Antídoto à chusma de sátrapas
Como os males vêm aos pulos, a New Yorker faz 100 anos e tem de encarar Trump
Mario Sergio Conti, fsp, 14/02/2025
Um aniversário não é a melhor ocasião para avaliar o que o aniversariante fez. É hora de festa, não de crítica. Se quem apaga a velinha é uma revista, ela canta parabéns sozinha. Se faz cem anos, o bolo vira estátua e o natalício efeméride. Se quem comemora um século de vida é a New Yorker, sai de baixo —e seu centenário é na sexta-feira que vem.
No auge da festa soa o sino de finados: morrerás! Revistas são seres com o pé na cova. É irracional plantar e cortar eucalipto, fervê-lo até virar papa, e depois papel, para nele imprimir notícias. A periodicidade, idem. Por que sintetizar sete dias se a internet ejacula manchetes sem parar, fala até de Temer?
A New Yorker é das raras semanais a sobreviver (a Economist é outra). Só isso seria motivo para exaltar o passado e indagar ao futuro: como manter a linha, a elegância? A edição centenária não especula, é com um palavrão cabeludo que designa o que está aí e vai piorar: Trump.
Eis o que diz o diretor de Redação, David Remnick, ao apresentar o número 100: "Trump perdoou várias centenas de seguidores que promoveram uma insurreição em seu nome, demitiu funcionários suspeitos de deslealdade, nomeou uma chusma de sátrapas incompetentes para cuidar da saúde pública e da segurança nacional, propôs uma limpeza étnica em massa em Gaza".
São palavras tão mais briosas porque, como Remnick registra, "o presidente decretou que a imprensa é inimiga e fez da genuflexão o preço para contar com suas boas graças". A ironia é que a New Yorker não foi nem é uma publicação política, nunca teve editorial nem colunas. Seus dotes são: reportagem, crítica, humor, desenho, conto, comentário, poesia.
Participou da vida nacional com esses dons. Apoiou a entrada dos Estados Unidos na 2ª Guerra Mundial após Pearl Harbor e foi contra a do Vietnã. Deu trela à invasão do Iraque, à extinção do país por meio de uma fake news: Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa. (Como Moro, o New York Times pediu "escusas" pela mentira; a revista não).
A New Yorker é produto do trabalho de gerações de profissionais da imprensa. Eles usaram o jornalismo para expressar os modos de vida do país mais rico da Terra em um século. Objetivamente, a revista é o fruto subjetivo do empenho e inteligência de dois homens muito diferentes um do outro: Harold Ross, fundador e primeiro diretor, e seu sucessor por 35 anos, William Shawn.
Até "Genius in Disguise", uma biografia de 500 páginas, Ross era tido como um tosco que fugiu da escola aos 13 anos e não sabia se Moby-Dick era o homem ou a baleia. Como o pândego que quis vender um carro ao comediante Harpo Marx e um trator a James Cagney, o ator.
É tudo verdade, mas não toda ela. Foi repórter numa penca de jornais, do Maine ao Panamá. Alistou-se, serviu na França e editou a revista do Exército na 1ª Guerra Mundial. Seus dois livros de cabeceira —um dicionário e uma gramática– tornaram-no um estilista. Sentou praça em Manhattan e, em camas e mesas de pôquer, ficou íntimo da boemia e da elite. Era grandalhão, debochado, espaçoso, da fuzarca. Sabia muito.
Sabia o que queria: disse num folheto de apresentação da New Yorker que a revista refletiria "a vida metropolitana em palavras e imagens", teria "alegria, humor e sátira", mas não faria o papel de "bobo da corte". Com lábia aveludada, conseguiu com que Raoul Fleischmann, rebento da família que fazia fermento, pusesse US$ 35 mil no magazine.
As primeiras edições ficaram péssimas, não espelhavam o que queria. Como os males vêm aos pulos, assim que a New Yorker saiu, Ross perdeu US$ 30 mil no pôquer. Aprumou-a e pôs em prática seu maior talento: juntar gente de gênio num ambiente propício à inventividade.
Foi então que contratou William Shawn, que veio a ocupar seu posto. Era pequeno, polido, tímido e estranho –bígamo por 40 anos. Ele deu lastro jornalístico à revista e foi o sujeito oculto de seus grandes feitos. Shawn incentivou John Hersey a investigar in loco os efeitos da bomba atômica. E quem sugeriu que a reportagem que fez no Japão, "Hiroshima", ocupasse um número inteiro da New Yorker.
Ao ser demitido, Shawn escreveu aos colegas: "Construímos juntos algo maravilhoso. O amor tem sido a emoção controladora, e o amor é a palavra essencial". A delicada frase perdeu razão de ser. Aquela revista e aqueles jornalistas ficaram para trás. Hoje o medo é a emoção controladora, e Trump a palavra essencial. É ele que a New Yorker tem de encarar.
Em tempo
(1) John Hersey, Hiroshima, Tradução Hildegard Feist, Companhia das Letras, 2002.
(2) O artigo de Hersey aqui
Nenhum comentário:
Postar um comentário