domingo, 29 de junho de 2025

Pílulas 32

O coração do Brasil está envenenado

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Zezé Motta completa 81 anos e relembra início de carreira na música

Por que estamos desperdiçando energia renovável no Brasil

Angie Dickinson 

Hazel Scott 

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Deus me livre de poliamor, relação aberta, suruba

 Maria Victoria de Mesquita Benevides: O direito à democracia

1961 golpe branco (doc. do Canal Brasil)

O que acontece quando site de prostituição compra capa da Folha

Copa do Brasil parte 3

A Força de uma Mulher - a ex-judoca Edinanci Silva 

Arqueóloga Niède Guidon, que deu fama mundial à pré-história do Brasil, morre aos 92 anos

Território em Fluxo

México pode eleger 1ª juíza indígena em votação inédita após reforma do Judiciário

Com maior câmera digital já feita, projeto para mapear o céu inaugura era na astronomia

Leni Riefenstahl

Um genocídio contra o povo palestino e o politicamente inaceitável

O sentido das águas | Drauzio e João Moreira Salles em uma conversa sobre o Rio

 Marina no Senado, masculinidade no abismo e o fim do mundo na foz de um rio 

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O coração do Brasil está envenenado

Pesquisa indica ocorrência de agrotóxicos na água, nos peixes e na caça no Território Indígena do Xingu

Leão Serva, especial para a piauí | 24 jun 2025

 
Grupo se apresenta na aldeia Khinkatxi durante festa dos 20 anos da demarcação da TI Wawi. A cena aparece no filme Sukande Kasaka – Terra doente, dirigido por Kamikiá Khisêtjê e Fred Rahal Crédito: Reprodução

Além dos dois mais usados, Glifosato e Atrazina, também Acetamiprido, Ametrina, Azoxistrobina, Carbaril, Carbendazim, Ciproconazol, Clomazona, Clorantraniliprole, Clorpirifós, Clorpirifós-metílico, Clorprofam, Difeconazol, Diurom, Flutriafol, Imidacloprido, Mecarbam, Metomil, Picoxistrobina, Pirimifós-metílico, Piriproxifeno, Propiconazol, Quinoxifeno, Tebuconazol, Tiametoxam, Triciclazol, Trifloxistrobina. Um total de 28 compostos tóxicos (11 fungicidas, 11 inseticidas e 6 herbicidas) estão presentes em diferentes doses em amostras recolhidas na área ocupada pelo povo Khisêtjê, no Território Indígena do Xingu ao longo dos últimos anos.

O monitoramento de agrotóxicos foi encomendado pelas próprias lideranças desse povo. Os indígenas há vários anos constataram muitos sinais estranhos que atribuem aos “venenos” usados nas fazendas vizinhas: afecções de pele e ardor nos olhos após o banho de rio; mau cheiro na água em tempo de chuva e no ar, quando os aviões espalham venenos nas plantações vizinhas; mudança no gosto dos peixes e das caças; náuseas; aumento de problemas respiratórios.

Os khisêtjês constituem um dos dezesseis povos que vivem no Território Indígena do Xingu – alguns deles há cerca de 1,5 mil anos, outros incorporados à região ao longo dos séculos. A área fica situada no coração do Brasil, ao Norte do Mato Grosso, e foi demarcada pela primeira vez em 1961, com a criação da Terra Indígena do Xingu, que tem 2,6 milhões de hectares (quase o tamanho do estado de Alagoas). Winti Khisêtjê, de 52 anos, é uma das lideranças do seu povo, que ele representa nas organizações indígenas no Xingu. Ele me contou sobre a contaminação do território:
O primeiro sinal que percebemos da aproximação do plantio de soja e do veneno jogado na lavoura foi uma nuvem de insetos, parecidos com pium, mas que não faz nada com a gente, acaba assentando na roça. Quando fomos saber, os caras que trabalham na fazenda explicaram que são insetos da soja. Depois começaram a surgir várias doenças, dor de cabeça. Crianças com problemas de pele, feridas que nunca apareceram antes no corpo das crianças. E uma gripe intensa, que não acabava. Depois começamos a sentir o cheiro, muito perto da gente, mesmo a uma distância de 4 km do plantio de monocultura. Tentamos dialogar com a fazenda, mas não deu muito certo. Depois disso, em 2017, nosso cacique, Kuiussi, tomou a decisão de tirar a aldeia desse local e mudar para mais longe, mais no fundo do mato, mais distante da fazenda. Aí ele falou com o povo, nós temos que mudar, porque aqui perto não tem como continuar morando, perto da soja.

Durante mais de um ano, os khisêtjês trabalharam para levar tudo da aldeia de Ngôjhwêrê, localizada perto da divisa com fazendas de soja, para um local mais distante. E lá se foram em 2018 para a nova aldeia, chamada Khikatxi, 35 km mato adentro, numa área cercada de floresta. Mas foi imensa a decepção quando passaram a sentir sintomas semelhantes. “Quando a gente mudou para cá, a gente percebeu que, futuramente, esses desmatamentos, essa soja também iria chegar aqui, mas não tem como mudar de novo, vamos ter que ficar aqui”, diz Winti. Por isso, os khisêtjês decidiram pedir a pesquisadores que investigassem a presença dos agrotóxicos em seu ambiente.

Winti, o cacique Kuiussi e outros líderes khisêtjês levaram a demanda ao chefe do programa de Saúde Indígena da Escola Paulista de Medicina, Douglas Rodrigues, no mesmo ano de 2018. O médico já planejava um estudo a respeito. Durante uma viagem a São Paulo para exames médicos, em 2016, o líder Afukaká Kuikuro, da aldeia Ipatse, havia pedido a Rodrigues que fizesse uma análise da presença de agrotóxicos no Xingu. Sua comunidade também reclamava de cheiros no ar em certas épocas e da mudança no gosto dos peixes. Um primeiro levantamento havia sido feito como teste entre 2017 e 2018 e comprovou a suspeita: as amostras, mesmo aquelas colhidas a dezenas de quilômetros das divisas das fazendas com a Terra Indígena do Xingu, continham agrotóxicos. Rodrigues, que há quarenta anos se dedica à parceria da faculdade com os indígenas do Xingu, apresentou um projeto de pesquisa à reitoria da universidade. Enquanto o processo corria internamente, chegou o pedido dos khisêtjês.
Quando a equipe de Rodrigues preparava uma pesquisa mais aprofundada, veio a pandemia, adiando tudo por cerca de dois anos.


O pesquisador escolhido para fazer o estudo foi Francco Antonio Neri de Souza e Lima, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), que já havia estudado no mestrado a presença de agrotóxicos em terras dos xavantes (inclusive em Mato Grosso, em várias reservas menores a Leste do Xingu). Souza e Lima fez do estudo aprofundado proposto por Rodrigues o seu trabalho de doutorado, que resultou na tese Agronegócio e contaminação ambiental por agrotóxicos no território indígena do Xingu, defendida na ENSP em 2024.

A pesquisa de Souza e Lima constatou a presença de 28 compostos químicos nas amostragens realizadas em 2023. Eles foram observados principalmente nas águas dos rios, da chuva e dos poços artesianos, que puxam a água de aquíferos subterrâneos e por isso estão associadas à pureza (em terras indígenas afetadas por garimpo, como a yanomami, em Roraima, a implantação de poços artesianos se tornou política pública para escapar da poluição dos rios por mercúrio). Os venenos agrícolas estão também em amostras de carne de peixes e caças. Em todas as amostras em que apareceram resíduos de agrotóxicos, a quantidade estava dentro dos limites permitidos pelas legislações de água potável, superficial e subterrânea.
 Souza e Lima conta que uma das razões para a pesquisa foi fazer a investigação na água, porque os indígenas tomavam banho e sentiam uma série de problemas dermatológicos e oculares, como coceira na pele e irritação nos olhos depois que tomavam banho. “Além disso, há elementos ambientais que eles apontam como novos e suspeitos, como um amarelamento de algumas roças mesmo fora do contexto de seca. Isso pode estar relacionado com o uso de secantes usados nas plantações e herbicidas. Além disso, reclamam que a população de abelhas está reduzindo, impactando a produção de mel.” (O pesquisador, porém, analisou o mel e não encontrou agrotóxicos.)

Segundo Douglas Rodrigues, um aspecto preocupante já detectado nas primeiras amostras colhidas na Terra Indígena Wawi (nome oficial da área ocupada pelos khisêtjês dentro do Território do Xingu) é a presença de resíduos de agrotóxicos no leite materno. “É alarmante porque não era para ter nada, mas não tem níveis elevados. Mas a gente optou por não destacar isso na apresentação ao povo Khisêtjê. Falamos da presença no peixe, mas não nas mulheres. Porque a amamentação é fundamental.”

O professor da Unifesp também quer estudar a influência dos compostos químicos considerados desreguladores endócrinos sobre a saúde indígena, pois ele pode ser um agravante para outros efeitos produzidos pelo contato com as sociedades urbanizadas. “Esses compostos produzem propriedades estrogênicas, femininas, e androgênicas, masculinas, e provocam obesidade também. Isso é uma coisa que me deixou bastante preocupado, porque ele poderia ser um facilitador do diabetes.” Ele explica que o diabetes já é um grande problema entre os indígenas de contato mais recente, com manifestações na Terra Indígena do Xingu, inclusive entre os khisêtjês. “Já estamos vendo a amputação e a cegueira por causa do diabetes. É muito difícil você tratar e controlar diabetes em área indígena. Eu creio que, nos Khisêtjê, estamos vendo a ponta de um grande iceberg.”

Ele também constatou a presença de agrotóxicos na Terra Indígena Panará (localizada na Serra do Cachimbo, na divisa entre Mato Grosso e o Pará). Ali, ao contrário do Rio Xingu, formado por afluentes que não estão em área demarcada, o Rio Iriri nasce dentro de uma reserva biológica. Mesmo assim tem sinais de contaminação. “É preciso criar uma zona de proteção. Um raio no qual não se usa veneno porque está próximo de comunidades indígenas. É o que havia antes desse novo avanço para junto das divisas. Nada de avião, nada de nebulização, para diminuir o risco.”

Souza e Lima me disse que o que mais o preocupa é a “múltipla exposição” em que aquela terra indígena, que não usa agrotóxicos, está exposta. “Tem resultado na água de rio, na água de poço artesiano, na água de chuva e em alguns alimentos. Em todos os pontos em que colhemos amostras, em pelo menos um período do ano, apareceu agrotóxico”, afirmou. “Ou seja, tem agrotóxico em baixa quantidade, mas está chegando por diversas fontes. E a gente tem 100% das amostras de chuva com presença de agrotóxico. Em uma única amostra de água de chuva foi encontrada a maior quantidade de agrotóxicos: sete agrotóxicos.” Entre as possíveis consequências que devem ser investigadas, Souza e Lima menciona a afirmação dos indígenas de que a população de abelhas está desaparecendo e que há uma diminuição geral de insetos, sobretudo dos gafanhotos que costumavam comer.

A presença de vários compostos químicos ao mesmo tempo foi o aspecto que causou mais preocupação entre os médicos que entrevistei. Em um terço (28,6%) das amostras havia apenas um composto, mas 71,4% delas traziam dois ou mais agrotóxicos, e uma em cada vinte (5%) continha mais de sete resíduos de diferentes venenos. A exposição contínua da população indígena a esse coquetel de compostos químicos acionou o alarme. “Não há estudos sobre isso, não existe evidência científica, mas por bom senso nos parece que há, sim, uma multi-intoxicação”, diz Douglas Rodrigues.

Para saber se há estudos sobre os efeitos da exposição a um “coquetel” de compostos químicos, procurei Philip Landrigan, coordenador da Comissão para Poluição e Saúde, criada em 2017 pela revista científica Lancet. Esse grupo de trabalho formado por cientistas de vários países procura estimar os impactos da poluição na saúde e quanto isso custa para a economia das nações. Professor do Boston College, Landrigan é considerado uma das maiores autoridades científicas em estudos sobre os efeitos da poluição na saúde humana, sobretudo dos agrotóxicos. Quando falei sobre os agrotóxicos no Xingu, ele me sugeriu procurar Carmen Fróes, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sua orientanda de pós-doutorado em Boston.

Doutora em saúde pública, Froes foi bastante assertiva sobre o efeito deletério da multiexposição. Ela disse que o que mais a preocupa é a exposição crônica de baixa dose e longo prazo. “É a exposição contínua, a lógica da ‘água mole em pedra dura, tanto bate até que fura’. E essa exposição contínua de baixa dose pode ser extremamente tóxica e pode ser muito difícil diagnosticar uma relação causal a longo prazo”, afirma. “A tese de Francco aponta a presença de agrotóxico organofosforado. Você pode ter uma exposição de cinco, dez, quinze anos, em que o organofosforado é particularmente lesivo ao sistema nervoso, em particular o periférico, e ver surgir um quadro de neuropatia, de lesão, dez anos depois que a pessoa deixou de ser exposta a ele.”

São organofosforados quatro dos compostos químicos citados no início deste texto: Clorpirifós, Clorpirifós-metílico, Mecarbam e Pirimifós-metílico. Eles aparecem em 57% das amostras de alimentos contaminados na Terra Indígena Wawi.

Fróes levanta outra preocupação sobre os agrotóxicos em terras indígenas: a própria vulnerabilidade dos habitantes aos elementos típicos da sociedade industrializada. Da mesma forma que indígenas apresentam mais sensibilidade ao álcool e ao açúcar, a exposição a produtos químicos pode resultar em impacto maior. “Os povos indígenas têm um hábito alimentar que não é de grande quantidade de açúcar. Eles não têm preparo orgânico histórico, que vai de pai para filho, para lidar com esse açúcar. É o que estudamos na epigenética: quanto algum fator do ambiente vai alterar a expressão dos genes”, explica. “Se eu tenho uma população acostumada a comer açúcar, ela vai ter um nível de produção de insulina – que é o hormônio que metaboliza o açúcar – diferente de uma população que não tem essa exposição ao açúcar. Então, existe uma base teórica para se explicar uma maior suscetibilidade de povos específicos a fatores de risco do ambiente, incluindo os resíduos, os compostos químicos.”

Entre os compostos químicos aos quais os indígenas estão expostos de forma crônica, Douglas Rodrigues alerta para herbicidas que têm efeitos sobre o sistema hormonal de animais, como a Atrazina, que ele chama de “desregulador endócrino”. O herbicida foi encontrado em 100% das amostras de água da terra indígena pelo pesquisador Tiago Cerqueira para o Levantamento do Uso de Agrotóxicos nas Cabeceiras do Rio Xingu e Monitoramento das Águas do Parque Indígena do Xingu, seu trabalho de mestrado na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), apresentado em 2018.

A Atrazina, herbicida muito usado e o segundo mais vendido globalmente para culturas de milho, foi objeto de grande polêmica nos Estados Unidos, como contou uma reportagem da revista The New Yorker (publicada na piauí, em outubro de 2014, com o título Sapo de fora não chia). Na matéria, a jornalista Rachel Aviv conta como o cientista Tyrone Hayes, da Universidade de Berkeley, na Califórnia, um dos principais especialistas em anfíbios, foi contratado pela empresa Syngenta para estudar os efeitos de seu agrotóxico Atrazina em sapos. Em algum momento, ele comunicou à empresa que estranhava os resultados que obteve no laboratório, porque parecia que os sapos mudavam de sexo. Pediu mais tempo para checar os dados. A partir de então, percebeu que a companhia passou a atacá-lo, às vezes explícita, às vezes veladamente. Ao final, ficou provado que a empresa tentou por várias frentes de ataque desacreditar seu trabalho.

Entrevistei Hayes para esta reportagem, e ele me contou que desde a matéria da New Yorker, que deu grande exposição ao caso, o laboratório não o assediou mais. O cientista define como “desmasculinização” o impacto que detectou do produto sobre os sapos. “A Atrazina reduz a produção de testosterona e aumenta a produção de progesterona, o chamado hormônio feminino. Portanto, tem o efeito de alterar o sistema hormonal dos anfíbios, causando a desmasculinização”, explicou. Perguntei se o efeito altera as características sexuais secundárias dos animais, e a resposta foi ainda mais alarmante: “Não são apenas os caracteres sexuais secundários que são afetados. Nos anfíbios, o efeito é ainda mais radical: o animal geneticamente masculino desenvolve ovários.”

Enquanto Hayes duelava com a empresa, surgiram nos Estados Unidos sinais de transtornos hormonais em humanos. Perguntei ao cientista se em suas pesquisas havia indicação de que tais efeitos poderiam ocorrer em indígenas expostos à Atrazina, devido ao consumo de peixes contaminados com o composto químico. Ele recusou a hipótese: “Não existem registros de efeitos em humanos devido ao consumo de produtos agrícolas ou de animais. As ocorrências relatadas na New Yorker sobre efeitos em humanos foram entre pessoas que estavam expostas diretamente ao veneno através da pele ou que consumiam água contaminada pela plantação em doses mais altas. Mas o leite, sim, o leite de vacas contaminadas pode transferir Atrazina para o consumidor humano.”


O médico pediatra Sergio Graff, de 65 anos, mestrando em toxicologia na USP, me foi indicado pela associação CropLife Brasil como um pesquisador que poderia contestar os dados sobre intoxicação dos indígenas por agrotóxicos. A CropLife Brasil representa entidades e empresas do agronegócio, inclusive as produtoras de “defensivos químicos” ou agrotóxicos. Na carreira de pediatra, Graff se concentrou nos casos de intoxicação, foi chefe da área no Hospital Municipal do Jabaquara, centro público de atendimento a crianças, em São Paulo, e presidente da Sociedade Brasileira de Toxicologia. Atualmente dedica-se a uma empresa de consultoria que atende associados da CropLife (ele disse que não pode nomear que companhias são estas).

Graff aceita que, como aponta o estudo de Souza e Lima, haja ocorrência de compostos químicos no Território Indígena do Xingu. Ele também reconhece o problema, tanto mais em uma área de preservação, onde os indígenas não utilizam nem querem esses produtos. Mas diz que o estudo mostra que os índices de intoxicação estão sempre abaixo dos limites previstos pelas legislações brasileiras e que a exposição de longo prazo a doses baixas de vários compostos químicos (a multi-intoxicação) obedece também a limites legais. Esses limites, segundo ele, são baseados em pesquisas que simulam a exposição de longo prazo. “Quando se fala de exposição crônica, é feito o teste crônico: ele estima a metade da vida do ratinho, e a exposição ao produto é repetida todos os dias até metade da vida do ratinho. E então se chega a uma conclusão”, ele diz. “Se a gente não acreditar na toxicologia, a toxicologia deixa de ter sentido.”

