quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Lendo ‘Cem anos de solidão’

O tempo, a solidão e a morte

Cem anos de solidão, Gabriel Garcia Marquez, tradução Eric Nepomuceno, 132ªedição, Record 2024

Cem anos de solidão de Gabriel Garcia Marquez é um clássico imperdível da literatura mundial. Imperdível, assim como, Dom Casmurro de Machado de Assis e Angústia de Graciliano Ramos.

Cem anos... começa com uma utopia possível (ou sonho realizado) e termina com a destruição e desaparecimento. Neste intervalo de um século Marquez navega no tempo, na solidão, na morte e no esquecimento ao redor da cidade de Macondo. Com uma impecável linguagem poética e às vezes irônica. Marquez escreve como estivesse pintando um quadro.

Ernest Hemingway já disse que “É isso que tentamos fazer ao escrever, e isso e isso, e os bosques, e as rochas que temos que escalar” diante do quadro Rochas na floresta de Fontainebleau de Cézanne (ver Notas no final deste texto)

Não pretendo comparações Marquez versus Hemingway, mas o primeiro, em Cem anos... apresenta as imagens escritas como num quadro de pintura. E não satisfeito mistura poesia. O último capítulo do livro é poesia em prosa.

A personagem protagonista do livro é, sem dúvida, Úrsula Iguarán, a matriarca da família Buendía. Prima e esposa de José Arcadio Buendía, Úrsula é uma mulher forte e determinada. Ela é assombrada pela maldição da incestuosidade na família e é uma das poucas personagens a viver por quase toda a duração da história. Uma viajem por esta portentosa personagem: “Apesar do tempo, dos lutos superpostos e das aflições acumuladas, Úrsula resistia a envelhecer”.  “Santo Deus”, exclamou em voz baixa. “Quer dizer que isto é a morte.” “Úrsula teve de fazer um grande esforço para cumprir a promessa de morrer quando estiasse. O ânimo de seu coração invencível a orientava nas trevas”. “Na última vez em que tinham ajudado Úrsula a fazer as contas de sua idade, nos tempos da companhia bananeira, calcularam entre os cento e quinze e cento e vinte e dois anos”.

Algumas pérolas que nos deparamos quando da leitura do livro: armadilha da nostalgia / desalento da ociosidade / impermeabilidade aos afetos / resplendor lúgubre no rosto da cor de outono / não com a esperança de assim derrotar a solidão mas, para sustenta-la / na beira do princípio da incerteza / tédio do abandono/ tocada pela solenidade da morte/ lutos superpostos / resplendor seráfico / solidão compartilhada / labirinto dos mortos / não podia com a própria alma / os Buendía morriam sem doença / esmigalhou suas ilusões / viuvez de virgem / pacto honrado com a solidão / flutuava um insuportável cheiro de recordações apodrecidas / coração de cinza amassada / atocaiar amores extraviados.

 


O conteúdo do livro é dividido em dezenove capítulos, sem títulos. Durante a leitura marquei alguns trechos que percebi relevantes. Abaixo, estes trechos, nos capítulos nomeados por este que vos fala.

1. Utopia: início de sua realização, p.9; 

2. José Arcádio Buendía e Prudêncio Aguilar, p.27; 

3. Alucinada lucidez e o inútil costume de dormir, p.46; 

4. O espinho de um amor solitário, p.69; 

5. Pele triste, era quase puro osso,  p.90; 

6. Profundo silêncio com perfume de flores pisoteadas, p.114; 

7. Amaranta havia consagrada sua viuvez de virgem, p.132; 

8. O abismo da grandeza, p.172; 

9. Comia grãos de arroz que pegava com alfinete,  p.193; 

10. O trem amarelo das incertezas, alegrias, mudanças e calamidades, p. 214; 

11. Flutuava um insuportável cheiro de recordações apodrecidas p.235; 

12. Úrsula: a impenetrável solidão da decrepitude,  p.256; 

13. Compreensão sem limite com a solidão, p.279; 

14. Um anarquista na família, p.303; 

15. Invulneráveis ao tempo e ao desastre,  p.325; 

16. A morte de Úrsula, p.344; 17. Recapitulação de infortúnios, p.366; 

18. Atocaiar amores extraviados, p.387; 

19. Um passado cujo aniquilamento não se consumava, p.409


1. Utopia: início de sua realização, p.9

A circunavegação

A terra é redonda como uma laranja.

Úrsula perdeu a paciência. “Se você é para ficar louco, pois que fique você, sozinho”, gritou. “Não trate de pregar nas crianças suas ideias de cigano.” José Arcádio Buendía, impassível, não se deixou amedrontar pelo desespero da mulher que, num explosão de cólera, estraçalhou o astrolábio no chão.

Construiu outro, reuniu no quartinho os homens da aldeia e demonstrou a eles, com teorias que para todos eram incompreensíveis, a possibilidade de regressar ao ponto de partida navegando sempre rumo ao Oriente. A aldeia inteira estava convencida de que José Arcádio Buendía tinha perdido juízo, quando Melquíades chegou para pôr as coisas em ordem.

Ele exaltou em público em público a inteligência daquele homem que através da pura especulação astronômica, havia construído uma teoria já comprovada na prática, embora até então desconhecida até então em Macondo, e como prova de sua admiração deu a ele um presente que haveria de exercer uma influência decisiva o futuro da aldeia: um laboratório de alquimia. (p.13)

 José Arcádio Buendía atreveu-se a murmurar:

- É o maior diamante do mundo

- Não – corrigiu o cigano – É gelo (25)

2. José Arcádio Buendía e Prudêncio Aguilar, p.27

Prudêncio Aguilar

Assim ficaram vários meses. Durante o dia, ele pastoreava seus galos de briga e ela bordava no bastidor da mãe. Durante a noite, se enredavam e engalfinhavam várias horas com uma ansiosa violência que já parecia um substituto do ato de amor, até que a intuição popular farejou que alguma coisa irregular estava acontecendo, e soltou o rumor de que Úrsula continuava virgem um ano depois de casada, porque seu marido era impotente. José Arcádio Buendía foi o último a ficar sabendo daquele rumor.

