domingo, 31 de março de 2024

A ditadura e a PM

Ditadura não é coisa do passado, Lula, basta olhar PMs. Presidente, expurgar o legado do golpe de 64 das polícias é indispensável para 'tocar o Brasil para a frente' 

Adilson Paes de Souza, FSP, 30/03/2024

[RESUMO] Políticas atuais de segurança pública, orientadas por lógica de guerra contra parte da população e aposta na letalidade policial como medida de proteção social, atualizam os métodos empregados pelo regime militar. Autor sustenta que a situação demanda enfrentar as heranças da ditadura em vez de tratar o golpe de 1964 como parte da história que não deve ser remoída, como Lula faz.

Não tenho recordação da ditadura na minha infância, sensação que causa hoje em mim estranheza. Lembro, vagamente, as propagandas ufanistas sobre o país que deu certo, o milagre econômico, o progresso e o desenvolvimento de toda a nação.

Presidente, eu nasci em julho de 1964, três meses depois do golpe de Estado e da instauração da ditadura no Brasil. Diferente do senhor, que tinha 19 anos de idade, não lembro, obviamente, o que aconteceu. Acho que o senhor se lembra, presidente, de um programa de TV chamado Amaral Netto, o Repórter, ocasião em que os supostos êxitos do governo militar eram apresentados e exibidos à exaustão: um Brasil que deu certo graças aos militares — aliás, fala constante de pessoas que fazem, hoje em dia, apologia do período ditatorial.

Não era sobre um Brasil onde pessoas eram torturadas e desapareciam. Não era sobre um Brasil onde a miséria e a hiperinflação reinavam. Está vendo como é importante falar de um passado que insiste em ser negado, presidente?

A vida seguiu adiante. Em 1985, se iniciou o processo de redemocratização do país. Em 5 de outubro de 1988, foi promulgada a Constituição Federal, a nossa Constituição Cidadã, marco do retorno da democracia ao país. É o que dizem. Não foi bem isso, contudo, o que aconteceu.

Ingressei em 1982 no curso de formação de oficiais da Polícia Militar de São Paulo e o concluí em 1984, em plena ditadura. Durante o processo de redemocratização — vale dizer, a Assembleia Constituinte —, pude notar a presença marcante do lobby militar, com o objetivo de barrar mudanças na estrutura das Forças Armadas e das polícias militares no novo texto constitucional.

Naquela ocasião, delegações de oficiais das polícias militares estavam em Brasília o tempo todo e atuavam conjuntamente com as Forças Armadas. O lobby deu certo: os papéis, tanto das Forças Armadas quanto das polícias militares, são os mesmos, na essência, dos que tinham na ditadura. Aliás, Lula, o senhor se tornou recentemente parte de um lobby poderosíssimo em defesa da aprovação da Lei Orgânica das PMs, lei pior que a do regime militar.

Presidente, nada mudou da ditadura para cá em termos de segurança pública. Hoje, temos uma estrutura incompatível com os valores democráticos presentes na nova Constituição —basta olhar a vasta produção de dados estatísticos sobre a letalidade policial.

O Estado brasileiro, por meio das polícias, se manifesta levando medo e desconfiança à sociedade, característica marcante da atuação estatal durante o regime militar. Desde 1988, houve inúmeras operações policiais, em vários estados, com cifras inaceitáveis de pessoas mortas.

Essas operações têm em comum a falta de transparência e a morosidade nas apurações, o discurso de guerra contra inimigos e a aposta na letalidade policial como a única medida para alcançar a paz social. Via de regra, foram objeto de denúncias de graves violações de direitos humanos e de execuções sumárias, tiveram locais de crime violados e não contaram com perícia e relatos de testemunhas adequados. Isso não é nada diferente das operações realizadas contra os ditos subversivos nos anos de chumbo.

Técnicas de tortura e de assassinato de pessoas vistas como inimigas da nação foram, mesmo após 1988, ensinadas para policiais empenhados no que acreditavam ser a defesa da sociedade contra quem queria destrui-la. Isso aconteceu durante o regime militar, sob a instrução de agentes estrangeiros — CIA e OPS (Gabinete de Segurança Pública dos EUA) — em ações contra elementos subversivos, sob a égide da Doutrina de Segurança Nacional.

O emprego desses métodos, no entanto, persiste até hoje no dia a dia de aplicação de uma política de segurança pública militarizada, que se traduz em uma aludida guerra contra os inimigos da sociedade. O que mudou então, Lula? O senhor acredita, sinceramente, que o golpe é coisa do passado?

Até hoje, presidente, policiais acreditam que o assassinato é uma medida eficaz de proteção da sociedade. A morte de pessoas identificadas como inimigos a serem combatidos, marginais, suspeitos etc. é tratada como sinônimo de eficiência estatal e de segurança pública, da mesma forma como ocorria durante o regime militar. Lula, lamento dizer, a ditadura não ficou para trás, ao contrário do que o senhor diz: ela repercute e produz consequências na atualidade.

Exemplo nítido disso é a conduta de militares no governo Bolsonaro e o envolvimento deles na trama golpista agora investigada, em atuação semelhante à ocorrida às vésperas do golpe de 1964 — que, de acordo com suas declarações recentes, ficou para trás. Insisto, presidente, o passado está presente.

Ao dizer que o golpe de 1964 "já faz parte da história", o senhor ignora as centenas de assassinatos e desaparecimentos pelo regime militar (434 pessoas, segundo a Comissão Nacional da Verdade). O senhor ignora o sofrimento de seus parentes, familiares e amigos.

Suas afirmações também minimizam o fato de milhares de pessoas serem executadas todos os anos pelas polícias, hoje ditas democráticas. Seu silêncio, presidente, em relação a determinadas operações policiais que resultam em mortes não deixa de ser estarrecedor.

Por que silenciar em relação ao golpe de 1964 e a atuação das polícias hoje? Por que não recriar a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos?  Por que vetar eventos oficiais sobre os 60 anos do golpe militar em vez de fomentar a memória a respeito da ditadura? Por que tentar apagar o passado?

A razão é o medo? Algum tipo de acordo com quem se opõe à justiça de transição e à punição de responsáveis por crimes durante o regime militar?

Na Argentina e no Chile, por exemplo, militares que torturaram e assassinaram foram punidos. Veja como o cenário institucional é bem diferente nesses países.

Isso faz falta ao Brasil. Expurgar o legado da ditadura militar das Forças Armadas e das polícias militares é indispensável para "tocar este país para a frente" e garantir a preservação da nossa democracia.


quinta-feira, 28 de março de 2024

O golpe meia quatro

Sérgio Augusto: O que você fazia quando deram o golpe de 64?

Não me recordo se naquele fim de semana ‘deu praia’

Por Sérgio Augusto, O Estadão, 24/03/2024

Não me recordo se naquele fim de semana “deu praia”. Na véspera (sexta, 27), fechei a capa do Quarto Caderno do jornal e, embora pudesse ter ido ao recém-inaugurado Zicartola com Sérgio Cabral (pai), preferi visitar a namorada, no Posto 6.

Também poderia ter ido ao cinema, mas ver filmes era o que mais fazia durante a semana, profissionalmente, como um dos críticos de cinema do Correio da Manhã, o benjamin da redação. Já assistira ao filme mais comentado na cidade, Mundo Cão, documentário sensacionalista do italiano Gualtiero Jacopetti, e me guardava para a estreia, três dias depois, de O Repouso do Guerreiro, novo sucesso da dupla Bardot-Vadim. Em 1964, os filmes entravam em cartaz às segundas-feiras.

No sábado 28, Elis Regina mudou-se de Porto Alegre para o Rio, mas só fui saber disso anos mais tarde, no meio de uma conversa vadia em torno desta dúvida palpitante: “O que você fazia quando deram o golpe de 64?”.

19 de março de 1964: Em reação às reformas de base, a "Marcha da Família com Deus pela Liberdade" reúne mais de 500 mil pessoas em São Paulo. No dia 31 de março, o golpe militar começa com o deslocamento das tropas do general Mourão Filho em direção ao Rio de Janeiro. Dois dias depois, João Goulart, deposto, parte para Porto Alegre, e de lá para o exílio no Uruguai. Ranieri Mazili assume a presidência interinamente.

19 de março de 1964: Em reação às reformas de base, a "Marcha da Família com Deus pela Liberdade" reúne mais de 500 mil pessoas em São Paulo. No dia 31 de março, o golpe militar começa com o deslocamento das tropas do general Mourão Filho em direção ao Rio de Janeiro. Dois dias depois, João Goulart, deposto, parte para Porto Alegre, e de lá para o exílio no Uruguai. Ranieri Mazili assume a presidência interinamente. Foto: Fábio Motta/Estadão

Eu, como de hábito e obrigação, escrevia. Fizera, na sexta, um texto sobre um golpe militar – não aqui, pois vidente nunca fui, mas nos EUA. Dali a semanas estrearia o thriller Sete Dias de Maio. Sem qualquer intenção provocativa, foi com aquela “conspiração em Washington” em sua primeira página que o 4.º Caderno do jornal chegou às bancas no domingo de Páscoa.

A conspiração fardada daqui, além de real, transformara a redação numa tensa bolsa de apostas. “Vai ter golpe?” “Quando?” Em polvorosa, a mesma Marinha que, cinco décadas e meia antes, nos proporcionara a Revolta da Chibata e recentemente ostentou em seu passadiço um almirante golpista com nome de editora do século 19, ameaçava, naqueles idos de março, fazer do País um Potemkin tupiniquim.

O Correio da Manhã, legalista, defendera a posse de Jango, três anos antes, mas julgava seu governo sem autoridade e anarquizado. Não faltava na cúpula do jornal quem, lacerdista ou não, conspirasse abertamente pela saída do presidente.

Tarde da noite de segunda-feira, 30, fui, por acaso, um dos primeiros a ler, ainda em prova, o histórico editorial Basta!, no qual o jornal chutou, sem dó, o pau da barraca. “Isso vai dar merda”, comentei com o companheiro mais próximo, que não discordou de mim.

E os primeiros tanques, insurrecionados por um xará do general Mourão, desceram de Juiz de Fora, mesma cidade mineira onde, 54 anos mais tarde, uma canhestra facada turbinaria a ascensão ao poder de um flagelo chamado Jair Bolsonaro.

Quando sobreveio a quartelada, meu companheiro de redação Carlos Heitor Cony convalescia em casa de uma apendicectomia. De pronto reinstalado em sua coluna, resumiu à perfeição numa frase o que havia acontecido: “Foi um simples golpe de direita para a manutenção de privilégios”. E também para calar, prender, torturar e matar desafetos. Mas isto a gente só ficaria sabendo com a desgraceira já em andamento.

Em tempo

Sete dias de maio, o filme,  no iutube aqui 

Sinopse: O Coronel Martin ‘Jiggs’ Casey (Kirk Douglas) suspeita que seu superior, o General James Mattoon Scott (Burt Lancaster) planeja um golpe contra o governo norte-americano porque o Presidente Jordan Lyman (Fredric March) assinou um tratado de paz com a União Soviética. Encontrar as evidências esbarram na burocracia, erros humanos e mortes acidentais, até que o Senador Raymond Clark (Edmond O’Brien), preso pelo ambicioso general em uma base militar do Texas, consegue escapar com os documentos do plano. O presidente, então, recorre ao Coronel Martin Casey para desmontar a conspiração e prender os culpados.

quarta-feira, 27 de março de 2024

Richard Serra

Obra brutal de Richard Serra foi retrato delicado de um mundo em erosão

Artista americano que revolucionou a escultura com obras monumentais morreu nesta terça-feira, em Nova York 

Silas Martí, Folha de São Paulo, 27/01/2024

A escultura 'East-West/West-East', do americano Richard Serra, no deserto de Dukhan, em Doha Ivan Pisarenko/AFP 

Uma chapa de chumbo despenca do alto, e uma mão tenta agarrar. Às vezes acerta, às vezes erra, num jogo da carne às voltas com o peso do metal e a leveza do ar — no fundo, céu e terra.

Nesse filme da década de 1960, o artista Richard Serra, um dos maiores escultores do século 20, morto aos 85 anos nesta terça-feira em Nova York, já sintetizava sem saber os pilares que moveriam sua obra acachapante ao longo de décadas.

Todos talvez já tenham esquecido aquele simples movimento da mão registrado em celuloide, mas o americano é o homem por trás de obras faraônicas de metal, gigantescas chapas de aço que brotam da terra em sucessão vertiginosa, blocos maciços de matéria em choque com a arquitetura ao redor, arcos metálicos que rasgam a paisagem, labirintos plúmbeos que engolem o espectador.

O artista plástico Richard Serra - Folhapress

Se seu trabalho é em nada delicado —e uma de suas obras já chegou a matar uma pessoa esmagada sob seu peso —, ainda é da delicadeza que trata, o mais simples ato de estar no mundo e perceber que habitamos um jogo de planos, o horizonte como definidor máximo da consciência de estarmos vivos na Terra.

Mas a raiz de tudo ainda está nos gestos simples. Suas primeiras esculturas, depois de um início de estudos em pintura e trabalhos realizados na Europa ainda em sua fase de formação que lembravam a arte povera italiana, tinham como diretrizes verbos como rasgar, enrolar, amassar, dobrar, cortar. Essa lista de comandos, escrita a lápis, é também uma obra do artista hoje preservada no acervo do Museu de Arte Moderna de Nova York.

Foi em Manhattan, no final dos anos 1960, que Serra despontou na arte contemporânea, numa mostra organizada na mítica galeria Leo Castelli pelo mítico artista Robert Morris. Um dos nomes que viria a se tornar um mestre do minimalismo e da land art, ele juntava ali figuras como Serra, Bruce Nauman e Eva Hesse.

A escultura 'Echo', do americano Richard Serra, instalada no IMS Paulista, em São Paulo - Cristiano Mascaro/Divulgação

Mas a turma em torno de Serra logo seria outra, a geração de artistas, quase todos homens, que fez do então bairro industrial do SoHo nova-iorquino o epicentro de uma revolução na escultura. Figuras como Donald Judd, Carl Andre, Dan Flavin, Robert Smithson e Gordon Matta-Clark reinventavam ali a relação do artista com a matéria e desta com o mundo ao redor, cada um a seu modo.

Serra, nascido em San Francisco filho de um espanhol que trabalhava num estaleiro, foi pelo caminho mais bruto. Se antes experimentou com borracha e neon, seu destino parecia talhado em metal, primeiro o chumbo daqueles trabalhos do início até o aço, que se tornaria sua assinatura; primeiro a escala da palma da mão, depois a escala de um arranha-céu.

Numa entrevista da década de 1990, o artista lembra uma memória da infância, a visão de um enorme navio ancorado, um bloco impenetrável de matéria que, ao zarpar, se tornava coisa leve, flutuando na água. "Toda a matéria-prima de que eu precisava está contida na base dessa memória", disse o escultor.

Esse contraste entre peso e leveza, mínimo e máximo, atravessa sua obra, marcada pelo aspecto bruto da matéria sem retoques, a verdade do metal. Mas sua frieza é tão valorizada quanto seu lado terroso, telúrico.

Na superfície, são obras sempre duras, que às vezes poderiam ser um autorretrato, reflexo tanto das linhas fortes de seu rosto quanto de seu discurso sem rodeios. Em entrevistas, suas palavras pareciam nunca se descolar do traço mais evidente da obra à nossa frente.

"O peso é um valor para mim", ele me disse, há cinco anos. "Não é mais convincente do que a leveza, mas tenho mais a dizer sobre o equilíbrio do peso, a concentração do peso, o posicionamento do peso, os efeitos psicológicos do peso, a rotação do peso, a desorientação do peso."

É um pensamento que marcou o modernismo — não espanta que ele tenha sido um estudante atento à obra límpida e seminal do romeno Constantin Brancusi — e foi carregado adiante com ousadia formal por Serra, que ao longo das décadas viu sua obra crescer em escala sem escalas, do mínimo do underground nova-iorquino aos gigantescos labirintos em espiral que ocupam o átrio do Guggenheim de Bilbao, na Espanha, às imensas lâminas de aço em sucessão que cortam o deserto do Qatar e mesmo as chapas metálicas instaladas no pátio do Instituto Moreira Salles, na avenida Paulista.

Se em São Paulo poucos no espaço público veem o trabalho, escondido atrás da torre que o abriga, sua obra já detonou uma briga de uma década em Nova York, que terminou em derrota para o artista.

Sua escultura "Tilted Arc", um arco metálico retorcido de quase 40 metros de comprimento e quatro metros de altura, pôs os frequentadores de uma praça em Manhattan em pé de guerra com o artista na década de 1980. Não gostaram da estrutura maciça que cortava o fluxo da praça, exigindo que fosse contornada pelos passantes, além de não ter um lugar para sentar.

A escultura 'Tilted Arc', de Richard Serra - Robert R. McElroy

Serra afirmava que suas obras redefiniam o espaço, por isso não podiam ser desatreladas do lugar para onde foram pensadas. Remover o trabalho da praça nova-iorquina, nas palavras dele, era destruir o trabalho —a escultura não existe sem a paisagem que ela corta, dobra, rasga, aquele velho vocabulário.

Sua obra, além dos espaços que atravessa, sempre dividiu opiniões. Detratores apontam a rudeza dos materiais, a arrogância do gesto em grande escala e certa empáfia de se impor sobre o território, pontos mais tarde associados a uma ideia de masculinidade tóxica que envelheceu mal. Seria uma arte de machão, em resumo, que se traduz numa estética rígida, inquebrantável.

Richard Serra foi um artista de seu tempo, uma época de erosão de certezas e da dissolução de cânones. Talvez por isso, para bem ou mal, tenha trabalhado sempre com os materiais mais brutos, resistentes à decomposição da carne.

 

Richard Serra, um dos grandes nomes da arte contemporânea, morre aos 85 anos

 História de admin3, Istoé, 27/03/2024

O escultor americano Richard Serra, um dos principais nomes da arte contemporânea com suas obras monumentais criadas com placas de aço, morreu na terça-feira (26) aos 85 anos. Serra faleceu vítima de pneumonia na terça-feira em sua casa de Long Island, estado de Nova York, informou seu advogado, John Silberman, ao jornal The New York Times.

Suas peças surpreendentemente grandes estão em exposição em todo o mundo, dos mais importantes museus de Paris ao deserto do Catar. Em alguns momentos, as obras enormes e arredondadas, de aspecto minimalista, provocaram polêmica por sua natureza imponente.

Nascido na cidade de San Francisco em 2 de novembro de 1939, com mãe de origem judia russa e pai espanhol, Serra estudou Literatura Inglesa na Universidade da Califórnia, antes de ser admitido em Yale para estudar Artes Plásticas. Graças a uma bolsa de estudos, ele se mudou para Paris, onde passava quase diariamente pelo local de trabalho do escultor romeno Constantin Brancusi no Museu Nacional de Arte Moderna. O então aspirante a pintor decidiu dedicar-se à escultura.

No final dos anos 1960 se mudou para uma Nova York em plena efervescência artística. Para sobreviver, ele criou uma empresa de limpeza de móveis na qual empregou o compositor Philip Glass como assistente.

Em 1967-1968, publicou como manifesto uma lista de 84 verbos (“envolver”, “apoiar”, “cortar”, “dobrar”…) e 24 elementos de contexto (“gravidade”, “entropia”, “natureza”…), o que inclui todos os processos à sua disposição para a realização de uma obra.
Em seus primeiros trabalhos, utilizou borracha, fibra de vidro, látex e neon. Também projetou chumbo derretido entre muros e pisos, como em “Splash” (1968-1970). No final da mesma década, ele criou uma obra fundadora de seu estilo, “One ton prop (House of cards)”, quatro placas quadradas de chumbo de 122 cm que permanecem equilibradas com o próprio peso, como um castelo de cartas.