Graff afirma que desconhece estudos sobre exposição múltipla a diferentes compostos químicos, mas comenta que, diferente da legislação brasileira, as leis internacionais contemplam essa possibilidade. “A legislação da União Europeia ou a do Reino Unido define um limite máximo de resíduo em água potável para a substância isolada e um segundo limite quando tem mais de uma substância”, afirma.

Sobre a ocorrência de Atrazina nas amostras de água do Xingu, ele diz: “Quando você aponta essa presença, você sinaliza que há um perigo. Mas qual é o risco de ela produzir uma disrupção endócrina [como a constatada pelo americano Tyrone Hayes]? Depende de alguns fatores. O primeiro deles é a dose. Em que dose ela é um disruptor endócrino? Com certeza, é acima do limite máximo de resíduo estabelecido pela Organização Mundial da Saúde.”

É um saber antigo, atribuído ao médico Paracelso (no século XVI), que a diferença entre o remédio e o veneno está na dose. Por isso, os órgãos de vigilância sanitária em todo o planeta têm a incumbência de limitar as quantidades dos compostos químicos para que eles manifestem sua vocação para remediar um problema sem envenenar as pessoas e o ambiente. No entanto, frequentemente se detecta que esses Valores Máximos Permitidos (VMP) são excessivos.

No caso da Atrazina, a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA, na sigla em inglês) estabelece um nível máximo de contaminantes (MCL) de 3 microgramas por litro ou 3 partes por 1 bilhão para a água potável. Perguntei ao cientista Tyrone Hayes qual quantidade do composto pode perturbar o sistema hormonal dos animais. “No laboratório, usamos 0,1 partes por 1 bilhão, que é 1/30 da quantidade permitida pela EPA para água potável.” E bastou essa proporção para já obter o efeito descrito de desenvolvimento de ovários em animais com genes masculinos.

O empresário José Ricardo Rezek, de 73 anos, é proprietário de uma fazenda vizinha à terra dos khisêtjês. Os líderes indígenas dizem ter estabelecido com ele um relacionamento cordial, que deixou de existir quando a terra foi arrendada para uma nova administração. O empresário explica que sua família, visando dobrar a área de plantio de soja, milho e algodão, se associou a investidores em uma joint-venture de arrendamento de terras. Uma nova empresa passou a gerir sua propriedade.

Rezek, que comanda o grupo RSK, se estabeleceu no entorno da Terra Indígena do Xingu em 1980. Era um tempo sem regras. “Nós desbravamos sem políticas governamentais. Não sabíamos se podíamos desmatar até a beira do rio, se tinha que deixar uma faixa [preservada]. O governo dizia: ‘Tem que povoar a Amazônia, senão os americanos vão tomar.’ Então, fomos todo mundo para lá”, ele conta. “Não sabíamos que não podíamos desmatar até a beira do rio. Depois, a legislação felizmente evoluiu, e hoje temos as proteções de nascentes, as áreas de proteção permanente e tudo mais. Hoje, o agronegócio não aceita mais qualquer transgressão ao código, não aceita nada que se desalinha com as políticas governamentais.”

Ele diz ter consciência de que os agrotóxicos atingem as terras vizinhas preservadas, ao serem espalhados, ameaçando, por exemplo, a certificação orgânica de alimentos como mel, azeite de pequi e farinhas que os khisêtjês produzem: “Eu seria muito leviano de dizer que isso não possa ter ocorrido, mas hoje a aplicação do avião tende a diminuir, vem diminuindo muito, porque a tecnologia caminha para pulverizadores de altíssima tecnologia embarcada.”

O empresário afirma que o avião que pulveriza agrotóxicos tem sido usado apenas em emergências, pois dispõe agora de antenas 5G para guiar a pulverização. “Além de evitar desperdício, com isso nós já estamos minimizando qualquer problema futuro. Por exemplo, antes jogava 3, 5 litros por hectare. Hoje, com sensor e tecnologia, despeja 0,2 ou 0,3 litro por hectare. Só aplica o estritamente necessário. E está chegando essa nova tecnologia, saída dessas guerras todas, os drones. Você levanta um drone, o drone mapeia, você vê que tem uma infestação de 7 hectares, ele vai espalhar apenas nos 7 hectares”.

Os khisêtjês, porém, reclamam do uso intensivo dos aviões, que aparece em filmagens feitas pelos indígenas. Quando viajei entre Canarana, município de Mato Grosso, e a área mais ao Sul do Território Indígena do Xingu também testemunhei aviões espalhando o veneno por grandes áreas de plantio de soja.

No final de julho, um tronco pintado e adornado com a figura de um homem será velado na aldeia de Ipavu por toda uma noite por indígenas kamaiurás e visitantes de outros povos da Terra Indígena do Xingu. Na manhã seguinte, o tronco, que é a representação do líder Kotok, morto em 2024 por problemas de pulmão que o perseguiram por vários anos, será jogado ritualmente nas águas da lagoa que dá nome à aldeia. Começarão as lutas chamadas de huka-huka, quando homens da aldeia anfitriã enfrentam os visitantes de todas as aldeias vizinhas, um povo por vez. Os vencedores receberão os adereços do líder encarnado no tronco.

A cada ano, as aldeias do Xingu promovem festas como essa para celebrar os líderes que se foram no ano anterior. Kotok morreu sem ver realizado o desejo de entender os níveis de contaminação de sua terra pelos venenos das fazendas, como ele me disse em um encontro pouco antes de morrer, na frente da sua casa, na grande praça central da aldeia Ipavu. Ali, paramentado com os adereços típicos de guerreiro, ele desabafou:

O veneno na água causa a maior dificuldade para nós. Quando chove, o veneno da soja que o fazendeiro planta vai todo para a lagoa, para o Rio Culuene [afluente do Xingu]. Então pega muito veneno, o peixe está morrendo. Porque o nosso supermercado é o que a gente pesca, o peixe. Depois de tomar água do Culuene, dá diarreia, a gente fica doente. Eu não gosto desse tipo de coisa, do desmatamento, porque a floresta é o coração nosso, ela que traz as coisas espirituais para nós.

A possibilidade de que suas “compras” pudessem estar contaminadas o assustava. Conheci Kotok naquela mesma aldeia em 2020, em uma visita para gravar seu depoimento para a exposição do projeto Amazônia, do fotógrafo Sebastião Salgado. Ele já reclamava do veneno e pedia que fossem feitos estudos para avaliar a qualidade da água.

Quando voltei a encontrá-lo, quatro anos depois, o cacique vinha de uma internação hospitalar em Canarana e estava ansioso com as ameaças. Além do cheiro de veneno na água, nos peixes e no ar, nos últimos dois anos surgira um agravante: as roças não produziram a mandioca como antes. Era uma consequência dramática das mudanças climáticas que afetam a região. A drástica mudança no regime de chuvas e a temperatura alta em níveis inéditos estão matando as plantas de mandioca: quando os indígenas cultivam na época tradicional, a seca não permite que a mandioca nasça; quando esperam a chuva, o calor é tanto que “cozinha” as raízes. Há três anos, a produção vem caindo vertiginosamente.

Esse efeito visível das mudanças climáticas sobre as roças de mandioca não afeta apenas os xinguanos. Ao longo dos últimos quinze anos, tenho ouvido relatos muito semelhantes em diferentes regiões da Amazônia: de ashaninkas, no Acre (quase na fronteira Sul com o Peru), de baniwas (no Rio Içana, na chamada Cabeça do Cachorro, no extremo Norte do Amazonas, junto à fronteira da Colômbia) e de macuxis (na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, de onde se vê a fronteira com a Guiana).

No entanto, o impacto dessa disfunção na produção do alimento por excelência dos indígenas brasileiros é particularmente dramático para os indígenas do Alto Xingu, cuja dieta é composta basicamente de mandioca e peixes. Só eventualmente eles recorrem a pequenos animais e frutas, pois as caças são vetadas por tabus míticos. Com menos peixes e falta de polvilho de mandioca, os xinguanos passam fome.

O drama dos khisêtjês com os agrotóxicos – desde que começaram a se sentir incomodados pelos sinais de veneno, a mudança para a aldeia nova e a pesquisa feita por Francco Souza e Lima – foi contada no documentário Sukande Kasáká – Terra doente, produzido pela Associação Indígena Khisêtjê, com direção de Kamikiá Khisetje e Fred Rahal. Assim que ficou pronto, antes mesmo de ser apresentado ao “povo da cidade” – como o xamã Yanomami Davi Kopenawa se refere aos não indígenas –, o filme foi mostrado para a comunidade. O objetivo era explicar aos indígenas a pesquisa de Souza e Lima e a relação entre alguns dos sintomas que eles têm manifestado e os agrotóxicos.

No segundo semestre deste ano, Kamikia vai mostrar Terra doente às lideranças de outras comunidades, na Assembleia da Associação Terra Indígena do Xingu (Atix). O documentário vai ser usado para divulgar os indícios da contaminação e a necessidade de contenção dos efeitos dos agrotóxicos nas fazendas vizinhas, como me explica Kokowiriti, da Associação Indígena Khisêtjê:

No começo deste ano recebemos o resultado da pesquisa. Agora pensamos em compartilhar com as lideranças aqui do Xingu, para eles nos ajudarem. Nosso plano é levar essas conclusões para a governança do Xingu para ter mais força das lideranças para a gente ir a Brasília. Vamos fazer seminário dentro do Congresso, com as lideranças do Xingu, para mostrar esse vídeo e tentar barrar esse veneno tão perigoso que os fazendeiros estão usando aqui no Brasil.

Os indígenas têm recorrido ao audiovisual para falar de sua cultura e seus problemas desde que o cacique Mário Juruna Xavante utilizou o videocassete nos anos 1970, ferramenta que o ajudou na sua eleição a deputado, em 1982. Fotógrafo profissional desde 2000, Kamikia Khisêtjê, de 41 anos, teve iniciação em audiovisual no projeto Vídeo nas Aldeias, criado em 1986 pelo cineasta Vincent Carelli, que formou documentaristas indígenas em todos os cantos do Brasil. Em 2015, Kamikia realizou A Última Volta do Xingu, sobre o esgotamento de parte do curso do Rio Xingu na chamada Volta Grande, depois da construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. Esses filmes são parte de uma intensa produção audiovisual feita por indígenas atualmente. No Xingu, outro cineasta conhecido é Takumã Kuikuro, diretor, com Carlos Fausto e Leonardo Sette, dos documentários As hiper mulheres (2011), sobre jovens mulheres kuikuro que buscam preservar os cantos tradicionais da festa feminina Yamurikumã, e A febre da mata (2022), a respeito dos incêndios florestais na região.


Os agrotóxicos não são a única ameaça à saúde dos habitantes do Território Indígena do Xingu. Também a prática de garimpo, bastante comum na Amazônia, tem aumentado a concentração de mercúrio em suas águas, como mostra um estudo recente, Avaliação da contaminação por mercúrio em peixes de consumo do Alto Xingu, feito pela pesquisadora Sandra Hacon, da ENSP/Fiocruz. A pesquisa constatou, como no caso da tese de Souza e Lima, que, além das concentrações específicas detectadas em cada instante, há um importante efeito de acumulação de mercúrio, exatamente por serem os peixes a fonte principal de proteínas da dieta xinguana.

Mercúrio é um metal pesado que se apresenta em estado líquido quando em temperatura ambiente. Com grande capacidade de se amalgamar a outros metais, ele é usado no processo de purificação do ouro: primeiro é acrescentado aos sedimentos em que o ouro aparece misturado ao solo, formando uma massa, a uma razão aproximada de 1 grama de mercúrio para cada 1 grama de ouro. Depois, os dois vão ser separados por uma forma de destilação. Como evapora a uma temperatura menor do que aquela em que o ouro derrete, quando exposto ao fogo ou um maçarico, o mercúrio – associado a matéria orgânica ou impurezas – flutua no ar como uma fumaça preta (que os yanomamis, acostumados a ver o processo nos garimpos tão comuns em sua terra, chamam xawara, que define tanto a fumaça quanto os maus espíritos que ela representa). Apagado o fogo, a temperatura cai e o ouro se torna uma pepita purificada. Parte do mercúrio evaporado volta ao estado líquido e é descartado na natureza em inúmeras gotículas.

Os garimpeiros podem sofrer males respiratórios por inalar o mercúrio espalhado no ar. Depositado no leito dos rios, o metal pesado será transformado por bactérias em uma outra substância, o metilmercúrio, que entra na cadeia alimentar ao ser consumido por peixes. Ao comerem os peixes, os humanos ingerem o metilmercúrio, que é muito tóxico: pode causar alterações na pressão sanguínea e no sistema nervoso, provocando problemas de visão e audição, de equilíbrio, paralisia, dificuldades para falar e até na cognição. Durante a gestação, pode causar problemas ao feto, como paralisia cerebral.

A esse conjunto de males se dá o nome geral de “doença de Minamata”, em referência à localidade litorânea do Japão onde uma empresa despejou por muitos anos metilmercúrio diretamente no mar, provocando inúmeros casos da doença nos anos 1950. Casos típicos do mal que afetou a população japonesa estão acontecendo no Brasil entre o povo Munduruku, como mostram os estudos do neurologista Erik Jennings, retratado no documentário Amazônia: a nova Minamata?, de Jorge Bodanzky (2022). Há suspeitas de que o mesmo esteja ocorrendo entre yanomamis.

No caso do Xingu, não há casos detectados, mas o estudo de Sandra Hacon encontrou altas doses de metilmercúrio em peixes carnívoros como bicuda, cachara, cachorra, corvina e pirarara. Os limites máximos tolerados (LMT) de mercúrio em peixes e produtos de pesca é de 0,5 mg/kg. As amostras de bicuda superaram esse teto (0,63mg/kg), enquanto os outros ficaram entre 0,4 e 0,5 mg/kg. Já os peixes não carnívoros ficaram sempre abaixo. Um dos principais rios que cruzam o território do Xingu é o Culuene: seus peixes contêm mais mercúrio nas amostras do que os demais. O estudo de Hacon recomenda a redução do consumo de bicuda pelos xinguanos.

O Xingu foi a primeira reserva indígena multiétnica do Brasil, concebida para abrigar diferentes povos que viviam ali. Quando os irmãos Villas Boas, em 1952, durante o governo de Getúlio Vargas, se reuniram com o vice-presidente Café Filho para discutir o projeto de um futuro Parque Nacional do Xingu (como foi chamado na época), seu traçado incluía as nascentes dos rios da bacia do Xingu, no ponto central do país.

Nos anos seguintes, o governo de Mato Grosso concedeu inúmeros títulos de concessão de terras para fazendas se instalarem dentro do território previsto para o parque. Quando Jânio Quadros decretou enfim sua criação, em 1961, todas as nascentes do Rio Xingu ficaram de fora. A terra indígena também deixou de fora o centro geográfico do país (hoje na Terra Indígena Capoto Jarina, onde mora o cacique Raoni Metuktire).

Hoje, essa incongruência cobra a conta na forma de um processo de exploração intensiva que começa fora do território e leva para dentro dele seus detritos na forma de venenos da atividade agrícola. O coração do Brasil está sendo contaminado por agrotóxicos.
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Síndrome de Estocolmo

Quem foi criminoso que inspirou teoria da síndrome de Estocolmo

UOL*, 29/06/2025 

 
Clark Olofsson (em pé) junto a três dos reféns no cofre do Sveriges Kreditbanken Imagem: TT NEWS AGENCY/AFP

Clark Olofsson, conhecido pelo envolvimento em diversos crimes na Suécia, morreu ontem aos 78 anos. Ele é um dos envolvidos no assalto a banco que deu origem ao termo Síndrome de Estocolmo.

Quem foi Clark Olofsson

Durante os anos 1960 e 1970, Olofsson foi ativo no mundo do crime. O sueco arquitetou assassinatos, assaltos a bancos e participava do tráfico de drogas.
Ganhou fama internacional ao ter nome envolvido em assalto a banco, em 1973. Assalto foi ao Sveriges Kreditbanken, em 23 de agosto de 1973, no centro da capital sueca. Na época, Olofsson estava preso.
Homem que assaltou banco pediu que libertassem Clark Olofsson da prisão. A polícia levou Olofsson para o banco e ele logo assumiu o posto de negociador. "Quando Clark Olofsson chegou, ele assumiu o controle da situação, foi ele quem conversou com a polícia", disse Bertil Ericsson, repórter fotográfico que trabalhou na cobertura do caso, à AFP.

"Ele [Clark Olofsson] tinha muito carisma e falava bem". Bertil Ericsson
À época, os criminosos passaram seis dias em negociação com a polícia. Quatro reféns foram mantidos no local durante este período, sendo três mulheres e um homem. No sexto dia, a polícia perfurou o teto do cofre e usou gás lacrimogêneo para conseguir desarmar os sequestradores.
Criminosos se entregaram e ninguém ficou ferido. A atuação no crime rendeu a Olofsson uma condenação por ter sido considerado cúmplice no caso.

Olofsson passou mais da metade da vida na prisão. Além de assaltos a banco, ele foi condenado em múltiplas ocasiões por tentativa de homicídio e agressão.

 
Ao centro, Clark Olofsson a caminho do tribunal em 1967; sua noiva na época à esquerda e um policial à direita Imagem: Wikimedia Commons

Mesmo preso, Olofsson se formou em jornalismo na Universidade de Estocolmo, em 1983. Ele foi libertado pela última vez em 2018, após cumprir pena por tráfico de drogas

Em 2022, a Netflix lançou uma minissérie inspirada no sueco. Em seis episódios, "Clark" conta a história de Olofsson e foi baseada na autobiografia do criminoso, interpretado por Bill Skarsgård.
Antes de morrer, Olofsson estava internado em um hospital na Suécia. Ele fazia um tratamento contra uma doença, não especificada, revelou o site de notícias local Dagens ETC.

Olofsson e a síndrome de Estocolmo

Criminosos do assalto em 1973 e reféns criaram forte vínculo durante a negociação com a polícia. Esse laço entre agressores e vítimas deu origem ao termo síndrome de Estocolmo.
Uma das reféns disse que via Olofsson como seu salvador. Kristin Enmark, que tinha 23 anos na época, contou apreço por criminosos no livro "I Became the Stockholm Syndrome" (Eu me tornei a síndrome de Estocolmo, em tradução livre). "Ele me prometeu que nada aconteceria comigo e decidi acreditar nele", escreveu.

Olofsson convenceu refém a falar no telefone com o então primeiro-ministro. "Acho que você está sentado aí jogando com as nossas vidas. Eu confio totalmente em Clark e no assaltante. Não estou desesperada. Eles não fizeram nada para nós. Ao contrário, eles têm sido muito gentis. Mas sabe, Olof [Palme, nome do primeiro-ministro], o que eu estou com medo é que a polícia ataque e cause a nossa morte", disse Kristen no telefone.

