Obra brutal de Richard Serra foi retrato delicado de um mundo em erosão
Artista americano que revolucionou a escultura com obras monumentais morreu nesta terça-feira, em Nova York
Silas Martí, Folha de São Paulo, 27/01/2024
Uma chapa de chumbo despenca do alto, e uma mão tenta agarrar. Às vezes acerta, às vezes erra, num jogo da carne às voltas com o peso do metal e a leveza do ar — no fundo, céu e terra.
Nesse filme da década de 1960, o artista Richard Serra, um dos maiores escultores do século 20, morto aos 85 anos nesta terça-feira em Nova York, já sintetizava sem saber os pilares que moveriam sua obra acachapante ao longo de décadas.
Todos talvez já tenham esquecido aquele simples movimento da mão registrado em celuloide, mas o americano é o homem por trás de obras faraônicas de metal, gigantescas chapas de aço que brotam da terra em sucessão vertiginosa, blocos maciços de matéria em choque com a arquitetura ao redor, arcos metálicos que rasgam a paisagem, labirintos plúmbeos que engolem o espectador.
Se seu trabalho é em nada delicado —e uma de suas obras já chegou a matar uma pessoa esmagada sob seu peso —, ainda é da delicadeza que trata, o mais simples ato de estar no mundo e perceber que habitamos um jogo de planos, o horizonte como definidor máximo da consciência de estarmos vivos na Terra.
Mas a raiz de tudo ainda está nos gestos simples. Suas primeiras esculturas, depois de um início de estudos em pintura e trabalhos realizados na Europa ainda em sua fase de formação que lembravam a arte povera italiana, tinham como diretrizes verbos como rasgar, enrolar, amassar, dobrar, cortar. Essa lista de comandos, escrita a lápis, é também uma obra do artista hoje preservada no acervo do Museu de Arte Moderna de Nova York.
Foi em Manhattan, no final dos anos 1960, que Serra despontou na arte contemporânea, numa mostra organizada na mítica galeria Leo Castelli pelo mítico artista Robert Morris. Um dos nomes que viria a se tornar um mestre do minimalismo e da land art, ele juntava ali figuras como Serra, Bruce Nauman e Eva Hesse.
Mas a turma em torno de Serra logo seria outra, a geração de artistas, quase todos homens, que fez do então bairro industrial do SoHo nova-iorquino o epicentro de uma revolução na escultura. Figuras como Donald Judd, Carl Andre, Dan Flavin, Robert Smithson e Gordon Matta-Clark reinventavam ali a relação do artista com a matéria e desta com o mundo ao redor, cada um a seu modo.
Serra, nascido em San Francisco filho de um espanhol que trabalhava num estaleiro, foi pelo caminho mais bruto. Se antes experimentou com borracha e neon, seu destino parecia talhado em metal, primeiro o chumbo daqueles trabalhos do início até o aço, que se tornaria sua assinatura; primeiro a escala da palma da mão, depois a escala de um arranha-céu.
Numa entrevista da década de 1990, o artista lembra uma memória da infância, a visão de um enorme navio ancorado, um bloco impenetrável de matéria que, ao zarpar, se tornava coisa leve, flutuando na água. "Toda a matéria-prima de que eu precisava está contida na base dessa memória", disse o escultor.
Esse contraste entre peso e leveza, mínimo e máximo, atravessa sua obra, marcada pelo aspecto bruto da matéria sem retoques, a verdade do metal. Mas sua frieza é tão valorizada quanto seu lado terroso, telúrico.
Na superfície, são obras sempre duras, que às vezes poderiam ser um autorretrato, reflexo tanto das linhas fortes de seu rosto quanto de seu discurso sem rodeios. Em entrevistas, suas palavras pareciam nunca se descolar do traço mais evidente da obra à nossa frente.
"O peso é um valor para mim", ele me disse, há cinco anos. "Não é mais convincente do que a leveza, mas tenho mais a dizer sobre o equilíbrio do peso, a concentração do peso, o posicionamento do peso, os efeitos psicológicos do peso, a rotação do peso, a desorientação do peso."
É um pensamento que marcou o modernismo — não espanta que ele tenha sido um estudante atento à obra límpida e seminal do romeno Constantin Brancusi — e foi carregado adiante com ousadia formal por Serra, que ao longo das décadas viu sua obra crescer em escala sem escalas, do mínimo do underground nova-iorquino aos gigantescos labirintos em espiral que ocupam o átrio do Guggenheim de Bilbao, na Espanha, às imensas lâminas de aço em sucessão que cortam o deserto do Qatar e mesmo as chapas metálicas instaladas no pátio do Instituto Moreira Salles, na avenida Paulista.
Se em São Paulo poucos no espaço público veem o trabalho, escondido atrás da torre que o abriga, sua obra já detonou uma briga de uma década em Nova York, que terminou em derrota para o artista.