A partir dos anos 1970, Serra passou a priorizar as instalações em áreas abertas e o aço Corten. A escolha deste material não foi arbitrária. Ele conhecia perfeitamente suas características e potencial depois de ter trabalhado em uma siderúrgica na juventude.

Serra desenhava esculturas especificamente para os espaços que iriam ocupar e tinha interesse em estudar a interação de suas obras com o meio ambiente. “Certas coisas… ficam gravadas na imaginação e você tem a necessidade de reconciliação com elas”, afirmou Serra em uma entrevista ao apresentador Charlie Rose no início dos anos 2000.

Os jogos de equilíbrio, o peso do aço e a altura das placas criam no espectador uma sensação de insegurança, de pequenez, de vertigem. É uma experiência desestabilizadora e, em alguns momentos, irritante.

Em 1981, sua obra “Tilted arc”, uma gigantesca placa de metal de 3,6 metros de altura e 36,6 metros de comprimento instalada na ‘Federal Plaza’ de Nova York, incomodava tanto as pessoas que precisou ser desmontada oito anos depois, vítima de uma longa batalha judicial.

Uma de suas obras recentes, torres sombrias que parecem emergir da areia no deserto do Catar, está isolada nas dunas, acessível apenas em uma viagem de carro em um ambiente com temperaturas de até 50ºC. “Quando você observa minhas obras, não lembra de nenhum objeto. Fica uma experiência, uma passagem. Experimentar uma das minhas peças é sentir uma noção de tempo, do lugar e reagir a isso. Não é lembrar de um objeto porque não há objeto para reter”, explicou o artista em 2004.


terça-feira, 12 de março de 2024

Filmes parte 39

Nazarin, Nazarín, 1959, Luis Buñuel

Goya, Goya en Burdeos, 1999, Carlos Saura

Kwaidan - As Quatro Faces do Medo, Kaidan, 1964, Masaki Kobayashi

Harakiri, Seppuku, 1962, Masaki Kobayashi

Prazeres da Carne, Etsuraku, 1965, Nagisa Ôshima

Infiltrada - Golpe de Vingança, Catch the Fair One, 2021, Josef Kubota Wladyka

A Cruz de Ferro, Cross of Iron, 1977, Sam Peckinpah

O não Sei que das Mulheres, It, 1927, Clarence G. Badger & Josef von Sternberg

Um Domingo Maravilhoso, Subarashiki nichiyôbi, 1947, de Akira Kurosawa

Einstein e a Bomba, Enstein and the Bomb, Série de TV, 2024, Anthony Philipson

Grandes Esperanças, Great Expectations, 1946, David Lean

Companheiros, Vamos a matar, compañeros, 1970, Sergio Corbucci

Os Desajustados, The Misfits, 1961, John Huston

Star Wars: Os Últimos Jedi, Star Wars: Episode VIII - The Last Jedi, 2017, Rian Johnson

Boy, 2010, Taika Waititi

Jojo Rabbit, 2019, Taika Waititi

O Preço do Poder, Il prezzo del potere, 1969, Tonino Valerii

Cemitério Sem Cruzes, Une corde un Colt..., 1969, Robert Hossein

Canibal, Caníbal, 2013, Manuel Martín Cuenca

A Camareira, La camarista, 2018, Lila Avilés

A Tabacaria, Der Trafikant, 2018, Nikolaus Leytner

Ficção Americana, American Fiction, 2023, Cord Jefferson

Uma História em Montana, Montana Story, 2021, Scott McGehee & David Siegel

Vidas Passadas, Past Lives, 2023, Celine Song

Violência e Paixão, Gruppo di famiglia in un interno, 1974, Luchino Visconti

As Sufragistas, Suffragette, 2015, Sarah Gavron

Os Rejeitados, The Holdovers, 2023, Alexander Payne

Pobres Criaturas, Poor Things, 2023, Yorgos Lanthimos


12/02/24

Nazarin, Nazarín, 1959, Luis Buñuel

No iutubi aqui  

Crítica | Nazarin por Luiz Santiago, 5 de julho de 2020

Imagine um espectador que nunca tivesse visto um filme de Luis Buñuel, apenas tivesse ouvido falar de sua iconoclastia, de seu desprezo às religiões, críticas ferrenhas à igreja católica e seus cargos de elite. Agora imagine este mesmo espectador assistindo Nazarin como introdução à obra do cineasta aragonês. Definitivamente ele iria achar que tudo o que se falou a respeito do “herege Buñuel” foi uma brincadeira de mal gosto.

Nazarin é a adaptação do romance homônimo de Benito Perez Galdós, e conta a história de um padre humilde que guarda voto de pobreza e tem uma postura avessa a todas as facilidades e mordomias que os párocos locais possuem. Sua bondade, fé e modo de vida se assemelham bastante aos de Jesus, incluindo os milagres que lhe atribuem, a peregrinação e as humilhações sofridas. Nazarin se afasta, à primeira vista, da postura comum de Buñuel em relação à igreja católica. O escritor Julio Cortázar chegou a dizer que o filme parecia ter sido pago pelo Vaticano. Independente de tudo isso, Nazarin pode ser considerado o primeiro e único filme religioso de Buñuel, não sem críticas, mas com outro foco crítico: a caridade, a fé e o relacionamento da sociedade com a religião.

Enquanto vemos ataques ácidos do diretor à igreja em outras de suas obras como A Idade do Ouro, Viridiana e A Via Láctea, percebemos que em Nazarin ele ironiza a respeito da possessão demoníaca, critica o verdadeiro motor da beatice, contrasta a vida pobre de um verdadeiro cristão com a vida dos padres que andam de mãos dadas com o poder opressor de juízes e coronéis e interroga sobre o altruísmo cristão e a operação de milagres. Não é um filme-escândalo ou herege, como foram classificadas as outras abordagens religiosas do cineasta, mas é um filme crítico, tanto à religião quanto à sociedade.

Um outro fator bastante forte e que escapa a uma boa parte dos espectadores é que embora o protagonista seja um religioso, ele é avesso à instituição religiosa, que vê nele um problema de grande ordem. Nazarin não é como Simão do Deserto, um pregador independente que acaba cedendo às tentações seculares, mesmo que com um forte sentimento de culpa. Ele é um cristão penitente, obediente às leis de Deus e dos homens, e com discurso firme na defesa de suas ideias ou exposição de seus sentimentos, como vemos na cena da prisão, onde que ele perdoa seus companheiros de cela mas deixa claro que pela primeira vez na vida encontrava dificuldades para isso.

A própria peregrinação de Nazarin e as duas mulheres que o acompanha, uma possível apaixonada e outra geralmente comparada a Maria Madalena, é um dedo na ferida da chamada “motivação religiosa” ou “chamado de Deus”, o que nos faz voltar ao discurso e problematização da fé. O protagonista é visivelmente um homem que crê, mas as mulheres que o seguem, apesar da aparente devoção, são uma espécie de papagaio teórico, repetindo a todos a santidade de Nazarin, seus milagres e bençãos, enquanto elas próprias ainda não encontraram o caminho religioso que tanto pregam. 

O grupo caminha junto mas está ideologicamente separado. Ora, não é assim com uma gorda parcela dos cristãos de hoje? Repetem rezas, anunciam milagres, andam com “O Nazareno”, mas suas preocupações, atos de todos os dias e opinião sobre o próximo são contrárias à cristandade. Sua fé se confunde com interesses pessoais, financeiros, políticos, e para isso fazem uso da doutrina, de suas instituições ou interpretações forçadas de passagens bíblicas a fim de defender ou dar suporte ao indefensável. Eis aí a verdadeira heresia. O anti-cristão usando de um anti-cristianismo para fingir que ama a Deus sobre algumas coisas e provar que odeia muitos de seus próximos… talvez como a ele mesmo.

Francisco Rabal dá vida ao protagonista do filme e realiza uma atuação maravilhosa na pele da Nazarin. O ator consegue ao mesmo tempo criar um personagem de porte marcante e humilde, passando de uma comovente docilidade inicial para uma insatisfação quase desesperada ao cabo, porém, sem nenhum indício de renúncia da fé. O abacaxi entra aí como uma espécie de afirmação da persona de Nazarin, um presente que pode ser uma iluminação, com aquela bela coroa espinhenta na cabeça, um símbolo do Cristo, talvez – perceba que o sentido figurado que o fruto tem para nós, brasileiros, é diferente.
Buñuel afirma aqui o seu descontentamento para com a instituição religiosa e seus componentes hierárquicos, mas assume, inclusive em seu livro Meu Último Suspiro, o afeto que tem pelo personagem de Nazarin, o homem de fé verdadeira e não de religiosidade hipócrita. Mesmo que não respeite a igreja, o diretor deixa claro que repeita os que tem fé, não uma fé fabricada, que só vem à tona quando há alguém olhando; mas uma fé realmente pessoal, firme nas convicções do indivíduo com seu Deus e que é claramente vista no modo de vida da pessoa.

Além dessa discussão, Buñuel fala sobre a caridade, filmando em aldeias pobres do México, misturando o comportamento das pessoas com o suas crenças. Nesse experimento, vemos velhinhas com rosários e homens com crucifixo no pescoço agindo como algozes… Quem são as pessoas por trás de sua máscara religiosa, da eucaristia, das campanhas de oração e louvores? Ao problematizar a caridade ou o carinho e consideração fraterna ao próximo o diretor nos incita a perguntar sobre a humildade e pobreza das Ordens e correntes religiosas ou fanáticas que adotam um comportamento em tese humilde, mas na prática, ostensivo, clamando por atenção.

Nazarin não é um filme-parceria com o Vaticano ou a defesa de tudo o que Buñuel sempre criticou em sua obra pregressa ou posterior. Na verdade, o filme é uma sutil agulhada na alma da igreja e dos princípios básicos do cristianismo, um toque de mestre que consegue colocar a fé em um lugar separado do departamento religioso, algo que, para a igreja, é motivo de alto temor. Mas há quem veja em Nazarin um Buñuel rendido e de mãos dadas com a Cruz. Há quem faça troça do filme, classificando-o como um exercício de beatice sem propósito do cineasta. Mas Nazarin é um filme-incômodo e não apenas do modo óbvio, como querem pensar. É preciso maior atenção para compreender isso.

13/02/24
Goya, Goya en Burdeos, 1999, Carlos Saura

No iutubi aqui  

Carlos Saura (1932-2023)

Francisco Rabal (1926-2001)

Crítica | Goya (1999) por Luiz Santiago, 9 de maio de 2011

Francisco de Goya y Lucientes (1746 – 1828) é ao lado de Diego Velázquez e Pablo Picasso, um dos grandes nomes da pintura espanhola. Sua arte passou, ao longo dos anos, por uma grande mudança estética, especialmente no que concerne ao uso da cor e dos temas trabalhados, indo de paisagens claras e situações da corte de Carlos IV — com telas bem iluminadas e coloridas –, para o horror que se apossou da Europa após a Revolução Francesa (1789), espírito de suas famosas Pinturas Negras, e principalmente nos quadros Dois de Maio em Madri e Três de Maio em Madri, uma dueto plástico que mostra um dos terríveis acontecimentos advindos da ocupação de Napoleão Bonaparte na Espanha. Goya en Burdeos (1999), de Carlos Saura, é um filme que foca os últimos momentos da vida do pintor em seu exílio voluntário na França. Temos em cena a sua relação com a velhice, a família, e as lembranças guardadas de sua amante, a Duquesa de Alba.

Transpor a vida de um pintor para a grande tela não tem sido uma tarefa muito fácil para os diretores que se propõem a fazer essas homenagens. Cada uma dessas cinebiografias, de dramas sobre momentos da vida de um pintor, possuem falhas artísticas, claro, mas todas elas, sem exceção, conservam um caráter plástico tão surpreendente, que é quase um orgulho afirmar que até hoje o cinema viu mais sucessos estéticos do que fracassos em relação a longas sobre pintores. 

Destaco abaixo algumas obras desse gênero, que estrearam até a produção de Goya.

Sede de Viver (Vincente Minnelli e George Cukor, 1956) – sobre Van Gogh
O Mistério de Picasso (Henri-Georges Clouzot, 1956) – sobre Pablo Picasso
Agonia e Êxtase (Carol Reed, 1965) – sobre Michelangelo
Pirosmani (Giorgi Schengelaya, 1969) – sobre Niko Pirosmani
Edward Munch (Peter Watkins, 1974) – idem título
Um Lobo Atrás da Porta (Henning Carlsen, 1986) – sobre Gauguin
Caravaggio (Derek Jarman, 1986) – idem título

Em cada um dos casos acima, o espectador é apresentado a algum episódio ou à biografia de um pintor. Essas obras nos trazem um rigor plástico muito particular, um trabalho fotográfico escrupuloso e sempre tendenciosamente ligado às cores e visual típicos do pintor retratado. Na maior parte dos casos, com raras exceções, os erros encontram-se no roteiro, o modo como a história é organizada, e até mesmo na edição, muitas vezes cansando o espectador desnecessariamente, como é o caso desta cinebiografia sobre Goya, dirigida por Saura.

Visualmente, Goya en Burdeos é inquestionável. Um dos maiores diretores de fotografia da Europa, Vittorio Storaro (parceiro de Saura desde Flamenco, de 1995) é o responsável pelo visual do filme, e seu estonteante uso de luz não só impressiona o espectador como consegue trazer para a tela toda a pulsão dramática, os medos e tendências artísticas de Goya, algo que faz desde a sequência inicial do filme, e se completa em cada cena de reprodução das telas do artista, como a estonteante sequência em que recria A Pradaria de San Isidro, um criativo jogo cênico de projeção, iluminação e trabalho com profundidade de campo. O que mais chama a atenção, é que Storaro privilegiou a preferência tonal das cores de Goya, sempre iluminadas por uma escala cromática de cores quentes (como se fossem vistas à noite, à luz de muitas velas) ou, no caso das pinturas negras, alucinações e lembranças trágicas, com o uso de cores frias, especialmente preto e azul. A única cena que “destoa” de todo o filme, seja por sua fotografia, seja pelo caráter de filmagem em externa, é na verdade um pesadelo de Goya, e aí temos uma indicação psicológica: apenas no pesadelo o artista conseguia ultrapassar as paredes da casa.

Seja por predileção pessoal (advinda depois de tantos filmes musicais, que requerem essencialmente o palco), seja por indicação da própria psique do cinebiografado, Goya é quase cem por cento filmado em internas. Essa característica claustrofóbica exigiu de toda equipe um trabalho que permitisse a ligação desses espaços de um modo mais leve, sem que fosse preciso o uso exaustivo de cortes para cada mudança espacial. A saída encontrada foi fazer as paredes “transparentes”, de modo que pudéssemos ver personagens em trânsito, até a sua entrada no foco da câmera, com apenas uma mudança direta da luz, mais ou menos como Storaro fizera em O Fundo do Coração (1982), um sonho visual dirigido por Francis Ford Coppola.

O elenco do filme é um show à parte. O veterano e excelente Francisco Rabal interpreta Goya em sua velhice, ou seja, a maior parte do filme, e a postura carrancuda e silenciosa da personagem consegue nos passar tudo aquilo que não vem à tona através de gritos e gestos efusivos em cena. 

José Coronado também assume com grande competência o papel de Goya jovem, em cuja idade o pintor conheceu a Duquesa de Alba, interpretada pela ótima Maribel Verdú, sempre com sua forte imposição cênica mas nunca exagerada, algo que comprovamos em suas atuações em E Sua Mãe Também, O Labirinto do Fauno e Tetro. Dafne Fernández interpreta Rosario, a filha do pintor, que contracenando com o gigante Francisco Rabal, ganha uma doce e necessária presença no filme, algo muito bonito de se ver. As ótimas interpretações em todo o elenco de apoio dão a esse filme uma presença cênica muito forte, característica recorrente nas obras de Saura.

O erro de Goya talvez esteja na edição, quando muito, no roteiro, a partir do meio do filme. A história é apresentada de um modo truncado, a organização das cenas sem uma ordem muito específica funciona bem até um certo ponto, mas a partir de então se torna cansativa, defeito reforçado nos toques constantes de tensão e distensão dramáticas nas cenas finais, culminando com uma última cena que ficou completamente deslocada do conjunto. Além disso, a duração dos últimos planos parece ser demasiada para o clima formado pela própria história e salientado pela música de Roque Baños.

Todavia, mesmo com o deslize na edição e talvez no roteiro em seu desfecho, Goya não está aquém de nenhuma grande cinebiografia de pintores, ao contrário, inscreve-se com merecido destaque entre elas. Se não agrada por completo e incomoda por seu ritmo a partir de certo ponto, o filme nos compensa com a viagem quase surreal por meio de cores e texturas. Visualmente, um filme belíssimo. Pena que não o é por inteiro.

Francisco de Goya

Las pinturas negras de Goya

13/02/24

Kwaidan - As Quatro Faces do Medo, Kaidan, 1964, Masaki Kobayashi

Crítica | Kwaidan – As Quatro Faces do Medo (Kaidan) [1964] por Vinícius Simões, 04/11/2023 

Em 1904, o escritor grego-irlandês Lafcádio Hearn, fascinado pela cultura do Japão, onde vivia desde fins do século XIX, publicou compilados de histórias de terror do folclore local, e é a partir desse material que Masaki Kobayashi dirigiu esta antologia de quatro contos que recebeu uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1966.

Quem leva a sério a famosa máxima de que cineastas devem “mostrar, não falar” pode ficar desapontado com as duas primeiras histórias, nas quais o narrador talvez apareça mais do que o necessário, e é possível argumentar que os desfechos são facilmente previsíveis. De todo modo, em “Os cabelos negros” acompanhamos um samurai (Rentarô Mikuni) que, empobrecido e desesperado, abandona a esposa (Michiyo Aratama) e muda de cidade na esperança de melhorias de vida. Com a mudança as melhorias vêm; porém, infeliz e ainda apaixonado pela ex-mulher, decide retornar à casa. Ainda que, como mencionado, seja previsível, a narrativa funciona como um brutal retrato da passagem do tempo e do peso da memória.

Já em “A mulher da neve”, dois lenhadores buscam abrigo durante uma nevasca, sendo o mais velho morto, vítima sem misericórdia de uma Yuki-onna que decide poupar o mais novo (Tatsuya Nakadai), que sobrevive com a condição de nunca contar a ninguém o ocorrido. Em uma época na qual os efeitos especiais ainda tinham muito por evoluir, destaca-se a criação da nevasca opressiva e seu contraste com a luminosidade solar. 

Seguindo um breve intervalo, voltamos com “Hoichi, o sem orelhas”. Após uma longa introdução, que apresenta uma épica batalha marítima ocorrida durante as Guerras Genpei, conhecemos o personagem-título (Katsuo Nakamura), empregado de um templo religioso que, mesmo cego, é extremamente hábil em tocar a biwa, sobretudo ao contar a referida batalha. Uma noite, é visitado por um samurai (Tetsurô Tanba), que o convida a ser apresentar diante de seu senhor. Trata-se da mais ambiciosa empreitada de Kwaidan, com resultados belíssimos, seja nas cenas em alto-mar, seja na performance musical e poética. Com uma mistura excelente de carisma e inocência, Nakamura transforma o protagonista no personagem mais querido não apenas do conto, mais de todo o filme, e faz isso – literalmente – de olhos fechados. Seu talento é tamanho que ofusca até a presença de Takashi Shimura, grande parceiro de Akira Kurosawa (Rashomon, Viver, Os Sete Samurais), intérprete do sacerdote-chefe do templo.
Por fim, em “Em uma xícara de chá”, Kobayashi cria a mais aterrorizante e divertida história das quatro, ao nos mostrar um misterioso homem (Noboru Nakaya) que insiste em aparecer na referida xícara que um frustrado guarda (Kan’emon Nakamura) tenta utilizar, e as estranhas consequência de tal aparição algumas horas depois. Funcionando como uma espécie de epílogo, a última etapa mergulha no bizarro para extrair doses equivalentes de pavor e hilaridade. E é significativo que Kwaidan termine aqui, uma vez que o último capítulo concentra a essência do longa, reunindo elementos de cada uma das partes anteriores.