 
Kristin Enmark, uma das vítimas que cunhou o termo "síndrome de Estocolmo" Imagem: Reprodução

Ela defendeu publicamente seus captores. As declarações de Kristin e das outras mulheres durante o sequestro foram interpretadas pelas autoridades "de maneira muito sexualizada, como se tivessem caído sob o feitiço de uma síndrome", que teria retirado seu arbítrio ou capacidade de raciocinar.
Ex-reféns decidiram manter silêncio durante o julgamento de seus sequestradores.Em entrevistas, Kristin criticou a ação policial que a libertou do cativeiro e os oficiais envolvidos no caso.
Relação que criminosos estabeleceram com reféns deu origem ao termo síndrome de Estocolmo. A equipe de negociadores envolvida no assalto ao banco tinha um psiquiatra, Nils Bejerot, que analisava em tempo real o comportamento dos criminosos e dos reféns. Ao avaliar as dinâmicas, Bejerot criou o conceito conhecido até hoje.

Síndrome é um estado psicológico singular. A condição indica uma pessoa que foi vítima de alguma situação crítica e perigosa (como um sequestro ou assalto) e estabelece uma relação de afeto com seu agressor/criminoso.

Síndrome não é uma doença nem distúrbio. Isso porque ela não se encontra na CID-10, a Classificação Internacional de Doenças, nem no DSM-5, que é o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Não há dados estatísticos sobre a prevalência do quadro, que ainda é considerado raro.
Kristin Enmark e Clark Olofsson iniciaram um relacionamento anos depois do episódio de sequestro. Apesar do romance, Kristin afirmou em seu livro: "[Na época do crime] Não havia amor ou atração física da minha parte. Ele era minha chance de sobrevivência e me protegeu".

*Com informações da AFP e de matéria publicada em 21/08/2024
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Ópera, réquiem, sinfonia e samba são sonoridades que dominam a cena cultural
Mozart, Mahler e Britten tomam os palcos da cidade enquanto Baden e Vinicius conquistam a televisão em documentário

Mario Sergio Conti, fsp, 27/06/2025

Contam-se aos milhares as encenações de "Don Giovanni" desde a estreia, pouco antes da Revolução Francesa. Nem por isso ficou fácil representar a grande ópera de Mozart. Mormente em tempos de MeToo.
Como montar uma obra que começa com um estupro e, para complicar, avança ao som de música genial? É inviável fazer do bandido um bom de bico de lábia aveludada: Don Giovanni não seduz, viola. Só na Espanha suas vítimas foram 1.003.
No Theatro Municipal, o encenador Hugo Possolo recorreu a um tratamento de choque. Traduziu os recitativos do italiano para o português, fez personagens declamarem o "Don Juan" de Molière, cortou e enxertou diálogos, fez do palco picadeiro.

Seriam insolências bem-vindas — se desse para entender as falas em português; se Molière não se atracasse com Mozart; se fosse mesmo essencial Leporello pedalar uma bicicleta; se a inconcebível Zerlina não o chamasse na chincha: "Respeita as mina!". Humm...
Bombas nazistas derrubaram a catedral de Coventry, do século 14, na Inglaterra. A igreja que tomou o seu lugar foi inaugurada, em 1962, com "War Requiem", missa laica para orquestra e coral de Benjamin Britten, o mais conhecido compositor inglês. O Municipal tocou-o no começo do mês, mas foi efêmero: duas apresentações.

Benjamin Britten (1913-76) : Sinfonia da Requiem, Op.20 (1940) 

Homenagem aos 385 mil ingleses mortos na Segunda Guerra Mundial, o réquiem é um monumento musical: requer duas orquestras e dois coros. A grandiosidade comove, mas os poemas de Wilfrid Owen, entoados por solistas, tiram o fôlego.
"Hino à Juventude Condenada", por exemplo, parece falar de Gaza ao tratar da guerra de 1914 a 1918. O poema diz que os sinos não dobram para os que morrem como gado, e escuta-se o rápido ratatá de fuzis gaguejantes, o coro estridente de bombas obscenas. Owen lutou na Primeira Guerra e tombou uma semana antes do armistício. Tinha 25 anos.

Palestinos enfrentam fome severa em meio ao conflito em Gaza - fotos

Em 1907, quando conversou em Helsinque com o compositor finlandês Sibelius, Mahler lhe teria falado que "a sinfonia deve ser como o mundo, deve abranger tudo". Difícil crer que tenha dito isso: é impossível à musica abraçar o todo.

Ouvir ao vivo a "Sinfonia nº 3" de Mahler, no sábado (21), abalou a suspeita: ela aspira ao absoluto. Com uma hora e meia, o dobro do habitual, orquestra colossal, coro infantil e feminino, poema de Nietzsche e canção folclórica, ela mimetiza marchas militares, o canto dos pássaros, bailes, movimentos do cosmos e da alma.

 "Sinfonia nº 3" de Mahler Mahler "Symphony No 3" Leonard Bernstein 1972 

A "Terceira" exalta, entristece, ensimesma, alegra, raciocina, expande a consciência. Não abarca tudo, mas tem um tanto do tumulto do mundo.
O Coral da Baía de Tampa e a Sinfônica de Sorocaba apresentaram na Catedral da Sé, no domingo (22), o "Requiém" de Mozart. Reprisado vezes sem conta, não perde o esplendor. Mas há sempre uma primeira vez.

Comparado com o trecho que vai do metrô à Sé, o pátio dos milagres de "Os Miseráveis" é o Palácio de Versalhes. No sermão, o padre disse que não se deve temer o cancelamento dos outros, mas o de Deus. O interior da catedral é opressivo: colunas grossíssimas para uma nave estreitérrima. Sua acústica deixaria Mozart apoplético.

Veja cenas de 'Don Giovanni', montagem com direção cênica de Hugo Possolo

Em boa hora, estreou, na terça (24), na HBO Max, "Os Afro-Sambas", documentário de Emilio Domingos que recoloca em circulação o disco do mesmo nome de Vinicius de Moraes e Baden Powell. Um ano antes do 60º aniversário, o álbum é um ninho de negativas: não é novo nem velho, comercial ou de vanguarda, nem intratável nem abordável.

Em músicas e entrevistas, o filme nega as negações, assevera: afro-sambas fundem pontos do candomblé, cantos gregorianos, atabaque, jazz, berimbau, Chopin. Como a articulação dos sons não busca melodias mercantis, eles têm uma inquietude rara na música popular. O batuque não abafa o tirocínio; em vez de embalar, atiça.

Os Afro-sambas: O Brasil de Baden e Vinicius - fotos

Graças aos orixás, a Exu e a Xangô, o documentário foge de tutoriais tipo "o golpe de 1964 explica etc." Está atento à estética comunitária, retrabalhada por Baden e, sobretudo, Vinicius. Ignorado pela crítica identitária, mas não pelo público nem pelo cinema — vide "Vinicius", de Miguel Faria Jr. —, o branco mais preto do Brasil vive na boca do povo.

Canto De Iemanjá 

Maria Bethânia diz que é difícil definir o talento do poeta de "Canto de Ossanha": "Não sei que homem foi aquele, aquela beleza". Mas percebeu que o seu poder de atração era o de um imã de afeto: "Os corações todos, perto dele, se entregavam; o meu inclusive".

Canto De Ossanha 

Baden Powell | Os Afro-Sambas (Álbum Completo) 

Vinicius de Moraes e Baden Powell Samba em Prelúdio 
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Zezé Motta completa 81 anos e relembra início de carreira na música

Raíssa Lima, Do TOCA, 27/06/2025

 
Zezé Motta Imagem: Reprodução

No dia em que completa 81 anos, nesta sexta-feira (27), Zezé Motta relembra o início da carreira como cantora e um de seus trabalhos mais significativos na música brasileira. Em entrevista ao TOCA, a artista fala sobre o disco "Quarteto Negro", lançado em 1987, e reflete sobre como a música atravessa sua história pessoal e profissional.

Quarteto Negro disco

"Quarteto Negro" foi lançado em 1987 pelo grupo homônimo, formado por Zezé Motta nos vocais, Djalma Corrêa na percussão, Jorge Degas no baixo elétrico e Paulo Moura no saxofone e clarinete — artistas respeitados por suas pesquisas e trajetórias na música popular brasileira.
O disco, com suas dez faixas, mescla músicas instrumentais e cantadas, construindo uma narrativa que percorre aspectos históricos e sociais, em uma colaboração para a construção da identidade do povo negro brasileiro a partir de um elemento mais irrefutável: a liberdade.

Em seu título, o trabalho homenageia importantes abolicionistas da história do Brasil: o engenheiro André Rebouças, o jornalista e político José do Patrocínio, o advogado Ferreira de Menezes e o advogado e escritor Luiz Gama.

Entre o som do berimbau, os tambores, o choro do clarinete e a poesia que se prolonga na voz de Zezé, quem escuta sente o que a historiografia revela: a luta pela abolição surgiu, desde o princípio, pelas mãos do povo.
Além das composições autorais do grupo, o disco traz interpretações de músicas de Roberto Guima, Marku Ribas, Reinaldo Amaral, Gilberto Gil e Wally Salomão.

Em entrevista ao TOCA, Zezé Motta compartilhou sua experiência com o disco e sua relação com a música.

 
Imagem: miguel sá

TOCA - Como surgiu essa ideia sua com Djalma Corrêa, Jorge Degas e Paulo Moura?
Zezé Motta - A ideia surgiu para comemorarmos os 100 anos da Abolição. Nos apresentamos em Paris, no Olympia. Eu, Paulo Moura, Jorge Degas e Djalma Corrêa gravamos do dia pra noite, pela gravadora Kuarup. Neste trabalho, tem uma canção minha em parceria com o Degas chamada "Semba". Eu não sou uma compositora fértil, mas gosto de escrever. É um disco muito sofisticado musicalmente falando. Eu amei ter participado, o disco até hoje é falado, principalmente por quem entende de música.
Houve um show de celebração dos 35 anos do álbum em 2022, em São Paulo, e pude pela primeira vez assistir ao Djalma Corrêa e à senhora presencialmente e juntos. Meses depois, ele se encantou. 

Como foi para a senhora estar no palco novamente ao lado de um músico ímpar, especialmente para celebrar este disco fundamental para a cultura afro-brasileira?
Eu fiquei muito emocionada, do início ao fim, rever todo mundo? E teve essa questão de que ali o Djalma já não estava bem, estava muito doente, ele estava se despedindo...

Como a música costura a sua trajetória?
A ideia de ser cantora veio do meu pai. Ele trabalhava como motorista durante o dia, para ganhar dinheiro, mas era músico erudito. Também dava aulas de violão e tocava música popular na noite para sobreviver. Enquanto estava em cartaz com "Roda Viva", em São Paulo, em 1969, saía do teatro e fazia shows na madrugada em boates como Telecoteco e Balacobaco, onde esquentava o público para a atração principal da noite. Cheguei a abrir para Clementina de Jesus. Uma honra.

Tinha o desejo de ser cantora e achava que, como crooner, pudesse ser vista por algum produtor e convidada a gravar um disco. Conversando com outras cantoras da noite, vi que elas tinham 10, 15 anos de estrada e não tinham gravado sequer um compacto. Descobri que o buraco era mais embaixo e parei.
Depois que estourei na mídia com o sucesso de "Xica da Silva", em 1976, já tinha feito pequenas incursões no mercado fonográfico. Dois compactos com músicas que eu cantava em espetáculos teatrais e um LP, "Trem Noturno", em parceria com o Gerson Conrad.

Como eu dava várias entrevistas por dia na época do estouro do "Xica da Silva", sempre reafirmando a minha vontade de ser cantora, o Guilherme Araújo me procurou e se ofereceu para ser meu empresário. Só que eu não tinha intimidade com o pessoal de música. Naquela época, as tribos não se misturavam muito. Então, o Guilherme decidiu promover um jantar com Rita Lee, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Luiz Melodia, Moraes Moreira. Todos compareceram e me prometeram músicas.

Dessa vieram "Crioula", do Moraes; "Dores de Amores", que eu gravei em dueto com o Melodia; "Rita Baiana", do John Neschling e Geraldo Carneiro, da trilha da peça "Lola Moreno"; "Pecado Original", do Caetano, da trilha do filme "A Dama do Lotação", entre outras. A Rita Lee, que não sabia nada de mim, leu minhas entrevistas e fez, com o Roberto de Carvalho, o "Muito Prazer, Zezé".

 
Ao lado de Luiz Melodia, de quem regravou "Magrelinha" e "O Morro Não Engana" no final dos anos 1970 Imagem: Divulgação

Além de ser pioneira como mulher negra na televisão e em negar papéis de empregada na TV, quais foram os acontecimentos mais impactantes na sua trajetória que tiveram como motivação o orgulho e o reconhecimento da sua identidade negra num país como o Brasil?
Sou muito preocupada com justiça. Eu sempre digo que, mesmo que eu não fosse negra, faria parte do movimento. Um fruto prático desse meu envolvimento visceral foi a criação do CIDAN (Centro de Informação e Documentação do Artista Negro), em 1984.
Eu estava preocupada com a invisibilidade do ator negro. Vários dos meus colegas não estavam na mídia e resolvi criar um banco de dados. Todo ator negro que eu encontrava ou de quem eu tinha o telefone, eu pedia: traz foto e currículo.

Eu estava casada com Jacques d´Adesky, um pesquisador afro-belga, professor universitário, com experiência nesse tipo de levantamento, e ele me orientou a profissionalizar o banco, que começou de maneira bem improvisada. Conseguimos um patrocínio com a Fundação Ford na intenção de editar um catálogo completo, começando com Grande Otelo e indo até atores negros mais jovens, mas o orçamento estourou e a gente não pôde ir até o fim.

Era muita despesa com passagem, hospedagem, diária. Imagina, a intenção era fazer um mapeamento de todo o Brasil! Ficamos com material, em forma de slides, de 150 atores. O produtor de elenco interessado vinha aqui em casa e a gente fazia a projeção. Não se fazia televisão, teatro ou cinema envolvendo ator negro sem que se consultasse a página do CIDAN. É uma vitória que eu me orgulho.

Quais são as suas grandes referências na música preta brasileira e por quê?
Eu sempre amei música e nunca fiquei muito nesse critério da cor para escolher repertório. Eu sempre ouvi Milton Nascimento, Caetano, Elizeth Cardoso, Ângela Maria... Eu gosto de música, de música boa, que toca o coração, que fala de amor? [Atualmente] eu gosto muito da Luedji Luna, Agnes Nunes, tem tanta mulher maravilhosa cantando.

Zezé Motta imdb
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Por que estamos desperdiçando energia renovável no Brasil

Camila Maia, UOL, 27/06/2025 

Geradores das fontes solar e eólica calculam que perdas por curtailment superam R$ 2 bilhões nos últimos 2 anos. Imagem: Getty Images 

Você já ouviu falar em curtailment? O nome é estranho, mas o problema é real e afeta tanto a conta de luz quanto a expansão das fontes renováveis. O termo em inglês, que não tem uma tradução oficial no setor de energia além de "corte", significa basicamente o seguinte: energia que poderia ser gerada, mas não é, porque não há como usá-la por falta de demanda ou espaço na rede de transmissão para levá-la de um ponto a outro.

A situação pode parecer absurda: afinal, por que desperdiçar energia limpa, renovável e já disponível?
E é essa a realidade não só no Brasil, mas em todos os países com inserção elevada dessas fontes intermitentes, que não podem ser ligadas quando necessário, já que ninguém tem controle sobre sol ou vento.
As fontes eólica e solar não são as únicas afetadas, o problema também afeta hidrelétricas e, em alguns casos, até térmicas, que poderiam despachar eletricidade para garantir a segurança do sistema, são cortadas. Para as fontes renováveis, o impacto proporcionalmente é maior, ainda mais porque essas usinas não têm como estocar sua produção.

O fenômeno do curtailment ganhou destaque no Brasil após o apagão de 15 de agosto de 2023, que escancarou as fragilidades da operação do sistema.
As investigações do evento pelo ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) concluíram que o desempenho real das renováveis em momentos críticos era muito diferente do previsto nos modelos matemáticos fornecidos pelos empreendedores. O evento foi um marco para o debate sobre confiabilidade, escoamento e estabilidade da rede elétrica brasileira.
Desde então, o tema é o principal problema das renováveis, que calculam prejuízos da ordem de R$ 2 bilhões acumulados desde então pela frustração da geração.

Ainda sem solução

O cenário é complexo porque os estudos mostram que os cortes devem aumentar nos próximos anos, mesmo com aumento das obras em transmissão de energia para resolver os gargalos da rede que limitam a capacidade de escoamento das renováveis. As usinas pedem ainda que os cortes sejam ressarcidos via encargo, que seria cobrado dos consumidores — pagando aí por uma energia que não consumiram.
Ontem (26/06), o ONS, que é o órgão responsável pela operação do sistema elétrico, apresentou resultados de um estudo da flexibilização dos limites de transmissão de energia de um ponto a outro do país, numa tentativa de aumentar o envio de energia do Nordeste ao Sudeste nos próximos meses, quando começa a "safra dos ventos", período de julho a setembro em que venta mais e as eólicas produzem muita eletricidade.

Os estudos, contudo, foram decepcionantes, já que a capacidade de envio de energia liberada foi apenas de 1,5 GW, considerada insuficiente, e ainda apenas no período noturno. Durante o dia, quando acontecem mais cortes por causa do aumento da geração solar, a rede está tão "cheia" com a energia solar que não tem espaço para ser liberado.
Outras medidas estão sendo estudadas, mas o operador não tem prazo para concluir as análises tão complexas. Isso significa que os cortes vão crescer nos próximos meses.

Renováveis em alta, mas sem consumo e transmissão

As fontes renováveis cresceram muito nos últimos anos, num ritmo que não foi acompanhado pela demanda nem pela infraestrutura da rede. Só o Nordeste passou de 21,1 GW em usinas eólicas e solares centralizadas em 2021 para mais de 40 GW em 2025, considerando apenas usinas de grande porte. Em todo o país, a potência instalada dessas fontes, contando também a geração distribuída (dos painéis solares e pequenas usinas) cresceu em 30 GW desde agosto de 2023, chegando a 90 GW.

A oferta cresceu muito mais que a demanda. Em muitos horários do dia, especialmente entre o final da manhã e o início da tarde, há literalmente energia sobrando. Mas o sistema precisa operar com estabilidade, e a rede não dá conta de transmitir tudo ao mesmo tempo. A solução, muitas vezes, é cortar a geração de algumas usinas.