— Veja você, Úrsula, o que o pessoal anda dizendo — disse ele à mulher com muita calma.

— Deixe falar — respondeu ela. — Nós sabemos que não é verdade.

E assim a situação continuou tal e qual por outros seis meses, até o domingo trágico em que José Arcádio Buendía derrotou Prudêncio Aguilar numa briga de galos.

Furioso, exaltado pelo sangue do seu animal, o perdedor afastou-se de José Arcádio Buendía para que toda a arquibancada pudesse ouvir o que ia lhe dizer.

— Meus cumprimentos — gritou. — Vamos ver agora se enfim esse galo faz um favor à sua mulher.

José Arcádio Buendía, sereno, pegou o galo. “Volto já”, disse a todos. E logo, a Prudêncio Aguilar: —Vá para casa e se arme, porque eu vou matar você. Dez minutos depois voltou com a lança que tinha sido de seu avô, e que conhecia o gosto da morte. Na porta da arquibancada, onde se havia se concentrado meia aldeia, Prudêncio Aguilar esperava por ele.

Não teve tempo de se defender. A lança de José Arcádio Buendía, arrojada com a força de um touro e a mesma direção certeira com que o primeiro Aureliano Buendía tinha exterminado as onças da região, atravessou-lhe a garganta.

Naquela noite, enquanto o cadáver era velado na rinha de galos, José Arcádio Buendía entrou no quarto quando a sua mulher estava vestindo as calças de castidade. Brandindo a lança na frente dela, ordenou: “Tire isso.”

Úrsula não pôs em dúvida a decisão do marido. “Haja o que houver, a responsabilidade será sua”, murmurou. José Arcádio Buendía cravou a lança no chão de terra.

— Pois se você tiver que parir iguanas, criaremos iguanas — disse — Mas nesta aldeia não haverá mais mortos por sua culpa.

Era uma bela noite de junho, fresca e com lua, e ficaram acordados e se revolvendo na cama até o amanhecer, indiferentes ao vento que passava pelo quarto, carregado com o pranto dos parentes de Prudêncio Aguilar. (29 e 30)

......

Os homens e o medo da morte

Mas quando ela (Pilar Ternera) entrava em casa, alegre, indiferente, desaforada, ele (José Arcádio) não precisava fazer nenhum esforço para dissimular a sua tensão, porque aquela mulher, cujo riso explosivo espantava os pombas, não tinha nada a ver com o poder invisível que o ensinava a respirar para dentro e controlar as batidas do coração, e tinha permitido entender por que os homens têm medo da morte. (p.36)

......

Amaranta

Numa quinta-feira de janeiro, às duas da madrugada, nasceu Amaranta. Antes que alguém entrasse no quarto, Úrsula examinou-a minuciosamente. Era leve e úmida feito uma lagartixa, mas todas as suas partes eram humanas. Aureliano não percebeu a novidade a não ser quando sentiu a casa cheia de gente.

Protegido pela confusão, saiu à procura do irmão, que não estava na cama desde as onze, e foi uma decisão tão impulsiva que não teve tempo de se perguntar como faria para arranca-lo do quarto de Pilar Ternera.

Ficou rondando a casa por várias horas, assoviando em códigos secretos até que a proximidade do amanhecer obrigou-o a regressar. No quarto da mãe, brincando com a irmãzinha recém-nascida e com uma cara que derramava inocência, encontrou José Arcádio. (p.38)

......

Arcádio

O filho de Pilar Ternera foi levado para a casa dos avós duas semanas depois de ter nascido. Úrsula admitiu-o de má vontade, vencida mais uma vez pela teimosia do marido, que não conseguiu tolerar a ideia de que um rebento do seu sangue ficasse navegando a deriva, mas impôs a condição de que ocultassem do menino a sua verdadeira identidade. Apesar de receber o nome de José Arcadio, acabou sendo chamado simplesmente de Arcadio, para evitar confusões. Havia naquela época tanta atividade na aldeia e tanto ataranto na casa, que as crianças ficou relegado a segundo plano.

Ficaram aos cuidados de Visitación, uma índia guajira que tinha chegado à aldeia com um irmão, fugindo de uma peste de insônia que flagelava a sua tribo fazia vários anos. Ambos eram tão dóceis e serviçais que Úrsula resolveu abriga-los para que a ajudassem nas tarefas domésticas.

Foi assim que Arcadio e Amaranta falaram a língua guajira antes do castelhano, e aprenderam a tomar caldo de lagartixas e a comer ovos de aranhas, sem que Úrsula percebesse, porque andava demasiado com um negócio promissor de animaizinhos de caramelo. Macondo estava mudada. (p.46)

3. Alucinada lucidez e o inútil costume de dormir, p.46

Mas a tribo de Melquíades, pelo que os vira-mundos contaram, tinha sido varrida da terra por haver superado os limites do conhecimento humano. (47)

......

Rebeca

— Alguém vai chegar — disse. (Aureliano)

Úrsula, como sempre que ele uma previsão, tentou desalentá-lo com a sua lógica caseira. Era normal que alguém chegasse. Dezenas de forasteiros passavam todos os dias por Macondo, sem despertar inquietações nem antecipar avisos secretos. No entanto, por cima de qualquer lógica, Aureliano tinha certesa do seu presságio.