Com relatos que se passam no Japão feudal, a recriação de época da produção é impressionante, assim como são belos os figurinos e é eficiente o emprego das cores, em especial o vermelho, presente nas quatro partes. Yoshio Miyajima, diretor de fotografia parceiro de Kobayashi em Harakiri e na trilogia Guerra e Humanidade, faz um excepcional trabalho, sendo exímio no enquadramento dos cenários. Tudo isso faz de Kwaidan uma inebriante viagem pelo estranho mundo do fantástico, uma prazerosa imersão visual pelo terror fantasmagórico.

14/02/24

Harakiri, Seppuku, 1962, Masaki Kobayashi

Masaki Kobayashi (1916-1996) 

#35 Essenciais do Cinema – ‘Harakiri’ (1962) por João Braga, 7 Junho, 2018

Kobayashi é um dos mais influentes realizadores de todos os tempos – e apesar de ultrapassado em comparação por Akira Kurosawa – Kobayashi tornou-se num dos melhores realizadores japoneses e uma das maiores influências do cinema japonês, principalmente se olharmos para a sua filmografia entre o final dos anos 50 até 1965. “Harakiri” é a grande obra-prima do realizador e, para mim, o terceiro melhor filme da história do cinema japonês. O filme não é só uma crítica ao código dos Samurai, vivido durante o século XVII, mas é também um retrato da sociedade japonesa. O argumento está muito bem escrito e caracteriza de uma forma bem dramática a necessidade de morrer com honra para um Ronin, ou um Samurai sem Lorde ou Mestre.

O filme começa em 1630, mas leva-nos até 1619, com uma série de flashbacks, em parte contados por Hanshirō Tsugumo, interpretado pelo actor favorito de Kobayashi, Tatsuya Nakadai. Tsugumo entra na propriedade do Clã Li com um pedido de autorização para cometer hara-kiri (ou seppuku) na propriedade do clã. A partir daí, o telespectador é levado para uma história de miséria, azar e infelicidade que é contada pelo próprio Tsugumo.

É uma das histórias mais bem escritas do cinema japonês e mundial. As cenas de luta são muito bem coreografadas e convincentes, contendo ainda momentos muito emocionais que transportam o telespectador para esta história de dramatismo e infelicidade. Nakadai tem aqui a sua melhor interpretação (juntamente com a interpretação na trilogia “The Human Condition” – futuramente presente no Essenciais), impondo-se à época como um dos melhores actores mundiais.


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Honor, morality, and ritual suicide Roger Ebert, February 23, 2012

Samurai films, like westerns, need not be familiar genre stories. They can expand to contain stories of ethical challenges and human tragedy. "Harakiri," one of the best of them, is about an older wandering samurai who takes his time to create an unanswerable dilemma for the elder of a powerful clan. By playing strictly within the rules of Bushido Code which governs the conduct of all samurai, he lures the powerful leader into a situation where sheer naked logic leaves him humiliated before his retainers.
The time is 1630. Unemployed samurai, called ronin, wander the land. There is peace in Japan, and that leads to their unemployment. Their hearts, minds and swords have been pledged to their masters, and now they are cast adrift, unable to feed and shelter their families. It would be much the same with a corporation today, when a loyal employee with long tenure is "downsized." Loyalty runs only from the bottom up.

At the gate of the official mansion of Lord Iyi, a shabby ronin named Tsugumo Hanshiro applies for an audience with the clan elder, Saito Kayegu (Rentaro Mikuni). He has been set loose by Lord Geishu and has no job. He requests permission to kill himself in the clan's forecourt. The ritual act is known as harakiri, or seppuku (which is the film's title in Japanese). It involves using a short blade for self-disembowelment. After the blade plunges in and slices from left to right, a designated master swordsman stands by to decapitate the samurai with one powerful stroke.

Tsugumo desires to kill himself because of the disgrace of being an jobless samurai. Saito tells him a story designed to discourage this. In the district there have been many appeals like this, and in some cases the desperate samurais had their lives spared and were given work by the clan they appealed to. They didn't really want to commit harakiri at all. However, Saito says, many clans have wised up to this tactic. He tells a story of Chijiwa Motome (Akira Ishihama), another cast-off from Lord Geishu. He turned up not long ago here in this very forecourt, he says, asking the same permission. Saito granted it--but only if he performed the ritual immediately. Motome gave his word as a samurai that he would indeed kill himself, but asked permission to first pay a short personal visit. Saito saw this as a delaying tactic, and commanded Motome to disembowel himself then and there. This was not easy, because Motome had pawned his short sword, and had a cheap bamboo replacement. As a man of honor, he fell on this blunt blade and caused great damage and pain before being decapitated.

So you see, Saito tells Tsugumo, you had better be sincere. "I assure you I'm quite sincere," Tsugumo says, "but first I request your permission to tell a story"--one that will be heard by Saito and the retainers of the household, who are seated solemnly around the edges of the courtyard.
"Harakiri" was released in 1962, the work of Masaki Kobayashi (1916-1996), best known for "Kwaidan" (1965), an assembly of ghost stories that is among the most beautiful films I've seen. He also made the nine-hour epic "The Human Condition" (1959-1961) which was critical of the way the Bushido Code permeated Japanese life and helped create the state of mind which led to World War II.

And he made "Samurai Rebellion" (1967), about a man who refuses to offer his wife to a superior.
His recurring theme, seen clearly in "Harakiri," is that fanatic adherence to codes of honor, by granting them a value greater than life itself, sets up a situation where humanist values are forbidden. The samurai class eventually created the Japanese militarist class, whose members were so indoctrinated with worship of their superiors that the deaths of kamikaze pilots and the slaughter of soldiers in hopeless charges under fire were seen, not as military acts, but as a seeking for honorable death. The modern Japanese novelist Yukio Mishima was famously so devoted to the code that he saw its decay as the shame of Japan, and himself committed seppuku in 1970 after leading his small private army in an ill-advised uprising to restore the honor of the Emperor. The American writer-director Paul Schrader told his story in "Mishima: A Life in Four Chapters" (1985).

Opening in a way similar to "Rashomon," in which a man arrives at a gate and begins telling one of four versions of the same story, Kobayashi makes a film where there is only one correct version of the story, but its meaning depends entirely on whose point of view you take. Who is right? Saito, who is determined not to have the charity of the Iyi clan exploited, or Tsugumo, who is determined that Saito and his household will hear the whole story of Motome which led up to his falling on his pathetic bamboo sword.

It would be wrong for me to reveal the details of the story Tsugumo tells. What I can say is that it is heartbreaking. He explains that Motome was not a man trying to avoid death by the excuse of asking for a delay. He was a man whose actual honor humbles Saito and other authoritarian bureaucrats. Sometimes it takes more courage to do the right thing than to do the traditional thing. Following the Bushido Code frees its adherents from the need to arrive at their own moral conclusions. "Harakiri" is a film reflecting situational ethics, in which the better you know a man the more deeply you understand his motives.

The telling of the story involves a feeling of ritual. Three times Tsugumo is given the privilege of choosing the master swordsman who will behead him. Three times a messenger to sent to fetch the man. Three times the messenger returns alone, with the news that the chosen man is feeling too ill today to survive. Tsugumo, who is obviously familiar with the retainers of the Iyi clan, doesn't seem very surprised. He will eventually explain the absence of the "sick" men by producing in the courtyard dramatic symbols of their lack of inner strength. This provides one of the great dramatic moments of all samurai films.

It's important how the director Kobayashi's own life reflects Tsugumo's ideals. He was a lifelong pacifist, but his way of acting on his beliefs was not to avoid military service but to refuse promotion to the officer class, so that he would take his chances along with other conscripts.
This black and white film is elegantly composed and photographed to reflect the values it contains. The camera often takes the POV of Saito, standing at the top of the stairs leading from the courtyard to the official residence, looking down from authority to Tsugumo the lowly petitioner. Then it will take a reverse POV of Tsugumo looking up to the man with the power. Angular shots incorporate the onlookers, who sit impassive and listen as their leader and the powerless ronin speak. Then, during a swordplay scene, a hand-held camera is used to suggest the breaking down of tarditional patterns It would take men with hearts of stone to resist being moved by Tsugumo's story, but these men have been born and bred to have such hearts.

The fist image in the film will raise questions in the minds of viewers. We are looking at the symbol of the Iyi clan, the repository of its traditions and ancestors--an empty suit of armor. Eventually this symbol will be disgraced and exposed as the hollow man it is. And when we listen to the heartless reasoning of Saito, it is easy to draw parallels with more recent political debates where rigid economic theories of both left and right are cited as good reason to disregard human suffering.
Also included in my Great Movies Collection: Kobayashi's "Samurai Rebellion," Kurasawa's "Rashomon" and Schrader's "Mishima: A Life in Four Chapters."

15/02/24

Prazeres da Carne, Etsuraku, 1965, Nagisa Ôshima

Nagisa Ôshima (1932-2013)

Jovem universitário, e monitor nas horas vagas, Atsushi Wakizaka, faria qualquer coisa para salvaguardar sua amada Shoko, de um estuprador chantagista. Inclusive matar, a pedido da abastada família de Shoko. Uma testemunha, entretanto, começa a chantagear Atsushi, de uma maneira inesperada.

Nagisa Oshima e o cinema japonês. Vlademir Lazo | 27 de Janeiro de 2013


16/02/25

Infiltrada - Golpe de Vingança, Catch the Fair One, 2021, Josef Kubota Wladyka


Crítica: Infiltrada: Golpe de Vingança (Catch The Fair One) | 2021fevereiro 9, 2022 / Eduardo Kacic

Neste duro thriller dramático Infiltrada: Golpe de Vingança (Catch The Fair One, EUA, 2021, 86 min.), uma ex-campeã do boxe coloca sua vida em jogo quando se infiltra em uma cadeia de tráfico de pessoas, em busca de sua irmã desaparecida. Muito da autenticidade do filme vem de sua protagonista, a boxeadora na vida real Kali Reis, que também está creditada como uma das autoras do argumento da produção. Trata-se de uma sessão de cinema empolgante, mas que assim como na maioria das histórias sobre pessoas desaparecidas, acaba encontrando mais becos sem saída do que respostas. Ainda que tal falta de resolução seja claramente uma forma de denunciar os absurdos destinos das mulheres sequestradas, ela acaba resultando em uma conclusão fria e pouco satisfatória, para um filme que segue as sempre robustas e sangrentas convenções do subgênero dos dramas sobre vingança.

 Kali Reis

Este é o segundo longa do diretor nipo-polonês Josef Kubota Wladyka, lançado sete anos depois de seu drama Mãos Sujas, premiado no Festival de Tribeca em 2014. Ambos os filmes adotam uma abordagem similar, misturando ação com questões sociais. Depois de alguns bons trabalhos na televisão, dirigindo episódios de séries de sucesso como Narcos e The Terror, Wladyka retorna com um filme que apresenta um chamativo pedigree: a produtora vencedora do Oscar Mollye Asher (Nomadland, Domando o Destino); além disso, Darren Aronofsky é um dos produtores executivos. Wladyka é claramente um diretor talentoso e promissor, que estabelece a tensão de suas sequências de ação sob uma fundação de bravura e moralidade. Porém sua escrita é menos segura — a conclusão abrupta é desconcertante, e definitivamente limita o alcance do filme junto ao grande público.

Reis, que assim como sua personagem, Kaylee, adota o nome de ringue ‘K.O.’ (sigla norte-americana para a expressão “nocaute”), traz em seu sangue uma mistura de índios nativos americanos com descendência cabo-verdense, e é uma apoiadora ativa do movimento MMWIG, que atua em nome das mulheres e meninas indígenas desaparecidas ou assassinadas. Mas seu envolvimento no filme vai além de um mero exercício para estimular a consciência do público. Reis está magnética, e sua presença é fisicamente imponente, o que acaba sendo extremamente necessário nas cenas em que a personagem usa seus punhos para macetar os responsáveis pelo tráfico de mulheres que alimenta os esquemas de prostituição.

Entretanto, este não é o tipo de filme de ação onde seus heróis são vedados pelo verniz mágico da invencibilidade. Kaylee sangra — seja pela lâmina de barbear que ela guarda na boca para emergências, ou pelos cacos de vidro após um incidente com uma mesa feita do material. Se até uma mulher tão perigosa e durona quanto esta ex-campeã dos pesos-médios é vulnerável neste implacável submundo do crime, que chance as outras garotas teriam?

A paleta de cores do filme é uma pegajosa mistura do cinza dos becos sujos com respingos das cores primárias, como por exemplo o azul e dourado do kit de Kaylee quando ela luta; o vermelho evoca o sangue, óbvio. A ação é movida por um score musical desigual, que funciona melhor quando está em concordância com as batidas ritmadas de um saco de pancadas tão comum no mundo de Kaylee, mas que frequentemente acaba assumindo um caráter histérico, que beira o dos filme de horror. A fotografia de Ross Giardina (do recente Gold), é propositalmente feia e crua, e sua câmera não hesita em retratar a violência de maneira explícita, como por exemplo na cena em que Kaylee aplica a tortura do afogamento em um dos bandidos do filme, ou quando ela gira a faca enfiada na coxa do infeliz, tudo isso na frente de uma criança.

No final das contas, Infiltrada: Golpe de Vingança é um gutural drama sobre Kaylee e seus próprios demônios e batalhas; físicas, psicológicas e emocionais. Reis é dona do filme, um bólido enfurecido em uma sangrenta jornada de vingança, em um mundo onde pessoas são capazes de cometer as piores atrocidades por um pouco de dinheiro.

Infiltrada: Golpe de Vingança está disponível atualmente no catálogo do Prime Video e estará disponível no catálogo da Netflix à partir de 08 de julho.

Catch the Fair One - Official Trailer | HD | IFC Films

17/02/24

A Cruz de Ferro, Cross of Iron, 1977, Sam Peckinpah

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A Cruz de Ferro (1977), Marcelo Ferreira Jr., setembro 06, 2015

Por esses dias novamente revi “A Cruz de Ferro” de de Sam Peckinpah. Toda vez que o vejo retoma-me a mente o dito por Orson Welles: “Trata-se do filme mais antimilitarista que eu conheço”. A opinião de Welles casa perfeitamente com o que me vai n’alma. E há em sua feitura muito que me leva a acreditar que ao término da projeção saímos propensos a buscarmos cada vez mais o pacifismo, diante da barbárie sem sentido que ganhou as telas. Por outro lado, a maldita razão, me enche de dúvida. E se o filme for a constatação pura e simples de que o cineasta cria de que o instinto sempre vencerá a razão e arrastará o homem a refestelar-se na Guerra? Um filme dúbio? Ou um filme que se vale da dúvida para nos marcar mais definitivamente?

O filme retrata a ação de retirada das tropas alemãs do solo russo e a consequente derrota nazista. Somos convidados a entrar nessa história de uma forma cínica: um jantar de oficiais alemães. Regado a música (?) da artilharia dos dois exércitos que se digladiam não muito longe. Lá temos um comandante animado pela ressentimento de que suas convicções não estão corretas, mas que deve cumprir sua missão. Um capitão pacifista e resignado. Um tenente estritamente disciplinado. Este último em nome da pátria, da honra, da obediência, aplica e estimula o lado bárbaro que abomina nos inimigos, em seus comandados. E somos apresentados a dois seres que irão se digladiar no filme todo: O Capitão Stransky ambicioso e desprezível e o Cabo Steiner, lúcido e desesperado.  

Stransky pertence a burguesia prussiana. Classe essa que envia seus filhos a Guerra, sonhando que eles se distingam no campo de batalha, pela honra e ordem vigente e sejam reconduzidos ao lar trazendo consigo uma distinção que represente sua importância: A Cruz de Ferro. Steiner ao contrário é um homem abatido, que vive uma dualidade que o tortura, e pensa poder escapar a essa realidade numa última explosão de violência. O primeiro é dotado da violência institucional, o segundo de uma violência primária.

Por outro lado, para retratar a época, e a compreensão do que ocorreu com um olhar de décadas depois, Peckinpah se vale de todas as ferramentas que o Cinema possui : Cross fade, travellings, imagem congelada, filtros, inversão de imagem, flashback, flashforward, imagens aceleradas, imagens desaceleradas, montagem telescópica de três ou quatro sequências, etc. Tudo isso em cenas e imagens curtas que visam ficam marcadas em nossa retina. O diretor explora a exaustão a mecânica da Guerra pela mecanização da imagem, possibilitada pelo Cinema. Um filme que se mostra tão monstruoso, quanto a época que ele pretende ilustrar. O confronto entre o primitivismo e o industrial se faz presente. 

Quando o grupo de Steiner fica isolado os homens tomados pelo medo retornam as origens da humanidade. O pelotão torna-se um grupo tribal. Steiner ri como um diamante brilha ao refletir o clarão, ri como uma hiena. Os feridos dos quais o sangue jorra, soltam gritos de porcos que nós matamos, ou uivos de sofrimento sobre o bombardeio da artilharia. A imagem esfria, desaparece quando tudo explode, o rasgão em nossa mente e o sofrimento não termina nunca. O campo de batalha não tem limites, não existe nenhum código de honra ou humanidade nessa trincheira.

A guerra é conduzida a sua obscenidade primeira, o aço corta as carnes lenta ou rapidamente, dilacera os corpos já enfraquecidos pela fome, a doença e o medo. O gatilho voraz da matança: Metralhadoras automáticas, cargas de morteiros, Canhão de um tanque prestes a atirar, as torres de defesa continuam a agitar-se, mesmo após a morte de todos os soldados que manobravam. O grupo isolado enfrenta os carros da armada russa. Eles se refugiam em uma usina tentando desesperadamente escapar daquelas garras de aço.

O diretor sempre foi conhecido como um esteta da violência. Aqui ele pode dar vazão a sua paixão por perenizar essas imagens. Lembremo-nos das imagens mentais de Steiner sobre o campo de batalha e as imagens do resultado de tudo isso que vemos no hospital. Face ao fim do mundo, existe somente um caminho para Steiner. O amor que eles tem pelos seus homens. O beijo entre dois soldados exprime uma ligação de estima, de respeito e de amor (não uma pulsão sexual, mas algo mais forte que isso) que somente pode ser suplantada por um outro camarada do front. A pulsão sexual não seria mais que uma pulsão bestial diante do contexto do fim de tudo, da pulsão da morte. Por isso ele volta ao front. Quando eles se deparam com a tropa feminina, as duas únicas vítimas são aqueles que não resistiram a essa pulsão bestial. O mais jovem se deixa enganar pelo choro feminino e é apunhalado. O segundo, um soldado violento é castrado de forma impiedosa. Tenho a impressão de que Peckinpah é contra a Guerra, mas não contra a violência. Ele crê que o homem dela necessita para sobreviver.