A chamada MMGD (micro e minigeração distribuída: pequenos sistemas, em sua maioria solares, instalados em telhados, comércios e propriedades rurais) ainda cresce em ritmo muito acelerado, e aumenta o desafio do ONS. Como não faz a gestão desses sistemas, não pode limitar sua geração.
Assim, quando há energia demais na rede, quem paga a conta são os grandes geradores, que veem sua produção reduzida. O ONS já alertou que daqui alguns anos, se a MMGD continuar crescendo neste ritmo, pode nem ter alternativas para cortar a geração, já que há muita energia que está "na base", são as usinas inflexíveis, que precisam gerar mesmo se não houver demanda para elas.

O ONS publicou uma análise técnica que aponta que, se fosse possível cortar também a MMGD ou pelo menos compensar seus efeitos de alguma forma, os cortes nas usinas centralizadas poderiam ser reduzidos em até 50%.

O Ministério da Fazenda enviou recentemente um ofício à Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) sugerindo que adote mecanismos para que a MMGD arque com parte proporcional do impacto, mesmo que os cortes não ocorram fisicamente, mas sim por meio de ajustes nos créditos desses consumidores.
A proposta, no entanto, esbarra em desafios jurídicos e regulatórios, já que o sistema de compensação de energia elétrica foi previsto em lei e não prevê esse tipo de ajuste.

Canivete suíço

Há ainda quem veja nas baterias uma solução para o curtailment. Essas tecnologias têm sido chamadas de "canivete suíço" do setor elétrico, já que oferecem múltiplas funções: armazenam energia, ajudam a estabilizar a rede e podem fornecer eletricidade em horários de pico.
Mas, apesar do potencial, elas ainda não são uma solução viável em larga escala no Brasil. A tecnologia é recente, não conseguiria sozinha resolver o problema, e ainda não temos regras para que possam ser remuneradas de forma adequada. Estamos atrasados em relação a países como o Chile, que tem menos recursos naturais, mas já integra baterias à sua geração solar.

Vale lembrar que o Brasil tem uma vantagem única: nossas hidrelétricas com reservatórios funcionam como baterias naturais, capazes de armazenar energia e modular a geração ao longo do tempo. Mas até elas vêm sendo impactadas pelo curtailment, especialmente quando há sobra de geração solar e eólica e restrição na rede.

O desafio não é trivial. A integração de renováveis exige um nível de engenharia sofisticado para garantir que a energia saia de onde é gerada e chegue a quem precisa dela, com estabilidade. Isso demanda reforço na transmissão, novos critérios operacionais e regulação atualizada, além de um planejamento que considere, de forma realista, o crescimento acelerado da geração limpa.
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Anie Dickinson in 1982 wiki

Aos 93 anos, Angie Dickinson confessa: "Ele foi o amor da minha vida" 

Angie Dickinson imdb

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Trailer do filme Rhapsody in Blue (1945) 

Hazel Scott  wiki

Black & White are Beautiful - Hazel Scott on 2 Grand Pianos 

Takin' A Chance--Hazel Scot

Hazel Scott w/ Charles Mingus, Rudy Nichols. "Autumn Leaves" 

Hazel SCOTT " A Foggy Day " !!!  

Hazel Scott - The Minute Waltz! 

Hazel Scott, Jazz and Classical Pianist, Performs Liszt 

Hazel Scott in the Army (Hazel in Caisson Number) 
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Maracanã completa 75 anos funcional e cheio, mas sob risco de ser menos usado
Flamengo pode migrar para estádio próprio; dupla Fla-Flu avalia vender naming rights, e governo diz que não houve consulta 

Yuri Eiras, fsp, 15/06/2025

O Maracanã chega aos 75 anos com a possibilidade de receber sua terceira final de Copa do Mundo —a do Mundial Feminino, em 2027—, mas também com dúvidas sobre a relevância do estádio para os clubes no futuro.

Inaugurado no dia 16 de junho de 1950, o Estádio Municipal do Rio de Janeiro foi erguido para ser símbolo de um país. De cara, virou símbolo da derrota brasileira para o Uruguai, na final da Copa, exatamente um mês depois da inauguração.

Até chegar aos 75, o estádio passou por duas finais de Mundiais (1950 e 2014), três reformas (1999, 2007 e 2013) e uma mudança de nome, para Estádio Jornalista Mário Filho, em 1966.

 
Maracanã em 1950 - Reprodução/@Fifa no X 

A atual casa de Flamengo e Fluminense, com jogos eventuais de Vasco, Botafogo e da seleção brasileira, viu movimentos recentes dos clubes levantarem dúvidas sobre o futuro do Maracanã.

A incerteza se dá especialmente pelo plano do Flamengo de construir um estádio próprio. A diretoria anterior arrematou em leilão o terreno do antigo Gasômetro, no centro, e prometia inauguração para 2029. A chapa do ex-presidente Rodolfo Landim, contudo, foi derrotada na eleição, e a gestão de Luiz Eduardo Baptista desacelerou o passo, encomendou estudos sobre contaminação do solo e já não estipula prazos.

Caso o projeto saia do papel, a ideia do Flamengo é fazer do Maracanã um estádio de uso esporádico, para jogos mais importantes. Neste cenário, o Fluminense, cogestor do estádio com o rival rubro-negro, é quem seria o mandante recorrente.

Veja imagens que marcaram a história do Maracanã

O Vasco aguarda verba para iniciar as obras que vão ampliar a capacidade de público de São Januário de 20 mil para mais de 40 mil pessoas. O clube conversa com Flamengo e Fluminense para, eventualmente, usar o Maracanã durante a reforma.

O Botafogo joga no Nilton Santos e, assim, cada um dos quatro clubes grandes pode ter no futuro um estádio próprio. Flamengo e Fluminense completam neste mês um ano da gestão compartilhada definitiva. Entre 2019 e 2024, os dois clubes administraram o Maracanã através de permissões temporárias, renovadas a cada seis meses.

Antes, entre 2013 e 2019, a administração do estádio foi da Odebrecht, após bilionária reforma para a Copa de 2014. O governo estadual cancelou o contrato de concessão em 2019, diante de uma crise com os clubes pelo alto custo de aluguel do estádio e má qualidade do gramado.
Para incrementar a receita, a dupla Fla-Flu estuda se é possível vender os naming rights. Uma empresa compraria o direito de uso do nome, nos mesmos moldes com o que foi feito com o Morumbi, rebatizado de MorumBis, e o Pacaembu, que passou a ser chamado de Mercado Livre Arena Pacaembu.

Conselheiros dos dois clubes ouvidos pela reportagem afirmaram que o debate é inicial e que não há proposta na mesa. A secretaria da Casa Civil do governo Cláudio Castro (PL) disse, em nota, que "nenhuma consulta foi efetivada pelo concessionário".

A pasta afirmou ainda que o "processo de concessão do Maracanã não traz nenhuma regra expressa quanto à comercialização de naming rights".

No último dia 5, Castro disse ver com "ceticismo e dificuldade" a mudança, já que o estádio é tombado.

O Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) afirmou em nota que é possível adquirir o direito de exploração do nome, mas que o espaço continuaria a ser chamado oficialmente de Estádio Jornalista Mário Filho. "Qualquer alteração na identificação do estádio em sua fachada deve ser previamente solicitada e aprovada pelo instituto", completou.

Ainda que modificado e diminuído após a reforma de 2013, o Maracanã segue entre os estádios com maior média de público, embalado pela boa fase dos donos da casa —o Fluminense conquistou ali a Libertadores de 2023 em final contra o Boca Juniors, da Argentina, e o Flamengo vive década vitoriosa, com títulos nacionais e continentais.
O Maracanã recebeu 32 jogos de Flamengo e Fluminense em 122 dias nesta temporada, média aproximada de um jogo a cada três dias. Em 2024, o Flamengo teve média de 51.084 torcedores pagante nas partidas da Série A em que foi mandante, segundo dados do site Ranking da CBF; o Fluminense teve média de 32.171.

Por fora, quase todo o complexo esportivo do Maracanã segue em uso: o ginásio Maracanãzinho, sob concessão, recebe jogos de basquete e vôlei, e no parque aquático Julio Delamare o governo estadual mantém aulas de natação e hidroginástica para a vizinhança.

A principal mudança da obra de 2013 foi o fim do estádio de atletismo Célio de Barros. As pistas foram removidas e o espaço é hoje um estacionamento, com salas que funcionam como sedes de federações esportivas.

Em nota, a secretaria estadual de Esportes disse que o estádio "cumpre um importante papel de apoio ao esporte e à gestão pública".
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Deus me livre de poliamor, relação aberta, suruba
Trisal, pra mim, sou eu, meu marido e os gatos esparramados no sofá, sintonizados na Netflix 

Mariliz Pereira Jorge, fsp, 14/06/2025

Outro dia li uma thread sobre relação aberta que parecia edital de licitação. Tinha regra pra tudo: como flertar, com quem dormir, o que contar, o que esconder, níveis de envolvimento, agenda compartilhada, comunicação não violenta, contrato emocional e, claro, siglas. Muitas siglas. Chegou uma hora que pensei: gente, isso aqui exige um MBA em relações modernas com especialização em DRs diplomáticas.

E eu? Eu mal dou conta de transar direito com o meu marido — que, aliás, é gato, cheiroso, gostoso. Entre trabalhos (no plural mesmo), casa, agenda fitness — que antes era só pra deixar a bunda na nuca e agora serve pra não ter a lombar torta— e a eterna luta contra o algoritmo, não sobra tempo nem pra ser vagamente erótica, quem dirá poliamorosa. Já pensei em marcar hora para o sexo e criar uma planilha no Excel com colunas: "tesão", "energia" e "chance de dormir no meio". Spoiler: tudo dá zero.

Imagina incluir mais gente nessa equação? Ter tempo pra flertar, manter o decote em dia, responder "bom dia, princesa" de cinco pretendentes ao mesmo tempo, lidar com carência alheia enquanto tento lembrar se dei ração pros gatos? Deus me livre. Suruba não cabe no meu déficit de atenção. Triângulo amoroso me dá gastrite. Relação aberta exige um nível de disposição emocional e de organização logística que eu só usaria pra tentar achar passagem barata pra Fernando de Noronha. Trisal, pra mim, sou eu, meu marido e os gatos esparramados no sofá, sintonizados na Netflix.

Sim, eu sei. Relação aberta pode ser o futuro. O monogâmico virou o tiozão do churrasco dos afetos. E tudo bem, cada um com seu fetiche. Só me incomoda essa ideia de que quem ainda acredita em amor romântico virou espécie em extinção — tipo o CD original da Alanis Morissette. Como se desejar uma relação exclusiva fosse sinônimo de apego tóxico, romantização de abuso ou ilusão afetiva patrocinada por comédia romântica dos anos 2000. Não é.

Esse tipo de amor também pode evoluir. Dá pra amar uma pessoa só —mas com consciência, sem perder a identidade, sem sufocar o outro como se fosse extensão sua. Dá pra ser monogâmica sem ser idiota. Dá pra amar sem idealizar, sem achar que o outro é um pedaço perdido da sua alma, sem colocar a felicidade do casal acima da sua sanidade mental. Mesmo que falido, ainda é um modelo que só precisa de uma boa desconstruída e um pouco menos de drama.

Não é sobre defender o "felizes para sempre". É sobre menos adrenalina e mais aconchego, que não precise de GPS emocional nem de gestão de expectativas a cada quinze minutos. O que me dá tesão é alguém que me olha com desejo e carinho, apesar do meu mau humor, das minhas olheiras, da minha falta de tempo —alguém que segura minha mão quando o mundo tá insuportável. E isso, com ou sem contrato aberto, é raro.

Então que venham os trisais, os quartetos, os relacionamentos em forma de roda-gigante. Eu fico aqui, tentando manter o tesão vivo mesmo quando o maior plano a dois é pedir delivery e dormir antes do filme acabar. Aos adeptos da relação aberta, boa sorte. Pra mim, é o tipo de coisa que exige tempo, maturidade e uma disponibilidade emocional que eu perdi no século passado.
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Maria Victoria de Mesquita Benevides: O direito à democracia
Socióloga impulsionou a criação do campo da educação em direitos humanos no Brasil

Christina Queiroz, Revista pesquisa Fapesp, 14 mar 2022

 
Maria Victoria de Mesquita Benevides, Foto: Léo Ramos Chaves

Com especialização em ciência política, a socióloga Maria Victoria de Mesquita Benevides é neta da baronesa Maria José Villas Boas Antunes de Siqueira de Mesquita (1862-1953), mas nunca obteve benefício significativo em razão de sua origem. A mãe, viúva aos 43 anos no final da décima gestação, incentivou as seis filhas a buscar uma profissão e a serem independentes. Benevides seguiu o conselho. A fluminense de Niterói fez carreira como docente e pesquisadora e hoje é professora titular aposentada da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP).

Em entrevista que se estendeu por uma tarde, na sala de estar da casa onde vive, em São Paulo, Benevides falou sobre sua pesquisa envolvendo o governo de Juscelino Kubitschek (1902-1976), realizada durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), e os estudos sobre partidos políticos, propondo argumentos sobre como a desigualdade emperra o avanço da democracia brasileira.

Sua produção mais recente está voltada para a área da sociologia da educação, mais especificamente educação para a democracia.​ O percurso de 27 anos na FE-USP permitiu levar concepções formuladas na ciência política para os campos da educação e dos direitos humanos. Nesse caminho, trabalhou com o conceito de cidadania ativa, desenvolvendo ideias para defender a participação política através de mecanismos institucionais para além de eleições, incluindo plebiscitos e referendos. De fala didática, ela conta como o trabalho com a Comissão de Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, fundada em 2019, a tem motivado a seguir adiante durante a pandemia. Viúva, há quatro anos, do astrônomo e professor da USP Paulo Benevides Soares (1939-2017), ela tem três filhos e cinco netas.

Vamos começar falando sobre sua infância?
Sou uma flumioca, ou seja, uma mistura de fluminense com carioca. Nasci em Niterói, mas cresci na cidade do Rio de Janeiro. Até meu casamento, vivi com meus irmãos, minha mãe e minha avó materna em uma casa no bairro Rio Comprido. A família de minha mãe era de Niterói e a de meu pai mineira. Éramos 10 irmãos. Sou a oitava, ou a nona, porque tenho uma irmã gêmea. Minha infância foi marcada por perdas e mortes. Aos 20 anos, meu irmão mais velho, José Jeronymo, se alistou como voluntário na Força Expedicionária Brasileira. Em novembro de 1944, já no final da Segunda Guerra Mundial [1939-1945], morreu em combate na Itália. Nessa época, eu tinha 2 anos e minha mãe estava no final da gravidez de seu décimo filho. Com a notícia, meu pai infartou e morreu. Além da perda do mais velho, outro irmão também faleceu em um acidente doméstico. Guardo dessa época a imensa admiração que tínhamos por nossa mãe, que sonhava em ser médica. Ela era uma mulher corajosa. Seu avô foi médico e também sua primeira filha. Essa irmã foi a única mulher de sua turma, na Faculdade de Medicina da então Universidade Nacional no Rio de Janeiro.

Como era a vida em uma família com tantas mulheres?
Tivemos uma educação rigorosa. Nossa mãe sempre dizia: “Casamento não é profissão”. Ela nos incentivava a sermos independentes, estudar e construir uma carreira. Atualmente, somos quatro irmãos: um homem e três mulheres. Outro ponto marcante de minha mãe era sua posição política. Ela era discretamente de esquerda, em uma família bem tradicional, monarquista e religiosa. As três irmãs de minha mãe foram freiras. Meu avô materno era de origem alemã, de religião luterana. Da parte paterna, minha avó, com quem convivi pouco, era baronesa. A família de meu pai era muito rica, mas quando ele se casou estava já deserdado. Meu pai foi enviado para estudar em Londres aos 9 anos. Fez engenharia em Londres, filosofia na França e arquitetura em Florença. Viveu na Europa até os 32 anos, sempre em grande estilo, mas próximo da “gauche”, que ajudava financeiramente. Quando voltou ao Brasil, tinha gasto uma fortuna e a mãe dele, já viúva, achou que era um desaforo ele receber mais da herança familiar. Para casar com minha mãe, meu avô materno exigiu que ele tivesse um emprego público, o que não foi difícil com o diploma de engenheiro. Em casa, todos trabalhavam e tivemos bolsa de estudos. Lembro do comentário de uma amiga, que sintetiza essa época: “Sua família come em louça da Companhia das Índias e com talher de prata, mas é arroz com feijão, ovo e carne moída”. Vivíamos em uma casa com bibliotecas em todos os cômodos e que também dispunha de uma capela. Estudamos francês e inglês. Todos temos filhos e netos e sempre convivemos muito, o que só mudou com a chegada da pandemia.

Como se deu seu ingresso na sociologia?
Casei-me em fevereiro de 1964, às vésperas do golpe militar. Meu marido, Paulo Benevides, era engenheiro formado pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica onde também estudou astronomia. Ele foi convidado pelo Centre National de la Recherche Scientifique, o CNRS, da França, para trabalhar no Observatório de Besançon. Nos mudamos em março e lá permanecemos por quatro anos e meio. No começo, quase não tínhamos notícias do Brasil. Telefonar era caro. Acompanhávamos a situação do país pelo jornal Le Monde. Besançon é uma cidade pequena, de origem medieval, com 100 mil habitantes, mas com universidade, teatros, museus e até uma orquestra sinfônica. Nosso primeiro filho nasceu lá. Voltamos ao Brasil em 1968, logo depois do AI-5. Viemos para São Paulo porque o Paulo foi contratado pelo Instituto de Astronomia e Geofísica da USP. Eu tinha começado a graduação em sociologia e política na PUC-RJ em 1963. Quando chegamos aqui, solicitei transferência para ciências sociais na USP. Sempre estudei com bolsa, inclusive na PUC. No mestrado e doutorado, obtive bolsa da FAPESP. Minha pesquisa de pós-doutorado e a livre-docência desenvolvi com recursos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico [CNPq] e do Social Sciences Research Center.