— Não sei quem é — insistiu — mas seja quem for, já vem a caminho.

No domingo, realmente, chegou Rebeca. Não tinha mais de onze anos. Havia feito a penosa viagem desde Manaure, com uns traficantes de peles que receberam a missão de entregá-la, com uma carta, na casa de José Arcádio Buendía, mas que não conseguiram explicar com precisão quem era a pessoa que lhes havia pedido o favor.

Sua bagagem inteira era composta de um bauzinho de roupa, uma pequena cadeira de balanço de madeira com florzinhas coloridas pintadas a mão e um embornal de lona que fazia um permanente ruído de cloc cloc cloc, onde trazia os ossos de seus pais.

A carta dirigida a José Arcadio Buendía estava escrita em termos muito carinhosos por alguém que continuava gostando muito dele apesar do tempo e da distância e que se sentia obrigado, por um elementar sentido humanitário, a fazer a caridade de lhe mandar esta pobre orfãzinha desamparada, que era prima de Úrsula em segundo grau e, portanto, parente também de José Arcádio Buendía, embora em grau mais afastado, porque era filha daquele inesquecível amigo que foi Nicanor Ulloa e sua mui digna esposa Rebeca Montiel, a quem Deus tenha no seu santo reino, cujos restos juntava à presente para que lhes desse sepultura cristã.

Tanto os nomes mencionados quanto a assinatura da carta eram perfeitamente legíveis, mas José Arcádio Buendía nem Úrsula se lembravam de ter parentes com esses nomes, nem conheciam ninguém que se chamasse como o remetente, e muito menos na remota povoação de Manaure.

Através da menina, foi impossível obter informação complementar. Desde o momento em que chegou, sentou-se na cadeirinha de balanço a chupar o dedo e observando a todos com os seus grandes olhos espantados, sem que desse sinal algum de entender o que lhe perguntavam. Vestia uma roupa de tecido trançado grosso tingido de negro, gasta pelo uso, botinas descascadas de verniz descascado. Tinha os cabelos presos atrás das orelhas, com laços de fitas negras.

Usava um escapulário com as imagens apagadas apagadas pelo suor e no pulso uma presa de animal carnívoro montada num suporte de cobre, como amuleto contra o mau-olhado. Sua pele verde, seu ventre redondo e tenso como um tambor revelavam uma saúde ruim e uma fome mais velhas que ela mesma, mas quando lhe deram de comer ficou com o prato nas pernas, sem provar nada. Chegaram inclusive a achar que era surda-muda, até que os índios lhe perguntaram na sua língua se queria um pouco de água e ela moveu os olhos como se os tivesse reconhecido e disse sim com a cabeça. (49 e 50)

......

[Peste da Insônia] Queria dizer que quando o doente se acostumava com seu estado de vigília, começavam a se apagar da sua memória as recordações da infância, depois o nome e a noção das coisas, e por último a identidade das pessoas a consciência do próprio ser, até afundar numa espécie de idiotice sem passado (53)

......

Nesse estado de alucinada lucidez não apenas viam as imagens de seus próprios sonhos, mas uns viam as imagens sonhadas pelos outros. (54)

......

Enquanto Macondo celebrava a reconquista das recordações, José Arcádio Buendia e Melquíades sacudiam a poeira de velha amizade. (...) Repudiado pela sua tribo, desprovido de qualquer faculdade sobrenatural como castigo por sua fidelidade à vida, decidiu refugiar-se naquele rincão do mundo ainda não descoberto pela morte, dedicado à exploração de um laboratório de daguerreotipia. (58)

daguerreotipo

4.     O espinho de um amor solitário, p.69

José Arcádio Buendia renunciava à perseguição da imagem de Deus, convencido da sua inexistência, e estripava a pianola para decifrar sua magia secreta (71)

......

Chorando de fúria (Úrsula) maldisse a hora em que teve a ideia de comprar a pianola, proibiu as aula de bordado e decretou uma espécie de luto sem morto que haveria de se prolongar até que as filhas (Amaranta e Rebeca) desistissem de suas esperanças. (78)

......

Quando enfim o identificou, (Prudêncio Aguilar) assombrado de que os mortos também envelhecem, José Arcádio Buendia sentiu-se sacudido pela nostalgia. (87)

5.  Pele triste, era quase puro osso,  p.90

Remédios

Aureliano Buendía e Remédios Moscote se casaram num domingo de março, diante do altar que o Padre Nicanor Reyna mandou construir na sala de visitas. Foi a culminação de quatro semanas de sobressaltos na casa dos Moscote, pois a pequena Remédios tinha chegado à puberdade antes de superar os hábitos da infância. Apesar de sua mãe ter dado todas as instruções sobre as mudanças da adolescência, numa tarde de fevereiro, irrompeu aos gritos na sala onde as irmãs conversavam com Aureliano, e mostrou-lhes a calcinha besuntada de uma achocolatada. A boda foi marcada para dali um mês. Mal houve tempo de ensiná-la a se lavar e se vestir sozinha, e a compreender dos assuntos elementares de um lar. Foi posta a urinar em tijolos quentes, para corrigir seu hábito de molhar a cama. Deu trabalho convencê-la da inviolabilidade do segredo conjugal, porque Remédios estava tão atarantada e ao mesmo tempo tão maravilhada com a revelação que queria comentar com todo mundo os pormenores da noite de núpcias. Foi um esforço exaustivo, mas na data prevista para a cerimônia a menina estava tão adestrada nas coisas do mundo como qualquer das suas irmãs.

