilena a tratar as questões de gênero no país, no qual interpreta uma transexual que volta à cidade natal, no interior, para o enterro do pai. O roteiro de “Uma mulher fantástica”, no entanto, tem vários pontos em comum com a trajetória pessoal da atriz, uma aspirante a cantora de ópera que constrói sua identidade seguindo o caminho das artes. Com a repercussão do filme, que virou referência para o movimento LGBT, Daniela pretende dividir sua experiência em uma autobiografia.



Primeira atriz transgênero a apresentar um prêmio no Oscar
  LUCAS JACKSON / Reuters
 
— Já preparei uma espécie de roteiro do que quero contar no livro. Mas ainda estou fazendo um cursinho de redação porque não tenho experiência. Todas as vidas têm passagens tristes e alegres. Estou tentando encontrar um jeito de contar a minha história de uma forma mais divertida, sem entediar as pessoas. O filme do Sebastían me deu possibilidades. Agora posso amplificar a minha voz, torná-la mais pessoal — observa a atriz, que é modesta sobre as mudanças trazidas desde a consagração em Berlim. — A minha vida é mesma. A diferença é que agora há mais pessoas querendo escutar o que tenho a dizer. E antes eu tinha menos roupas no armário. (risos)
Filha mais velha do dono de uma gráfica e de uma dona de casa, ela iniciou a transição sexual ainda na adolescência, mas até hoje não conseguiu trocar o nome social porque o projeto de lei sobre identidade de gênero, enviado ao congresso em 2013 pela então presidente Michelle Bachelet, ainda não passou pelo Senado chileno. Após a vitória no Oscar, ainda em março, o prefeito de Nuñoa, distrito de Santiago onde Daniela cresceu, voltou atrás na ideia de dar a ela o título de cidadã ilustre argumentando que em seus documentos ainda constam o nome de batismo.

Texto de Bachelet na “Time”

No mesmo dia da cerimônia em Nuñoa, Daniela foi recebida por Bachelet. A ex-presidente é autora do perfil sobre Daniela publicado na revista “Time”, na edição em que a publicação americana a incluiu na lista das 100 personalidades mais influentes do ano. Em seu texto, Bachelet escreve: “O Chile tem muito orgulho de Daniela Vega e da equipe que escreveu e produziu ‘Uma mulher fantástica’. O filme mostra os desafios que enfrentamos não apenas como país, mas também como seres humanos, para aceitar a realidade das pessoas transexuais em nossas sociedades.”
— Achei bonito o que ela escreveu sobre mim e sobre o filme na revista. É uma prova de que a arte não conecta apenas o artista e o espectador. A polarização de ideias não é positiva. Temos que entender que existem matizes em tudo.
 
Pela primeira vez, papel cisgênero

A atriz chilena ainda faz mistério sobre as propostas surgidas na esteira da repercussão de “Uma mulher fantástica”:
— Tenho novos projetos em cinema, teatro e na música. Mas não quero estragar a surpresa.
Já não é segredo, no entanto, que ela está no elenco de “Um domingo de julho em Santiago”, produção independente chilena que começou a ser rodada antes da corrida do Oscar. No filme dirigido pelos irmãos Gopal e Visnu Ibarra, três histórias são contadas em seis planos sequência.
Daniela participa de uma delas, interpretando a assistente de um escritório de advocacia que tem um caso com um empresário. É a primeira personagem não transexual (ou seja, cis) da atriz.
— O ator é múltiplo, o talento não está limitado pela sexualidade. Fazemos o que está dentro de nossa capacidade. Não vejo necessidade de fazer todos os personagens do mundo.

* Especial para o GLOBO, de Cancún, México

https://oglobo.globo.com/cultura/apos-triunfo-no-oscar-daniela-vega-quer-ampliar-voz-pela-diversidade-22639805  

Sobre o filme Una mujer fantastica

Crítica: 'Uma mulher fantástica'
Bonequinho aplaude de pé: Diferente feminilidade


POR SUSANA SCHILD
06/09/2017 O Globo

Vencedor do Oscar na categoria: Filme estrangeiro (Chile).