Por outro lado, nos é permitida uma outra leitura: Stransky é efetivamente um canalha. No entanto o que permite que a guerra permaneça e exista são indivíduos como Steiner. Afinal ele deixa a sublime enfermeira vivida por Senta Berger para ganhar novamente o front. Seria a pulsão da morte que o chamou, ou simplesmente a pulsão por tirar vidas. Só posso afirmar que se trata de um filme sobre não heróis. Mesmo o Capitão Kiesel, com seu aspecto negligenciado, fatigado, e roupas em trapos, representa mais o estado de espírito frente a derrota, que uma veemente crítica ao que ocorria na Guerra. É ele que dirá em resposta ao seu superior que depois da Guerra haverá tempo para se preparar para a outra.

Para complementar minhas impressões deixo aqui registrada a cena que mais me marcou. Aquela do corpo já achatado pela passagem de vários carros que jaz depositado numa poça lamacenta. Imagem seca, cruel e fria.

Não é meu filme predileto de seu diretor. Mas se trata de um filme muito bem realizado e de uma dubiedade que deposita sobre aquele que o assiste a interpretação sobre o que ocorre. Qual a tua opinião. Peckinpah não nos quis conduzir a aceitar a dele. Pois não sabemos o que pretendia.
Escrito por Conde Fouá Anderaos

18/02/24

O não Sei que das Mulheres, It, 1927, Clarence G. Badger & Josef von Sternberg

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Betty, uma das atendentes da loja de departamentos Waltham´s, tem uma queda pelo filho do dono da loja. Apesar de muito charmosa, Betty é uma menina simples, completamente diferente do sofisticado Cyrus Waltham Jr. As complicações se tornam ainda piores quando um jornalista faz uma matéria falando que Betty é uma mãe solteira.

Dica de Filme: "It" (1927)  sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Boa tarde Vintagers! Quase que o post sobre filme não sai, mas cá estamos nós. Geralmente eu indico filmes da atualidade, mas a dica de hoje é especial. Eu sou uma daquelas que defende a bandeira do cinema mudo, e acha que todo mundo que se diz fã de cinema, deveria ao menos uma vez na vida dar oportunidade à essa arte. A atriz Clara Bow está no meu TOP 5 - Atrizes do cinema mudo, e nem é difícil entender o por quê. Ela é uma das atrizes mais icônicas do cinema. A primeira "It Girl" e símbolo sexual de sua época, com um talento e currículo cinematográfico invejável. Uma das características que mais me chama atenção em Clara é sua expressão corporal e aquele monte de caras e bocas que ela fazia. Ela atuava de maneira leve e espontânea e a gente não consegue desgrudar os olhos de cima dela. A dica de filme de hoje é do aclamado "It" lançado em 1927 (sim, um filme mudo!). O responsável por popularizar a carreira de Clara. Só lamento que ela e Louise Brooks nunca terem feito um filme juntas.

O Filme: Clara Bow é Betty Lou, uma jovem pobre da classe trabalhadora que divide um apartamento no subúrbio com uma amiga que é mãe solteira. Ela trabalha como atendente em uma loja de departamentos, e assim que conhece o dono (ou seja, seu chefe) o senhor Cyrus Waltham Jr., Betty automaticamente se encanta por ele. Cyrus tem uma noiva muito diferente de Betty: loira, rica e sofisticada. Mesmo sendo de classes sociais diferentes, Betty vai a luta, e derrama todo seu charme pra cima de Cyrus que fica todo indeciso quanto aos seus sentimentos por Betty, pois sem querer ela acaba se envolvendo em um escândalo que foi parar no jornal: todos pensam que ela é uma mãe solteira. Em meio a dura realidade, e as confusões da vida, Betty é sonhadora e só quer encontrar o amor verdadeiro. No Brasil o filme ficou conhecido pelo título de "O Não Sei Que das Mulheres". 

Esse é um daqueles filmes que foram um verdadeiro divisor de águas na era do cinema mudo. Com uma estética e história totalmente voltada para a sedução sutil, que é resumida apenas em uma única palavra: "It"! A mulher "It Girl" é aquela que tem "algo a mais" que a diferencia das outras. Uma característica marcante, que não se pode explicar em palavras. Esse filme foi responsável por marcar a carreira de Clara Bow e transformá-la em um dos primeiros símbolos sexuais do cinema. E para aqueles que não estão acostumados com filmes mudo, esse é bem dinâmico e engraçado. A última vez que assisti foi na companhia da minha mãe, e ela adorou. Fica a dica, crianças! 

Clara Bow (1905-1965) The more I see of men, the more I like dogs

19/02/24

Um Domingo Maravilhoso, Subarashiki nichiyôbi, 1947, de Akira Kurosawa

No itubi aqui

 

Um Domingo Maravilhoso, Por Eduardo Kaneco, 19 abril, 2020

Akira Kurosawa é lembrado principalmente pelos seus filmes de época com personagens samurais. Porém, ele dirigiu também verdadeiras pérolas contemporâneas. Entre elas, antes de sua obra-prima Viver (1952), Kurosawa realizou outro belo drama existencial: Um Domingo Maravilhoso.
Mesmo sem seguir os dogmas do neorrealismo italiano, Um Domingo Maravilhoso segue o seu fundamento de retratar a realidade como ela é. Assim como a Itália, o Japão também enfrentou um período de extrema pobreza após a Segunda Guerra Mundial. Então, é nesse cenário que um casal de jovens namorados tenta passar um domingo juntos em Tóquio, com pouco dinheiro para gastar.
A garota Masako é otimista e tenta durante todo o filme animar o desencantado Yuzo. 

De fato, isso fica simbolizado na cena em que se encontram. O rapaz está prestes a colocar na boca uma bituca de cigarro que ele pegou do chão, quando a namorada aparece e dá um tapa na sua mão. Ela impede, assim, que ele se comporte como um mendigo. Apesar dessa diferença de atitudes entre os dois, os personagens não são unidimensionais. Por isso, o rapaz Yuzo consegue se animar em alguns trechos do filme, como quando joga beisebol. Por outro lado, Masako também fica triste, principalmente quando a relação do casal parece condenada a não dar certo.

Capitalismo

Um Domingo Maravilhoso também evidencia a chegada do capitalismo, herança recente dos Estados Unidos, vencedores da guerra. Diante da dificuldade de encontrarem um lugar para morarem juntos, que caiba no pequeno orçamento do casal, Masako comenta com o namorado que muitas famílias em Tóquio vivem em casas grandes. Então, segundo a moça, elas poderiam ceder um dos quartos para quem precisa, uma ideia que não cabe na filosofia capitalista.
O capitalismo selvagem, porém, surge quando os dois se animam para assistir a uma apresentação de orquestra. Eles, claro, só têm condições de comprar os ingressos mais baratos, que custam 10 ienes. Porém, um cambista um pouco à frente deles na fila da bilheteria adquire todos os ingressos restantes do setor mais barato, e começa a revendê-los por 15 ienes.
Apesar do título do filme, Um Domingo Maravilhoso possui momentos de profunda melancolia. Por exemplo, Yuzo se torna agressivo quando dominado pela depressão. Nesse sentido, é rude com a namorada, e tenta até forçar uma relação sexual que a faz sair correndo do apartamento dele. Para não perder o namorado, a inexperiente Masako decide entregar sua virgindade a ele, mas aos prantos. O bichinho de pelúcia que ela carrega em sua indica ao rapaz a inocência da moça, e ele a acolhe gentilmente, compreendendo-a.

Frank Capra

Por fim, Um Domingo Maravilhoso foge do neorrealismo italiano nas sequências finais, quando o rapaz absorve o otimismo da namorada. No livro “The Films of Akira Kurosawa”, Donald Richie aponta a clara influência de Frank Capra na cena em que o casal fantasia estarem trabalhando no café que eles sonham um dia abrir. Richie até indica que as interpretações de Isao Numasaki e Chieko Nakakita são influenciadas por James Stewart e Jean Arthur.

Se essa bela cena fosse a conclusão do filme, Um Domingo Maravilhoso seria um filme ótimo. Mas, a história continua e leva o casal ao local onde aconteceu à tarde a apresentação da orquestra. E essa longa sequência mostra que o namorado volta a ficar depressivo novamente, e acompanhamos durante longos minutos ele, finalmente, aceitando a fantasia e regendo uma orquestra imaginária. O que torna esse momento ainda mais fraco é seu fechamento pedante. Nele, a garota se dirige à câmera e pede ao público (imaginário assistindo a orquestra e os espectadores do cinema) para aplaudir junto com ela e incentivar Yuzo a acreditar nos seus sonhos.
Enfim, a última cena resgata o clima antes dessa sequência da orquestra, e o filme funcionaria melhor se esta viesse logo após o trecho da fantasia do café. Nessa conclusão, Yuzo se despede de Masako na estação de trem e encontra uma bituca de cigarro no chão. Há um certo suspense para sabermos se ele o pegará, o que significaria que ele aceita ou não permanecer na sua condição de pobreza.

Fenômeno natural

Como costumeiro em sua filmografia, Kurosawa utiliza os fenômenos da natureza para indicar o tom do filme. Por exemplo, a chuva marca os momentos mais tristes de Um Domingo Maravilhoso. Quando o sol reaparece, o rapaz Yuzo se anima para sair à rua, depois da forte briga com Masako. E, finalmente, o vendaval atrapalha a fantasia do rapaz na condução da orquestra.
Um Domingo Maravilhoso é outro grande exemplar de drama contemporâneo de Akira Kurosawa. Realista e existencial, retrata com sensibilidade a dureza do pós-guerra no Japão.

19/02/04
Einstein e a Bomba, Enstein and the Bomb, Série de TV, 2024, Anthony Philipson


O arrependimento do “pacifista” Albert Einstein

NOS ÚLTIMOS ANOS (1955) DE EINSTEIN, UM JORNALISTA JAPONÊS, KATSU HARA, PROCUROU O PROFESSOR POR CARTA E O QUESTIONOU SOBRE SEU ENVOLVIMENTO COM A BOMBA AtÔMICA

KATSU: Meu caro professor. Atualmente, o povo japonês está bem ciente da responsabilidade dele na última guerra. E demonstram um sincero arrependimento pelo crime deles. Recentemente, anos após o término da guerra, os japoneses estiveram pela primeira vez cara a cara com os efeitos aniquiladores da bomba atômica. Agora perguntamos ao senhor,professor Einstein, por que a ciência, cujo maior objetivo é servir ao bem-estar e a felicidade da humanidade, teve que ser instrumental para produzir efeitos tão terrí­veis?

EINSTEIN:Não me considero o pai da liberação da energia atômica. Minha participação foi bem indireta.

KATSU: Diante do fato de que o senhor teve um papel importante na produção das bombas atômicas?

EINSTEIN: Minha única contribuição foi que, em 1905, estabeleci a relação entre massa e energia. Eu não acreditava que a energia atômica era possí­vel teoricamente. Na verdade, não previ que a energia atômica seria liberada na minha época.

Cometi um único grande erro na minha vida. Assinar a carta para o presidente Roosevelt.
A chance de que os alemães estivessem trabalhando na mesma questão com muita possibilidade de sucesso me forçou a dar esse passo. Se eu soubesse que os alemães não conseguiriam produzir uma bomba atômica não teria participado da abertura dessa caixa de Pandora. Eu jamais teria levantado um dedo.
Antes do ataque a Hiroshima, importantes físicos clamaram ao Departamento de Guerra para que não usassem a bomba contra mulheres e crianças indefesas.
Se tivéssemos mostrado a outras nações a explosão de teste do Novo México, poderíamos te-la usado para fazer propostas para a ordem mundial. Para acabar com a guerra. Os fí­sicos que participaram da criação da arma mais temível e perigosa de todos os tempos, são atormentados por um sentimento em comum de responsabilidade, para não dizer culpa.

Entregamos essa arma nas mãos do povo americano e do povo britânico para serem guardiães de toda a humanidade, guerreiros da paz e da liberdade. Mas, até agora não conseguimos ver nenhuma garantia de paz nem as liberdades prometidas às nações. A situação pede um esforçoo corajoso. Uma mudança radical em toda a nossa postura perante todo o conceito polí­tico. Caso contrário, a civilização humana estará condenada.
A guerra foi ganha, paz não.

Einstein and Bomb Ending Explained
– What was Einstein’s contribution to the atomic bomb?
By Kieran Burt, Published: February 17, 2024

20/02/24

Grandes Esperanças, Great Expectations, 1946, David Lean

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GRANDES ESPERANÇAS (1946)

Charles Dickens é um dos mais populares escritores da literatura mundial. Uma de suas últimas obras, Grandes Esperanças, foi publicada em 1861 e ganhou sua primeira adaptação para o cinema em 1946, considerada até hoje a melhor de todas as versões já feitas. Dirigida por David Lean, que escreveu o roteiro junto com Ronald Neame, Anthony Havelock-Allan, Cecil McGivern e Kay Walsh, trata da trajetória de Pip, vivido na infância por Anthony Wager e na fase adulta por John Mills. Pip é um menino pobre que se apaixona por Estella (Jean Simmons e Valerie Hobson) quando ainda era criança.

Ela vive com a avó (Martita Hunt), uma mulher solitária e carregada de amargura. Pip recebe ajuda financeira de um misterioso padrinho. Anos depois, morando em Londres, Pip está bem diferente daquele humilde garoto do passado. Mas, a paixão por Estella continua intacta. Grandes Esperanças já deixa bem claro o talento de Lean para grandes temas. Talento já latente aqui e que viria a se manifestar em sua plenitude onze anos depois, quando realizou A Ponte do Rio Kwai, e, principalmente, em 1962, com Lawrence da Arábia. Marca também o início de uma parceria com o ator Alec Guinness, que participaria de outros cinco filmes com o diretor. Grandes Esperanças recebeu cinco indicações ao Oscar e saiu vencedor em duas: direção de arte e a bela fotografia em preto e branco.

21/02/24
Companheiros, Vamos a matar, compañeros, 1970, Sergio Corbucci

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Companheiros, 1970 Mar 2017 por S de Sergio

Quando o General Mongo (José Bódalo) conquista mais uma cidade para os revolucionários mexicanos, descobre que a combinação do cofre está nas mãos do pacifista professor Santos (Fernando Rey), aprisionado em Yuma, nos Estados Unidos. Para o resgatar, Mongo envia o seu tenente, o impulsivo Vasco (Tomas Milian) e o mercenário sueco Yodlaf Peterson (Franco Nero). Os dois homens odeiam-se, mas terão de trabalhar juntos para conseguir ludibriar os norte-americanos, raptar o professor e trazê-lo de volta ao México. Isto, enquanto são perseguidos pelo sádico John (Jack Palance), e tentam compreender a estranha filosofia pacifista de Santos.

Análise:

O mais prolífico (no que ao western diz respeito) dos Sergios, Sergio Corbucci estreava em 1970 um dos seus títulos mais populares, e mais um que se integrava no subgénero western zapata, isto é, aqueles westerns de origem italiana que lidavam com o tema da revolução mexicana. “Companheiros” pega, de certo modo, nas ideias deixadas pelo anterior “Pistoleiro Profissional” (Il mercenário, 1968), repetindo personagens e dinâmicas, que são as das lutas fratricidas dentro das várias vertentes da revolução, a ingerência estrangeira, fosse pelo interesse político (EUA), pelo uso de peritos militares (o Polaco do filme anterior, e o Sueco do filme presente, ambos interpretados por Franco Nero), ou ainda pelo papel do povo, e mesmo dos pequenos criminosos, que aos poucos ganhavam consciência política.

É um pouco de tudo isso que temos em “Companheiros”, que vemos iniciar-se com o fuzilamento daqueles que se recusam votar no presidente Diaz, levando a uma imediata escaramuça entre as tropas governamentais e os revolucionários do General Mongo. São-nos depois apresentados os dois protagonistas. De um lado Vasco (Tomas Milian), pequeno criminoso recrutado para chefiar um ataque das tropas de Mongo. Do outro, o sueco Yodlaf Peterson (Franco Nero), um mercenário que vende armas modernas à melhor oferta. Entre eles surge uma terceira força, os partidários do professor Santos (Fernando Rey), um idealista que quer paz e progresso para o México, e que renega governo e revolucionários militares. Liderados por Lola (Iris Berben), por quem Vasco se apaixona, pedem ajuda ao sueco, mas com a chegada do General, o sueco e Vasco são enviados a capturar Santos, pela combinação do cofre que este deixou para trás. Pelo caminho, tanto o sueco como Vasco vão rever as suas prioridades para com a revolução mexicana, muito graças às palavras de Santos, um homem bondoso e sábio, enquanto escapam aos exércitos norte-americano e mexicano, e ao mercenário John (Jack Palance) que os persegue. Tal faz com que, ao chegarem ao México, os dois se revoltem contra Mongo, tentando salvar Santos e a sua revolução pacífica.

Tal como em “Pistoleiro Profissional”, “Companheiros” começa com um flashback, narrado pelo personagem de Franco Nero, que conduz a história ao momento do confronto com o seu oponente mexicano, que acabará por ser seu amigo. Tal como no filme de 1968, temos uma história de revolução que coloca lado a lado um estrangeiro (Nero) e um mexicano de origens pouco recomendáveis (agora Milian), na missão de procurar algo, o que lembra ainda “Corre Homem Corre” (Corri uomo corri, 1968) de Sergio Sollima, também com Milian, onde este também emparceirava com um estrangeiro, para procurarem nos Estados Unidos o ouro escondido da revolução. Desta feita o que se procuram são ideais, na pessoa do pacifista professor Santos. Voltando o enredo a dar motivo para inúmeras perseguições e fugas, encontros e desencontros, onde a relação entre os dois protagonistas tem alguns contornos humorísticos, e onde o verdadeiro mal virá de outra parte, no caso o sinistro personagem de Jack Palance, aparentemente doente, e usando um falcão como os seus olhos. 

“Companheiros” vive, por isso, dos inúmeros recontros que vão mudar o curso dos eventos, num enredo complexo, onde a evolução da dinâmica entre os personagens de Nero e Milian (ambos com interpretações carismáticas) é sempre o ponto fulcral. A incerteza dessa relação (exacerbada pela cena de duelo com o que o filme abre) é o grande motivo de tensão do filme, que, à boa maneira dos western-zapatas, tem o seu quinhão de político (onde o personagem de Milian ostenta uma boina basca, a lembrar Che Guevara), com um olhar crítico para as forças que disputavam o México de então.
Mas é sobretudo no espírito de aventura, cenas de acção e irreverência dos personagens, que reside o interesse de “Companheiros”, onde não falta a presença feminina da revolucionária Lola, e o já citado lado negro do americano interpretado novamente por Palance, num papel que lembra a sua prestação como Curly em “Pistoleiro Profissional”. Adiciona-se a isto mais uma banda sonora de belo efeito de Ennio Morricone, com o tema-título em especial destaque.

Numa altura em que o próprio spaghetti começava a entrar em declínio, nota-se no próprio Corbucci (um dos mais originais criadores do género, com uma atmosfera negra e histórias assustadoramente provocantes) uma necessidade de cristalizar clichés, e aligeirar um pouco o tom. Tudo faz de “Companheiros” um filme leve, com quota-parte de divertimento, ainda que contendo a habitual habilidade de Corbucci para a grande acção, e o seu modo de filmar a grande paisagem como um deserto, seja qual for a cor escolhida. 

Um pouco como prova das citações que Corbucci agora insiste em fazer, como homenagem aos filmes anteriores, veja-se a sequência inicial, em que a corrida de Lola, em grande plano, mostrando-nos o fundo a girar em alta velocidade, é evocativa da sequência de Tuco (Eli Wallach) no cemitério em “O Bom, o Mau e o Vilão” (Il buono, il brutto, il cativo, 1966) de Sergio Leone, e como a cena em que o personagem de Milian arrasta um caixão é um piscar de olhos a “Django” 1966) do próprio Corbucci.