O Sr. Apolinar Moscote levou-a pelo braço na rua adornada com flores e guirlandas, entre o estampido dos rojões e a música de várias bandas, e ela acenava com a mão e agradecia com um sorriso aos que lhe desejavam boa sorte das janelas. (90)

......

Morte da Remédios

Um obstáculo maior, tão insuperável como imprevisto, forçou-a a um novo e indefinido adiamento. Uma semana antes da data marcada para a boda, a pequena Remédios despertou à meia-noite, empapada num caldo quente que explodiu em suas entranhas com uma espécie de arroto dilacerante, e morreu três dias depois, envenenada pelo próprio sangue e com um par de gêmeos atravessados no ventre. (97)

......

Rebeca e José Arcádio

Uma tarde, quando todos faziam a sesta, não resistiu mais e foi ao quarto dele (José Arcádio). Encontrou-o de cuecas, acordado, estendido na rede que havia pendurado nas vigas do teto com cabos de amarrar barcos. Impressionou-se tanto com sua nudez coberta de traços e rabiscos que sentiu impulso de retroceder. “Perdão”, se desculpou. “Não sabia você estava aqui.” Mas apagou a voz para não acordar ninguém.

“Vem cá”, disse ele.

Rebeca obedeceu. Parou ao lado da rede, suando gelo, sentindo que se formavam nós em suas tripas enquanto José Arcádio acariciava seus tornozelos com a ponta dos dedos, e depois as panturrilhas em seguida as coxas, murmurando: “Ai, maninha; ai maninha.”

Ela teve de fazer um esforço sobrenatural para não morrer quando uma potência ciclônica, assombrosamente calibrada levantou-a pela cintura e despojou de sua intimidade com três movimentos de mão, e esquartejou-a como a um passarinho. Conseguiu dar graças a Deus por ter nascido, antes de perder a consciência por causa do prazer inconcebível daquela dor insuportável, chapinhando no pântano fumegante da rede que absorveu como um mata-borrão a explosão do seu sangue.

Três dias depois, se casaram na missa das cinco. José Arcádio havia ido, no dia anterior, até a loja de Pietro Crespi.

Encontrou-o dando uma aula de cítara e falou com ele ali para um particular. “Vou me casar com Rebeca”, disse. Pietro Crespi ficou pálido, entregou a citara a um dos discípulos e deu a aula por finda. Quando ficaram sozinhos no salão abarrotado de instrumentos musicais e brinquedos de corda, Pietro Crespi disse:

— Ela é sua irmã.

— Não importa — respondeu José Arcádio.

Pietro Crespi enxugou a fronte com um lenço impregnado de alfazema. (103)

......

6.  Profundo silêncio com perfume de flores pisoteadas, p.114

O Coronel Aureliano Buendía promoveu trinta e duas rebeliões armadas e perdeu todas. Teve dezessete filhos varões de dezessete mulheres diferentes, que foram exterminados um atrás do outro numa mesma noite, antes que o mais velho completasse trinta e cinco anos. Escapou de quatorze atentados, setenta e três emboscadas e de um pelotão de fuzilamento. Sobreviveu a uma dose de estricnina no café que teria sido suficiente para matar um cavalo. Recusou a Ordem do Mérito outorgada pelo presidente da república. (114)

7.  Amaranta havia consagrada sua viuvez de virgem, p.132

Na terça-feira, às cinco da madrugada, José Arcádio tinha tomado café e soltado os cachorros, quando Rebeca fechou a janela e se agarrou na cabeceira da cama para não cair. “Estão trazendo ele”, suspirou. “Como está bonito.” José Arcádio foi até a janela, e o viu, trêmulo na claridade do alvorecer, com umas calças que tinham sido dele na juventude. Já estava de costas para o muro e tinha as mãos apoiadas na cintura porque os nós ardentes das axilas o impediam de abaixar os braços. “Tanto se foder”, murmurava o Coronel Aureliano Buendía. “Tanto se foder para acabar morto por seis maricas, e sem poder fazer nada.” Repetia isso com tanta raiva que quase parecia fervor, e o Capitão Roque Carnicero se comoveu porque achou que ele estava rezando. Quando o pelotão apontou, a raiva se tinha materializado numa substância viscosa e amarga que adormeceu a língua e obrigou-o a fechar os olhos.

Então desapareceu o resplendor de alumínio do amanhecer, e tornou a ver-se a si mesmo, muito menino, com calças curtas e um laço no pescoço, e viu seu pai numa tarde esplêndida conduzindo-o até o interior da tenda, e viu o gelo.

Quando ouviu o grito, achou que era a ordem final do pelotão. Abriu os olhos com uma curiosidade de calafrio, esperando enfrentar a trajetória incandescente das balas, mas só encontrou o Capitão Roque Carnicero com as mãos para o alto, e José Arcádio atravessando a rua com uma carabina pavorosa pronta para disparar.

— Não atire — disse o capitão a José Arcádio. — O senhor vem a mandado pela Providência Divina.

Ali começou outra guerra. O Capitão Roque Carnicero e seus seis homens foram com o Coronel Aureliano Buendia libertar o general revolucionário Victorio Medina, condenado à morte em Riohacha. (139 e 140)

......

[Espelhos paralelos] Quando estava sozinho, José Arcádio Buendia se consolava com o sonho dos quartos infinitos.

Sonhava que se levantava da cama, abria a porta e passava para outro quarto igual, com a mesma cama de cabeceira de ferro batido, a mesma poltrona de vime e o mesmo quadrinho da Virgem dos Remédios na parede dos fundos.