Você já era mãe de uma criança quando ingressou na USP. Que lembranças tem da graduação?
Minha vida na USP foi boa, mas não uma típica experiência universitária. Não tive participação em grupos políticos nem a vida social dos estudantes. Quando comecei o mestrado em sociologia, tinha três filhos pequenos: Daniel, André e Marina. Não tive ajuda da família, que morava no Rio. Eu era uma dona de casa à moda antiga, ou seja, sabia cozinhar e costurar. Foi pesado, mas, para mim, era absolutamente importante ter filhos. Não podia sequer imaginar a hipótese de não ser mãe.
Sobre o mestrado, como surgiu a ideia de pesquisar o governo de Kubitschek?
Eu gostava muito de pesquisar e estava interessada em conhecer tudo sobre política brasileira, por causa da conjuntura daquele momento. Encantei-me com a tese do cientista político Braz José de Araújo [1941-2004], sobre a política externa de Jânio Quadros [1917-1992], defendida em 1970. Conversando com meu marido, que era da área de exatas, mas tinha uma abertura cultural muito grande, ele sugeriu que eu fizesse meu mestrado sobre Juscelino, chamando a atenção para o fato de que seu governo aconteceu em um período tenso – entre o suicídio de Getúlio Vargas [1882-1954] e a renúncia de Jânio Quadros –, mas que marcou profundamente a história da industrialização e da democracia brasileira que, como sabemos, é limitada. Apresentei um projeto para o cientista político Francisco Weffort [1937-2021], que gostou da ideia. Eu queria compreender o que garantiu a estabilidade do governo JK em uma época tão conturbada. Entrevistei 15 integrantes de agremiações como o Partido Social Democrático (PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), além do próprio Kubitschek que me disse: “Fui o único presidente civil depois do Estado Novo [1937-1945] que governou de acordo com a Constituição”. Essa primeira entrevista ocorreu justamente no dia 1º de abril de 1974, quando se encerravam os 10 anos de suspensão de seus direitos políticos. Durante nossa conversa, ele recebeu uma ligação e ficou muito nervoso. Tive calafrios e senti medo de que ele pudesse sofrer um infarto. Quando desligou o telefone, contou que a suspensão de seus direitos políticos, como eleitor, estava encerrada, mas que seguia inelegível.

Seu mestrado chamou a atenção de intelectuais e políticos e o livro que derivou dele foi considerado obra de referência sobre o governo JK. Que avaliação faz da repercussão desse seu trabalho ?
A defesa da dissertação aconteceu em novembro de 1975, logo depois do assassinato do jornalista Vladimir Herzog [1937-1975]. A sala estava lotada, com a presença de pessoas como o sociólogo Florestan Fernandes [1920-1995], o crítico literário Antonio Candido [1918-2017] e o historiador Caio Prado Junior [1907-1990]. O tema do mestrado, com ênfase na relação entre democracia e desenvolvimento, e a época em que foi desenvolvido contribuíram para chamar a atenção. O Jornal do Brasil, por exemplo, deu uma página inteira apresentando a pesquisa com o título: “Professora mostra em tese por que o governo JK não caiu”. Minha dissertação, modéstia à parte, parecia uma tese de doutorado por causa da originalidade do tema, das referências teóricas e das entrevistas. Nela identifiquei que a relativa estabilidade política do governo Kubitschek pode ser atribuída a três fatores: à cooptação dos militares, comprometidos com o desenvolvimento nacional; à aliança entre PSD e PTB, que congregava interesses da burguesia agrária e dos trabalhadores urbanos; e ao Programa de Metas, que impulsionou o processo de industrialização e multiplicou empregos.

Como foi pesquisar o governo Kubitschek em plena ditadura?
Fui bem recebida em todas as entrevistas. Eu não estava ligada a grupos políticos e carregava a equivocada fama de ser rica – o que nunca fui. Isso acabou evitando atitudes de desconfiança a meu respeito. Eu não era “subversiva”. A pesquisa originou o livro Governo Kubitschek – Desenvolvimento econômico e estabilidade política: 1956-1961, publicado pela Paz e Terra, em 1976. No começo, não me dei conta do impacto que ele causaria. Kubitschek participou do lançamento, que aconteceu na Casa de Rui Barbosa, no Rio. Ele morreu um mês depois. De certa maneira, o sucesso pesou contra mim. Há muita competição no meio acadêmico e eu não sou uma pessoa competitiva.

Como isso se deu?
Imaginava que meu caminho seria a carreira universitária. Em 1982, abriram duas vagas para o Departamento de Ciências Sociais da FFLCH. Escutei considerações de que era melhor eu não me candidatar, por supostamente não apresentar o perfil desejado. Àquela altura eu já tinha publicado dois livros e tinha um bom currículo. Minha retaguarda era forte por causa do mestrado. Mas me disseram que o departamento preferia alguém mais jovem, em início de carreira, e que fosse mais ligado à sociologia, e não à ciência política. Estava com 40 anos. Acabei não me inscrevendo no concurso. Elisabeth Lobo [1943-1991] e Régis Stephan de Castro Andrade [1939-2002] foram os escolhidos. Sempre tive excelente relação com ambos.

E o doutorado?
Na tese estudei a UDN [União Democrática Nacional] desde sua fundação, em 1945, até o golpe de Estado, em 1964 – evento em que esse partido foi protagonista. Terminei a tese afirmando que a UDN nasceu envolvendo nomes de grandes liberais, como Virgílio de Melo Franco [1897-1948], integrantes da esquerda democrática e socialista, mas terminou “em apagada e vil tristeza”. Essa afirmação valeu um comentário do sociólogo e cientista político Bolívar Lamounier, um dos arguidores da banca, que nunca esqueci: “Você pode ser uma boa pesquisadora, mas acabou fazendo o juízo final da UDN”. De minhas pesquisas sobre partidos políticos, derivaram livros como A UDN e o udenismo – Ambiguidades do liberalismo brasileiro [Paz e Terra, 1981] e O PTB e o trabalhismo – Partido, sindicato e governo em São Paulo [Cedec/Brasiliense, 1989].

A atuação no Centro de Estudos de Cultura Contemporânea mudou sua trajetória de pesquisa?
Participei da fundação do Cedec, em 1977, e lá permaneci até 1985. Só saí porque fui aprovada no concurso da Faculdade de Educação. Os anos no Cedec me abriram a possibilidade de elaborar novos estudos, além de uma rica convivência com pesquisadores e políticos, do Brasil e do exterior, todos interessados nas condições da necessária democratização. Passei a analisar, por exemplo, a violência urbana e os direitos de cidadania.

Como foi o concurso para a Faculdade de Educação?
Celso de Rui Beisiegel [1935-2017], sociólogo e chefe do Departamento de Filosofia e Ciências da Educação, conhecia meu trabalho. Em 1985, convidou-me para integrar o corpo docente. Lembro de ter lhe dito: “Mas eu não sei nada de educação, nunca li Jean Piaget [1896-1980], por exemplo”. Ele respondeu que a faculdade precisava de alguém para dar aulas de sociologia política. Fui aprovada no concurso e, durante meus 27 anos lá, orientei 12 mestrados e 15 doutorados, dei aulas na graduação e pós-graduação, e criei uma disciplina sobre direitos humanos.

Em que medida sua atuação na FE-USP impactou seu pensamento e sua forma de ver o mundo?
Com cabeça de cientista política, voltei-me ao diálogo entre educação e democracia, buscando compreender o que é uma educação efetivamente emancipadora. Também passei a me interessar por educação e cultura brasileira e organizei uma disciplina sobre o tema, com as obras dos sociólogos Gilberto Freyre [1900-1987] e Sérgio Buarque de Holanda [1902-1982] e dos críticos literários Antonio Candido e Roberto Schwartz. Lá fui feliz e acabei tendo uma vantagem: como não era da educação, acabei não precisando disputar espaço. Nunca quis ser diretora da faculdade, tampouco fazer parte do Conselho Estadual de Educação, por exemplo. A única vez que competi foi em 1996, por ocasião do concurso para professor titular. Éramos três candidatas e eu fiquei com a única vaga. Nessa época, já trabalhava com direitos humanos. Integrei a Cátedra Educação para a Paz, da própria USP com apoio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura [Unesco]. Na faculdade, ajudei a constituir o campo da educação em direitos humanos, que acabou se tornando uma disciplina que se disseminou por universidades, faculdades e organizações da sociedade civil. Atualmente, integro o Conselho Deliberativo do Instituto Vladimir Herzog, do Centro Sérgio Buarque de Holanda da Fundação Perseu Abramo e da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns. Também faço parte da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos e da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da cidade de São Paulo. Todas essas entidades têm seus planos de educação em direitos humanos.

A senhora também teve uma presença institucional intensa na USP.
Durante dois mandatos, fui representante da FE no Conselho Universitário. Participava tanto que, em certa ocasião, o reitor pediu à diretora de minha faculdade para não eleger mais a Benevides. “Cada vez que ela levanta a mão, eu empalideço”, disse ele. Também atuei, por dois mandatos, na Comissão de Legislação e Recursos e na Comissão de Relações Internacionais. Minha vida universitária foi intensa, acabei conhecendo o Brasil porque fui muito convidada a compor bancas, em diversos estados do país.

A democracia brasileira ocupa espaço central em sua produção acadêmica. Quais desafios a senhora identifica, atualmente?
No Brasil, nunca vivenciamos uma experiência efetivamente democrática, no sentido de contarmos, de fato, com a soberania popular. Sempre tivemos a intermediação de grupos econômicos e de gente que, historicamente, detém o poder no país. Nas pesquisas do Latinobarómetro, estudo de opinião pública desenvolvido anualmente com cerca de 20 mil entrevistados de 18 países da América Latina, é medido o nível de adesão da população à democracia. Diante da pergunta “se houver emprego e comida para todos, você prefere viver em uma ditadura ou democracia?”, no Brasil existe a possibilidade do “tanto faz” ou mesmo da opção pela ditadura. Nosso principal problema é a desigualdade abissal. Vivemos quase 400 anos de escravidão legal e perduram, ainda hoje, trabalhadores em situação de escravidão. Estudos mostram que a democracia tem mais chances de se enraizar e funcionar onde a classe média corresponde à maioria da população, como é o caso de alguns países europeus. Para citar um exemplo pessoal, morei na França na década de 1960, em pleno vigor do Estado de bem-estar social. Durante a gravidez, precisei do apoio de uma faxineira, que vinha em casa uma vez por semana, por duas horas. Quando acabava o serviço, tomávamos um chá e ela ia embora dirigindo seu carro Renault popular. Quando ficou grávida, fez os exames de pré-natal no mesmo lugar em que fiz os meus e teve seu bebê na mesma clínica que tive o meu. Nossos filhos frequentavam a mesma escola. Você imagina, no Brasil, patroa e empregada no mesmo ginecologista e suas crianças na mesma escola? Nos anos em que vivi no país europeu, meu marido fazia parte da elite intelectual e jamais vimos uma única pessoa colocar seu filho em escola particular. A escola pública é realmente uma instituição democrática na maioria dos países da Europa.

Qual a particularidade da classe média brasileira?
Em nossa sociedade, está arraigada a ideia, naturalmente equivocada, de que privilégios seriam direitos. Sempre falei aos meus alunos que a palavra “privilégio” vem do latim privilegium, que significa lei privada, o que é um absurdo em si, porque não existe lei privada. Toda lei é pública. As classes média e alta se acostumaram com privilégios de classe. Por exemplo, em um contexto de inflação a 10%, a última coisa que vai passar pela cabeça da maioria dos patrões e patroas é reajustar o salário de seus funcionários nesse percentual. Mas esses mesmos personagens vão reclamar do aumento no IPTU dos Jardins. E a classe média sempre foi racista. Este é um dos temas que passei a abordar no campo dos direitos humanos. É difícil afirmar que não se é racista. Ainda hoje, a negação do racismo cai por terra com simples perguntas como: “Você já teve algum professor ou amigo negro? Seus filhos têm amizade com algum negro? Se sua filha namorasse um negro, a família aceitaria?”. As respostas seguem sendo constrangedoras. As primeiras consequências do racismo enraizado são a violência e a desvalorização do trabalho. Há uma distância enorme entre o trabalho braçal e o intelectual. Mesmo que o trabalho intelectual seja apenas burocrático e mal remunerado, ainda é considerado de maior valor do que o trabalho realizado por um excelente pedreiro, marceneiro, eletricista ou mesmo o trabalho doméstico. Posturas dessa natureza dificultam até mesmo a compreensão do que seja a democracia e ter direitos no Brasil.

O conceito de democracia participativa é central em suas reflexões. Em que consiste, exatamente?
A democracia é um regime político em que a titularidade do poder é – ou deveria ser – da soberania popular. Isso significa que, em última instância, o povo é soberano. Porém tudo na democracia, inclusive a soberania popular, é regrado em consonância com o Estado de direito e a Constituição. O Estado de direito pode ser entendido como a vigência e a transparência da norma igual para todos, com pleno respeito às minorias e o controle entre os poderes. Além disso, há a prevalência dos direitos humanos, que devem ser reconhecidos pelo Estado e pela sociedade. Sua efetivação decorre de princípios constitucionais e conquistas sociais. Os direitos sociais, econômicos e ambientais – que são, entre nós, os mais desrespeitados – devem ser garantidos por políticas públicas, permanecendo aberto o espaço à promoção de novos direitos. Ou seja, como afirma o jurista Fábio Konder Comparato, os direitos humanos percorrem uma linha que vai dos direitos do indivíduo aos direitos dos povos, dos grupos sociais, até os direitos de toda a humanidade, com o compromisso pelo futuro das novas gerações. Em relação aos direitos da humanidade, o que avulta hoje é o direito à vida nesse planeta, à defesa do equilíbrio climático e do meio ambiente, da economia sustentável e dos povos originários e tradicionais.

Se ditaduras podem ser percebidas como também capazes de oferecer emprego e comida, por que a democracia seria melhor?
O regime ditatorial pode até garantir direitos econômicos e assegurar que as pessoas não morram de fome, mas a sociedade é destituída de muitos outros direitos igualmente relevantes – como aqueles relacionados à liberdade de expressão, à diversidade cultural, religiosa, política e de gênero. Há um vínculo essencial entre a democracia e a garantia dos direitos humanos.

E em que consiste a cidadania ativa, conceito em torno do qual a senhora também tem trabalhado?
Fiz minha tese de livre-docência sobre democracia participativa e nela refleti sobre os instrumentos de democracia direta como referendo, plebiscito e iniciativa popular legislativa. Esses mecanismos constitucionais permitem aperfeiçoar o sistema da democracia representativa. Estudei como eles funcionam na Europa, em alguns países da América do Sul e nos Estados Unidos, onde costumam ocorrer a cada dois anos, principalmente em estados como a Califórnia e o Oregon. A cidadania ativa se contrapõe à passiva, aquela que está relacionada apenas com a obediência à lei e aos deveres de cidadão. A cidadania ativa é o direito e o dever do povo à participação política, aos processos democráticos de controle e fiscalização sobre os poderes. E isso inclui não apenas votar, mas se esforçar para atuar em processos decisórios, mantendo-se informado e participando de debates comunitários que podem ocorrer em grupos como os de vizinhança ou em partidos políticos. Democracia dá trabalho. Requer esforço dos governantes e governados.

Sua bagagem intelectual tem contribuído, de alguma forma, para seguir adiante nesse momento que o país atravessa?
Estou aposentada, mas durante a pandemia já participei de cinco bancas, em áreas diversas como filosofia, direito e comunicação. Continuo especialmente interessada em propostas de redução da brutal desigualdade social, inclusive a desigualdade na educação. Nesses quase dois anos de pandemia, minhas netas tiveram aulas on-line e presenciais, fizeram cursos de línguas e prestaram vestibular, ou seja, não perderam quase nada, em termos de educação formal. Mas as perdas foram terríveis para a imensa maioria das crianças e jovens das famílias já tão vulneráveis. Muitos passaram fome, porque a única alimentação que tinham era ofertada pela escola. Tive Covid-19, mas já estava vacinada e os sintomas foram leves. Fiquei isolada em uma casa confortável, o tempo todo pensando nos amigos que morreram ou precisaram ser intubados. Nas pessoas passando fome e morando na rua. Quando pensava em tudo isso, o que me manteve forte foi minha presença na Comissão Arns, fundada no início do atual governo por 22 pessoas para denunciar e combater violações de direitos humanos em todo o país. Mais do que minha bagagem intelectual, o que tem me sustentado e ajudado a lidar com a ansiedade social e política durante a pandemia tem sido o envolvimento com a Comissão.

Maria Victoria de Mesquita Benevides Soares currículo

TUTAMÉIA entrevista Maria Victoria Benevides 

Os objetivos da República. Artigo de Maria Victoria de Mesquita Benevides 

Projeto “Memória da Constituinte (1987-1988)” Depoimento: MARIA VICTORIA BENEVIDES  
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1961 golpe branco (doc. do Canal Brasil)

A história de um golpe que não deu certo, mas que ainda assombra o País
Série ‘1961′, de Amir Labaki, resgata a crise da renúncia de Jânio Quadros para contar a mobilização para deter o golpe contra João Goulart

Marcelo Godoy, O Estado, 31/05/2025

É impossível olhar para a tentativa de se impedir a posse de João Goulart, em 1961, e não estabelecer um paralelo com o presente. O futuro da democracia no Brasil diante de seu incômodo passado é um diálogo inevitável para quem assistir à série 1961, que será exibida a partir do dia 5, no Canal Brasil.

 
Comboio do Exército na fronteira entre Paraná e São Paulo, em Jacupiranga, durante o período da Campanha da Legalidade, em 4 de setembro de 1961: crise política começou com a renúncia de Jânio Quadros à Presidência do Brasil Foto: ARQUIVO/ESTADÃO

O documentário dirigido pelo jornalista Amir Labaki é dividido em três episódios. O primeiro deles – A Renúncia e o golpe – trata da eleição de Jânio Quadros à Presidência e do vice João Goulart. Por décadas, os acontecimentos de 1961 foram retratados tendo como ponto central Jânio, o homem que prometia varrer a corrupção do País, e sua decisão de deixar o governo. Labaki inverte o valor da moeda.

Não é mais a renúncia do então presidente, o homem que Afonso Arinos retratara como sendo “a UDN de porre”, que será o centro de sua narrativa, mas o que veio depois: a ruptura da legalidade encenada pelos ministros militares que decidiram impedir a posse do vice-presidente eleito.

“É impressionante imaginar que a democracia brasileira é tão frágil, que uma crise como a de 1961 pudesse retornar 60 anos depois, e questões fundamentais naquele momento permaneçam atuais. Uma lição básica de 1961 é que você precisa punir quem atenta contra a legalidade e a democracia”, afirma Labaki. O golpe ficou impune e, em 1964, os personagens derrotados três anos antes sairiam vitoriosos.

 
Jornalista, escritor e documentarista Amir Labaki, que está lançando o documentário 1961 Foto: Alex Silva/Estadão

É sobre a reação que impediu o golpe em 1961 e as consequências desse episódio para o País que o documentário vai se debruçar nos seus segundo (Legalidade) e terceiro (Jango com parlamentarismo) episódios, que vão ao ar nos dias 6 e 7 de junho, sempre às 21h30. Neles estão a decisão do general Machado Lopes, comandante do 3.º Exército (atual Comando Militar do Sul), de não mais obedecer às ordens do ministro do Exército, o marechal Odílio Denys, e defender, com seus colegas, a legalidade.

