Primeiro brasileiro a vencer o prestigiado National Book Award, autor de “A Palavra que Resta” reforça o poder de comunicação da literatura
Leonardo Neiva, 28 de Fevereiro de 2024
Quando recebeu a notícia de que seu romance de estreia, “A Palavra que Resta” (Companhia das Letras, 2021), era finalista na categoria de melhor livro traduzido do National Book Award — uma das mais prestigiosas premiações literárias dos EUA —, o escritor cearense Stênio Gardel, 44, tomou um susto. “Não sabia nem que meu editor tinha inscrito o livro no prêmio”, conta. E a emoção, é claro, foi ainda maior com o anúncio da vitória, em novembro. Ele e a tradutora Bruna Dantas Lobato foram os primeiros brasileiros a faturar a premiação, que existe há mais de 70 anos.
Em seu discurso na cerimônia — que aconteceu em Nova York, com a presença de celebridades como Oprah Winfrey —, o escritor dedicou a vitória à mãe, que morreu pouco antes do lançamento do livro no Brasil. “Ela não está mais entre nós, mas ela sempre acreditou em mim, e eu não estaria aqui sem ela”, disse na ocasião.
Foi a mãe, aliás, que lhe deu na juventude sua primeira e única máquina de escrever. “Pedi com a ideia de que precisava de uma máquina de escrever para ser escritor”, revela Gardel. Ele nunca aprendeu a datilografar, mas guarda o presente até hoje. E, apesar do fascínio que tem pela literatura desde que leu, ainda jovem, “O Cão dos Baskerville”, quando Gardel deixou sua cidade natal de Limoeiro do Norte, no interior do Ceará, não foi para cursar letras, mas sim engenharia civil em Fortaleza.
Servidor do Tribunal Regional Eleitoral do estado há quase 30 anos, hoje ele define a literatura como uma segunda profissão. Foi só em 2016, durante um curso da escritora Socorro Acioli — autora de “Oração para Desaparecer” (Companhia das Letras, 2023), que fez sucesso na última Flip —, que decidiu botar no papel seu primeiro romance: a história de um idoso homossexual e analfabeto, que guarda consigo a carta de um grande amor da juventude que ele nunca pôde ler. “A Palavra que Resta” também foi finalista do Jabuti e do prêmio São Paulo.
Hoje, Gardel também prepara seu primeiro livro infantil, um cordel com ilustrações do artista Nelson Cruz, que deve sair no segundo semestre de 2024 pela Companhia das Letrinhas. Em conversa com a Gama, ele fala sobre a escrita como profissão no Brasil e o poder de comunicação da literatura.
"Uma coisa importante que aprendi: contar a história que só nós podemos contar. Perceber isso foi libertador"
G |Quais os seus maiores aprendizados nesse período como escritor? Você descobriu uma missão na profissão?
Stênio Gardel | Vou dizer uma coisa que aprendi com a Socorro [Acioli], que para mim foi importante em vários sentidos. Ela fala para contarmos a história que só nós podemos contar. Perceber isso foi libertador. Para mim, significa que aquilo que eu escrever vai ter a minha marca, minhas lembranças, meus sentimentos e meu corpo. Nenhuma pessoa na face da Terra é igual a mim. Meu texto vai ter essas características. Mas também é libertador não precisar me preocupar com comparações. Se José Saramago já escreveu de tudo, eu vou deixar de escrever? Vou escrever o que quero, sinto, o que preciso escrever, do meu jeito. Posso usar Saramago como inspiração, mas não algo que possa me inibir. E não encaro como missão, mas quero contar histórias em que as pessoas saiam da ficção e retornem à sua realidade com uma pequena mudança de olhar, um questionamento que depois provoque alguma coisa.
G |No discurso que fez no prêmio, você agradece à sua família, em especial sua mãe, que te deu bastante força. Quais fatores te moveram a chegar onde está hoje?