Desse quarto passava para outro exatamente igual, cuja porta abria para passar a outro exatamente igual, e depois a outro exatamente igual, até o infinito. Gostava de ir de quarto em quarto, como numa varanda de espelhos paralelos, até que Prudencio Aguilar lhe tocava o ombro. (150 e 151)

......

O morte do rei

— Vim ao funeral do rei. (de Cataure, o irmão de Visitación)

Então entraram no quarto de José Arcádio Buendía, o sacudiram com todas as forças, gritaram em seu ouvido, puseram um espelho diante de suas narinas, mas não conseguiram despertá-lo.

Pouco depois, quando o carpinteiro tomava as medidas para o ataúde, viram através da janela que estava caindo uma garoa de minúsculas flores amarelas. Caíram a noite inteira sobre o povoado, numa tempestade silenciosa, e cobriram os telhados e tamparam as portas, e sufocaram os animais que dormiam na intempérie.

Tantas flores caíram do céu, que as ruas amanheceram atapetadas por uma colcha compacta, e foi preciso abri-las de novo com pás e ancinhos para que o cortejo pudesse passar. (151)

......

De repente, quando Úrsula e Amaranta já haviam superposto um novo luto aos anteriores, chegou uma notícia insólita. O Coronel Aureliano Buendía estava vivo, mas aparentemente havia desistido de fustigar o governo do seu país, e tinha se somado ao federalismo triunfante em outras repúblicas do Caribe. (156)

......

Apesar do tempo, dos lutos superpostos e das aflições acumuladas, Úrsula resistia a envelhecer. (158)

......

Aureliano José

Assim padeceu o exílio, buscando a maneira de matá-la (Amaranta) com a sua própria morte, até que ouviu alguém contar a velha história do homem que se casou com uma tia que, além do mais, era sua prima, e cujo filho acabou sendo avô de si mesmo.

— Então a gente pode casar com a própria tia? — perguntou, assombrado.

— Não só pode — respondeu um soldado — como estamos fazendo esta guerra contra os padres para que a gente possa se casar até com a própria mãe. (159 e 160)


8.  O abismo da grandeza, p.172

   Naquela noite, no jantar, o suposto Aureliano Segundo despedaçou o pão com a mão direita e tomou a sopa com a esquerda. Seu irmão gêmeo, o suposto José Arcádio Segundo, despedaçou o pão com a mão esquerda e tomou a sopa com a direita. Era tão precisa a coordenação dos seus movimentos que não pareciam dois irmãos sentados um em frente ao outro, mas sim um artifício de espelhos. (103)

.....

— Mataram Aureliano! — exclamou.

Olhou para o quintal, obedecendo a um costume da sua solidão, e viu José Arcadio Buendía, ensopado, triste de chuva e muito mais velho do que quando morrera.

“Mataram Aureliano à traição” - especificou Úrsula - e ninguém fez a caridade de lhe fechar os olhos dele.” (189)

9.  Comia grãos de arroz que pegava com alfinete,  p.193

“É melhor você levar estes animais daqui”, ordenou-lhe Úrsula na primeira vez em que o viu entrar com os seus finos animais de briga. “Os galos já trouxeram demasiadas amarguras a esta casa para que você agora venha você trazendo outras.” José Arcádio Segundo levou os galos sem discutir, mas continuou a criando-os na casa de Pilar Ternera, sua avó, que pôs à sua disposição tudo que fazia falta, em troca de tê-lo em casa. (198)

......

— De acordo — disse Úrsula — mas com uma condição: eu me encarrego de criá-lo (filho de Aureliano Segundo). Embora fosse centenária e estivesse a ponto de ficar cega por causa da catarata, conservava intactos o dinamismo físico, a integridade de caráter e o equilíbrio mental.

Ninguém melhor do que ela para formar o homem virtuoso que haveria de restaurar o prestígio da família, um homem que nunca houvesse ouvido falar da guerra, dos galos de briga, das mulheres de vida fácil e dos empreendimentos delirantes, quatro calamidades que, pensava Úrsula, haviam determinado a decadência de sua estirpe. “Este será padre”, prometeu solenemente. “E se Deus me der vida haverá de chegar a Papa.” (201)

Taciturno, silencioso, insensível ao novo sopro de vitalidade que estremecia a casa, o coronel Aureliano Buendía quase conseguiu compreender que o segredo de uma boa velhice não é mais que um pacto honrado com a solidão. (211)

Alguém se atreveu, certa vez, a perturbar sua solidão.

    Como vai coronel — perguntou ao passar.

    Aqui — respondeu ele, — Esperando meu enterro passar. (212)


10.  O trem amarelo das incertezas, alegrias, mudanças e calamidades, p. 214

Úrsula, porém, que havia sofrido um processo contrário ao de Amaranta, evocou Rebeca com uma recordação limpa de impurezas, pois a imagem da pobre criatura que dava pena e que havia sido levada para casa com embornal com os ossos dos pais prevaleceu sobre a ofensa que a tornou indigna de continuar vinculada ao tronco familiar. Aureliano Segundo resolveu que era preciso leva-la para casa e protegê-la, mas o seus boms propósitos foram frustrado pela inquebrantável intransigência de Rebeca, que tinha precisado de muitos anos de sofrimento e miséria para conquistar os privilégios da solidão e não estava disposta a renunciar a eles em troca de uma velhice perturbada pelos falsos encantos da misericórdia. (231)

......