22/02/24

Os Desajustados, The Misfits, 1961, John Huston

 

Crítica | Os Desajustados (1961) por Leonardo Campos, 1 de fevereiro de 2016 

Acostumado a dirigir aventuras de pessoas que levam a vida sem freios, John Huston já havia ofertado ao mundo, clássicos como Relíquia Macabra e Moby Dick, ótimos desempenhos nas bilheterias. Com Os Desajustados, o realizador não conseguiu alcançar bons resultados financeiros (a produção custou U$4 milhões), mas colecionou críticas positivas, principalmente no que tange à atuação de Marilyn Monroe, mais consciente da sua carga dramática e distante do estereótipo de “loira burra”, fama alcançada graças aos seus filmes antecessores.

Quando decidiu assumir a direção deste filme, John Huston já havia garantido um espaço confortável dentro da indústria do cinema, o que se prolongou até os anos 1980. Foi indicado cinco vezes ao Oscar de Melhor Diretor, ganhou o Leão de Ouro pelo conjunto da obra, em 1985, sendo indicado ao prêmio Framboesa de Ouro apenas em 1982, pelo trabalho de direção no irregular.

Com um visual brilhante, mas um texto pessimista, o roteiro assinado pelo competente Arthur Miller (antes no formato conto) nos mostra a trajetória de Roslyn (Marilyn Monroe), uma mulher amarga e recém-divorciada que se  apaixona por Gay Langland (Clark Gable), um cowboy rabugento e grosseiro. De comportamento frio, Langland parece ser tudo que a mocinha não precisa, mas logo os sentimentos entram em ebulição e uma (desbotada) história de amor toma conta da narrativa.

Como já é de se esperar, conflitos surgirão para colocar os sentimentos à prova. Há a presença de dois amigos bem próximos do cowboy, ambos quase ameaçadores para o bom desempenho do relacionamento. Pessimistas, os personagens assumem muito bem o que promove o título da produção: são totalmente “desajustados” do mundo que os acolhe. Indiferença do marido, um divórcio que impede a aproximação dos filhos e um combatente de guerra cheio de cicatrizes internas, em suma, experiências ruins que tornam a vivência dos personagens frívola e com pouco sentido.

Na seara dos conflitos, há ainda outro problema. É o trabalho desenvolvido por Langland, algo que desagrada totalmente Roslyn: a caça de cavalos selvagens com intuito de utilizá-los para alimentação de animais domésticos, como por exemplo, cães e gatos, profissão que vai proporcionar ao filme uma cena belíssima próxima ao seu final, com enquadramentos e movimentação de câmeras numa simbiose virtuosa.

Por falar em aspectos técnicos, através de grandes planos gerais, Os Desajustados é um filme que aposta em fórmulas já datadas na década de 1960, mas ainda eram garantia de sucesso: no Deserto de Nevada, nos Estados Unidos, a produção capta a sensação árida do espaço cênico através do modo que os personagens levam as suas respectivas vidas. Apesar da estrutura narrativa “básica”, há outros detalhes que merecem destaque, como a fotografia de Russel Metty e a trilha sonora de Alex North funcionam bem.

“Parece que o sol acabou de aparecer”, afirma com graciosidade um dos personagens de Os Desajustados, clássico hollywoodiano que trouxe os ícones Clark Gable e Marilyn Monroe juntos, em suas performances derradeiras no cinema. A frase exclamativa, que pode ser entendida claramente como um elogio, foi direcionada a Monroe, uma atriz que na época colecionava polêmicas na mídia, ora por seus relacionamentos escandalosos, ora por suas atitudes e ataques de insegurança nos bastidores de diversas produções.

Muitos historiadores afirmam que o roteiro do filme foi “feito” na medida para a musa do cinema. Monroe e Miller estavam casados na época das filmagens, mesmo com tantos problemas internos na relação. A personagem Roslyn vinha de um divórcio que demarcara a sua vida dentro do tempo narrativo, assim como Monroe. Outro ponto de aproximação é a questão dos maus-tratos aos animais, uma coisa que a atriz deixava claro o sentimento de ojeriza: esse, inclusive, é um dos tópicos que mais trouxe conflitos entre os personagens da dinâmica fílmica.

Os Desajustados, como apontado, não é um primor narrativo, mas cumpre a sua função como importante ícone dentro da história do cinema, pois foi o último filme de Clark Gable e Marilyn Monroe, atores que morreram logo depois do lançamento. Alguns relatos apontam que Gable costumava dizer pelo set que “morreria de infarto”, por causa dos atrasos crônicos da atriz durante as filmagens. Ironia ou não, o ator faleceu de um ataque cardíaco uma semana após o término das filmagens. No caso de Monroe, morreu no ano seguinte, ainda muito jovem, aos 36 anos, vítima de uma overdose que é alvo de teorias conspiratórias até a contemporaneidade.

Clark Gable (1901-1960)
Marilyn Monroe (1926-1962)
Montgomery Clift (1920-1966)

24/02/24

Star Wars: Os Últimos Jedi, Star Wars: Episode VIII - The Last Jedi, 2017, Rian Johnson


OS ÚLTIMOS JEDI - CENAS EM DETALHES: O melhor filme de toda a saga Star Wars

Boy, 2010, Taika Waititi

Crítica | Boy (2010), por Rodrigo Oliveira em 20 de outubro de 2017 

O verdadeiro nome de Boy é Alamein – o mesmo do seu pai (Taika Waititi). Para Boy, seu pai ausente é um homem muito ocupado, e ele preenche a lacuna deixada pelo abandono com a imaginação: Alamein seria escultor, mergulhador, caçador de tesouros, capitão do time de rugby, mestre samurai, recordista de socos com uma só mão no maior número de pessoas, irmão do Michael Jackson e da Líbia e ainda teria lutado com um batalhão maori durante a Segunda Guerra Mundial. Quando sua avó viaja para um funeral, Boy fica no comando da casa por uma semana. Sua vida muda repentinamente quando seu pai reaparece e a versão idealizada e heroica que ele sempre imaginou durante sua ausência confronta-se com a versão real: seu pai é um bandido incompetente e trapalhão, fundador de uma gangue de três pessoas (Crazy Horses) que acabou de sair da prisão, e voltou apenas para encontrar uma bolsa com muito dinheiro que enterrou anos atrás em um campo próximo – sem lembrar-se do local exato.

Quase todas essas informações são despejadas na tela em pouco menos de cinco minutos. Boy está diante da classe no retorno às aulas contando sobre a sua vida, e a câmera de Taika Waititi se posiciona como se o garoto falasse diretamente para o espectador. Suas palavras surgem no ecrã em composições bizarras, auxiliadas pela montagem acelerada e dinâmica de Chris Plummer, cravejadas de contornos surrealistas e nonsenses – como tudo que Waititi faz. As fantasias mais loucas que nascem das mentes de Boy e Rocky materializam-se fabulosamente em cena. Um exemplo é quando Alamein e seus comparsas entram em confronto com uma gangue em um pub por causa de maconha e, enquanto espera em um carro com Rocky, Boy vê seu pai vencendo a todos em um bizarro combate musical. Essa pequena sequência de crianças esperando pelo pai em um carro na frente de um bar é o enredo do curta-metragem Dois Carros, Uma Noite, dirigido e roteirizado pelo próprio neozelandês e nomeado para o Oscar de melhor curta-metragem em live-action em 2005. A partir dessa ideia simples, o cineasta desenvolveu a história de Boy – indo muito além em seu escopo.

Taika Waititi fotografa o seu Alamein como um pai inicialmente atrativo aos filhos, mas cuja casca delirante de motociclista perigoso e influente, que se gaba de seus feitos e narra histórias alucinadas que mudam a cada vez que são contadas, rapidamente se desfaz na convivência com os garotos. Aos poucos ele se revela como realmente é: um perdedor ridículo e alienado, com um espírito de criança brincalhona e sonhadora e menos disposição para assumir responsabilidades do que os próprios filhos pequenos que ele covardemente abandonou após a morte da esposa.

Adultos desajustados que se comportam como crianças são uma constante na filmografia do diretor e Alamein talvez seja o melhor exemplo desse arquétipo. Em determinado momento, ele se compara ao Incrível Hulk (“Às vezes fico com raiva, um pouco como o Hulk. Acho que você pode lidar com isso, ter um Incrível Hulk como pai.”) – uma espécie de premonição aleatória sobre um dos futuros filmes que Waititi iria dirigir – e em outra situação chega a pedir ao filho para que não o chame de pai, porque “soa estranho“. Em vez disso, quer ser chamado de “Shogun”, um mestre samurai que comanda a todos. O pai de Boy é uma pessoa patética e absorvida em seu próprio mundo particular de diversão, golpes e dinheiro pretensamente fácil.

 

A mãe de Boy e Rocky, interpretada por Ngapaki Emery, surge em lembranças idílicas dos meninos, momentos que evocam alegria e tristeza, sempre encharcados de melancolia. Os dois atores infantis, ambos inexperientes, entregam performances afetuosas e ternas. Te Aho Eketone-Whitu cativa como o pequeno Rocky. Tímido e silencioso, o garoto culpa-se pela morte da mãe durante o parto (ele acredita que os seus poderes foram responsáveis pela fatalidade), passando a maior parte do tempo desenhando ao lado de sua lápide e vivendo em um mundo solitário e imaginativo – que revela-se na tela em um sabor agridoce, como folhas de caderno desenhadas por ele mesmo, em uma incrível e criativa saída visual e poética. A única pessoa com quem ele conversa, e que não duvida dos seus poderes, é um louco que mora debaixo de uma ponte, que ouve suas histórias e lhe dá conselhos (“Você tem que usá-los [seus poderes] para fazer o bem. Como nas histórias em quadrinhos.”).

James Rolleston foi escolhido para o papel principal dois dias antes do início das gravações – substituindo um outro ator depois que Taika Waititi deu-lhe uma audição e ficou impressionado com a sua atuação. Boy tem responsabilidade de adulto, mas sensibilidade de infante. Precisa tomar conta do seu irmão mais novo e dos seus vários primos pequenos, tenciona ser um membro da gangue do seu pai, sofre com as perseguições de Kingi (Manihera Rangiuaia), e conta com a ajuda do pai para virar o jogo, mas conversa com a sua cabra, dança Michael Jackson desajeitadamente para tentar impressionar Chardonay e sonha os mesmos sonhos infantis de todas as outras crianças do seu círculo de amizades, maravilhando-se nas coisas mais simples, como na belíssima sequência em que enxerga coisas mágicas nos movimentos que seu pai faz com fogos de artifício ou mesmo na doçura com que o tempo se encarrega de desenvolver um embrião de relacionamento entre ele e Dynasty.

Boy é um desses filmes que mesclam drama e comédia tão perfeitamente e sem artificialidades que você não sabe quando um começa e o outro termina – uma sequência envolvendo a cabra Leaf é o ápice desse amálgama. O riso converte-se em consternação tão velozmente quanto o peito apertado irrompe em um sorriso de contentamento – em mais uma prova da habilidade que o cineasta neozelandês tem no manuseio dessa característica tão marcante do seu estilo. Nessa incrível fábula maori com toques de absurdo, ainda sobra espaço para referências a E.T. – O Extraterrestre (1982), de Steven Spielberg (é uma famosa frase do clássico oitentista que abre o filme), e para uma cena pós-créditos surreal com a fantástica cabra Leaf e uma impagável reprodução do icônico clipe de Thriller, com todo o elenco (incluindo Michael Waititi, ou seria Taika Jackson?) mimetizando a famosa coreografia de Michael Jackson, mas ao som de Poi E, canção em língua maori do grupo Patea Maori Club, de 1984, que mistura ritmos do tradicional povo da Oceania com sintetizadores e hip-hop.

O filme foi rodado em uma aldeia maori na baía de Waihau (região onde o próprio Taika Waititi nasceu), cujo cenário pitoresco e peculiar (como quase todos os ambientes naturais da Nova Zelândia), muito bonito e ao mesmo tempo muito pobre, contribui – bastante – para a memorabilidade da obra e da história que é contada. A fotografia de Adam Clark é tão viva quanto nostálgica, com um sabor forte de infância e muitas panorâmicas da região costeira, e ao lado da trilha sonora habitual da The Phoenix Foundation complementa com talento o quadro geral do filme, rodado com estilo por Waititi, que posiciona sua câmera com consciência, contemplando um quadro quando necessário, mantendo-se normalmente distante em planos médios e gerais mas sabendo aproximar-se dos atores em closes quando preciso, capturando belíssimos planos pelo caminho. Além disso, em um elenco majoritariamente formado por crianças (e praticamente todas elas atuando pela primeira vez em suas vidas), o neozelandês demonstra imensa capacidade na direção de atores, extraindo boas atuações de todos, de modo que ninguém soa artificial em cena e todos agem com naturalidade – algumas das crianças muito pequenas parecem até mesmo capturadas pela câmera sem que soubessem que estavam sendo filmadas, tamanho o realismo que transmitem.

Boy é uma deliciosa aventura lúdica e emocional, um aprofundado – e apaixonado – olhar de Taika Waititi sobre o povo maori (o seu povo maori), a vida nas profundezas remotas de uma comunidade rural e a universalidade das relações entre pai e filho – além de uma homenagem afetuosa aos anos 1980 e a Michael Jackson. A sua capacidade ímpar para criar diálogos incríveis em conversas diretas e engraçadas desenvolve a humanidade dos seus protagonistas com singularidade. O relacionamento entre os dois Alameins passa pela idolatria, pela desatenção, pelo abandono, e finalmente por uma espécie de cura emocional ocasionada pela sombra restauradora que a memória da mãe e esposa falecida provoca. Os sabores da infância são evocados em uma dolorosa comédia sobre o crescimento, e todas as dores e alegrias que ele traz. Filmado com muita fantasia, inventividade, drama, humor e poesia, Boy ultrapassa os limites da sua remota ambientação maori, da excepcionalidade dos seus acentos locais, e torna-se capaz de dialogar com qualquer um de nós – em qualquer lugar do planeta – que, um dia, já fomos crianças.

Jojo Rabbit
, 2019, Taika Waititi

As fantasias que construímos, 13/04/2020 por Amilton de Azevedo, crítica de “Jojo Rabbit”, de Taika Waititi.

Jojo Rabbit (2019) é um filme que beira o inacreditável. Taika Waititi dirige, roteiriza e interpreta Adolf Hitler, o amigo imaginário do jovem nazista Johannes Betzler (Roman Griffin Davis, muito bem no papel), no filme que, entre outras coisas, estrutura-se como sátira ao nazismo.

Na sequência inicial, uma Beatlemania alemã: ao som de Komm Gib Mir Deine Hand, versão de I Want To Hold Your Hand gravada pelos próprios garotos de Liverpool, imagens dos megalomaníacos comícios hitleristas. De certo modo, não deixa de ser uma aproximação perigosa feita por Waititi; mas que cabe perfeitamente ao roteiro de Jojo Rabbit, onde as escolhas da fábula parecem sublinhar o caráter fantasioso que sustenta fanatismos de diversas ordens.

Quando conhecemos Jojo, o garoto franzino está animado para ir ao acampamento de treinamento da Juventude Hitlerista. A guerra ainda está longe, e Jojo sonha em ir lutar e se mostra disposto a morrer pela pátria. Então, somos apresentados ao Capitão Klenzendorf (Sam Rockwell), seu assistente Finkel (Alfie Allen) e à Senhorita Rahm (Rebel Wilson) — além do único amigo do garoto, Yorki (o carismático Archie Yates).

É uma configuração que parece lançar Moonrise Kingdom, de Wes Anderson, a um contexto onde jamais poderíamos imaginar tais figuras: um campo de batalha. Pois Rockwell, Allen e Wilson compõe com timing e expressividades precisas um trio de adultos completamente inaptos; é neles que se centra boa parte da sátira ao nazismo ao longo do filme — com sacadas divertidíssimas e outras um tanto apelativas.

Talvez a maior fantasia do filme seja o imaginário de Waititi projetado na composição cômica dos oficiais e do regime hitlerista; não apenas por ele interpretar o patético e atrapalhado Adolf imaginário do protagonista, mas por uma composição que ridiculariza toda e qualquer estrutura nazista que se apresenta em Jojo Rabbit. Quase como um desejo de que todas as pessoas que fizeram parte deste capítulo nefasto da História da humanidade fossem figuras terrivelmente patéticas e disfuncionais.
É um risco assumido por Waititi, pois mesmo com todo o humor e a evidente tomada de posição do filme é ainda para muitos uma lembrança extremamente dolorosa; abordar o assunto pode soar até mesmo ofensivo. Por isso a insistência na construção fantasiosa do enredo, que talvez seja mais fábula do que sátira — até com uma espécie de moral da história na escolha pelo trecho do poema de Rainier Maria Rilke para encerrar o filme.

No centro da narrativa está Jojo, que adota o sobrenome Rabbit após ser ridicularizado por garotos mais velhos da Juventude Hitlerista por não conseguir matar um coelho e, seguindo os conselhos de seu amigo Adolf, passa a ser como um coelho, correndo por aí e pegando cenouras — o que de fato passa a acontecer quando, já desacreditado do nazismo, busca apenas sobreviver e garantir que Elsa (Thomasin McKenzie) fique bem.

Criado por sua mãe, Rosie (no excelente trabalho de Scarlett Johansson), acredita que seu pai está lutando na guerra. No início do filme, os bullies dizem que ele desertou há anos; próximo ao fim, sugere-se que ele fazia parte da rede de resistência que protegia judeus. De todo modo, é possível ler na construção imaginária de Adolf a necessidade de Jojo de um exemplo masculino, de uma figura paterna.

O filme de Waititi resolve essa questão em uma bela cena, quando Jojo dança com sua mãe que, em um momento incrível de Johansson, pinta o rosto de carvão para fingir ser também seu pai. Jojo Rabbit fala de relações familiares com muita doçura e leveza, deixando evidente que o foco de sua crítica não é nem poderia ser este; não é dali que emerge um fanatismo tão perigoso — e tão distante da realidade.

Enquanto extrai humor de Wilson, Rockwell e Allen, Waititi satiriza os absurdos nos quais alguém é levado a acreditar em um determinado contexto — absurdos que sustentam, de alguma maneira, as violências criminosas, imensuráveis, cometidas por regimes totalitários. Neste sentido, o filme não está voltado apenas a um olhar ao passado, mas lança-se de forma contundente à realidade que vivemos.
A narrativa de Jojo Rabbit desenvolve-se de modo que o arco dramático de seu protagonista é influenciado tanto por macro quanto por micro acontecimentos. Ele precisa efetivamente conhecer uma judia para desmontar minimamente a fantasia construída pelo regime; assim como parece ser apenas na sequência onde a guerra deixou de ser uma notícia distante e passou a ser a realidade nas ruas em que ele se dá conta de seu terror.

O terror e a beleza evocados pelo poema de Rilke, aliás, estão como um pêndulo oscilante ao longo do filme. Na sequência onde Jojo finalmente percebe o que é a guerra, Waititi lembra o público da densidade dos acontecimentos; a edição de Tom Eagles mantém Jojo Rabbit entre o hilário e o terrível.
O belo surge, muitas vezes, como uma leveza singela; como o olhar de Jojo para os pés de Rosie dançando sobre um muro, em um dos belos enquadramentos da fotografia de Mihai Malaimare Jr. Depois, o terror ao ver esses mesmos pés suspensos no ar. Apesar da tragédia familiar, Waititi parece propor algo de otimista no filme.

A cidade está destruída, mas Elsa e Jojo estão livres para dançar e a guerra acabou. É como se não fora tarde demais — nenhum sentimento é definitivo, também afirma o poema de Rilke. Resta saber se as fantasias construídas na realidade, e não nas fábulas ficcionais, também são passíveis de transformação; e se ainda haverá algo a ser feito.