Lopes colocou-se ao lado do governador gaúcho, Leonel Brizola, que se encastelara no Palácio Piratini, e, por meio da cadeia de rádio da Legalidade, reagiu ao golpe para tentar garantir a posse de Goulart. Tropas de um lado e de outro se movimentaram, e o País esteve à beira de uma guerra civil.
A crise se desfez com a adoção do parlamentarismo. Com o esvaziamento dos poderes da Presidência, os ministros militares concordaram com a posse de Jango, em um acordo costurado por Tancredo Neves, que se tornaria o primeiro-ministro. Dessa forma, 1961 seria um ensaio geral para o golpe de 1964. “Em 1961 havia uma conjuntura política que possibilitou parar o golpe”, diz Labaki.

 
Solenidade do Dia do Soldado, em 25 de agosto de 1961, em Brasília, quando o presidente da República Jânio Quadros (c) assistiu ao desfile militar ao lado do ministro da Guerra, Odílio Denys (2ºe), e outros militares; Ernesto Geisel, então chefe da Casa Militar é o primeiro à esquerda Foto: ARQUIVO/ESTADÃO

A ligação do diretor com o episódio remonta aos anos 1980, quando Labaki era ainda um estudante de cinema da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP). A ideia de produzir um documentário sobre a crise de 1961 o levou a buscar testemunhas como Machado Lopes e o ex-secretário de imprensa do governo gaúcho, Hamilton Chaves. Em vez de ir para as telas, o trabalho foi parar nas páginas do livro 1961 - A Crise da Renúncia e a Solução Parlamentarista, que Labaki lançou em 1986.

Já em sua obra, é a Campanha da Legalidade que ganha relevo ao lado da derrota do golpe engendrado por Denys e pelos outros ministros militares. A redemocratização do País mal se havia completado quando Labaki buscou fazer sua história à contrapelo, tentando resgatar do apagamento o fracasso do golpe, retirando da crise a ênfase sempre dedicada à renúncia de Jânio, para depositá-la no movimento da sociedade civil e de militares que cerraram fileira em defesa da legalidade.

 
26 de agosto de 1961: o ex-presidente Jânio Quadros que acena de dentro do carro logo após sua renúncia Foto: Domício Pinheiro/AE

Foi o livro que desviou Labaki de seu caminho como realizador para encaminhá-lo ao jornalismo. Mas o antigo projeto não o abandonou. Nas décadas seguintes, ele continuou a colecionar livros, imagens e informações sobre o episódio. Em 2017, o projeto seria retomado. “Naquele ano, era impensável imaginar que uma nova tentativa de golpe de Estado aconteceria no Brasil.”

O anacronismo é o erro que todo aquele que lida com a história deve buscar evitar. Pelo menos, desde que Lucien Febvre escreveu O problema da incredulidade no século XVI: a religião de Rabelais. Labaki conseguiu isso ao olhar para 1961 por meio dos relatos de testemunhas, como o ex-senador Pedro Simon, que esteve nos dias da crise em frente ao Palácio Piratini, a sede do governo gaúcho. Ou com os relatos dos generais Octávio Costa e Ernesto Geisel, então chefe da Casa Militar.

 
Soldados do 2º Exército, com sede em São Paulo, rumam para a divisa com o Paraná para enfrentar as tropas do 3º Exército, comandado pelo general Machado Lopes; país esteve á beira de uma guerra civil Foto: ARQUIVO

O diretor dispensou o recurso a um narrador. Também ouviu quem esteve longe de Porto Alegre, como Aldo Arantes, então presidente da União Nacional do Estudante (UNE), o deputado trabalhista Almino Affonso e a atriz Fernanda Montenegro, para reconstruir a atmosfera em Brasília e no Rio. Contou com as análises da socióloga e cientista política Maria Victoria Benevides, de imagens do acervo da TV Tupi, guardadas pela Cinemateca Brasileira, de fotografias de jornais como o Estadão e pesquisa documental em arquivos no Brasil e nos Estados Unidos para contar a sua história.

Ali estão áudios de John Kennedy e documentos da CIA, que acompanhavam o que se passava no Brasil enquanto os soviéticos construíam o muro de Berlim. Labaki queria algo diferente de seu livro. Gravou no Rio, em Porto Alegre e em São Paulo. “Enquanto gravávamos, ficava evidente como a série foi ganhando uma temperatura e uma atualidade que não existia na origem do projeto.”

 
Tancredo Neves, já primeiro-ministro, encontra em Brasília outro personagem central da crise, o então governador gaúcho Leonel Brizola Foto: FGV/FABIO MOTTA

A edição e montagem consumiu um ano e meio e esteve a cargo de André Finotti. Enquanto isso, nas palavras da Labaki, a “conjuntura brasileira tornou mais urgente e atual o projeto”. Seu 1961 – uma produção do Canal Brasil, Circunstância Cinematográfica, Agência Nacional do Cinema (Ancine), do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) e do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE) – foi concluído há um mês, pouco depois de o procurador-geral da República, Paulo Gonet, apresentar sua denúncia contra os que tentaram 60 anos depois precipitar o País em mais uma ruptura.
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Blog do Merten

9 de junho de 2025

1961, a série impactante de Amir Labaki. E Recife, lá vou eu para o Cine PE
Chocado com o comentário de Douglaspizza, um amigo do filho dele, garoto de 20 anos, cometeu suicídio. Vi, no outro dia, que o suicídio de jovens é um fenômeno mundial. Só tem aumentado, o que dá uma ideia do estado do mundo, que muita gente, seduzida pelos discursos fakes da direita, e seu nacionalismo de m…, ainda se recusa a encarar. Acordem! Cá estou, na noite de domingo, redigindo o post que provavelmente salvarei para publicação na manhã de segunda-feira. Terei um dia agitado. Pela manhã, cedo, sigo para Recife e o Cine PE. Não me havia dado conta – deixo tudo sempre para a última hora – que meu voo é de Guarulhos. Socorro! Como relatei num post anterior, estava indeciso entre maratonar a série 1961, de Amir Labaki, no Canal Brasil, a partir das 13 h, ou ver o doc de Lúcia Murat, O Pequeno Exército Louco, sobre a Nicarágua – e o sandinismo -, ás 14 h, no CCBB/SP. Optei pelo Amir, e não me arrependo. Assisti aos três episódios siderado. Não creio exagerar se disser que 1961 é duplamente uma aula de história, e de cinema. Amir, afinal, é o criador do É Tudo Verdade. Vive e discute documentário há quase 30 anos.

O doc mostra como a renúncia de Jãnio Quadros precipitou o Brasil numa crise que levou a uma solução de compromisso, a adoção do parlamentarismo, para garantir a posse do vice, João Goulart. Os militares, sempre eles, golpistas por natureza, fizeram de tudo para impedir a posse, sob a gasta desculpa de que Jango era comunista. No Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, então governador do estado, comandou a resistência por meio da rede da Legalidade. É o tema do segundo episódio, o melhor. Meninos e meninas, eu estava lá, eu vi. Tinha 15, quase 16 anos e estudava no Colégio Estadual Júlio de Castilhos, o Julinho. Quando comecei o ginásio, como se dizia naquele tempo, o Julinho ficava na rua Riachuelo, próximo á Praça da Matriz, sede da Catedral e do Governo do Estado. Naquele tempo, ainda não havia o prédio moderno da Assembléia. Em 1961, o Julinho transferira-se para a Azenha. Mesmo assim, juntei-me aos gaúchos que atenderam ao chamamento de Brizola e lotaram a praça, para desespero de minha mãe, alarmista ao extremo e que só queria trancar-se, e trancar-nos, em casa, como se o número 176 da Rua Mata Bacelar, no bairro Auxiliadora, fosse o principal alvo dos anunciados bombardeios sobre Porto Alegre.

Brizola usou a rádio para mobilizar os gaúchos, e os brasileiros. A rádio ficava 24 horas no ar, inflamada pela capacidade de orador de Brizola e o Hino da Legalidade. 

‘Avante brasileiros de pé
‘Unidos pela liberdade
‘Marchemos todos juntos de pé
‘Com a bandeira que prega a igualdade.’ 

No começo dos anos 1960, em plena Guerra Fria, o mundo estava polarizado entre o alinhamento com os EUA ou a então União Soviética. Os EUA queriam evitar a todo custo que o Brasil se transformasse em uma nova Cuba em seu quintal. Tenho amigos – críticos – que sempre viram Brizola como um caudilho gaúcho, sem nunca entender o que significou a Legalidade. 

A defesa radical da Constituição, a posse legítima do vice, eleito por voto popular. Para evitar o que poderia ser uma guerra civil, Jango cedeu ao canto da sereia do PSD e de Tancredo Neves. Aceitou o parlamentarismo, que limitaria seus poderes – a solução palatável para os milicos – e Tancredo como premier, mas os gabinetes se sucederam, o regime parlamentar não vingou e Jango voltou ao presidencialismo com aprovação maciça do povo que votou não á emenda que criou o parlamentarismo. Amir conseguiu reunir imagens de arquivo valiosíssimas, colhe depoimentos e testemunhos que nos jogam no turbilhão daquela época.

Brizola queria peitar os militares. Numa entrevista, anos depois, ele analisa o que poderia ter sido o Brasil se Jango, carregado nos braços do povo, tivesse feito – há 64 anos – as reformas de base que teriam mudado a face do País. O parlamentarismo apenas postergou o golpismo dos militares e seu braço civil. 1961, 62 e 63 foram anos de preparação do golpe de 64, ao qual se seguiram 21 anos de ditadura. Só gente mal-informada, ou mal-intencionada para acreditar que o regime militar foi benéfico para o Brasil. Amir diz que fez a série pensando no momento atual, no golpismo que segue ameaçando a ainda frágil democracia brasileira. “O ano de 1961 foi o gatilho da crise de 1964, que definiu o destino do Brasil no final do século passado’’, ele diz. “É o golpe que deu errado, mas serviu de estímulo para 64.” E Amir acrescenta – “A grande lição de 1961 para o Brasil de hoje é que é fundamental punir quem atenta contra a democracia, seja civil ou militar, famoso ou pouco conhecido.”

De minha parte, sempre fiz uma leitura muito particular da Legalidade. A importância do rádio. Naquela época, ainda não pensava o cinema, mas, com o tempo, uma ideia foi se formando, e afirmando, no meu imaginário. A revolução radiofônica de Brizola deu continuidade a outra revolução feita pelas ondas do rádio. Em 1938, Orson Welles simulou a invasão da Terra por alienígenas. O impacto foi imenso. Na minha cabeça, Brizola foi o nosso Welles e os militares os marcianos que ameaçavam destruir Porto Alegre. Ou isso ou a Legalidade foi a nossa Sierra Maestra frustrada. O filme tem um áudio, não sei mais se de Ernesto Geisel ou do irmão Orlando, dizendo que valeria tudo para impedir a posse de Jango, mesmo tendo sido eleito e a posse prevista na Constituição. O bombardeio de Porto Alegre chegou a ser autorizado pelo comando militar, só não ocorreu por resistências dentro do próprio Exército e por medidas que revelam que o caudilho – Brizola – era também estrategista. Meus amigos antibrizolistas deviam ver 1961. Talvez percebam quão injustos foram. Brizola virou o flagelo dos militares. Só isso já seria justificativa para apoiá-lo. E ainda houve a guerra dele com a Globo, mas essa seria outra história que não sei se Amir teria interesse em contar.
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O que acontece quando site de prostituição compra capa da Folha
Anúncio de plataforma de acompanhantes que gera polêmica com clubes e estádios levanta questões no jornal

Alexandra Moraes - Ombudsman, fsp, 07/06/2025

Pela primeira vez, a Folha publicou em sua capa anúncio de uma plataforma de "acompanhantes". O termo é um eufemismo para prostituição, e a suavidade do texto do anúncio chegou a fazer leitores tomarem "acompanhante" por cuidador de idosos.

Mas o cabeçalho do jornal era a moldura de uma propaganda institucional da Fatal Model, empresa que reúne anúncios e vídeos de profissionais do sexo em sua plataforma. Ganha dinheiro vendendo aos profissionais o destaque desses anúncios e "conteúdo premium" aos clientes.

A Fatal Model vem firmando patrocínios milionários no futebol, modelo dominado pelas "bets". As investidas renderam à empresa contratos e exposição nas séries A, B e C do Campeonato Brasileiro. A cartada mais recente foi a oferta de R$ 250 milhões pelos "naming rights" do estádio do Athletico-PR, segundo o jornal Lance

Enquanto a plataforma esbanja dinheiro, a crise do modelo de negócios do jornalismo virou regra. Vender espaço às marcas tornou-se mais difícil. Recusar uma boa oferta (ou mesmo uma mais ou menos boa) parece uma possibilidade distante. Além disso, o jornal está vacinado contra eventuais espantos morais: ainda que em escala menor, os classificados com os quais os veículos ganharam dinheiro em décadas passadas tinham suas seções de "acompanhantes" e "massagistas".

A peça da Fatal Model na Folha destacava dados sobre a atividade sexual remunerada sem mencioná-la explicitamente e fazia alertas contra o preconceito. "1.400.000 mães, filhas, irmãs e esposas. Esse é o número de profissionais que trabalham como acompanhantes no Brasil. Está na hora da gente falar sobre isso."
O pretexto era chamado de "Dia da Acompanhante", 2 de junho, Dia Internacional da Prostituta ou Dia Internacional da Trabalhadora Sexual. O site indicado no anúncio não tinha link de conteúdo sexual, só nome e endereço da plataforma.

Não resta dúvida da respeito da necessidade de discussão sóbria sobre preconceito e dignidade (embora a origem do número apresentado no anúncio, 1,4 milhão, não ficasse clara). Em suas redes, a Fatal Model comemorou a "capa histórica". Mas a questão é outra.

O principal argumento de quem se opõe à publicidade da marca no futebol é a eventual exposição de crianças ao conteúdo. "Quem digita Fatal Model no buscador consegue chegar, com apenas dois cliques, em fotos e vídeos explícitos", informa texto https://f5.folha.uol.com.br/voceviu/2024/11/fatal-model-plataformas-de-acompanhantes-podem-patrocinar-clubes-de-futebol.shtml da BBC News Brasil reproduzido na Folha. Para a Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor), do Ministério da Justiça, "é publicidade inadequada".

O Ministério Público de Alagoas e o de SP, além do Ministério Público Federal, agem contra a difusão da marca em jogos e estádios.

O conteúdo jornalístico da Folha, porém, tem sido no geral condescendente com a plataforma. "O rufianismo (...), que é o aliciamento, exploração sexual e participação nos lucros, é ilegal. No caso do Fatal Model, a companhia não está enquadrada na prática", definiu de modo peremptório o jornal em reportagem de 2023. Em outras ocasiões, já noticiou que o site cortara o patrocínio do podcast Flow após o apresentador Monark defender a existência de partido nazista e anunciou a chegada da plataforma à Europa.

Enquanto isso, veículos que publicaram críticas à empresa se viram envolvidos em polêmicas.
Após questionamento feito pelo ICL Notícias, a Fatal Model enviou à sede do site um caminhão https://www1.folha.uol.com.br/blogs/sou-ciencia/2024/10/propaganda-fatal.shtml e notificações para retirada de conteúdo. Entidades jornalísticas condenaram o que foi percebido como tentativa de intimidação e censura. O site Repórter Brasil relatou ter sofrido ataque digitais após reportar críticas de profissionais do sexo à plataforma.

Para Luciana Temer, advogada e presidente do Instituto Liberta (que combate violência sexual contra crianças e adolescentes e também é anunciante da Folha), houve "desconforto" ao ver "o jornal ‘encapado’ com uma propaganda de site de prostituição".

"Aqui não vai nenhum julgamento moral de quem, por opção ou falta de, está exercendo esse trabalho. Mas nos incomoda muito que pessoas estejam ganhando dinheiro em cima disso", afirma ela.

A Fatal Model declara "fornecer segurança, qualidade e liberdade" a acompanhantes e clientes.

A Folha argumenta que o objetivo do anúncio não é vender serviço de acompanhantes, e sim abrir a discussão sobre respeito, e que a publicação passou por avaliação jurídica. O jornal afirma que não restringe anunciantes, desde que não pertençam a segmento de mercado vedado em lei ou pelas normas éticas do Conar (Conselho Nacional Autorregulamentação Publicitária).

"O problema da violência sexual contra crianças e adolescentes, assim como a exploração sexual deste grupo, é gigante, e esses sites não ajudam em nada, sendo muitas vezes gatilho de violência", diz Luciana Temer.

Se a capa é histórica para a Fatal Model, não deixa de sê-lo também para a Folha, tanto no ineditismo quanto na discussão que impõe.
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Copa do Brasil parte 3

Ler as publicações anteriores aqui 

30/07/2025

CS Alagoano AL x Vasco Gama
São Paulo FC SP x CA Paranaense PR
Cruzeiro x CR Brasil AL
Bahia x Retro FC PE
Corinthians SP x Palmeiras SP
Internacional RS x Fluminense RJ
Botafogo FR RJ x Red Bull Bragantino SP
Flamengo x Atletico Mineiro MG
06/08/ 2025
CR Brasil AL x Cruzeiro
Atletico Mineiro MG x Flamengo
Retro FC PE x Bahia
Palmeiras SP x Corinthians SP
CA Paranaense PR x São Paulo FC SP
Vasco Gama x CS Alagoano AL
Fluminense RJ x Internacional RS
Red Bull Bragantino SP x Botafogo FR RJ
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A Força de uma Mulher

Reportagem do UOL vence prêmio da International Sports Press Association

UOL, em São Paulo, 04/06/2025

A reportagem "A Força de uma Mulher", publicada no UOL Esporte, é a vencedora deste ano do prêmio da International Sports Press Association (AIPS) na categoria "Combatendo o Racismo e a Discriminação".

No texto, a ex-judoca Edinanci Silva relembrou a infância em Sousa, no sertão da Paraíba, as conquistas como atleta — ela disputou quatro Olímpiadas e ganhou duas medalhas em Mundiais —e os episódios de discriminação, preconceito e exposição que sofreu no ambiente esportivo e na mídia como pessoa nascida intersexo e que fizeram com que ela cogitasse o suicídio.
"Tive de lutar contra os brasileiros, contra o preconceito, tive de lutar para buscar respostas sobre mim e poder levá-las à imprensa, e tinha que lutar dentro do tatame também", disse ela em depoimento ao jornalista Demétrio Verchiolli. "Será que eu realmente merecia passar por isso?"
'Espaço de combate à discriminação'

"A Força de uma Mulher" fez parte do projeto "Minha História", com reportagens especiais do UOL para as Olimpíadas de Paris-2024, em que grandes nomes do esporte nacional narraram os caminhos que percorreram para chegar ao topo.

"Foram seis anos de tentativas, com Edinanci negando qualquer possibilidade de entrevista, até se sentir à vontade de nos contar sua história", conta Vecchioli. "Isso só aconteceu porque o UOL é reconhecido como um espaço que combate o racismo e a discriminação — esse prêmio reforça isso e celebra o sensível trabalho de toda equipe."
A matéria teve edição de Paulo Favero e design de Bruna Sanches.