 

Mas quando todos se restabeleceram do desconcerto dos apitos uivantes e dos gigantescos suspiros ofegantes os habitantes saíram às ruas e viram Aureliano Triste na locomotiva, acenando com a mão, e viram, enfeitiçados o trem adornado de flores que chegava com oito meses de atraso. O inocente trem amarelo que tantas incertezas e evidências, e tantas alegrias e desventuras, e tantas mudanças, calamidades e nostalgias haveria de trazer para Macondo. (233 e 234)


11. Flutuava um insuportável cheiro de recordações apodrecidas,  p.235

Para os forasteiros que chegavam sem amor, converteram a rua das carinhosas matronas da França num povoado mais extenso que o outro e, numa quarta-feira de glória, levaram um trem carregado de putas inverossímeis, fêmeas babilônicas adestradas em recursos imemoriais e providas de todo tipo de unguentos e dispositivos para estimular os inermes, avivar os tímidos, saciar os vorazes, exaltar os modestos, enquadrar os múltiplos e corrigir os solitários. (239)

......

 

Remédios, a Bela, foi a única que permaneceu imune à peste da banana. Empacou numa adolescência magnífica, cada vez mais impermeável aos formalismos, mais indiferente à malícia, e à suspicácia, feliz num mundo próprio de realidades singelas. Não entendia por que as mulheres complicavam a vida com espartilhos e anáguas de balão, e costurou para si mesma uma batina de estopa que simplesmente metia pela cabeça e resolvia sem mais delongas o problema de se vestir, sem a impressão de estar nua, o que, de acordo com o que ela entendia das coisas, era a única forma decente de ficar em casa. (241 e 242)

......

— Você está se sentindo mal? — perguntou.

Remédios, a Bela, que tinha agarrado o lençol pela outra ponta, teve um sorriso de lástima.

— Ao contrário — disse — nunca me senti melhor.

Acabou de falar e Fernanda sentiu que um delicado vento de luz lhe arrancou os lençóis de suas mãos e os estendeu em toda sua amplitude. Amaranta sentiu um tremor misterioso nas rendas das suas anáguas e tratou de se agarrar no lençol para não cair, no mesmo instante em que Remédios, a Bela, começava a se elevar. Úrsula, já quase cega, foi a única que teve serenidade para identificar a natureza daquele vento irreparável, e deixou os lençóis à mercê da luz, vendo Remédios, a Bela, que lhe dizia adeus com a mão, entre o deslumbrante bater de asas dos lençóis que subiam com ela, que abandonavam com ela o ar dos besouros e das dálias, e passavam com ela através do ar onde as quatro da tarde terminavam, e se perderam com ela para sempre nos altos ares onde não podiam alcança-la nem os mais altos pássaros da memória. (248 249)

12.  Úrsula: a impenetrável solidão da decrepitude,  p.256

Não disse nada a ninguém, pois teria sido reconhecer em público sua inutilidade. Empenhou-se num silencioso aprendizado da distância das coisas e das vozes das pessoas, para continuar vendo com a memória quando as sombras da catarata já não permitissem ver com os olhos. Mais tarde haveria de descobrir o auxílio imprevisto dos cheiros, que se definiram nas trevas com uma força muito mais convincente do que os volumes e a cor e a salvaram definitivamente da vergonha da renúncia. Na escuridão do quarto, conseguia passar a linha na agulha e arrematar uma casa de botão, e sabia quando o leite estava a ponto de ferver. Conheceu com tanta segurança o lugar onde ficava cada coisa, que ela mesma às vezes se esquecia que estava cega. (257 e 258)

.....

Quando Fernanda caiu em si era uma viúva cujo marido (Aureliano Segundo) ainda não tinha morrido e era tarde demais para que as coisas voltassem ao estado anterior. (264).

13. Compreensão sem limite com a solidão, p.279

Daria até para dizer que na cansada mansão dos Buendía havia paz e felicidade rotineira para muitotempo, se a intempestiva morte de Amaranta não tivesse promovido um novo escândalo. Foium acontecimento inesperado. Embora estivesse velha e afastada de todos, ainda mostrava firme e esguia, com a saúde de pedra que sempre teve. Ninguém soube de seus pensamentos desde a tarde em que rejeitou definitivamente o Coronel Gerineldo Márquez e se trancou para chorar. Quando saiu, tinha esgotado todas as suas lágrimas. Não foi vista chorando com a subida de Remédios, a Bela, aos céus, nem com o extermínio dos Aurelianos, nem com a morte do coronel Aureliano Buendía, que era a pessoa que mais tinha amado nesse mundo, embora só tenha podido demonstrar isso quando acharam seu cadáver debaixo da castanheira. (286)

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Fernanda se escandalizava com o fato de ela (Amaranta) não entender as relações do catolicismo com a vida, mas só suas relações com a morte, como se não fosse uma religião mas um prospecto de convencionalismos funerários. (286 e 287)

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Então Amaranta se deitou, e obrigou Úrsula a dar testemunho público da sua virgindade.

— Que ninguém se iluda — gritou, para que Fernanda ouvisse. — Amaranta Buendía vai-se embora deste mundo do mesmo jeito que veio. (292)

14. Um anarquista na família,  p.303

Meme tomou sua mão e se deixou levar. A última vez em que Fernanda a viu, tratanto de igualar seu passo ao da noviça, acabava de fechar atrás dela a tenebrosa grade de ferro da clausura. Ainda pensava em Mauricio Babilonia, em seu cheiro de óleo e no sua nuvem de borboletas andarilhas, e continuaria pensando nele todos os dias de sua vida, até a remota madrugada de outono em que morreria de velhice, com o nome trocado e sem jamais ter dito uma só palavra, num tenebroso hospital de Cracóvia. (307)