26/02/24

O Preço do Poder, Il prezzo del potere, 1969, Tonino Valerii

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O Presidente James Garfield chega em seu trem ao estado do Texas onde irá debater suas reformas políticas. Sua posição antiescravatura é extremamente impopular com os locais, particularmente a Jefferson, o xerife corrupto e Pinkerton o banqueiro. Secretamente eles planejam matar o presidente, pois sabem que seu sucessor poderá ser comprado. Ben Willer descobre que seu pai foi assassinado pelo xerife, pois sabia dos planos contra o presidente. Mas, apesar de seus esforços o assassinato tem sucesso, e um negro leal à causa do presidente é acusado e aprisionado. Agora, ajudado por Arthur McDonald o assistente do presidente, cabe a Willer fazer justiça, custe o que custar...Filmow

26/02/24

Cemitério Sem Cruzes, Une corde un Colt..., 1969, Robert Hossein

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 “Cemitério Sem Cruzes”, de Robert Hossein. Por Octavio Caruso 25 de junho de 2021

Manuel, um pistoleiro que usa uma luva preta em apenas uma das mãos, é envolvido por uma mulher numa trama criminosa. O ator e diretor Robert Hossein colocou na cabeça que faria o primeiro faroeste francês, respeitando a mitologia do gênero e homenageando seu amigo Sergio Leone, o que resultou nesta pérola pouco lembrada.

O tema muito utilizado da vingança ganha um contorno psicologicamente mais denso, já que o interesse em cada cena está na emoção suprimida pelos personagens, com poucos diálogos, como a tristeza perene no rosto do protagonista, ao invés do usual desfile de poses e frases espirituosas que tentam apelar para o inconsciente mítico do Velho Oeste.

Não há também uma clara definição entre mocinhos e bandidos, todos cometem atos vis e nobres, as motivações são muito bem trabalhadas. A bela Michèle Mercier, logo após terminar a saga romântica “Angélica”, vive uma viúva determinada a humilhar os responsáveis pela morte de seu marido. Ela não é uma figura de decoração narrativa, como boa parte das mulheres no gênero, ela é uma mistura enigmática de vítima e algoz, nada menos que a força motriz de todo o filme.

O dedo de Dario Argento no roteiro aborda com tom fatalista o ciclo inescapável da vingança, o remorso de um homem apaixonado pela esposa do melhor amigo e que tenta, consciente de que está caminhando para seu túmulo, honrar o nome do falecido como forma de se perdoar.



27/02/24

Canibal, Caníbal, 2013, Manuel Martín Cuenca

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Cannibal (2013)

Carlos is a tailor in Granada who lives by himself and avoids involvement with others. He is also a serial killer who abducts women he desires, kills them and eats their flesh. Despite himself, he is drawn in to befriend Alexandra, a Romanian masseuse who moves into the apartment above his. Carlos tries to remain uninvolved as she comes begging his help following a fight with her boyfriend. He offers to drive her to the police station. Some days later, Alexandra’s sister Nina comes looking for Alexandra who has disappeared. Carlos offers Nina help and becomes drawn in by her. Despite himself, he forms an attachment to Nina as she starts to become attracted to him.
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Cannibal is a film from Spanish director Manuel Martin Cuenca. It should be noted – and this is important when it comes to the film’s approach to genre subject – that Cuenca’s background as a director was first in documentary and then in non-genre dramas such as The Weakness of the Bolshevik (2003), Hard Times (2005), Half of Oscar (2010) and the subsequent The Author/The Motive (2017) and The Daughter (2021), all of which found their audiences in international festival play.

Manuel Martin Cuenca astonishes you with the cool, detached understatement he demonstrates in the opening scenes. The credits play out on a very wide-angle that takes place at night with the lit-up forecourt of a gas station in the centre of the shot as we watch a couple as they mill around and get back into their car and depart, before a car window winds up in the foreground and we realise that someone has been secretly observing the whole scene, whereupon the still unseen observer starts his car and follows the couple. We then switch to the inside of the car of the couple as the stalking driver passes them and then a moment later abruptly turns and reverses at speed back towards them. Cuenca then cuts to another wide angle as the couple’s car is crashed off the side of the road and the mystery driver’s vehicle just sits parked there idling, before we move into closer shots as Antonio de la Torre exits, goes down to the crashed car and returns dragging the woman’s body.

We then cut to extreme wide-angles following his vehicle up through the mountains as dawn starts to rise, before he arrives at his mountaintop cabin. Inside, we see him calmly stripping the body and tying the unconscious woman’s wrists to a table. We then see him taking butcher’s implements from the wall and move in to a closeup on her legs as we hear the sound of cutting and see a trail of blood run down the drain of the table into a pan. The film then cuts to Antonio de la Torre returning to his apartment in the city and nonchalantly placing several wrapped slabs of meat into his freezer. These scenes presage exciting things for the film to follow.

The cold obliqueness of the set-up, which tells us everything we need to know about the character, his stalking and the methodical coolness of his butchery, all without a single line of dialogue in twelve minutes, is astonishing. Not to mention is almost the complete opposite of everything we expect from a genre film or a work entitled Cannibal. Any easy expectations of a horror film – that Manuel Martin Cuenca is going to do something to shock us or pull standard suspense set ups – quickly go out the window. It becomes a film of silences where everything takes place in slowness and quietude.

01/03/24

A Camareira, La camarista, 2018, Lila Avilés

Eve é uma jovem camareira que trabalha em um luxuoso hotel da Cidade do México. Ela enfrenta a solidão de longos dias de trabalho através de novas amizades e fantasias sobre os pertences esquecidos dos hóspedes, que nutrem seu recém-descoberto e determinado sonho de uma vida melhor. Premiado em dezenas de Festivais, A CAMAREIRA é o primeiro filme de Lila Avilés e foi escolhido para representar o México no Oscar de 2020. Aclamada pela crítica, esta obra sublime aborda a questão social através de uma personagem marcante, brilhantemente interpretada por Gabriela Cartol.
Elenco: Gabriela Cartol , Teresa Sánchez , Agustina Quinci. Direção Lila Avilés
FILMICCA

Crítica | A Camareira (2018), por Ritter Fan, 17 de novembro de 2019

Quantas pessoas são invisíveis em nossa vida? Quantas pessoas existem ao nosso redor que tornam mais confortáveis nossas vidas sem que demos o devido valor? A Camareira, um pequeno filme mexicano dirigido pela estreante Lila Avilés, olha para as pessoas atrás da cortina representadas, aqui, por Eve (Gabriela Cartol), a humilde funcionária de um hotel luxuoso da capital do país.
Com uma câmera que nos mantém incomodamente próximos à protagonista, Avilés faz o espectador tornar-se íntimo da camareira e de seu dia-a-dia limpando e arrumando os quartos de seu pequeno e desejado “feudo” no 21º andar do hotel, com apartamentos VIP. 

Vemos seu cuidado e sua eficiência em seu trabalho, vemos como ela lida com as mais esdrúxulas situações com os clientes, como a mulher argentina que transforma Eve em uma babá ou o cliente judeu que, obedecendo estritamente o sabá, pede para ela apertar o botão para chamar o elevador ou, ainda, o hóspede que tem alguma tara pelas amenidades oferecidas, como os frasquinhos de xampu e creme e toalhas. Também vemos seus desejos, que vão do vestido vermelho deixado na seção de Achados e Perdidos até a chance de trabalhar no ponto (literalmente) alto da carreira de uma camareira desse hotel: o 42º andar, com seus quartos que mais parecem pequenas mansões.

E tudo isso o roteiro que Avilés escreveu com Juan Carlos Marquéz passa com uma primorosa economia de palavras e uma perfeita fluidez narrativa que faz a navegação pela história muito fácil e dolorosamente clara de se acompanhar, por vezes até emprestando à fita um tom documental. 

Digo dolorosamente, pois, ao nos colocar na pele de Eve, passamos a ser ponto focal do contraste de sua vida com a dos hóspedes. Por exemplo, a argentina que pede para ela cuidar de seu filho pequeno por alguns minutos enquanto toma banho diz, naturalmente, depois de breve conversa com Eve, que a camareira tem “sorte” por ter alguém que cuide de seu filho enquanto ela trabalha. É uma frase rápida, dita sem pensar, sem medir as consequências, mas que funciona como uma adaga perfurando o coração de Eve, mesmo que Cartol maravilhosamente não crie um dramalhão com sua atuação. Muito ao contrário, suas feições quase não mudam, mas cada mínima alteração é extremamente expressiva, algo que a fotografia com muito close-up ajuda a capturar e a amplificar seus efeitos.

Cartol realmente merece destaque aqui por transmitir seriedade, austeridade e sinceridade em cada olhar e ao desenvolver sua personagem vagarosamente ao longo dos dias e semanas em que acaba fazendo – a contra-gosto – amizade com Minitoy (Teresa Sánchez), camareira do 12ª andar, exato oposto de Eve em personalidade. É particularmente contagiante o momento que – movida a choques elétricos (a metáfora não escapa a ninguém e nem deveria) – Eve cai na gargalhada com Minitoy, um dos poucos momentos em que vemos a camareira sair de seu regime discreto ao ponto de ser invisível.
Esse momento descontraído, porém, é a exceção na vida espartana de Eve que prefere tomar banho nos banheiros para funcionários do que ir para cada logo depois de acabar o expediente, pois em casa, diz ela, é necessário pegar água com um balde e tomar banho “de caneca”. Mas não há rancor em sua voz. 

Há, ao contrário, resignação, algo que faz parte da vida, mas que, do lado de cá, sabemos que não deveria fazer. E o contraste com o alto luxo do hotel e as esquisitices excêntricas de seus hóspedes só tornam isso quase que didaticamente claro, para nos fazer refletir sobre a massa de pessoas que fazem o mundo girar, mas que não reconhecemos, que sequer conhecemos. E que, em muitos casos, efetivamente não queremos nem saber que existe.

A delicadeza e a simplicidade de A Camareira, carregado nas costas por um impressionante trabalho de Cartol e por uma direção precisa de Avilés, é um daqueles filmes que é feito para encantar na mesma medida que para incomodar. E ele cumpre sua função com louvor ao nos forçar a ver os seres humanos invisíveis que estão ao nosso redor.

02/03/24

A Tabacaria, Der Trafikant, 2018, Nikolaus Leytner

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Crítica | Eduardo Kaneco, 3 setembro, 2019
https://leiturafilmica.com.br/a-tabacaria/

O livro A Tabacaria, de Robert Seethaler, chega aos cinemas pelas mãos do diretor e co-roteirista Nikolaus Leytner. A obra vendeu mais de 500.000 cópias só na sua versão em alemão.
Nikolaus Leytner é um experiente diretor de filmes para a televisão, apesar de já ter realizado alguns longas-metragens para o cinema. E A Tabacaria claramente evidencia sua bagagem televisiva.

Freud

A estória inclui um personagem histórico real, Sigmund Freud como um dos protagonistas, mas o relato é fictício. O filme conta como o jovem de 17 anos Franz sai de sua boa vida numa pequena cidade no interior da Áustria para a capital Viena. Lá, ele trabalha e dorme numa tabacaria pertencente a Otto Trsnjek, antigo namorado da mãe de Franz.
Freud, na época com 80 anos, é cliente da loja e inicia uma amizade com Franz. Logo, Freud dá conselhos ao rapaz em seu primeiro relacionamento amoroso da vida, com Anezka. Essa garota da Bavária, que trabalha no vaudeville, logo se mostra bem mais experiente que Franz, em todos os sentidos. O rapaz se apaixona, mas ela se envolve com homens mais maduros para ganhar a vida.
Os fatos acontecem na primeira metade do século 20, quando os nazistas começam a ocupar a Áustria. Aos poucos, a política começa a afetar a vida de Franz. A polícia nazista prende Otto, acusado de ser amigo dos judeus, entre eles Freud, que precisa fugir para a Inglaterra. Com a ausência de Otto, Franz assume a responsabilidade de cuidar da tabacaria. Porém. ao assumir posição contrária aos nazistas, ele também sofre repressão.
Apesar do ambiente conturbado que é retratado em A Tabacaria, o filme opta por evitar cenas de violência explícita. Assim, aquelas com potencial de chocar são apenas sugeridas. Por exemplo, o suicídio do personagem comunista, que aparece sem detalhes sangrentos. Mas esse distanciamento entre o que os personagens enfrentam e o que está nas telas enfraquece o poder do filme em sensibilizar o espectador.

Tom leve

Provavelmente, essa opção resulta do currículo do diretor Nikolaus Leytner. Afinal, ele costumava dirigir filmes para a televisão em tempos em que a telinha não aceitava cenas muito violentas. Consequentemente, Leynter não se decide quanto ao tom de seu filme. Então, A Tabacaria começa como um agradável retrato da vida na Áustria da metade do sédulo 20, tanto no interior como na capital. E o tom é tão leve que faz graça até da morte do companheiro da mãe, que é atingido por um raio enquanto nada no lago. Esse tom nostálgico bem-humorado dá lugar às dores sofridas por Franz durante seu amadurecimento, aprendendo responsabilidade e amor. Por fim, surge a violência do autoritarismo nazista.
Não criticamos mudar completamente o gênero do filme durante sua exibição, como faz genialmente Quentin Tarantino. Mas a falha de A Tabacaria é transitar por esses diferentes climas sem se aprofundar em nenhum deles.

Cenários artificiais

Além disso, a experiência televisiva do diretor Leytner deve ter conduzido a outros problemas na produção de A Tabacaria. Por exemplo, a direção de arte cuida apenas superficialmente das ambientações. Por isso, não consegue afastar a impressão de cenários visivelmente construídos em estúdio. Aliás, como os que estamos acostumados a ver em novelas de emissoras brasileiras de tv aberta. Nesse sentido, até mesmo a própria tabacaria, importantíssima para a trama, sofre desse artificialismo da direção de arte. Repare também como o quarto de Franz na casa da mãe é o mesmo nos fundos da tabacaria, nem mesmo a posição da sua cama foi mudada.
E alguns personagens de menor importância e extras atuam de forma tão forçada que era melhor que nem estivessem no filme. Não fariam falta e deixariam o filme mais natural. Como exemplo disso, vejam a expressão do cliente da boate de vaudeville que não entende o motivo de Franz sair no meio do espetáculo. Difícil soar mais falso.

Sonhos

O que torna A Tabacaria um pouco mais interessante são os sonhos e as imaginações de Franz, apesar de que há demasiado uso dessas últimas. As imaginações mostram na tela o que Franz gostaria que fosse verdade, como quando o vemos socar o namorado de Anezka, mas logo a cena corta para o que realmente acontece.

E, quanto aos sonhos, eles são delírios repletos de simbolismos. Considerando que Freud participa do filme como um dos protagonistas, essas representações oníricas aparecem na tela sem soarem forçadas. Pelo contrário, estão justificadas e fornecem a possibilidade de o espectador exercitar uma conexão básica entre o surrealismo do sonho com o que Franz está sentindo.

Assim, A Tabacaria parece mais um filme morno de televisão, mas pelo menos possui esse atrativo das sequências de sonho que dão margens a interpretações. Aliás, o seu final permite que se conclua que Franz foi também preso pelos nazistas, pois Anezka encontra no chão em frente à tabacaria, que foi fechada, o pedaço de vidro que Franz encontrara no lago ao lado da casa onde morava com a mãe e que sempre o acompanhava. O retorno desse vidro para o lago representa o final desse ciclo, ou seja, o que assistimos representou a breve vida de Franz.
 

04/03/24

Ficção Americana, American Fiction, 2023, Cord Jefferson


Crítica | Ficção Americana (American Fiction), Rindo, chorando e pensando, por Kevin Rick, 9 de março de 2024

Enquanto estava assistindo American Fiction, me lembrei de uma entrevista com Denzel Washington, em que uma jornalista questiona o ator/diretor sobre a razão de Um Limite Entre Nós https://www.planocritico.com/critica-um-limite-entre-nos/ precisar de um cineasta negro. O artista responde que a obra precisava de uma pessoa negra por trás das câmeras não por causa da raça, mas sim em razão da cultura. Essa diferença que Denzel explica me parece ser o centro das discussões e comentários sociais que o diretor/roteirista Cord Jefferson coloca em sua obra satírica que explora estereótipos sobre a cultura afro-americana e a exploração dela no contexto artístico estadunidense. 

Por mais que a produção seja baseada em um livro chamado Erasure, é curioso como o filme chega a se tornar uma espécie de diálogo interno metanarrativo e quase autobiográfico do roteirista simplesmente questionando determinados tópicos e aprendendo sobre seus próprios preconceitos durante a jornada do protagonista Thelonious “Monk” Ellison (Jeffrey Wright), um autor e professor universitário que simplesmente não aceita os clichês da literatura afro-americana.

De muitas formas, American Fiction faz críticas ao quebrar estereótipos e arquétipos. O ambiente da história está bem longe dos guetos de gângsteres, bairros marginalizados com rappers, crimes, escravidão e pobreza que estamos “acostumados” a ver com mais proeminência nos retratos hollywoodianos de pessoas negras. Na verdade, estamos diante de um protagonista intelectual e arrogante, uma família de cirurgiões e problemas mais típicos da classe média, envolvendo velhice, brigas entre irmãos, crises existenciais, isolamento, problemas de identidade e masculinidade, que também não se enveredam para o lado do melodrama exagerado e excessivamente disfuncional com o qual problemas familiares afro-americanos são representados nos EUA – nesse sentido, temos muitas cutucadas contra Tyler Perry, por exemplo. Até temos um simpaticíssimo policial negro que se casa com uma empregada negra (num filme criticamente pobre, como um Medida Provisória da vida, a funcionária seria branca, para evidenciar a ironia sem nenhuma complexidade ou sutileza).

Não quero dar muitos detalhes da trama, mas a partir desse cenário, a narrativa tem duas vertentes claras: uma comédia satírica e um denso drama familiar. De início, o filme se encaminha mais para o lado do humor, de uma tiração de sarro afiada sobre instituições americanas (em especial o universo editorial e literário) por meio de um protagonista condescendente, no meio de uma crise de consciência e absolutamente enraivecido à medida que uma piada artística se torna o centro das atenções de uma comunidade alienada e um público cheio de preconceitos em meio às suas próprias defesas sociais equivocadas – uma piada sobre uma estudante branca que não quer estudar um livro racista é absolutamente maravilhosa para abrir o filme. 

A questão é que a comédia aparece de maneira esparsa e às vezes ate soa intrusiva em relação ao destaque que Jefferson dá para o drama familiar.
Por uma questão subjetiva e de gosto pessoal, fiquei um pouco decepcionado pelo cineasta não focar mais na comédia satírica. Eu realmente penso que o filme atinge seus melhores momentos quando Monk está frustrado com produtores caricatos, participando de circos midiáticos sobre “diversidade” ou tendo discussões hilárias com seu editor sobre consumismo artístico, tudo ao acompanhamento de teclas de piano jocosas que adicionam um toque de ironia deliciosa de assistir. Inclusive, penso que muitos blocos são desperdiçados por conta disso, como sua disputa com a escritora Sintara Golden (Issa Rae, ótima, porém subutilizada), o núcleo sobre estudantes/professores universitários ou então seu papel como crítico de uma premiação literária, que certamente mereciam mais atenção narrativa.
Só que é difícil discutir com Cordy Jefferson quando o drama familiar também funciona incrivelmente bem. 