Sua escultura "Tilted Arc", um arco metálico retorcido de quase 40 metros de comprimento e quatro metros de altura, pôs os frequentadores de uma praça em Manhattan em pé de guerra com o artista na década de 1980. Não gostaram da estrutura maciça que cortava o fluxo da praça, exigindo que fosse contornada pelos passantes, além de não ter um lugar para sentar.
Serra afirmava que suas obras redefiniam o espaço, por isso não podiam ser desatreladas do lugar para onde foram pensadas. Remover o trabalho da praça nova-iorquina, nas palavras dele, era destruir o trabalho —a escultura não existe sem a paisagem que ela corta, dobra, rasga, aquele velho vocabulário.
Sua obra, além dos espaços que atravessa, sempre dividiu opiniões. Detratores apontam a rudeza dos materiais, a arrogância do gesto em grande escala e certa empáfia de se impor sobre o território, pontos mais tarde associados a uma ideia de masculinidade tóxica que envelheceu mal. Seria uma arte de machão, em resumo, que se traduz numa estética rígida, inquebrantável.
Richard Serra foi um artista de seu tempo, uma época de erosão de certezas e da dissolução de cânones. Talvez por isso, para bem ou mal, tenha trabalhado sempre com os materiais mais brutos, resistentes à decomposição da carne.
Richard Serra, um dos grandes nomes da arte contemporânea, morre aos 85 anos
História de admin3, Istoé, 27/03/2024
O escultor americano Richard Serra, um dos principais nomes da arte contemporânea com suas obras monumentais criadas com placas de aço, morreu na terça-feira (26) aos 85 anos. Serra faleceu vítima de pneumonia na terça-feira em sua casa de Long Island, estado de Nova York, informou seu advogado, John Silberman, ao jornal The New York Times.
Suas peças surpreendentemente grandes estão em exposição em todo o mundo, dos mais importantes museus de Paris ao deserto do Catar. Em alguns momentos, as obras enormes e arredondadas, de aspecto minimalista, provocaram polêmica por sua natureza imponente.
Nascido na cidade de San Francisco em 2 de novembro de 1939, com mãe de origem judia russa e pai espanhol, Serra estudou Literatura Inglesa na Universidade da Califórnia, antes de ser admitido em Yale para estudar Artes Plásticas. Graças a uma bolsa de estudos, ele se mudou para Paris, onde passava quase diariamente pelo local de trabalho do escultor romeno Constantin Brancusi no Museu Nacional de Arte Moderna. O então aspirante a pintor decidiu dedicar-se à escultura.
No final dos anos 1960 se mudou para uma Nova York em plena efervescência artística. Para sobreviver, ele criou uma empresa de limpeza de móveis na qual empregou o compositor Philip Glass como assistente.
Em 1967-1968, publicou como manifesto uma lista de 84 verbos (“envolver”, “apoiar”, “cortar”, “dobrar”…) e 24 elementos de contexto (“gravidade”, “entropia”, “natureza”…), o que inclui todos os processos à sua disposição para a realização de uma obra.
Em seus primeiros trabalhos, utilizou borracha, fibra de vidro, látex e neon. Também projetou chumbo derretido entre muros e pisos, como em “Splash” (1968-1970). No final da mesma década, ele criou uma obra fundadora de seu estilo, “One ton prop (House of cards)”, quatro placas quadradas de chumbo de 122 cm que permanecem equilibradas com o próprio peso, como um castelo de cartas.
A partir dos anos 1970, Serra passou a priorizar as instalações em áreas abertas e o aço Corten. A escolha deste material não foi arbitrária. Ele conhecia perfeitamente suas características e potencial depois de ter trabalhado em uma siderúrgica na juventude.
Serra desenhava esculturas especificamente para os espaços que iriam ocupar e tinha interesse em estudar a interação de suas obras com o meio ambiente. “Certas coisas… ficam gravadas na imaginação e você tem a necessidade de reconciliação com elas”, afirmou Serra em uma entrevista ao apresentador Charlie Rose no início dos anos 2000.
Os jogos de equilíbrio, o peso do aço e a altura das placas criam no espectador uma sensação de insegurança, de pequenez, de vertigem. É uma experiência desestabilizadora e, em alguns momentos, irritante.
Em 1981, sua obra “Tilted arc”, uma gigantesca placa de metal de 3,6 metros de altura e 36,6 metros de comprimento instalada na ‘Federal Plaza’ de Nova York, incomodava tanto as pessoas que precisou ser desmontada oito anos depois, vítima de uma longa batalha judicial.
Uma de suas obras recentes, torres sombrias que parecem emergir da areia no deserto do Catar, está isolada nas dunas, acessível apenas em uma viagem de carro em um ambiente com temperaturas de até 50ºC. “Quando você observa minhas obras, não lembra de nenhum objeto. Fica uma experiência, uma passagem. Experimentar uma das minhas peças é sentir uma noção de tempo, do lugar e reagir a isso. Não é lembrar de um objeto porque não há objeto para reter”, explicou o artista em 2004.
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