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Fernanda regressou a Macondo num trem protegido por guardas armados. Durante a viagem notou a tensão dos passageiros, o aparato militar nos povoados da linha e o ar rarefeito pela certeza de que alguma coisa de grave ia acontecer, mas careceu de informação até que chegaram a Macondo e lhe contaram que José Arcadio Segundo estava incitando os trabalhadores da companhia bananeira a fazerem greve. “Era só o que faltava”, disse Fernanda a si própria. “Um anarquista na família.” A greve explodiu duas semanas depois e não teve as consequências dramáticas que se temiam. (307)

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Foi tão tensa a atmosfera dos meses seguintes que até Úrsula percebeu-a no seu rincão de trevas e teve a impressão de estar vivendo de novo os tempos infelizes em que seu filho Aureliano carregava no bolso as pílulas homeopáticas da subversão. (308)

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(...) José Arcádio Segundo chegou à conclusão de que o coronel Aureliano Buendía não tinha sido mais do que um farsante ou um imbecil. Não entendia que tivesse precisado de tantas palavras para explicar o que se sentia na guerra, se uma só uma palavra bastava: medo. (323)

15. Invulneráveis ao tempo e ao desastre,  p.325

O diluvio durante quatro anos, onze meses e dois dias

[O pós diluvio] Da antiga cidade cercada só restavam os escombros. As casas de madeira, as varandas frescas onde transcorriam as serenas tardes de baralho pareciam arrasadas por uma antecipação do vento profético que anos depois haveria de apagar Macondo da face da terra. (341)

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A Rua dos Turcos era outra vez a de antes, a dos tempos em que os árabes de pantufas e argolas nas orelhas, que percorriam o mundo trocando araras por bugigangas, acharam em Macondo um bom remanso para descansar da sua milenar condição de andarilhos. Do outro lado da chuva, a mercadoria dos bazares estava caindo aos pedaços, os sacos de gêneros alimentícios abertos na porta estavam cobertos de musgo, os balcões carcomidos pelo cupim e as paredes carcomidas pela umidade, mas os árabes da terceira geração estavam sentados no mesmo lugar e com a mesma atitude de seus pais e avós, taciturnos, impávidos, invulneráveis ao tempo e ao desastre, tão vivos ou tão mortos como estiveram depois da peste da insônia e das trinta e duas guerras do coronel Aureliano Buendía. (341 e 342)

16. A morte de Úrsula, p.344

Úrsula teve de fazer um grande esforço para cumprir a promessa de morrer quando estiasse. (...) O ânimo de seu coração invencível a orientava nas trevas. (344)

 

— Coitada da tataravozinha — disse Amaranta Úrsula— morreu de velhice.

Úrsula se sobressaltou.

— Estou viva! — disse.

— Pois é — disse Amaranta Úrsula, reprimindo o riso — nem sequer respira mais.

— Eu estou falando! — gritou Úrsula.

— Nem fala mais — disse Aureliano. — Morreu feito um grilinho.

Úrsula então se rendeu às evidencias. “Santo Deus”, exclamou em voz baixa. “Quer dizer que isto é a morte.” (353)

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Santa Sofia de la Piedad teve certeza de que a encontraria morta de um momento para o outro, porque naqueles dias observava por um certo estouvamento da natureza: as rosas cheiravam a quenopódio, deixou cair uma cuia de grãos-de-bico no chão e os grãos ficaram numa ordem geométrica perfeita, em forma de estrela-do-mar, e uma noite viu pelo no céu uma fila de luminosos discos alaranjados. Amanheceu morta na quinta-feira santa. (353 e 354)

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Na última vez em que tinham ajudado Úrsula a fazer as contas de sua idade, nos tempos da companhia bananeira, calcularam entre os cento e quinze e cento e vinte e dois anos. Foi enterrada numa caixinha pouco maior que a cestinha em que Aureliano tinha sido levado, e muito pouca gente assistiu ao enterro, em parte porque não eram muitos os que se lembravam dela, e em parte porque naquele meio-dia fez tanto calor que os pássaros desorientados se esfacelavam feito perdigotos contra as paredes e rompiam as telas metálicas das janelas para morrer nos quartos. (354)

17. Recapitulação de infortúnios, p.366

Seu (Fernanda) coração de cinza amassada, que tinha resistido sem fraquejar aos golpes certeiros da realidade cotidiana, desmoronou nos primeiros embates da nostalgia. A necessidade de sentir-se triste ia se transformando num vício conforme os anos a devastavam. Humanizou-se na solidão. (374 e 375)

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As roupas em farrapos, os sapatos rotos, a velha mochila que levava no ombro como bagagem única davam a ele o aspecto de um mendigo, mas sua conduta tinha uma dignidade que estava em franca contradição com sua aparência. Bastava vê-lo uma vez, mesmo na penumbra da sala, para perceber que a força secreta que lhe permitia viver não era instinto de conservação, mas costume do medo. Era Aureliano Amador, o único sobrevivente dos dezessete filhos do coronel Aureliano Buendía, que ia procurando trégua em sua longa e atribulada existência de fugitivo. (384 e 385)

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Identificou-se (Aureliano Amador), suplicou que lhe dessem refúgio naquela casa que em suas noites de pária havia evocado último reduto de segurança que lhe restava na vida. Mas José Arcádio e Aureliano não se lembravam dele. Acreditando que fosse um vagabundo, o puseram na rua aos empurrões. Ambos viram então, da porta, o final de um drama que havia começado antes que José Arcádio tivesse uso da razão. Dois agentes da polícia que tinham perseguido Aureliano Amador durante anos, que o tinham rastreado feito cão de caça por meio mundo, surgiram do meio das amendoeiras da calçado oposta e dispararam dois tiros de máuser que penetraram limpamente pela cruz de cinza. (385)