Não se trata de propaganda enganosa. O título “Uma mulher fantástica” está à altura da atuação da atriz transexual Daniela Vega no papel de Marina, a “outra” de um triângulo amoroso. Se a música “Tua cantiga”, de Chico Buarque, vem provocando reações iradas por se referir a um homem que largaria tudo pela amante, o que se dirá de um marido exemplar que deixa mulher e filhos por outro, vestido de outra? Se não fosse por esse “detalhe”, o roteiro premiado com o Urso de Prata no último festival de Berlim teria tudo para ser um melodrama convencional em torno do tema, um dos preferidos da dramaturgia desde sempre. No centro da arena, um cidadão acima de qualquer suspeita e uma mulher bem mais jovem. De dia, ela é garçonete, de noite canta em boates, de madrugada dorme nos braços do amado. O casal está apaixonado e divide o mesmo teto há pouco tempo. Após uma noite de amor, Orlando (Francisco Reyes, ótimo) morre.

Trailer do filme
https://www.youtube.com/watch?v=_5dwogj-5t8 

Começa aí o calvário de Marina. Em choque, ela se torna suspeita e sofre constrangimentos por parte de policiais e inspetoras. A família oficial reivindica o enterro, o luto, a missa, as coroas de flores, sem falar no apartamento e na doce cadela diabla. O filho do falecido reage com ferocidade. E o encontro com a mulher preterida sintetiza, com primor, o grau de perplexidade em vigor: “Não sei o que estou vendo”. O espectador sabe. Está diante de uma atriz excepcional em seu segundo longa. Marina se impõe pela firmeza, pela dignidade e pela beleza. Não uma beleza convencional, estereotipada, mas um misto de força e feminilidade. Marina sofre mas não se vitimiza. Nem entrega os pontos.
Aclamado por “Gloria”, o diretor chileno Sebastián Lelio repetiu as parcerias com Gonzalo Maza como corroteirista e Benjamín Echazarreta como fotógrafo. Com boa parte das cenas em close frontal no rosto de Marina, alternadas a caminhadas por uma Santiago ensolarada, e ainda através de alguns toques oníricos na narrativa, o diretor parece almejar o âmago da personagem, ao mesmo tempo enigmática e transparente. A suspeita de assassinato conduz a trama a um tênue clima de suspense, com ótima trilha musical de Matthew Herbert, apesar de algumas ênfases exageradas. Saudado por alguns como um “Almodóvar chileno”, Lelio está longe da extravagância do diretor espanhol em “Tudo sobre minha mãe”, por exemplo. Sua busca de sobriedade e densidade o aproxima mais de “Traídos pelo desejo”, de Neil Jordan. Embora a conclusão deixe um pouco a desejar, A mulher fantástica do título se impõe pela determinação de Daniela Vega em ser a dona de sua própria história.

https://oglobo.globo.com/rioshow/critica-uma-mulher-fantastica-21795446
 

quinta-feira, 26 de abril de 2018

Lou

Nietzsche: Se você nunca se entrega a um homem, você nunca conhecerá o Princípio Dionísio. O apaixonado, o sensual, o ser irracional em você.
Lou: Eu prefiro o Princípio Apolíneo. Racionalidade e nenhuma dependência do sentimento.
Nietzsche oferece ópio a Lou e diz: Este é o caminho para o núcleo mais íntimo de todas as coisas.
Lou toma o ópio e diz: Mas para isso eu não preciso de nenhum homem.

O diálogo acima é do filme Lou Andreas – Salomé, the audacity to be free (Lou), 2016, de Cordula Kablitz – Post. Lou (1861 – 1936) foi uma mulher libertária antes de filósofa, poeta, romancista e psicanalista. Foi ignorada, como intelectual, num mundo predominante dominado por homens. Lou tinha, por princípio, aversão ao casamento. Ela acreditava que a renúncia à satisfação física libera forças espirituais criadoras. Atração física não segue a atração espiritual. Teve um casamento de aparências com Friedrich Carl Andreas (1846 - 1930). Um casamento que lhe permitia livre.