Desde 2019, a International Sports Press Association celebra reportagens de excelência do jornalismo esportivo mundial. Na edição deste ano, concorreram jornalistas de 136 países, com mais de 2.065 matérias inscritas, entre fotografias e reportagens em vídeos, áudios e texto.
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A Força de uma Mulher


 Edinanci Silva  wiki

Para poder entrar num ônibus em Campina Grande (PB) com destino a São Paulo, 30 anos atrás, disse à minha mãe que voltaria. Mas a viagem que me permitiria ganhar a vida lutando judô tinha uma via só.
Meses depois, disse uma dura verdade a ela, sobre pensar em tirar a minha vida. A de todos nós já era sofrida demais, dolorida demais, para ser submetida também a todo aquele escrutínio público.
Só eu sei a força que fiz para seguir em pé. Sabe esse "hater" das redes sociais? Eu sofri na rua. Todo dia. Apoio da imprensa? Nenhum.

Depois do que vivi entre 1995 e 1996, me fechei, para proteger a mim e curar as tantas feridas que me causaram. Segui lutando judô, disputei quatro Olimpíadas, ganhei duas medalhas em Mundiais, mas mantive o ranço de jornalista, o medo da exposição.
Agora, aceitei contar a minha história.

Nasci em 1976, em plena Ditadura militar, em uma família muito humilde de Sousa, alto sertão da Paraíba, onde passamos fome e sede. As lembranças me doem tanto que desde meus 20 anos só volto para lá pela Internet, buscando notícias e revendo no Google Maps a nossa casa no bairro André Gadelha.

Até os 11 anos, só tive a oportunidade de estudar por oito meses no total.
Escola, área de lazer, local para praticar esporte, isso aí era tudo fantasia. Na minha periferia não tinha água, alimento, não tinha nem a saída do crime. É diferente das grandes cidades, só quem viveu sabe.
Além disso, eu tinha questões familiares. Meu pai era muito violento, não aceitava a realidade em que vivíamos, e explodia. Sou de uma época em que se você corria risco se tentava se expressar politicamente. Minha mãe ficava em pânico porque eu ficava falando: "Esse Brasil é uma merda".
Em Campina Grande tínhamos uma condição de vida melhor. Morávamos em cinco pessoas, junto com minhas duas irmãs, em um "embrião", uma casa da Caixa Econômica que tinha sala e banheiro. Mesmo assim, bem precária.

Eu ajudava no que eu conseguia, mas chegou um ponto que tive de seguir meu rumo. Já treinava judô e, na época de lutar, não podia comer arroz e feijão, tinha que comer salada, só que salada era luxo. Eu era um peso para minha família. Nunca tive nenhum tipo de vaidade, de fazer unha, cortar cabelo, se maquiar, sabe? Eu me desenvolvi em um meio muito rústico, onde as crianças andavam descalças. Fui ter bolo de parabéns aos 15 anos pela primeira vez.

Então minha chegada a Guarulhos, em 1994, com 17 anos, foi um choque cultural. O pessoal encanava com meu sotaque, minha forma de se comportar, de me vestir. "Edi, passa um batonzinho". Mas eu não gosto, não é da minha essência. Eu me sentia um peixe fora d'água, só que regredir, voltar para casa, não era uma opção. Com a intensidade do treinamento, as características masculinas ficaram mais escancaradas, fisicamente falando. Eu tinha aquele jeito de andar meio caranguejo das pessoas musculosas, sabe?
Foi aí que começaram a falar. Até então, isso só havia aparecido por uma amiga do meu treinador na Paraíba, que falou para me levar no médico, investigar. Mas eu, moleca de tudo, nunca dei atenção.

[NOTA DO EDITOR: Edinanci é, desde nascença, uma pessoa intersexo. Ela tinha testículos internos e apresentava quantidade anormal de hormônios masculinos. Em abril de 1996, passou por uma orquiectomia, cirurgia para retirada desses testículos. Sem a operação, Edinanci não seria aprovada no chamado "teste de feminilidade", em que as mulheres ficavam nuas diante de um "comitê", exigência para elas disputarem os Jogos Olímpicos. O teste foi banido em 1998]

Os exames, que só fui fazer quando vim para São Paulo, mostraram que eu até me beneficiava da produção de hormônio masculino, mas dali a 15 ou 20 anos isso iria virar um câncer. Quando me falaram isso, eu falei: "O que? Vamos fazer agora".

O procedimento cirúrgico e o tratamento hormonal não foram para participar dos Jogos, foram pela minha saúde. O esporte estava me dando uma oportunidade de descobrir uma questão, que, se eu estivesse na Paraíba, eu jamais teria descoberto. Usei essa oportunidade para cuidar de mim.
Entre 1995 e 1996, minha vida foi o cão. Não podia sair na rua porque ficavam me atacando. Não fisicamente, mas com palavras. Em Guarulhos, quando as pessoas me reconheciam, diziam: "Isso aí é um homem", usavam palavras chulas para me atacar.

Boa parte desse comportamento foi por causa da imprensa, que expôs a situação de uma forma muito sensacionalista. "É homem ou mulher, o que você acha?" Fizeram tipo um "Você Decide".
Isso mexeu muito comigo. Vinha aquela coisa na cabeça: "Será que é correto eu ser assim, será que eles não têm razão? Tá todo mundo falando isso, repetindo, será que não é verdade?" A ponto de, em uma das ligações que eu fiz para minha família, eu falar para minha mãe: "Vou desistir de tudo".
Pensei em suicídio mesmo. O hater pelas redes sociais machuca essa geração. Mas o hater pessoal é mais duro. Machuca, você não tem ideia.
A gente vai resgatando coisas que viveu, lembrando os momentos que vivenciou, e quando vê está sentindo de novo a dor que sentiu na época. Dói, e é difícil falar sobre isso. Você vai guardando para você, não tem com quem dividir.

Muitas vezes eu usei isso para construir resultado dentro do tatame. Virava o capeta, de tanto ódio, de tanta raiva. Só que isso faz muito mal. Você acaba se tornando uma pessoa que você não é, uma pessoa revoltada, que não confia em ninguém.
Não é que não tenha cicatrizes, sabe? Eu já tentei entender, mas é difícil. Será que é mágoa? Mas também não é mágoa. São coisas que você vai lembrando e você fala assim: "Será que eu realmente merecia passar por isso?"

Meu início no judô foi por sobrevivência, depois que fui diagnosticada com labirintite, já por causa das questões hormonais. Já tinha 1,70m e cheguei a pesar 38 kg, a ponto de não conseguir ficar de pé. Minha musculatura se resumia a tendão; até meus dedos atrofiaram.
Minha família buscou tratamento e acompanhamento psicológico, e minha mãe, que era sócia do SESC, procurou uma modalidade lá. Eu queria praticar caratê, influenciada pelos filmes da época, mas só o judô tinha vaga.

No fundo, o judô foi o único esporte que me abraçou.
Comecei a treinar aos 14 e minha recuperação foi muito rápida. Logo meu professor começou a me colocar em competições e eu passei a ter algo que não tinha: perspectivas de vida.
Acordava 5h da manhã e pulava a cerca do campus da UFPB para correr em uma pista de areia. Meu condicionamento físico era pegar tijolo e levantar com a mão. Academia? Nem em sonho. Para fazer repetição de técnica de judô, eu amarrava uma borracha em um pé de abacate que tinha em frente de casa.

Teve uma vez que fomos competir em Canoas (RS). Precisava perder peso, e não tinha dinheiro para comer. Uni o útil ao agradável e passei os três dias da viagem de ônibus só bebendo água.
Por isso nunca sofri com perda de peso. Cheguei a perder 10 kg em uma semana, dois dias sem comida e sem água. Perguntavam como eu conseguia e eu dizia que, na minha cabeça, era fácil, porque eu sabia como era. Quando eu não quisesse mais tirar peso, podia abrir a geladeira e teria uma Coca, podia comprar uma pizza, comprar uma água.

Na minha infância, a fome e a sede não ofereciam outra opção.

Essa história de me impedir de lutar começou em 1995, quando São Caetano do Sul, que não conseguia vencer a gente, tentou me impedir de disputar os Jogos Abertos por Guarulhos. Minha equipe falou: "Edi, se você quiser, a gente não entra sem você. A gente não liga de ser desclassificada". Eu não queria prejudicá-las, e só pedi que então elas descessem a porrada.

Guarulhos venceu, a equipe de São Caetano foi reformulada, e no ano seguinte me chamaram para ir para lá. Eu disse que se me quisessem lá, teriam que levar todas nós. Eles toparam e fomos todas.
A partir dali, defendi a equipe de São Caetano do Sul nos Jogos Abertos por quase 25 anos. Me aposentei da seleção em 2008, mas em 2019 eu ainda estava ganhando medalha de ouro pela cidade que tentou me barrar.

Sempre fui realista. Quando tive apoio da confederação, do COB, para lutar as Olimpíadas, não era porque estavam com dó, porque era o certo. Era porque eu era uma possibilidade de medalha.

Ao longo de toda a minha carreira, tive um certo ranço da imprensa brasileira. Toda questão sobre meus testes hormonais foi exposta de uma forma muito sensacionalista.
Pegaram uma questão delicada para fazer números, para prender a atenção do público não pela notícia, mas pela polêmica. Isso fez eu me afastar. Tudo que eu fiz dentro da modalidade sempre foi longe dos holofotes. Perdi muito patrocínio por causa dessa personalidade que adquiri.

Eu comparo com a situação da Caster [Semenya, corredora sul-africana], em que o país todo ficou do lado dela. O país todo torcendo para ela, e foda-se o mundo. Vai lá e traz essa medalha para a gente.
Isso foi algo que eu não tive aqui. Tive que lutar contra os brasileiros, contra o preconceito, tive que lutar para buscar respostas sobre mim e poder levá-las à imprensa, e tinha que lutar dentro do tatame também.

No fim, venci.
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Arqueóloga Niède Guidon, que deu fama mundial à pré-história do Brasil, morre aos 92 anos
Com pesquisas no Piauí, ela desafiou ideias sobre a ocupação humana nas Américas 

Daniela Martins, fsp, 04/06/2025

A arqueóloga Niède Guidon morreu nesta quarta-feira (4) aos 92 anos. Formada em história natural pela USP (Universidade de São Paulo) e doutora pela Universidade de Paris, ela virou de ponta-cabeça as pesquisas sobre a ocupação humana nas Américas.

A teoria de Clóvis, tradicionalmente aceita, afirma que o homem chegou ao continente americano durante a época em que o estreito de Bering esteve congelado, criando uma passagem entre a Sibéria e o Alasca, há cerca de 13 mil anos. Teria descido desde a América do Norte até ocupar, mais tardiamente, as terras da América do Sul.

As pesquisas de Guidon, no entanto, apontam vestígios da presença humana no Piauí que datam de 60 mil anos ou mais. Ela assegurava que os indícios poderiam chegar a 105 mil anos na serra da Capivara.

Walter Neves, um dos nomes mais respeitados da arqueologia brasileira, passou anos questionando as descobertas de Guidon. Em 2010, ele finalmente escreveu que estava 99,9% convencido da consistência delas. Observando a atitude da pesquisadora quanto às críticas que recebia, Neves disse: "A felicidade demanda coragem. E, se ela tem um nome, deve ser Niède Guidon."

 
A arqueóloga Niède Guidon no coquetel de entrega do Prêmio Itaú Cultural 30 Anos, no auditório do Ibirapuera, em 2017 - Marcus Leoni - 12.jun.2017/Folhapress 

De acordo com a pesquisadora, os arqueólogos europeus nunca tiveram grandes questões para admitir as datações que ela sugeria e sempre souberam que o trabalho desenvolvido no Piauí era sério e cuidadoso, tanto que concordaram em financiar os estudos.

Não foi fácil chegar a essas conclusões e encarar o ceticismo da comunidade científica norte-americana e mesmo dentro do Brasil. Também não foi simples chegar ao local remoto e isolado da caatinga em que se encontra o material arqueológico, no interior do Piauí. Niède não desistiu.

O legado de sua determinação vai além da mudança de paradigma nas teorias arqueológicas. Ela deixa ao país o Parque Nacional Serra da Capivara, incluído desde 1991 na lista de Patrimônio da Humanidade da Unesco, e a Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), entidade responsável pelo estudo do acervo natural e cultural do parque.

Foi em 1963, quando trabalhava no Museu Paulista da USP, que Guidon ouviu falar em um sítio com pinturas rupestres no interior do Piauí. Tentou chegar até o local dirigindo um Fusca, mas as dificuldades de acesso foram intransponíveis.

Niède Guidon deu fama mundial à pré-história do Brasil - fotos

Ela partiu para a França no ano seguinte, fugindo da ditadura militar, e só em 1970, quando voltou ao Brasil para uma pesquisa sobre populações indígenas de Goiás, conseguiu passar pelo local para finalmente ver de perto as pinturas que não haviam saído de sua cabeça.

O que viu foi algo novo, muito diferente dos padrões conhecidos e estudados no restante do país. Niède sabia que era um achado importante. Pediu ajuda ao governo francês e organizou uma missão de pesquisa em 1973.

Daí em diante, passou a se dividir entre Paris, onde lecionava na Escola de Estudos Avançados em Ciências, e São Raimundo Nonato (a 530 km de Teresina), juntando seus alunos franceses com os colegas da USP e formando grupos interdisciplinares com diversas instituições de pesquisa para estudar a região.

Para a pesquisadora, os esqueletos encontrados no Piauí, assim como os encontrados em Minas Gerais na década de 1970, apresentam características morfológicas mais próximas de povos africanos e aborígenes do que de povos asiático. A ideia do povoamento através do estreito de Bering é sólida, existe compatibilidade genética entre indígenas americanos e povos de etnia asiática. Mas ela não é suficiente para explicar tudo.

Outro caminho é a hipótese transoceânica, segundo a qual povos saídos da Polinésia e da Austrália teriam cruzado os oceanos, que tinham níveis mais baixos, e chegado diretamente ao litoral americano em períodos anteriores ao que se supunha. Tudo isso sugere que a ocupação do continente americano pode não ter tido uma única origem ou via de acesso, tese que encontra cada vez mais espaço entre os pesquisadores. O trabalho de Niède apontou que os caminhos podem ser ainda mais antigos e desconhecidos.

Mais tarde, descobertas de vestígios —ainda não comprovadas— de 120 mil anos no Chile e de 130 mil anos na Califórnia acabaram por mostrar que a tese dela tinha fundamento. É uma história que ainda aguarda para ser totalmente decifrada e contada.

O Parque Nacional Serra da Capivara foi criado pelo governo brasileiro em 1979. Niède sempre lutou contra o isolamento e o abandono do local. Acreditava que facilitar o acesso ao parque seria a garantia de sua preservação.

A arqueóloga esperou anos pela construção de um aeroporto que pudesse viabilizar a visitação turística, criou projetos de integração e sustentabilidade com as comunidades carentes da região, como uma fábrica de cerâmica, lutou por verbas e funcionários para manter o parque aberto e protegido das queimadas, da caça e do vandalismo.

Colecionou desafetos entre a classe política por suas constantes críticas e demandas e chegou a usar recursos pessoais para pagar salários e impostos atrasados. Catalogou 1.354 sítios arqueológicos dentro da área do parque para serem conservados e estudados, dos quais 200 podem receber visitantes.

 
Niède Guidon durante entrevista coletiva na Unicamp, em Campinas, em 1989 - Alexandre Tokitaka - 8.jun.1989/Folhapress 

As mudanças sociais ocasionadas pela criação do parque também não foram uma unanimidade entre os moradores do entorno. Com a desapropriação de terras, muitas comunidades que plantavam lavouras de subsistência e viviam da caça foram removidas para as cidades, tendo seu modo de vida completamente alterado.

Foi o caso dos habitantes da comunidade do Zabelê, hoje já assentados, que chegaram a mendigar pelas ruas de São Raimundo Nonato. Muitos jamais entenderam que a desapropriação era feita pelo governo federal —Niède levou a culpa pelos transtornos.

Quando lhe perguntavam sobre as dificuldades de ser mulher e tocar um trabalho tão grande no interior do Piauí, ainda na década de 1970 e em uma sociedade muito patriarcal, Niède respondia que jamais se sentiu diferente de qualquer homem e que esse tipo de coisa estaria mais na cabeça das pessoas, mas não na dela.

Niède Guidon nasceu em Jaú, interior de São Paulo, em 12 de março de 1933. A ascendência francesa vinha de um avô. Ela nunca se casou e não deixa filhos, tendo optado por dedicar sua vida pessoal e acadêmica aos estudos na serra da Capivara.
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Território em Fluxo

O “Território em Fluxo”, série documental do Brasil de Fato sobre a região conhecida como ‘Cracolândia’, aborda os principais conflitos que atravessam uma das regiões mais disputadas da capital paulista. Resultado de nove meses de apuração, a produção se contrapõe a abordagens estigmatizantes para, a partir de quem atua na região, retratar a complexidade do território. Os cinco episódios – O Fluxo; Moradia; Segurança Pública; Saúde e Cuidado; Arte e Cultura – destacam práticas cotidianas de resistência e alternativa à guerra contra as drogas em um espaço frequentemente retratado de forma marginalizada.

Data de lançamento: 28 de maio de 2025.
Duração: 5 episódios de 12 a 15 min.

Território em Fluxo - Episódio 1: O Fluxo | Uma série documental Brasil de Fato 

Território em Fluxo - Episódio 2: Moradia | Uma série documental Brasil de Fato 

Território em Fluxo - Episódio 3: Segurança Pública | Uma série documental Brasil de Fato 

Território em Fluxo - Episódio 4: Saúde e Cuidado | Uma série documental Brasil de Fato

Território em Fluxo - Episódio 5: Arte e Cultura | Uma série documental Brasil de Fato
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México pode eleger 1ª juíza indígena em votação inédita após reforma do Judiciário

rfi, 01/06/2025 

Neste domingo (1º), os mexicanos irão às urnas para eleger seus juízes e magistrados - um pleito histórico no país. A votação ocorre após a aprovação de uma polêmica reforma judicial em setembro de 2024.

Apesar da magnitude da mudança, o processo eleitoral gera pouca empolgação e é considerado complexo. O partido governista Morena, fundado por López Obrador e liderado por Claudia Sheinbaum, defende que a reforma serve para romper com um Judiciário "elitista, corrupto e distante da população".