De diferentes formas, esse lado da história é satírico no jeito que apresenta dinâmicas familiares afro-americanas pouco retratadas no audiovisual e na forma que reforça de maneira crítica certos estereótipos e preconceitos da própria cultura afro-americana, como a sua perspectiva historicamente homofóbica (algo que outros artistas contemporâneos têm criticado, como Kendrick Lamar em Mr. Morale & the Big Steppers e Donald Glover em Atlanta) e o ângulo elitista e equivocado de que minorias têm o “potencial” de serem melhores, algo muito bem discutido em uma cena da própria discriminação de Monk. Para além de comentários sociais e um derramamento de discussões temáticas, o drama familiar é bonito, sensível e cheio de empatia, progressivamente denso e íntimo através das lentes pacientes de Jefferson, que nos apresenta uma família complexa, falha e amável das melhores maneiras possíveis, o que faz a obra ser, de maneira geral, não só crítica, mas humana.

American Fiction é uma excelente comédia satírica e um ótimo drama familiar, entendendo muito bem como discutir raça e cultura, suas diferenças e a percepção em volta delas no contexto afro-americano. As duas vertentes da produção nem sempre se comunicam tão bem, mas Jefferson consegue trabalhar uma narrativa com intersecções entre comédia e drama que criam uma ótima produção. Com uma quantidade inesgotável de questionamentos, é notável que o cineasta se recusa a fazer algo que vemos muito hoje em dia: mastigar da maneira mais rasa e expositiva suas críticas; o que torna tudo ainda mais ironicamente reflexivo de discutir. Até em um desfecho metalinguístico atrapalhado, o filme termina sem nos dar respostas, o que é absolutamente fantástico.

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Ficção Americana, Metanarrativa crítica às "histórias necessárias", Por Pedro Sales

Na contramão de narrativas em que a população negra é explorada pela violência e sofrimento, Thelonious “Monk” Ellison, interpretado por Jeffrey Wright (“Asteroid City”) é um romancista negro que não se envereda por este caminho. Em razão disso, muitas vezes seus pares não o consideram um autor genuinamente de narrativas negras, ou pelo menos não “negras o suficiente”, por não referenciar uma temática de dor. Em meio a um bloqueio narrativo e percebendo o crescimento de obras nessa seara, o autor tenta provar como histórias das quais ele se afasta são manipuladoras e baratas escrevendo, como uma piada, um livro com essas convenções narrativas. Acontece que a obra se torna um completo sucesso, best-seller com os direitos vendidos para o cinema antes mesmo do lançamento. Essa é a premissa de “Ficção Americana“, comédia dramática mordaz dirigida pelo estreante Cord Jefferson e adaptada do romance “Erasure”, de Percival Everett, que concorre em cinco categorias no Oscar 2024, incluindo Melhor Filme.

A principal força do longa reside neste aspecto metanarrativo para provar o comentário ácido e crítico diante do mercado editorial. O personagem principal propõe que a literatura afro-americana não deva se restringir a uma celebração da miséria, ou como ele define “trauma porn“, mas sim uma janela de possibilidades narrativas que não envolvam meramente o sofrimento. 

E isto é de fato posto no filme que em suma trata-se de uma crítica a essa corrente e não uma representação do sofrimento, como por exemplo “Preciosa” (2009), que inclusive aparece no filme em uma propaganda de TV anunciando uma programação especial do Mês da História Negra. Para que a crítica funcione efetivamente, não só como um tratado acadêmico sobre representação negra na mídia, a obra se vale de um humor muito bem construído e delimitado. O timing cômico aqui é extremamente acertado, com excelentes piadas.
Esse tom bem humorado é visto desde o início de “Ficção Americana“, mas passa a orientar a ação a partir do momento em que Monk conhece a obra de Sintara Golden (Issa Rae). Formada em uma universidade renomada e desde sempre alguém imersa no mercado editorial, ela escreve a obra “We’s Lives in Da Ghetto”, um livro escrito com vários erros gramaticais para representar a camada mais pobre da sociedade e, claro, com dor e sofrimento da população negra. 

Depois disso, o humor se desenvolve pelo escalonamento absurdo das situações, cada vez mais inacreditáveis e proporcionalmente engraçadas, como o sucesso do livro-piada que ele escreve sob o pseudônimo de um fugitivo do sistema prisional ou ser jurado do próprio livro para um prêmio de Literatura. Se por um lado a comédia da obra é um claro destaque, o mesmo não se pode dizer do drama pretendido. Cord Jefferson, talvez até pela inexperiência na direção, muitas vezes é incapaz de evocar as emoções propostas no drama familiar que se desenrola na trama. Dessa forma, quando o filme se dirige para este “núcleo”, fica menos interessante ao expor suas maiores fragilidades. 

A presença do irmão Cliff (Sterling K. Brown) é, no entanto, a única adição da subtrama que de fato funciona, muito pela atuação e o texto que privilegia o cômico, verdadeira força da obra. Já o romance com Caroline (Erika Alexsander) é genérico, tal qual a relação com a mãe Agnes (Leslie Uggams). A dificuldade em se equilibrar na proposta dramática e humorística, portanto, torna-se o principal problema do longa, sobretudo pela forma abrupta que se muda de um para o outro, mudança acompanhada só pela trilha sonora, e a direção de Jefferson que não consegue explorar as imagens dramaticamente. Os planos ficam em uma zona de conforto que por vezes não aproxima o espectador das questões familiares, aqui de uma forma até literal, são poucos os closes.

Apesar desse desequilíbrio flagrante em “Ficção Americana“, este é um filme que se vale de um roteiro engenhoso para criticar as representações afro-americanas pautadas em miséria e dor e quando o faz com um humor sofisticado tem seus grandes momentos. O criticismo da obra se dirige também àqueles que consomem esse tipo de produto, em especial os brancos, que consomem e compartilham da dor negra, por algum tempo, como forma de se validarem como mais “democráticos” e com consciência social por terem contato com “histórias necessárias”. 

Assim, parece quase uma armadilha apontar que o longa é “necessário” ao questionar esse padrão de consumo. Cord Jefferson possui, então, uma estreia consistente no texto principal da obra adaptada, a crítica. A comicidade absurda e até mesmo a inventividade de algumas cenas, como o início da escrita do livro “My Pafology”, posteriormente “Fuck”, demonstram um controle humorístico promissor, só patina quando tenta torná-lo mais denso e emotivo com o drama.

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Ficção Americana

05/03/24

Uma História em Montana, Montana Story, 2021, Scott McGehee & David Siegel

Crítica: 'Montana Story' é bom filme sobre luto, família e superação por Matheus Mans, 20 de set. de 2021

A dupla de diretores Scott McGehee e David Siegel são ótimos contadores de histórias familiares. Falaram sobre uma mãe protegendo desesperadamente seu filho de uma investigação em Até o Fim, a relação criminosa de irmãos em Suture e, depois, emocionaram com o potente drama sobre separação e guarda de filhos com Pelos Olhos de Maisie.

Agora, eles voltam a falar sobre irmãos, mas com foco no luto e na superação, com o bonito Montana Story -- exibido no Festival de Toronto e, infelizmente, ainda sem data de estreia para o Brasil. Aqui, acompanhamos dois irmãos (Haley Lu Richardson e Owen Teague) que se reencontram no rancho da família após o pai ter um derrame e ficar vivo apenas por aparelhos.

A partir daí, ao longo de quase duas horas de duração, acompanhamos esses dois irmãos em um doloroso processo de luto. Afinal, enquanto o pai dança no penhasco da morte, a dupla pensa no passado, na infância e nas dores que sofreram. Ela por conta da péssima relação, até mesmo abusiva, que tinha com o pai. Ele, por sua vez, por não ter ajudado a irmã a se livrar disso.
É um filme doloroso, que vai revelando camadas delicadas conforme detalhes dessa história familiar vai se revelando. Muito se deve ao trabalho excepcional de Richardson (A Cinco Passos de Você) e Teague (It: A Coisa). Os dois sabem expandir as possibilidades de seus personagens em cena, com momentos realmente emocionantes e que não ficam apenas no lugar-comum.

Há algumas derrapadas e gorduras pro lado da direção de McGehee e Siegel, como por exemplo a história do carro para transportar o cavalo (que se prolonga mais do que deveria) ou subtramas que não avançam muito a história. O filme, em alguns momentos, fica dando voltas em si mesmo. Uma pena, já que a emoção e as atuações elevam a qualidade no geral. 

Mas Montana Story, apesar desses tropeços, ainda é um filme de destaque. Dificilmente vai chegar com alguma força na temporada de premiações, ainda que fosse interessante uma indicação para Richardson. Mas é um longa-metragem que deve ganhar alguma tração pelo lado do público, que vai se emocionar e, quem sabe, se enxergar nessa trama de superação.

06/03/24

Vidas Passadas, Past Lives, 2023, Celine Song

Refletindo sobre o “se”, “Vidas Passadas” é emocionante e doloroso
Karina Amélia, 27 de janeiro de 2024

A produtora A24 vem sendo destaque no audiovisual com seus títulos premiados e aclamados pela crítica e por um público significativo. O mais recente sucesso foi “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”, ganhador do Oscar 2023 em diversas categorias, entre elas, a de Melhor Filme. O que mais chama a atenção é que a empresa do trio Daniel Katz, David Fenkel e John Hodges foi fundada em 2012 e, mesmo com pouco tempo de atuação no mercado, já se tornou uma dos mais respeitadas no cenário global.

Uma palavra que pode definir os longas da A24 é “verdade”. Seja a história um tanto “sem pé nem cabeça” apresentada no filme mais premiado do Oscar 2023 ou a narrativa tocante mostrada em “Aftersun”, tudo é desenvolvido através de situações identificáveis com a vida real, o que faz com que o público se envolva e se emocione profundamente com os dramas das personagens. E neste exercício de representar filmes em uma palavra, “amor” é a melhor escolha para se falar de “Vidas Passadas”, da diretora Celine Song. Não o significado simples de amor, mas em diferentes camadas.

Não há como negar que, com o passar dos anos, o gênero romance passou a ser subjugado pelas críticas e até mesmo deixado de lado em premiações tradicionais. Não estou aqui para elencar os motivos, mas um deles, provavelmente, é a repetição de fórmulas. E é aí que a obra dirigida por Song acumula pontos positivos: “Vidas Passadas” é um romance que faz o público se emocionar verdadeiramente, se envolver com a história, sem usar a receita pronta de casal apaixonado que fica junto no fim, depois de todos obstáculos; sem o clichê da traição; sem o uso de trilha sonora com música exageradamente sentimental; sem recorrer a discussões calorosas etc. Pelo contrário, na trama, o amor entre o casal protagonista é apresentado de forma sutil e genuína, sem muito barulho (literalmente), mas repleto de emoção nas entrelinhas e nuances.

“Vidas Passadas” é sobre Nora (Greta Lee) e Hae (Teo Yoo). Mais especificamente sobre a bela e singular conexão dos dois, uma relação de amor, cumplicidade e companheirismo iniciada na infância, de uma forma leve e adorável, mas que sofre um rompimento depois que os pais de Nora decidem se mudar para outro país. A família sai da Coreia do Sul para os Estados Unidos e essa distância enorme (tanto geográfica quanto cultural) atravessa os dois. Anos e anos se passam, Nora e Hae já são adultos, e praticamente não se conhecem mais. Mas após várias tentativas frustradas de encontrar sua amiga, Hae consegue, enfim, ter contato com Nora novamente. Aos poucos, eles retomam o sentimento guardado e, não demora muito, ambos estão se esforçando em manter um namoro à distância — a moça mora em Nova York, enquanto ele continua em Seoul. Porém, o romance acaba não engatando. Neste segundo ato do longa, é interessante a forma como a cineasta mostra os empecilhos, muitas vezes cômicos, do relacionamento sem presença física.

E a narrativa do filme segue “sem dar certo” para eles até o final. Mas é por essa via instigante de reflexões que Song provoca o público: será que a história dos dois realmente não deu certo? E se não deu, qual foi o motivo? Alguém é culpado? Nesse sentido, o roteiro é um dos principais destaques. E não é porque traz um enredo complexo, mirabolante, com reviravoltas e pontos que atingem o ápice, como tantos outros do mesmo gênero. Pelo contrário: o texto de Celine pode ser entendido como calmaria, que se fundamenta em uma riqueza de detalhes e narrativa envolvente. 

A trama se torna ainda mais poderosa ao requerer diálogos mais completos e reveladores, e no fim, conseguir com que eles atinjam essa expectativa. O texto das personagens, principalmente do casal, é tão intenso e importante que, se a diretora optasse por colocá-los sentados, num cenário simples, olhando diretamente para a câmera, apenas interpretando suas falas, o filme, provavelmente, seria igualmente impactante.
Estes momentos são provocados por um elemento crucial: o silêncio. Há diversos momentos do longa em que a câmera foca nas personagens em alguma ação cotidiana, sem o preenchimento de som ou trilha. Num primeiro momento, isso incomoda e causa agonia, pois dá a impressão de que algo está faltando ali. E, sim, muitas vezes está, propositalmente. 

A última cena, por exemplo, após um dilacerante diálogo de despedida entre Nora e Hae, a protagonista caminha por um tempo em que não se ouve nenhum barulho, o que deixa um nó na garganta de quem assiste. O efeito é notável: sentimos como o coração dessa mulher ficou após aquele doloroso adeus. Em seguida, sobe uma trilha sonora que complementa o silêncio de uma maneira tão arrebatadora quanto o abraço que ela dá em seu marido Arthur (John Magaro), extravasando toda a tensão até então carregada. E falando no cônjuge de Nora, o personagem pode passar um pouco despercebido na trama, já que o casal protagonista realmente se destaca, mas o papel dele é essencial para toda a dramaticidade apresentada. A reflexão de Arthur sobre como seria se sua amada tivesse escolhido outro homem para dividir a vida é tocante. Assim como sua forma respeitosa de lidar com a confusão sentimental da esposa.

Além da ótima escrita do roteiro, a direção de Celine Song é impecável quando o assunto é emocionar de uma forma que mistura ânsias e sutilezas. A história, os personagens, os elementos, a trilha sonora (ou a falta dela)… Tudo está em perfeita sintonia para entregar dor, perda, dúvidas e amor a quem assiste ao filme. Também são destaques a fotografia de Shabier Kirchner e a montagem de Keith Fraase, pois cumprem brilhantemente o papel de nos fazer transitar entre passado, presente e afetos conflitantes.

A reflexão acerca do “se” (ou In-Yun, de acordo com o conceito apresentado na trama) é o ponto-chave que engrandece ainda mais a obra, pois traz à tona um tema cotidiano das pessoas, sobretudo no campo amoroso. Quem nunca se deparou com pensamentos do tipo: “e se eu tivesse dito ‘sim’ àquela pessoa e me permitido viver um romance?” Ou: “e se eu não tivesse optado por dar atenção apenas à minha carreira e tivesse seguido meu coração?” Ou até mesmo: “e se eu tivesse dado uma segunda chance a quem eu decidi não perdoar?” Essas perguntas nos levam a pensar em escolhas e caminhos que seguimos, e que, como no filme, às vezes são determinados por pessoas outras que impactam diretamente nossas vidas.

Por fim, “Vidas Passadas” é sobre a vida adulta. É um contexto dramático acerca de escolhas que já foram tomadas e das consequências destas decisões. E não é algo que tenha relação direta com arrependimento, pois, às vezes, está mais conectado àquela máxima que diz: “era pra ser assim”. Mas é certo aceitar essa frase como algo positivo? É realmente o melhor caminho não lutar por um grande amor de infância e optar pelo mais cômodo, continuando com um amor que, apesar de ser um porto seguro, não transborda como o outro? Será que o que é cômodo é tão ruim mesmo, a ponto de a escolha pelo incerto ser a melhor opção? E a pessoa que não foi escolhida, será que não tem mais importância na vida do outro?

“Vidas Passadas” chega aos cinemas como um romance cujas camadas falam de dor, vazio, escolhas, desencontros, tristeza, incertezas e, claro, amor. Afinal, amor é sobre tudo isso. Inclusive sobre aceitar que há relações que não estão mais em tempo de acontecer. Não nessa vida. ■

09/03/24
Violência e Paixão, Gruppo di famiglia in un interno, 1974, Luchino Visconti

No iutubi aqui

VIOLÊNCIA E PAIXÃO , Antonio Carlos Egypto, 2 de abril de 2011

Vou com bastante frequência ao cinema, mas já fazia muito tempo que não via um filme de Luchino Visconti na tela grande.  A oportunidade surgiu com uma cópia restaurada de “Violência e Paixão”, exibida pelo Cinesesc, São Paulo, em sessões regulares.  Não há como negar que é uma experiência fascinante, muitos graus acima do que se consegue ver atualmente nos cinemas.

Não se trata de saudosismo, mas da constatação de que hoje o requinte e o perfeccionismo de Visconti talvez já não caibam numa indústria cinematográfica que gasta rios de dinheiro com atores e atrizes famosos, efeitos especiais em profusão, mas não no artesanato cenográfico, nem na reconstrução esplendorosa de época, de que Visconti era capaz.

“Violência e Paixão” é até modesto, se comparado a outros filmes dele, como “O Leopardo”, 1963, “Os Deuses Malditos”, 1969, “Morte em Veneza”, 1971, ou “Ludwig”, 1972.  Ainda assim, o apartamento do personagem chamado Professor (Burt Lancaster), o protagonista da fita, recheado de objetos e obras de arte, é primoroso em todos os detalhes, as roupas dos personagens são perfeitas, o ambiente, a exuberância da vista de Roma da varanda, tudo produz uma sofisticação que se pode dizer raramente encontrada no cinema.  Isso tudo também era caro, mas incomparavelmente mais refinado do que qualquer efeito de computador possa produzir.

A música de Mozart complementa, com sua beleza, todo esse requinte artístico e sublinha o mundo inteligente e sofisticado do Professor.  O contraste musical com o grupo dos jovens vizinhos do Professor é o pop, também de boa qualidade, onde até uma versão em italiano de “À Distância”, de Roberto Carlos, pontua uma cena do envolvimento sexual de três personagens.  

A narrativa permite diversas camadas de leitura, a partir da história do Professor, que vive sua solidão envolto em pinturas autênticas do século XVIII, espalhadas pelo apartamento, ao lado de esculturas, uma vasta biblioteca, uma discoteca clássica e objetos de casa e de uso pessoal altamente requintados.  O personagem vive em seu mundo recluso com sua serviçal, com vinte e cinco anos de casa, e longe dos incômodos e problemas que as pessoas possam lhe causar.  Até que é literalmente invadido por uma marquesa (Silvana Mangano) de posses, mas de comportamento decadente, que praticamente o obriga o alugar o apartamento de cima e traz consigo a filha e o namorado, jovens, além de seu amante 12 anos mais novo, Konrad (Helmut Berger).  A vida do Professor muda radicalmente a partir daí, vira um caos e ele é obrigado a conviver com tudo aquilo de que se apartara até então.

Só que a questão é mais complexa do que a descoberta, ou redescoberta, dos afetos para um intelectual solitário, que essa mudança produz.  Ela traz a vida, com todas as suas contradições e conflitos, frente à inexorabilidade da morte.  O envelhecer, diante do vigor da juventude.  As pulsões sexuais, rompendo a barreira protetora da racionalidade e da própria arte. O uso de álcool e outras drogas psicoativas, em busca de prazer, de poder, ou tentativa de aliviar o desencanto com a vida. As pessoas reais, em contraste com as pessoas representadas pela arte.  A família imaginária, ou que é memória, frente a laços familiares que se podem construir sem relações consanguíneas.

O isolamento pode ser fuga de afeto, expressão do medo de viver, mas também proteção diante do conflito com o que a ciência pode produzir de horror prático para a humanidade.  Ou, ainda, desencanto com os rumos coletivos políticos e com o desmoronar de uma classe social frente a novas camadas sociais que ascendem e transformam, de alguma forma, o mundo.  Por trás de conflitos pessoais, há escolhas políticas, como a direita fascista rediviva nos anos 1970 e a esquerda dos movimentos sociais e das revoltas estudantis.