Lou em 1914


À sombra dos homens: a subestimada genialidade de Lou Andreas-Salomé

Clarice Lippman, Revista Prosa Verso e Arte

Lançado há pouco nos cinemas do país, o filme “Lou”, cinebiografia sobre a escritora, poeta, filósofa, ensaísta e psicanalista Lou Andreas-Salomé, trabalha em sua produção a história de vida da protagonista, espelhando em rápidas duas horas os principais destaques de seus setenta e cinco anos de vida.
O longa-metragem usa de algumas liberdades poéticas, servindo como resumo biográfico “romântico” da protagonista. Devido a curta duração, a diretora Cordula Kablitz-Pos teve de pincelar em termos de estética cinematográfica e roteiro toda uma diversificada história pessoal. Os personagens coadjuvantes — Friedrich Nietzsche, Paul Rée, Rainer Maria Rilke, Friedrich Andreas, Sigmund Freud, Erns Pfeiffer, dentre outros — são retratados não necessariamente de maneira fidedigna às suas próprias personalidades, mas no conjunto da obra, funcionam na hora de tecer a história da protagonista, e o impacto que tiveram no destino de Lou. Principalmente, no que diz respeito a todos os desafios que a protagonista enfrentou ao ser uma mulher visionária e transgressora das convenções sociais.
Sua resistência ao padrão de vida feminino da alta sociedade russa — donas de casa ostentando casamentos com famílias ricas — sua paixão pelos estudos que a levou a ser uma das poucas mulheres do fim do século XIX a frequentar uma universidade, sua amizade em trio com Paul Rée e Friedrich Nietzsche, bem como tentativa de coabitação com ambos, sua carreira sólida acadêmica, como romancista e poeta, construída, a princípio, pelo uso de codinomes masculinos; todas estas quebras de padrões sociais são demonstradas ao longo das duas horas do longa, retratando as dificuldades — profissionais e afetivas — sofridas pela personagem, por ser uma mulher decidida a ter a própria independência e reconhecimento atrelados apenas a si.
O que é curioso ao se estudar as escolhas de marketing do filme. O próprio cartaz de divulgação erra ao colocar, como frases de impacto, a aprovação masculina que Lou recebeu ao longo da vida de outros grandes nomes da filosofia, poesia e psicanálise: “Admirada por Nietzsche. Desejada por Rilke. Idolatrada por Freud”. Quando, durante o próprio longa, temos como linha principal de roteiro a ânsia por independência e emancipação buscada ferrenhamente por Lou Andreas-Salomé. Tudo o que Lou esperava era ser reconhecida por suas próprias capacidades, como uma mulher em pé de igualdade com os homens brilhantes com os quais se relacionava. E, ainda assim, muitas vezes sua história é contada como a de uma “femme fatale”, uma “subversiva”, diminuída aos estereótipos e padrões alimentados pela cultura misógina que tanto tentou podá-la em vida.
Como maior acerto do filme, considero a intensa retificação da protagonista como uma mulher transgressora, empoderada e, infelizmente, subestimada, incompreendida e julgada pela sociedade ao seu redor. Lou Andreas-Salomé tem uma obra produzida e publicada (boa parte postumamente por seu curador, Ernst Pfeiffer), que vai da literatura narrativa à poesia, da psicanálise à filosofia, e, se comparada aos nomes masculinos com os quais conviveu durante a construção de sua admirável carreira acadêmica, foi deixada à sombra daqueles que muitas vezes influenciou e trocou conhecimento. Sigmund Freud admitiu em cartas ter sido influenciado pelas pesquisas da psicanalista — a teoria de Lou acerca do narcisismo positivo é até hoje relevante na psicanálise —, bem como Nietzsche assume que Lou foi inspiração para partes de “Assim Falava Zaratustra”, uma das obras de maior fama do filósofo.
Todavia, o valor do legado da autora parece ser intimamente vinculado à convivência com estes mesmos nomes, tal como o filme não se exime de abordar. Lou, como muitas mulheres deixadas à penumbra dos homens que as admiraram ao longo da história, foi subestimada em vida, e continua a sê-lo depois de deixar tão vasta produção. Uma de suas obras mais traduzidas, inclusive, são suas considerações sobre a filosofia de Friedrich Nietzsche. Apesar de tamanha relevância para a história ocidental, as obras de Lou Andreas-Salomé, em sua maioria, sequer têm traduções para a língua portuguesa.
Qual seria a razão deste fenômeno? Como poderia uma romancista, ensaísta, poeta, psicanalista e pioneira do modernismo europeu, com tomos de sucesso publicados ainda viva, ter seu reconhecimento mais conectado às figuras masculinas que passaram por sua vida do que sua própria obra?
O filme sugere que nem a genialidade nem o espírito indomável de Lou Andreas-Salomé foram suficientes para protege-la das brumas do machismo que envolviam a sociedade europeia do século XIX. Ainda que tivesse se negado a se casar e desfrutar de uniões românticas desde que se desiludiu com seu tutor, o pastor Gillot, responsável por inicia-la em seus estudos de filosofia. Gillot era um homem casado e algumas dezenas de anos mais velho do que a jovem Von Salomé, ainda adolescente. Aproveitou-se da relação de proximidade com a aprendiz para tentar seduzi-la e fazê-la casar-se consigo, assim como fizeram a maioria dos homens com os quais teve trocas que, de sua parte, deveriam se ater à amizade e à intelectualidade. Grande parte deles tentou convencê-la a deixar suas convicções para trás e conformar-se com uma vida de casamento provinciano.
Foi o caso de Paul Rée, Friedrich Nietzsche, Friedrich Andreas — com o qual se casou em um acordo de fachada, visando um matrimônio que apenas a beneficiasse perante a sociedade, mas não se consumasse no aspecto afetivo —, todos amigos íntimos e companheiros de estudos que tentaram, de alguma forma, dominá-la. Infelizmente, conseguiram seu intuito, de certa maneira. A obra filosófica de Lou Andreas-Salomé não é tão conhecida quanto a filosofia nietzscheana, tampouco sua teoria psicanalítica pode sequer ser comparada à importância da produção do “pai da psicanálise”, Sigmund Freud.
Um dos trechos frisados no longa, de autoria de Lou, é:

“Ouse, ouse… ouse tudo! Não tenha necessidade de nada! Não tente adequar sua vida a modelos, nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém. Acredite: a vida lhe dará poucos presentes. Se você quer uma vida, aprenda… a roubá-la! Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer. Não defenda nenhum princípio, mas algo de bem mais maravilhoso: algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!”

A protagonista parece ter vivido a termo nestas palavras, o que não a impediu de ser mal interpretada e rotulada em uma sociedade patriarcal repleta de regras morais de coerção feminina estritas. Tampouco a protegeu de ter sua produção acadêmica e artística desvinculada de nomes masculinos, sempre estreitamente relacionada com os homens que fizeram parte de sua vida. É triste concluir que, no que diz respeito ao reconhecimento e emancipação da mulher quanto a ausência de necessidade de estar constantemente conexa a um homem, não avançamos tanto assim. A própria personagem principal reconhece esta indevida posição de submissão em seus anos finais de vida.
Tenhamos como inspiração, portanto, esta mulher de virtudes e defeitos multifacetados, deveras brilhante, porém humana como nós. Que sua determinação em combater os grilhões que nos prendem às sombras da preponderância masculina nos sirva como combustível para seguir nessa mesma direção de independência. Ainda que as trevas sejam escuras, não podemos deixar nossa centelha apagar. Tenhamos a decisão de manter aceso nosso fogo da vida, e queimar com a força de estrelas e a serenidade resiliente dos vaga-lumes.

Clarice Lippmann, colunista da Revista Prosa, Verso e Arte. Formada em Direito pela PUC-Rio e estudante entusiasta de Filosofia.

https://www.revistaprosaversoearte.com/a-sombra-dos-homens-a-subestimada-genialidade-de-lou-andreas-salome-clarice-lippmann/  26/04/2018


Lou (Katharina Lorenz), Nietzsche (Alexandder Scheer) e Paul Rée (Philipp Haub)