18. Atocaiar amores extraviados, p.387

Amaranta Úrsula voltou com os primeiros anjos de dezembro, empurrada por brisas de veleiro, trazendo o esposo amarrado pelo pescoço com um cordel de seda. Apareceu sem aviso, com um vestido cor de marfim, um fio de pérolas que lhe dava quase nos joelhos, anéis de esmeraldas e topázios, e os cabelos redondos e liso, arrematados em nas orelhas, como asas de andorinhas. O homem com quem havia se casado seis meses antes era um flamengo maduro, esbelto, com ares de navegante. Não precisou nada além de empurrar a porta da sala para compreender que a sua ausência tinha sido mais prolongada e demolidora do que ela supunha. (387)

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Nigromanta levou-o para o seu quarto iluminado com abajures de mentira, para a sua cama de campanha com a lona impregnada de maus amores, e para o seu corpo de cadela brava, empedernida, desalmada, que se preparou para despachá-lo como se fosse um menino assustado, e de repente se encontrou com um homem cujo tremendo poder exigiu das suas entranhas um movimento de reacomodação sísmica. Fizeram-se amantes.

Aureliano ocupava as manhãs decifrando pergaminhos e, na hora da sesta, ia até dormitório soporífero onde Nigromanta esperava por ele para lhe ensinar-lhe primeiro a fazer como fazem as minhocas, depos os caracóis e por último os caranguejos, até a hora em que precisava abandoná-lo para tocaiar amores extraviados. (396 e 397)

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Entretanto, ela (Amaranta Úrsula) no entanto debochou da sua suspeita, sem vislumbrar sequer a dilacerante carga de amor, de incerteza e de ciúmes que havia dentro daquilo tudo. Não tinha lhe ocorrido pensar que sucitava em Aureliano algo mais do que um afeto fraternal, até que cortou o dedo tratando de destampar uma lata de pêssegos, e ele se precipitou a chupar o sangue com uma avidez e uma devoção que a deixaram arrepiada.

— Aureliano! — disse ela, inquieta. — Você é malicioso demais para ser um bom vampiro. (404)


19. Um passado cujo aniquilamento não se consumava, p.409


Pilar Ternera morreu na cadeira de balanço, numa noite de festa, vigiando a entrada do seu paraíso. De acordo com sua última vontade, foi enterrada sem ataúde, sentada na cadeira, que oito homens baixaram com cordas num buraco enorme cavado no centro da pista de dança. As mulatas vestidas de preto, pálidas de pranto, improvisavam ofícios de trevas enquanto tiravam os brincos, os broches e os anéis, que iam jogando na tumba, antes que fosse selada com uma lápide sem nome nem datas e que pusessem em cima um promontório de camélias amazônicas. (409)

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Tendo aprendido catalão para traduzi-los, Alfonso meteu um rolo de páginas nos bolsos, que andavam sempre cheios de recortes de jornal e manuais de ofícios estranhos, e numa noite os perdeu na casa das mocinhas que se deitavam com eles por fome. Quando o avô sábio ficou sabendo, em vez de fazer o tão temido escândalo comentou, morrendo de rir, que aquele era o destino natural da literatura. (410)

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Naquela Macondo esquecido até pelos pássaros, onde a poeira e o calor tinham se tornado tão tenazes que respirar dava muito trabalho, reclusos pela solidão e pelo amor e pela solidão do amor numa casa onde era quase impossível dormir por causa do estrondo das formigas ruivas, Aureliano e Amaranta Úrsula eram os únicos seres felizes, e os mais felizes sobre a terra. (414)

 

Mas quando se viram sozinhos (Aureliano e Amaranta Úrsula) na casa sucumbiram no delírio dos amores atrasados. (...) Perderam o sentido da realidade, a noção do tempo, o ritmo dos hábitos cotidianos. (415)

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— E um verdadeiro antropófago — disse. — Vai se chamar Rodrigo.

— Não — o marido contradisse. — Vai se chamar Aureliano ganhará trinta e duas guerras.

Depois de cortar o umbigo, a parteira se pôs a limpar com um pedaço de pano o unguento azul que cobria o seu corpo, iluminada por Aureliano com uma lâmpada. Só quando o viraram de barriga para baixo perceberam que ele tinha algo mais do que o resto dos homens e se inclinaram para examiná-lo. Era um rabo de porco. (422)

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(...) Amaranta Úrsula era insensível a qualquer artifício que não fosse o amor. À tarde, depois de vinte e quatro horas de desespero, perceberam que ela tinha morrido (...) (422 e 423)

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Porém, antes de chegar ao verso final (Aureliano) já havia compreendido que não sairia jamais daquele quarto, pois estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no instante em que Aureliano Babilônia acabasse de decifrar os pergaminhos, e que tudo que estava escrito neles era irrepetível desde sempre, e para sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda chance sobre a terra. (427)


Notas

1. Ernest Hemingway: “É isso que tentamos fazer ao escrever, e isso e isso, e os bosques, e as rochas que temos que escalar” explicou. “Cézanne é o meu pintor preferido, depois dos mestres primitivos. (...)”  In Sempre repórter, Lillian Ross, tradução: Jayme da Costa Pinto, p.110, Carambaia, 2024.


2. Resenha: "Cem Anos de Solidão", de Gabriel Garcia Márquez por Amanda Barreiro

3. Cem anos desolidão 19/04/2024, A terra é redonda

4. Cem anos de solidão, Revista Jornalismo & Ficção

5. Cem Anos de Solidão – série

O tempo parou e a eternidade começou. Mas o homem não nasceu para ser eterno. Nascemos para morrer. Para nos tornarmos matéria orgânica. Para nos tornarmos memória e esquecimento no coração dos homens. (S01/E04)

 

 






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