Durante sua tradicional coletiva de imprensa, a presidente mexicana Claudia Sheinbaum fez um apelo direto à população: "Participem, decidam quem serão seus juízes e magistrados!". A convocação ocorre em meio à reta final da campanha, que visa renovar todo o Poder Judiciário: estão em disputa 881 cargos, da Suprema Corte aos tribunais distritais.
Este domingo 1.º de junio, mujeres y hombres saldremos a elegir un mejor Poder Judicial. Participar es la mejor vía para seguir la transformación de nuestra querida patria. Todas y todos a votar. pic.twitter.com/0UTcZ29iD8
-- Claudia Sheinbaum Pardo (@Claudiashein) May 31, 2025
 https://twitter.com/i/status/1928616920548348039
No dia da votação, os eleitores receberão seis cédulas diferentes, cada uma representando um órgão judicial. Cada cédula tem uma cor distinta: roxo para a Suprema Corte, azul-marinho para a câmara superior do Tribunal Eleitoral, salmão para as câmaras regionais, rosa para os tribunais de apelação, amarelo para os juízes distritais e turquesa para o novo tribunal disciplinar, encarregado de supervisionar os demais.

Segundo a magistrada Janine Otálora, do Tribunal Eleitoral, o desafio é imenso: "Só para a Suprema Corte, são 64 candidatos disputando nove vagas. É impossível conhecer todos eles." O eleitor deverá preencher cada cédula individualmente, escolhendo entre dezenas de nomes, muitos dos quais são desconhecidos do grande público.

Segundo dados oficiais, cerca de 20% da população mexicana é composta por povos indígenas, mas a presença deles no Judiciário ainda é mínima. Embora o governo tenha alegado que a reforma daria mais espaço às minorias, na prática, os requisitos para concorrer (formação universitária em direito, cinco anos de experiência e boas notas acadêmicas) continuam a excluir grande parte dessas comunidades.

Uma reforma polêmica imposta no fim do governo López Obrador
A eleição é consequência da última grande iniciativa do ex-presidente Andrés Manuel López Obrador (2018-2024), aprovada poucos dias antes de deixar o cargo. A reforma judicial propôs a substituição do modelo tradicional de nomeações - baseado em indicações do Executivo e aprovação pelo Senado - por um sistema de votação popular direta para todos os níveis do Judiciário.
No dia da votação, os eleitores receberão seis cédulas diferentes, cada uma representando um órgão judicial. Cada cédula tem uma cor distinta: roxo para a Suprema Corte, azul-marinho para a câmara superior do Tribunal Eleitoral, salmão para as câmaras regionais, rosa para os tribunais de apelação, amarelo para os juízes distritais e turquesa para o novo tribunal disciplinar, encarregado de supervisionar os demais.

Segundo a magistrada Janine Otálora, do Tribunal Eleitoral, o desafio é imenso: "Só para a Suprema Corte, são 64 candidatos disputando nove vagas. É impossível conhecer todos eles." O eleitor deverá preencher cada cédula individualmente, escolhendo entre dezenas de nomes, muitos dos quais são desconhecidos do grande público.

Segundo dados oficiais, cerca de 20% da população mexicana é composta por povos indígenas, mas a presença deles no Judiciário ainda é mínima. Embora o governo tenha alegado que a reforma daria mais espaço às minorias, na prática, os requisitos para concorrer (formação universitária em direito, cinco anos de experiência e boas notas acadêmicas) continuam a excluir grande parte dessas comunidades.

Uma reforma polêmica imposta no fim do governo López Obrador
A eleição é consequência da última grande iniciativa do ex-presidente Andrés Manuel López Obrador (2018-2024), aprovada poucos dias antes de deixar o cargo. A reforma judicial propôs a substituição do modelo tradicional de nomeações - baseado em indicações do Executivo e aprovação pelo Senado - por um sistema de votação popular direta para todos os níveis do Judiciário.
A mudança foi duramente criticada pela oposição, que organizou manifestações em várias cidades e convocou um boicote às urnas neste domingo. O argumento central é que a reforma politiza a Justiça e fragiliza sua independência.

"A campanha eleitoral por natureza exige seduzir eleitores - e um juiz não deve ter esse papel", alerta Janine Otálora. "Sem falar no risco de compra de votos e interferência do crime organizado, num país já tão vulnerável."

Restrições na campanha e desigualdades de acesso
Para evitar excessos, o Instituto Nacional Eleitoral (INE) impôs regras rigorosas: nada de cartazes, megafones ou propagandas em massa. Os candidatos só puderam fazer campanha por meio de panfletos e visitas domiciliares.

Essa limitação prejudicou candidaturas independentes e de minorias. Um exemplo é Camelia Gaspar Martínez, advogada indígena zapoteca de 38 anos, que disputa uma vaga no tribunal regional de Xalapa, responsável por sete estados do sul e sudeste do México.

Camelia percorreu milhares de quilômetros - às suas próprias custas - para fazer campanha. "Gastei todas as minhas economias. Se eu não vencer, vou precisar encontrar um emprego imediatamente para pagar as dívidas", contou. Em muitas comunidades por onde passou, ela era a única candidata a visitar os eleitores. "Eles dizem que vão votar em mim porque fui a única que apareceu."
Representatividade ameaçada pela ausência de cotas
Para a magistrada Otálora, a ausência de cotas obrigatórias para indígenas compromete o ideal de diversidade. "Sem um mínimo de vagas garantidas, dificilmente eles conseguem se eleger", afirmou. Camelia, no entanto, vê os dois lados da questão: "Já houve casos de pessoas que se dizem indígenas só para conquistar votos, mas depois de eleitas esquecem suas promessas."

Se eleita, Camelia se tornará a primeira mulher indígena a ocupar um cargo tão alto no Judiciário mexicano. "Seria um marco histórico. Seria a quebra de uma barreira que sempre nos impediu, enquanto mulheres indígenas, de acessar esses espaços."

Hoy en San Agustín Tlacotepec, cerré este recorrido por la tercera circunscripción en el que informé sobre este proceso electoral histórico y lo que significa que, por primera vez, podamos elegir a quienes integrarán el Poder Judicial. 🗳#Vota06#LaJusticiaQueHablaNuestraLenguapic.twitter.com/qw4lXJarGJ

-- Camelia Gaspar Martínez (@camelia_gaspar) May 29, 2025
Baixa participação ameaça legitimidade
Outro fator que preocupa é a complexidade do processo eleitoral, que pode desestimular o comparecimento. "Ninguém conhece os candidatos. As regras são confusas. Os locais de votação são menos numerosos que numa eleição presidencial. Tudo isso afasta o eleitor", aponta Otálora. Segundo ela, se a participação não superar 30%, o processo será considerado um fracasso.
Uma pesquisa do instituto Enkoll divulgada pelo jornal El País e a rádio W Radio mostrou que 72% dos mexicanos apoiam, em princípio, a eleição direta de juízes. No entanto, a expectativa de comparecimento às urnas estava em apenas 22,9% na véspera da votação.
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Com maior câmera digital já feita, projeto para mapear o céu inaugura era na astronomia
Observatório Vera C. Rubin, no Chile, deve revelar sua primeiras imagens em 23 de junho 

Salvador Nogueira, fsp, 01/06/202 

 
O Observatório Vera C. Rubin, em Cerro Pachón, no Chile - Olivier Bonin/SLAC National Acce - 17.mai.2024 / via Reuters

Após uma espera de décadas pela comunidade científica, as primeiras imagens do Observatório Vera C. Rubin devem ser apresentadas ao público em 23 de junho, inaugurando uma nova era na astronomia. E quem já viu os dados iniciais vindos do supertelescópio está para lá de empolgado.

"Quando você vê o que está envolvido: um projeto que levou 25 anos para ser construído, uma câmera que custou meio bilhão de dólares, pesa três toneladas, tem o tamanho de um carro e precisa se mover com precisão micrométrica, rapidamente, para apontar em diferentes regiões do céu, não é trivial que tudo funcione. Mas está funcionando", diz Luiz Nicolaci da Costa.

Costa é diretor do LineA (Laboratório Interinstitucional de e-Astronomia), órgão brasileiro que participa do projeto e acaba de receber R$ 7 milhões em recursos da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) para concluir a instalação de seu Centro Independente de Acesso a Dados (Idac, na sigla em inglês), estrutura responsável por processar, analisar e distribuir dados do supertelescópio.

 

"As imagens têm uma qualidade fabulosa, sem distorções, sem ruídos eletrônicos, com um campo de visão gigantesco", afirma o astrônomo, que já pôde dar uma olhada nos primeiros resultados vindos do telescópio internacional com espelho de oito metros instalado no Atacama, no Chile.

A iniciativa internacional tem liderança americana e participação de vários países, entre os quais o Brasil. "O pessoal do time de comissionamento já viu as imagens e mesmo sem poder divulgar ainda dá para garantir que estão muito satisfeitos. Os astrônomos e físicos do mundo inteiro envolvidos no projeto estão em clima de grande expectativa."

A espera vai acabar no próximo dia 23, com o evento Rubin First Light, organizado pela NSF e pelo DOE (respectivamente Fundação Nacional de Ciência e Departamento de Energia dos EUA) e replicado em reuniões simultâneas espalhadas pelo mundo. "As primeiras imagens devem se concentrar em campos ricos em galáxias, onde poderão ser vistas lentes gravitacionais, fenômenos de grande valor científico", diz Nicolaci.


O observatório foi desenvolvido para conduzir um megaprojeto de varredura, o LSST (sigla em inglês para Pesquisa de Legado de Espaço e Tempo). Mapeando o céu do hemisfério Sul, ou seja, quase metade de toda a abóbada celeste, ele trará precisão e velocidade inéditas.

Observatório Vera C. Rubin inaugura nova era na astronomia - fotos

"Para se ter uma ideia do salto: enquanto telescópios atuais podem levar anos para catalogar cerca de 400 milhões de objetos, o supertelescópio Rubin tem expectativa de ultrapassar a marca de 29 bilhões de detecções já no primeiro ano de operação. O que hoje demanda anos de trabalho ele será capaz de fazer em poucos dias", afirma Nicolaci.

Embora haja hoje vários telescópios de solo com abertura de oito metros em operação, o Rubin traz alguns diferenciais marcantes. Um deles é a maior câmera digital já construída no mundo, uma gigante de 3,2 gigapixels. Outro é o enorme campo de visão e a capacidade de registrar vastas áreas do céu em rápida sucessão. "A câmera é tão poderosa que, para ver uma imagem inteira dela em resolução total, seriam necessárias 400 TVs de alta definição", diz o astrônomo do LineA.

O CÉU EM TRANSFORMAÇÃO

Os dados do LSST prometem revolucionar praticamente todos os campos da astronomia, do estudo do Sistema Solar (em que o telescópio poderá descobrir um sem-número de objetos, que vão de asteroides ao hipotético Planeta 9, supostamente localizado além de Netuno) aos grandes mistérios da astronomia moderna, como a energia e matéria escuras (cujos efeitos só são observados de forma indireta). E o mais interessante será a busca sistemática pelo inesperado.

"O potencial é enorme. Primeiro pela profundidade e volume de espaço que o LSST vai explorar. E depois por uma coisa muito importante: o projeto vai observar a mesma região do do céu a cada três noites. Isso cria algo que nunca tivemos antes: um filme do céu em movimento. Vai ser possível ver o que muda, o que surge, o que desaparece. Fenômenos rápidos, variáveis, novos objetos, tudo isso em tempo quase real."

 
A câmera de 3,2 gigapixels do Observatório Vera C. Rubin - Jacqueline Ramseyer Orrell/SLAC National Accelerator Laboratory/Divulgação 
 
Em compensação, o Rubin também terá de lidar com outro aspecto menos agradável do céu em transformação — a presença constante de satélites brilhantes de baixa órbita afetando as imagens produzidas.

Quando o projeto foi concebido, ninguém imaginava que megaconstelações como a da Starlink, da SpaceX, seriam lançadas ao espaço, e o impacto à astronomia é considerável, sobretudo em projetos de varredura.

Na pior das hipóteses, o LSST poderia ter prejuízos de contaminação indesejada em 30% a 50% das imagens, segundo um estudo de 2020. O impacto, contudo, pode cair pela metade se o projeto sacrificar 10% no tempo de observação, de acordo com estimativas.

Astrônomos vêm pressionando a SpaceX e outras empresas para tentar reduzir o brilho de seus satélites. O impacto real sobre o projeto deve ficar claro já no início e pode jogar um pouco de água no chope dos astrônomos.
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Leni Riefenstahl

A cineasta favorita de Hitler: artista ingênua ou nazista convicta? vídeo 

O genocídio sionista de palestinos. A gangue de Natanyahu, os nazi-judeus, o nazismo do século XXI. O holocausto palestino.
Palestina: Israel aposta na solução final - análise de Breno Altman vídeo 
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Um genocídio contra o povo palestino e o politicamente inaceitável

 Em meio ao genocídio na Palestina, "Dia da Amizade" entre Brasil e Israel foi votado por unanimidade no Senado. O Dia da Amizade Brasil-Israel e as críticas da esquerda aos senadores do PT

Por Gustavo Maia— Brasília, 27/05/2025

A aprovação do projeto de lei que institui o Dia de Celebração da Amizade Brasil-Israel no plenário do Senado tem rendido uma série de críticas aos senadores do PT por parte de setores da esquerda, inclusive dentro da legenda. O próprio partido e o presidente Lula já condenaram diversas vezes o "genocídio" e o "massacre" israelense em Gaza.

No momento da apreciação da proposta, na terça-feira da semana passada, a sessão era comandada por Humberto Costa, presidente nacional do PT. Diante de um plenário esvaziado, o petista chamou o item da pauta e iniciou uma rápida votação simbólica, concluída em menos de um minuto.
O parecer favorável ao projeto foi apresentado por Carlos Viana (Podemos-MG), líder da bancada evangélica no Senado e ex-líder do governo Bolsonaro na Casa. Costa considerou o PL aprovado depois que os senadores permaneceram como se encontravam, um procedimento de praxe em pautas de pouca repercussão. A matéria seguiu para a sanção de Lula.
Na sequência, Viana agradeceu aos colegas pela "aprovação unânime" da data comemorativa, que será a celebrada anualmente em 12 de abril, em referência à instalação da representação diplomática brasileira em território israelense, em 1951. Ele se disse satisfeito com a decisão de reconhecer a "importância e a proximidade de duas nações irmãs":

— O Estado de Israel e os brasileiros, nós temos uma história muito rica que não pode ser em momento algum desrespeitada por um momento ou outro que nós tenhamos, em que Israel tenha o direito de se defender, o Brasil tenha, pelo governo, as suas críticas.

O silêncio dos nove senadores petistas, no atual contexto, foi classificado como "covardia" em críticas e cobranças nas redes sociais. Uma imagem gerada por Inteligência Artificial com parlamentares abraçados a Benjamin Netanyahu com as mãos sujas de sangue começou a circular entre defensores da causa palestina nos últimos dias.

No bastidores do Senado, uma avaliação é que os petistas não quiseram comprar essa briga levando em conta o fato de que o presidente da Casa, Davi Alcolumbre, é judeu.

Nesta segunda-feira, a vereadora de Campinas (SP) Guida Calixto, que é do PT, divulgou uma carta aberta aos senadores do partido para manifestar sua "profunda preocupação e indignação" com o apoio ao projeto. "Em um momento em que Israel comete, diante dos olhos do mundo, um genocídio contra o povo palestino, tal posicionamento é moral e politicamente inaceitável", escreveu a petista.
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O sentido das águas | Drauzio e João Moreira Salles em uma conversa sobre o Rio Negro vídeo 

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Marina no Senado, masculinidade no abismo e o fim do mundo na foz de um rio

Milly Lacombe, UOL, 31/05/2025 

 
A Ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva (Rede)Imagem: Reprodução
 
"Os Brancos só nos tratam como ignorantes porque somos gente diferente deles. Mas seu pensamento é curto e obscuro; não consegue ir além e se elevar porque eles querem ignorar a morte [...]. Os brancos não sonham longe como nós. Eles dormem muito mas só sonham consigo mesmos" (Davi Kopenawa Yanomami em "A Queda do Céu")

Como sabemos, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, foi vítima de misoginia e de machismo em sua mais recente ida ao Senado. Senadores - da oposição e da situação, diga-se - orquestraram uma sinfonia macabra de violências contra a ambientalista e todos testemunhamos como soa infantil e ridícula a prática desse tipo de masculinidade. Os senadores da oposição atuaram como agentes ativos e os da situação, como passivos. Ouvia-se a voz de protesto de uma mulher durante a cerimônia de delinquências praticadas contra Marina Silva, mas não a voz de homens se revoltando. Nessa hora, as fronteiras ideológicas que separam os de esquerda dos extremistas de direita - argumento que só há essas duas correntes no Parlamento - são evaporadas e eles se unem de forma orgânica e rápida em nome do bullying que tão bem sabem praticar contra mulheres.

Marina Silva levantou e saiu deixando o espetáculo misógino para trás e, em seguida, o assunto ganhou o noticiário e as redes. Mas talvez tenhamos escorregado na análise de uma importante particularidade sobre episódio, que é a seguinte: A mesma masculinidade que se sentiu no direito de tentar diminuir a ministra é aquela que se autoriza a seguir explorando o planeta em busca de lucro rápido e abundante. A mesma, portanto, que está atuando pela extinção da espécie humana e da possibilidade de vida decente para outras espécies num futuro muito próximo.

Que tipo de masculinidade é essa? É a que determina que homens têm direito à pratica de violências. A mesma que coloca o sujeito homem acima do sujeito mulher e como titular proprietário da natureza. Assim como o corpo da mulher, o meio ambiente está aí para ser explorado, devastado, aniquilado, silenciado, doutrinado, adestrado, vigiado. O mundo pertence a essa agenda identitária e quem tentar impedir sua implementação será tratado como coisa a ser eliminada, silenciada, abusada, assediada, assassinada. São essas as forças que atuam sobre nossos corpos e sobre a natureza. Elas vêm de uma mesma fonte: a ideia de que o mundo e tudo o que nele respira e habita ao homem dominante pertence. A ideia de que só existe um sujeito universal, o homem, e tudo mais é objeto.

Infelizmente, essas são as dinâmicas que acham ser razoável explorar a foz de rios da Amazônia em busca de mais combustível fóssil. Foram elas que levaram Dilma Rousseff a dizer, na iminência da construção de Belo Monte, que quem era contra a usina estava vivendo em um lugar de fantasia. São elas que movem Lula e seu governo a lutar pela exploração da foz do rio Amazonas mesmo diante de todas as evidências científicas de que é esse tipo de ação que está provocando e acentuando a crise climática. As idênticas forças que infantilizam mulheres durante debates sérios em comissões do parlamento são aquelas que infantilizam e ridicularizam ativistas que tentam impedir a exploração predatória da Terra. A situação fica bastante complexa se olharmos com essas lentes. Porque a luta se amplia e se aprofunda. E essa é a única consciência que pode nos emancipar.


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