sábado, 21 de abril de 2018

Minha libido foi comprar cigarro

Tati Bernardi
13.abr.2018   Folha de São Paulo

Foi complicado pensar em sexo no começo da gravidez. Eu sentia um cansaço absurdo, um enjoo macabro e um sono matador. Foi difícil pensar em fazer um amorzinho maroto no final da gravidez. Eu sentia os pés da bebê na costela, a lombar latejante e uma azia que piorava até com água mineral. Agora que estou amamentando tudo mudou! Só que pra pior. Complicados e difíceis se tornaram impossíveis.
Meus peitos parecem os da tia Cidinha, meu intestino insiste em se expressar livremente e a cervical acorda mais detonada a cada manhã. Sofro com a privação do sono, com a privação de qualquer coisa um dia chamada de “minha vida” e toda a energia que resta está voltada, exclusivamente, para os sortidos barulhinhos do neném.
A verdade é que do dia que urinei no teste de gravidez até hoje, passei a entender minha vagina como um local estranhíssimo por onde saem humanos (e até nisso fracassei: sem dilatação, fiz cesárea). Tentei ser uma mulher muito carnal, sensual, atual, natural, mas minha libido ignorou a extensa lista e saiu para comprar cigarros (o que achei uma falta de respeito tremenda, posto que eu estava grávida). Repito diariamente para meu corpo nu, no espelho do banheiro: “Você é mulher antes de ser mãe”! Mentira, nem pra tomar banho tenho tempo, o que dirá me dizer coisas pelada.
Quando vi Pedro, pela primeira vez, numa festa, não consegui dormir. Ele estava com o braço quebrado, o cabelo desarrumado e não sosseguei enquanto não o convidei para sair, para vir aqui em casa, para passar uma noite e uma semana e nisso vão cinco anos. Eu achei seu nariz, seu queixo, seus ombros, suas pernas, sua falsa arrogância cheia de delicadezas e gentilezas, seus silêncios que gritavam milhares de histórias (mas só pra quem insiste em ouvi-las) as coisas mais lindas do mundo.
Acontece que virei um zumbi do amor materno. Ou bem estou dormindo de babar, ou bem estou babando de sono (ou bem estou babando olhando minha filha, e parece um sonho). E, no momento, não cabe mais nenhum corpo entre essas salivas tantas. O amor por um filho é a minha primeira experiência com a fidelidade.
Então, as amigas falam: “Mas desse jeito você vai perder o marido”. Eu sei e tudo bem. Entre a sobrevivência de uma criaturinha maravilhosa que já existe e a dança do acasalamento para que outro serzinho seja feito, a natureza escolhe garantir o primeiro. E eu também. E Pedro também. Não transar é a mais libertadora aquisição de uma vida sexual livre.
É tanta imersão obsessiva no fantástico mundo dos sorrisos, puns, arrotos, bocejos, soluços, engasgos e gargalhadinhas que, às vezes, me surpreendo com outros sujeitos perambulando por aí, incluindo um deles, muito bem-apessoado, dentro de casa.
Olha, lá vai um homem bonito da sala pra cozinha! Ah, se eu tivesse corpo, mãos, boca, olhos... ele não me escaparia! Mas sou feita de líquidos, calor e intuição. Sou qualquer forma não humana de mulher libidinal e toda e qualquer forma possível de mãe abismada pela porrada avassaladora desse novo amor.
Olheiras, moletons azedos e cabelos sujos são minhas armas de não sedução. E elas são necessárias e bonitas e Pedro, porque é o melhor dos homens, nunca me achou tão sexy e divertida. Mentira. Não me importo. Mentira. Enfim, o espaço acabou junto com meu tempo. Lá vou eu muito feliz e também um pouco confusa para mais uma mamada.

quarta-feira, 18 de abril de 2018

Queimada

Queimada (Burn) de Gillo Pontecorvo, 1969, sem sombra de dúvida é um clássico da cinematografia mundial. Assisti pela primeira vez em 1973, em Bauru, SP. Até hoje me encabula ter visto este filme, com viés abertamente marxista, numa ainda ditadura militar. Depois desta première vi e revi umas sete vezes. Marlon Brando (1924 - 2004), o protagonista do filme, dizia sempre que Burn é seu filme favorito dentre os mais de 40 em que participou.

Queimada, Marlon Brando e Evaristo Marques na filmagens

A seguir uma análise que capturei do site Adorocinema

O filme Queimada realizado em 1969 está entre os (poucos) filmes em que o tempo age como sobre o vinho, melhorando cada vez mais. Assinado por um mestre inconteste da filmografia politicamente engajada, o italiano Gillo Pontecorvo e ambientado em uma ilha caribenha fictícia, que dá título ao filme, a obra recorre aos postulados mais fundamentais da análise histórica marxista para desvelar tramas e artimanhas da exploração que sustenta o modo de produção e a organização sócio-política genericamente classificados como Capitalismo, em especial nos termos da globalização contemporânea. Marcando a passagem do colonialismo (dominação direta) para o imperialismo (dominação indireta), a narrativa traz Marlon Brando interpretando o aventureiro Willian Walker (andarilho não é só uma coincidência no perfil da personagem), enviado à ilha para fomentar rebeliões e derrubar o domínio português, estimulando o nacionalismo e a constituição como nação independente. Manipulador habilidoso, Walker instiga a rebelião aliciando líderes e organizando grupos guerrilheiros entre a população escrava que sustenta a monocultura canavieira da ilha, promovendo, também, a substituição da exploração escravocrata pelo liberalismo, incluindo a mão de obra assalariada “livre”. A comparação das relações entre marido, esposa e prostituta, simbolizando patrão, escravo e empregado é um momento marcante do filme, atestando a incomparável habilidade narrativa cinematográfica de Pontecorvo no tratamento crítico de temáticas políticas.
Os escravos lutam, ganham, mas não levam. Walker convence a liderança negra que a conquista da liberdade não significa capacidade para governar. A burguesia branca assume o poder e os negros voltam à condição subalterna, com a substituição da opressão colonialista lusitana pela exploração imperialista britânica. Parte da liderança negra retoma a luta, agora contra os novos opressores e Walker é enviado uma vez mais para Queimada, com a missão de caçar e exterminar o líder que ele mesmo criara. A luta leva o caos e a miséria à ilha e as imagens apresentadas na tela nos remetem a outras estampadas na mídia contemporânea colhidas em nações como o Haiti, cuja história praticamente reproduz o roteiro do filme. Seja como aula de história, seja como crítica política, seja, ainda, como obra de arte que desnuda a lastimável organização social que, até agora, conseguimos fazer, como seres humanos, Queimada faz parte daquela relação de filmes que leva o espectador a pensar criticamente a globalização, apesar de produzido muito antes do termo virar moda.