SG | Pela literatura, encontro uma forma de falar e chegar até pessoas que nem conheço. Consigo conversar com elas sobre assuntos que não conseguiria de outra forma. Então busco na escrita essa possibilidade de comunicação. Minha mãe sempre acreditou em mim, foi inspiradora pela força que tinha. Eu e meu irmão perdemos o pai muito cedo. Eu tinha seis anos e ele 12. Minha mãe era dona de casa e trouxe para ela a possibilidade de cuidar da gente. Fez isso da melhor forma, era a melhor mãe. Infelizmente, ela não pôde ver meu livro publicado, faleceu três meses antes, mas me acompanhou e sempre acreditou. Guardo comigo uma prova da fé dela: uma máquina de escrever portátil. Pedi com a ideia de que precisava de uma máquina de escrever para ser escritor, e ela me deu. Nunca aprendi a datilografar, mas guardo até hoje, assim como a lembrança de mamãe sempre comigo. Por isso ela tinha que estar lá, nesse discurso, ao meu lado.
G |Chegou a pensar em desistir do projeto do livro em algum momento?
SG | Em 2016, quando tomei a decisão de contar a história do Raimundo, eu já tinha algumas coisas rascunhadas. Trechos esparsos, começos de capítulos… Depois do primeiro módulo do ateliê da Socorro Acioli, fui o caminho todo para casa pensando: é agora o momento. Ela daria oportunidade aos alunos de desenvolver um projeto mais longo. Quem escrevesse, teria um acompanhamento dela. Além disso, estava junto de outras pessoas com a mesma vontade de escrever que eu. A gente compartilhava ideias, textos. Foi uma conjuntura do universo. Ou eu escrevia naquela hora ou nunca mais. Em nenhum momento, depois que fiz o planejamento e decidi escrever, pensei em parar. O livro publicado é quase em sua totalidade o que tinha imaginado, só o final passou por algumas mudanças. Também inseri um capítulo por sugestão da Socorro, que achou a carta um personagem tão forte no livro que deveria haver um capítulo dedicado a ela.
"Um autor nordestino gay conta a história de um personagem gay analfabeto. Ela foi publicada numa grande editora, está no Brasil inteiro e chegando a outros países."
G |Como é o seu processo de escrita?
SG | Para esse livro, tirei um período de férias do trabalho. Escrevia todos os dias pela manhã bem cedo. Às vezes levantava de madrugada e, antes de fazer qualquer coisa, sentava para escrever. Já tinha todos os capítulos visualizados, aí escolhia um e escrevia. Funcionou muito bem. Nesse mês de maio de 2017, fiz boa parte do livro e fui escrevendo o restante até concluir em agosto.
G |Quais os principais desafios da literatura brasileira hoje? Como você lida com eles?
SG | Um desafio é permitir cada vez mais que a gente tenha esse espaço de vozes, autores, temas e histórias que até algum tempo atrás não eram contadas. Posso partir do meu próprio exemplo, como um autor nordestino gay contando a história de um personagem gay analfabeto. Ela foi publicada numa grande editora, está no Brasil inteiro e chegando a outros países. Temos também livros e autores escrevendo sobre outras perspectivas de raça, etnia, sexo e gênero. Espero que esse seja um movimento em expansão, precisamos de mais histórias nessas direções. O livro tem vendido bem para um autor estreante, e o prêmio ajudou, tanto pela repercussão como pela parte em dinheiro: US$ 5 mil. Acho difícil viver da escrita. Alguns escritores agregam o ensino ou a leitura crítica de originais. São caminhos. Como não faço essas atividades laterais, fica complicado viver só do livro.
G |A leitura fez uma diferença crucial até para a vida do protagonista do livro. O que você diria para alguém que pensa em trilhar um caminho parecido com o seu na literatura?
SG | A primeira coisa é entender o que a pessoa quer, o que vai trazer a realização para ela. Eu queria que meu livro fosse publicado por uma editora. Era uma legitimação de que escrevo literatura. Não sabia se seria uma editora grande ou pequena, mas queria cruzar essa ponte. Então a primeira coisa é pensar sobre seu desejo, a relação com a escrita. Você quer ter um livro publicado, ganhar concursos ou publicar apenas para si? Que cada um procure o caminho que vai trazer a realização como escritor. Pensando no texto e na escrita, recomendo ler. As duas coisas andam muito juntas, tem que ler literatura para escrever literatura. E, por fim, tomar a decisão. A gente fica deixando para depois. Eu passei por isso. Foram mais de 30 anos para publicar meu primeiro livro, desde que tive vontade de escrever. Você vai deixando de lado porque tem faculdade, trabalho, família… Mas, se você realmente quer que a coisa aconteça, precisa trabalhar nela. Precisa se identificar, colocar a mente para pensar na história, sentar na frente do computador ou do papel e escrever.
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