As argumentações de Walker: marido, esposa e prostituta - patrão, escravo e empregado

Senhores, deixe-me fazer uma pergunta. Minha metáfora poderá parecer um pouco impertinente, mas acredito que é exata.
O que preferem ou devo dizer, o que acham mais conveniente? Uma esposa ou uma dessas mulatas?
Não me interpretem mal. Falo estritamente em termos econômicos.
Qual é o custo do produto? O que o produto propicia? O produto, no caso, sendo o amor. Amor puramente físico, já que, obviamente, sentimentos não têm
um papel econômico. Praticamente.
Uma esposa precisa de um lar com comida, roupas, cuidados médicos, etc. É necessário mantê-la a vida toda mesmo depois que envelhecer e se tornar improdutiva.
E se tiverem o azar de viverem mais do que ela, terão de pagar o enterro. Não, não. É verdade. Senhores, sei que parece divertido, mas são os fatos, não são?
Por outro lado, com uma prostituta o assunto é diferente, não é?
Não há a necessidade de abrigá-la ou alimentá-la e certamente nem de vesti-la ou enterrá-la. Graças a Deus!
Ela é sua só quando precisam. Pagam-na somente por esse serviço e a pagam por hora. O que, senhores, é mais importante e mais conveniente?
Um escravo ou um trabalhador assalariado?
O que acham mais conveniente? O domínio estrangeiro, com suas leis, vetos, impostos, monopólios comerciais, ou a independência?
Com seu próprio governo,leis, administração e a liberdade de comerciar com quem quiserem sob termos ditados somente pelos preços do mercado internacional.
...
Mas é o exemplo da prostituta que ainda não me convenceu, Sr. Walker. O que acontecerá quando o negro não for mais um escravo? E, em vez de trabalhador, quiser ser o patrão?
É exatamente o que acontecerá se continuarmos a discutir o caso. Há quatro meses, José Dolores estava em Sierra Madre com uma dúzia de homens. Quando chegou à Sierra Trinidad havia 400 ou 500. Agora, há milhares. Espalham-se pelas planícies. Em minha opinião, se não tomarem uma atitude imediata se não se envolverem nessa revolta serão aniquilados. Em vez de se tornarem trabalhadores,
seus ex-escravos  não se tornarão seus patrões, Sr. Prada, e sim seus carrascos.

Martino, um negro indio

Agora, José Dolores diz que, se o que temos
em nosso país for civilização...civilização de brancos...então é melhor sermos selvagens, pois...é melhor saber para onde ir
sem saber como...do que saber como ir
sem saber para onde.
Daí, Dolores diz...que se um homem trabalha para outro,
mesmo se for chamado trabalhador...ele continua sendo escravo.
E será sempre a mesma coisa...enquanto existirem
os donos dos canaviais... e os donos das machetes que cortam a cana para os donos.
- E daí?
- Daí, José Dolores diz...que devemos cortar cabeças,
em vez de cana.  

Walker e a criação do herói

Lá está José Dolores.
É uma história exemplar.
No começo, ele não era nada. Um carregador de malas e água.
Mas a Inglaterra o tornou um líder revolucionário e quando não mais servia a ela, foi colocado de lado.
Quando se rebelou de novo, mais ou menos em nome dos mesmos ideais que a Inglaterra o ensinou, ela decide eliminá-lo.

Abolição
"Abolição" de Ennio Morricone é a música que marcou o filme. 
https://www.youtube.com/watch?v=54Lqy6H5lRI