Há inúmeras dimensões a descobrir e explorar, no convívio entre os personagens que Visconti nos apresenta em seu ambiente peculiar de beleza, arte e sofisticação, coisas que ele não dispensa nunca, nem quando fala de carência e pobreza, como fazia na época do neorrealismo italiano do pós-guerra.

O conde vermelho, como era conhecido o cineasta Visconti que, sendo aristocrata, optara pelo marxismo, fez do cinema um veículo de esplendor, crítica, informação e reconstituição históricas, sendo um de seus recursos as adaptações literárias.  O seu cinema também leva a uma reflexão sobre as relações humanas, num nível amplo e profundo, sem concessões à manipulação emocional, preservando sempre o distanciamento crítico e a racionalidade diante dos personagens e da trama.

O cinema de Luchino Visconti é uma obra autoral maiúscula, realizada dentro dos cânones clássicos, única e insuperável.  Vê-la na tela grande da sala de cinema é comprovar isso de forma cabal.

10/03/24
As Sufragistas, Suffragette, 2015, Sarah Gavron

“Nunca se renda. Nunca desista da luta”: a relevância do filme “Suffragette” (2015)
Renato / janeiro 24, 2016

Nos dias de hoje, o público feminino goza de uma série de prerrogativas sociais, políticas e econômicas que antes só eram privilégio dos homens. Até a primeira metade do século XX, enquanto o discurso moralista e ideológico pregava que as mulheres das classes médias e alta da sociedade deveriam permanecer enclausuradas dentro de suas casas, desempenhando o papel de “anjo do lar”, as das classes mais populares precisavam trabalhar para ajudar aos maridos no sustento da família. Trabalhavam mais e ganhavam menos, em péssimas condições e sem qualquer segurança contra eventuais acidentes. Algumas delas sonhavam com uma vida diferente, em que houvesse igualdade de direitos para os dois gêneros. Logo, esses sonhos tomaram corpo na forma de palavras, que foram transmitidas a outras, conquistando assim milhares ao redor do mundo. Mas com o tempo elas perceberam que só palavras e gestos pacíficos não iriam leva-las ao lugar esperado. Era preciso mais do que isso. Portanto, algumas largaram a vida que tinham para trás e se engajaram numa verdadeira luta em prol da dignidade da mulher, manifestada através do exercício da cidadania e do poder de escolher seus representantes por meio do voto. Esse grupo de mulheres ficou conhecido pela história como as sufragistas.

As sufragistas foram ridicularizadas e ignoradas pelo governo durante muito tempo, quando finalmente recorreram a estratégias mais extremas para serem ouvidas. Se a mídia não se interessava por elas, criariam seus próprios jornais e fundariam sindicatos. Para chamar atenção à sua causa, quebraram janelas de lojas e explodiram propriedades. Várias mulheres foram presas e agredidas. Algumas, inclusive, perderam a própria vida nesse processo. Infelizmente, a maioria das pessoas atualmente ignora como a luta pela igualdade de direitos foi acirrada. Se hoje muitas das garotas nascidas nesse mundo podem ser educadas como seus irmãos, obterem um nível superior, ocuparem cargos que antes só eram permitidos aos homens e possuírem a guarda de seus filhos, foi porque anos atrás mulheres (e alguns homens) corajosas batalharam para que essa realidade fosse possível. Sendo assim, é preciso falar mais neste assunto, no intuito de corrigir certas impressões equivocadas que muitos têm acerca de movimentos que lutam pela liberdade feminina. Esta é a intenção de Suffragette, filme britânico lançado em outubro de 2015, que narra a estória de um grupo de lavadeiras operárias que aderiram à luta pelo direito ao voto na Inglaterra de 1912.

Dirigido por Sarah Gavron, Suffragette não poderia ter vindo em melhor hora. Embora seu roteiro esteja contextualizado a 100 anos atrás, os problemas levantados por ele são bastante atuais, como a desigualdade de salários, exploração de trabalho, trabalho infantil, intolerância, censura, violência contra a mulher e estupro. Mesmo com tanta militância feminina, é triste perceber que estas mazelas sociais ainda não foram superadas. O conservadorismo da sociedade ocidental concebia a mulher pública como uma abominação da suposta lei natural, que distinguia papeis para cada um dos gêneros. Muitas pessoas simplesmente aceitavam essa condição sem reclamar. A personagem Maud Watts, por exemplo, era uma delas. Casada e mãe de um garoto, ela só queria cumprir sua jornada na lavanderia e depois voltar para o aconchego do marido e do filho. Sua vida aparentemente ordinária só mudaria quando, sem querer, ela se viu no meio de um motim organizado por um grupo de sufragistas, que quebravam as vitrines das lojas de roupas e acessórios. Entre aquelas mulheres, estava Violet Miller, que exerceria grande influência sobre Maud, convencendo-a a conhecer o movimento e a se juntar à causa.

A protagonista do filme é a atriz Carey Mulligan, bastante conhecida pelo seu papel de Daisy Buchanan em The Great Gatsby (2013). Na pele de Maud, Carey deu voz ao drama de uma mulher que não deseja para uma futura filha a mesma vida que a sua. A personagem está ali para representar a exploração do trabalho feminino na Inglaterra do início do século passado. Em meio a tanques, caldeiras e ferros de passar, as mulheres trabalhavam sem qualquer garantia de segurança contra eventuais desastres e ganhando uma remuneração miserável por semana. A própria Maud havia perdido sua mãe aos 4 anos de idade devido a um acidente na lavanderia e três anos depois começou a trabalhar para o próprio sustento. Não teve, portanto, uma infância. Era um produto daquele espaço de exploração e abuso. Tendo sido criada para nada contestar e aceitar tudo com passividade, ela jamais havia pensado numa forma de mudar sua existência até conhecer Violet, personagem interpretada por Anne-Marie Duff. Ao contrário de Maud, Violet era engajada na luta pela igualdade de direitos. Mãe de três crianças e casada com um alcóolatra, era difícil para ela ver sua filha Maggie de 12 anos já trabalhando na lavanderia para ajudar no sustento de casa.

Uma das críticas secundárias abordadas por Suffragette é o estupro da mulher. Reduzidas a uma condição de quase escravidão, as trabalhadoras da lavanderia ainda tinham que lidar com um patrão que dispunha de seus corpos como bem entendesse. Me pergunto quantas mulheres ainda não passam por essa situação atualmente e não prestam queixa, pois temem a vingança que se seguirá após a delação. A própria protagonista do filme tinha passado por isso quando mais nova e agora a filha de Violet Miller estava na mesma situação. Diante disso, Maud percebeu que as coisas não poderiam mais continuar do jeito que estavam. Após ter prestado seu depoimento no parlamento no lugar de Violet, que foi espancada pelo marido, a personagem constatou que havia outra forma de viver a vida: através do exercício da cidadania. Aos poucos, aquelas sufragistas arruaceiras foram ganhando sua atenção, especialmente a figura de Edith Ellyn, farmacêutica que queria ser médica. Vivida por Helena Bonham Carter, Edith se via mais como uma espécie de soldado, recrutando outras mulheres para a causa. Como muitas na época, ela lutava para que o público feminino pudesse ocupar os mesmos cargos no mercado de trabalho que os homens e com igual remuneração.

Curiosamente, a personagem Edith Ellyn foi baseada em Edith Garrud, sufragista nascida em 1872 que treinava suas colegas a como se defender marcialmente dos policias. Em entrevista dada à revista Interview, Helena revelou que partiu dela a ideia de sua personagem se chamar Edith, em homenagem a Garrud. Porém, este não foi o único papel inspirado em personalidades reais. A principal delas foi Emmeline Pankhurst, líder do movimento sufragista e símbolo de inspiração para muitas mulheres. Nos seus discursos públicos ela encorajava a militância feminina com o slogan: “ações, não palavras”. No filme, ela é interpretada por Meryl Streep, atriz que por si só já dispensa comentários. Embora tenha aparecido por apenas alguns segundos, a participação de Streep foi um dos pontos mais altos da produção. Diante de uma grande multidão de ouvintes, ela disse uma das frases mais impactantes da trama: “nós não queremos ser infratoras da lei, mas construtoras dela”. A vontade de que a mulher pudesse participar das decisões políticas fazia com que Emmeline convocasse todas as britânicas à rebelião, pois “prefiro ser uma rebelde do que uma escrava”. À protagonista do filme, por sua vez, ela dirigiu palavras encorajadoras: “nunca se renda. Nunca desista da luta”.

Com efeito, se Maud tinha alguma dúvida quanto à sua aderência ao movimento, esta foi rapidamente dissipada pelo seu breve encontro com Emmeline Pankhurst. Por outro lado, ela foi forçada a enfrentar o preconceito da sociedade, inclusive do seu marido Sonny Watts (Bem Whishaw). A partir do momento em que a esposa começou a se envolver com as sufragistas, Sonny sentiu que sua autoridade como homem da casa estava sendo questionada. Uma vez que Maud passou a se enxergar como algo mais além do que uma mera esposa, ela foi expulsa de casa e impedida de ver o seu filho, o pequeno George. Diferentemente dos dias de hoje, a lei inglesa dava a guarda das crianças do casal ao pai e Sonny usou desse privilégio para castigar a esposa pela conduta dela. As cenas protagonizadas por mãe e filho são bastante tocantes, desde os felizes encontros clandestinos, quando Maud esperava qualquer oportunidade para “raptar” George por breves instantes, até o momento da despedida. Por não ter condições de criar o pequeno sozinho, seu pai o deu para adoção, causando dor e desespero em Maud. Já que lei dizia que ela não poderia ter a guarda do filho, então ela iria se empenhar para mudar tal realidade, sem se importar com os riscos que pudesse correr.

A luta feminina pelo direito ao voto na Inglaterra foi uma das mais violentas, se comparada com outras partes do mundo. Muitas mulheres foram reprimidas pelo governo e agredidas fisicamente por policiais, conforme o filme retrata em algumas cenas. Uma vez na prisão, faziam greve de fome em sinal de protesto. À medida que os dias passavam e elas nem sequer tocavam na comida, eram então forçadas a ingerir o alimento através de uma sonda nasogástrica. O tratamento concedido a algumas sufragistas dentro do presídio beirava a barbaridade. Sendo assim, a medalha oferecida pelo movimento a cada uma delas pelo seu primeiro encarceramento representava um símbolo de reconhecimento pela sua resistência. Enquanto elas não conseguissem o direito ao voto, continuariam enfrentando as autoridades do governo, conforme enfatizou Maud ao policial Steed (Brendan Gleeson):

Maud: “Quebramos janelas, queimamos coisas, porque a guerra é a única língua que o homem entende. Vocês nos batem e nos traem e não nos resta mais nada”.
Steed: “Só nos resta impedi-las”.
Maud: “O que você vai fazer? Prender todas nós? Estamos em todas as casas, somos metade da raça humana, não pode nos impedir” (1h:16min).

Entretanto, é importante ressaltar que muitos homens também eram engajados na causa das sufragistas, a exemplo da personagem Hugh Ellyn (Finbar Lynch), marido de Edith. Alguns deles eram políticos importantes e lutaram pela igualdade de direitos, tanto dentro quanto fora do parlamento.
No processo de militância das mulheres inglesas pelo voto, estima-se que mais de mil tenham sido presas. Algumas mais de uma vez, como a própria Emmeline Pankhurst e Emily Davison, personalidade da vida real que também foi inclusa na obra. Assim como Pankhurst, as ações de Davison tinham grande impacto no movimento sufragista. É possível que ela estivesse envolvida no bombardeio à casa do primeiro-ministro Lloyd George, em 1913, embora a polícia não a tivesse interrogado como suspeita. 

Emily é interpretada no filme pela atriz Natalie Press, que passa quase despercebida ao longo da trama, exceto pelo último ato de protesto de sua personagem, quando ela se colocou na frente do cavalo do rei numa corrida em Epsom Derby, sendo subsequentemente arrastada pelo animal. Até hoje permanece objeto de conjectura se a intenção de Davison era se sacrificar ou apenas agitar a bandeira do movimento diante das câmeras. O fato de estar em posse de passagens de trem para o seu retorno naquele mesmo dia e de planejar tirar férias na França pode ser um indicativo de que ela não esperava aquele fim. Infelizmente, ela não resistiu aos ferimentos e faleceu poucos dias depois. 

Alguns antagonistas aproveitaram esse ocorrido para reafirmar o suposto desequilíbrio mental feminino. Em todo caso, a morte de Emily Davison chamou a atenção do mundo para o movimento sufragista e mais de 6.000 pessoas compareceram ao seu funeral, em 15 de junho de 1913. As gravações desse evento foram incluídas no final de Suffragette, prestando assim uma bela homenagem àquela mulher que deu sua vida pela causa. A maioria das críticas feitas ao filme foram favoráveis, apesar da trama não abordar a questão racial, o que foi uma falha, pois muitas mulheres negras também foram ativistas no movimento. O filme também acabou focando mais nas ações de um pequeno grupo, em detrimento de personalidades mais importantes, como Emmeline Pankhurst, que só aparece por alguns segundos. 

Apesar disso, acredito que a obra passou ao público uma bela mensagem, objetivando reconciliar a mulher moderna com suas avós do início do século passado. Hoje o feminismo vem sofrendo diversos ataques vindos de pessoas que, na minha opinião, ignoram a importância desse movimento dentro de uma sociedade com profundas marcas do patriarcalismo. Daí a relevância de produções que abordem as raízes do feminismo e suas conquistas para as mulheres. Nesse sentido, Suffragette conseguiu dar conta do recado, deixando ao público uma ótima lição de labor e coragem: “nunca se renda. Nunca desista da luta”.

Renato Drummond Tapioca Neto, Graduado em História – UESC, Mestrando em Memória: Linguagem e Sociedade – UESB


11/03/24

Os Rejeitados, The Holdovers, 2023, Alexander Payne

Crítica | Os Rejeitados (2023), Novos caminhos, por Luiz Santiago, 16 de janeiro de 2024

Não há armadilhas em Os Rejeitados. Por mais que saibamos como o cinema de Alexander Payne e esse tipo de filme escrito por David Hemingson tendem a trilhar caminhos mais rasos — exageradamente banais, quero dizer — quando se fala em explorar personagens ao largo de uma história humana, tocante e realista, chegamos neste longa de 2023 com um tratamento que é, em praticamente tudo, elegante e interessante, começando de forma bastante trivial, bem similar à problemática estereotipação, mas rapidamente se afastando dessa base desgastada para pousar em um terreno maduro, não apenas transformando os protagonistas, mas criando, na tela, um processo extremamente coeso sobre como tudo isso aconteceu.

Seguindo-se ao mediano Pequena Grande Vida (2017), The Holdovers  mostra um Alexander Payne interessado em fazer com que a história seja sentida e compreendida pelo público, uma dualidade que só é conseguida com sucesso porque a direção usa a câmera para mostrar, através de diferentes estratégias visuais, como os personagens centrais mudam de verdadeiros antagonistas para cúmplices de uma situação que gera uma segunda chance para ambos; mas não da maneira como se poderia imaginar. Paul Giamatti cria um professor inconveniente, estranho, odiável e até repulsivo, mas sem fazer disso uma caricatura plena. Notem que ainda no início do filme ele está nesse território — de forma estratégica, claro –, todavia, neste mesmo bloco, alguns acontecimentos empurram o personagem para um caminho inesperado que, ao fim de um certo período, fará com que veja as pessoas, o mundo e a si mesmo de outra forma.

Muitíssimo bem acompanhado de Dominic Sessa, que interpreta o jovem Angus, Paul Giamatti dá o tom de seriedade, birra e amargura da película (de certa forma, um tom completado pela personagem de Da’Vine Joy Randolph, mas numa perspectiva completamente diferente de existência), status de comportamento e emoções que se altera porque os indivíduos por trás dessas máscaras são descortinados através de símbolos cênicos (como as refeições em conjunto, as festas de final de ano, o braço quebrado, a citação/contexto/visualização de arte antiga, o globo de neve com o Papai Noel) que nos levam a estágios imensamente diferentes do drama. E em cada novo estágio, uma peça importante do quebra-cabeça da alma de Paul e Angus é colocado no devido lugar, a ponto de, no ato final, termos dois seres humanos expressos em suas falhas, erros, uma vida inteira de traumas, sentimentos interiorizados e sofrimento progressivo. Diferente de Mary Lamb, que exterioriza suas dores e claramente se encaminha para um processo de cura, os dois homens (em diferentes idades) sustentam o tormento e transmutam-no em mau comportamento, cada um a seu modo.

Apesar de o Natal ser uma parte importante na construção alegórica do enredo, as canções com corais natalinos ultrapassam um o limite de uso a ponto de atrapalhar parte da atmosfera de algumas cenas, principalmente no terço final da fita. Vejam que quando há uma mudança na escolha das canções (como na festa noturna ou no passeio até Boston, por exemplo) a obra ganha um tom que abraça melhor as metamorfoses apontadas pelo próprio roteiro. Payne consegue fazer um pequeno milagre em não descaracterizar, de fato, o trabalho de aprofundamento dos personagens, mudando “apenas” o tom de algumas cenas e/ou transições que funcionariam muito melhor sem corais natalinos — e vale aqui citar que a edição de Kevin Tent (parceiro do diretor desde Ruth em Questão, de 1996) é muitíssimo acertada no encadeamento, tipo de transição escolhida e principalmente na mudança de sentimento geral da narrativa, mesmo quando há alteração de espaço ou tempo. Nas mãos de um editor menos competente, essa passagem dos dias ou das fases de adequação poderiam parecer uma sucessão de curtas-metragens pouco instigantes sobre essas pessoas.

Quando eu disse que não há armadilhas em Os Rejeitados, é porque o diretor não usa a temática como um manipulador barato de emoções do público, com belas cenas bem fotografadas na neve e afagos inesperados vindos de um lugar onde nunca houve sequer a possibilidade de carinho, respeito ou mesmo consideração. Os corações feridos, aqui, conseguem sair do lamaçal, mas não há doçuras exageradas à vista. Há um sacrifício e um “insatisfatório” vida que segue, como acontece na vida. E digo “insatisfatório” porque, apesar de o clímax ser pago com uma entrega marcante de eventos, há uma “deixa“, uma “falta” que abre espaço para incertezas, fazendo com que toda a jornada ganhe tons agridoces. 

E aí é que está a maturidade e a honestidade do projeto. Na vida, mesmo após um grande choque, um sacrifício, um aprendizado, nunca há a certeza do que uma escolha pode gerar. Até porque, nunca paramos de fazer escolhas. E mesmo diante dessa amargura escondida, o texto insere tons de esperança com o “até logo” e o diretor mostra na tela que o certo a ser feito, no momento, está concretizado: cada um segue o seu caminho com um novo olhar para o mundo e com novos sentimentos no peito. O que vem a partir daí é apenas a vida um degrau acima de qualquer nova experiência e conquista…
 
12/03/24
Pobres Criaturas, Poor Things, 2023, Yorgos Lanthimos

O que sexo e estranhamento em 'Pobres Criaturas' revelam sobre quem somos?
Christian Dunker, Colunista de Tilt, 21/02/2024

O filme "Pobres Criaturas", de Yorgos Lanthimos e roteiro de Tony McNamara, é basicamente uma reescritura de Frankenstein, mas desta vez colocando como protagonista uma mulher (Emma Stone)
Todos conhecemos Frankenstein como personagem gótico e vitoriano, reconstituído a partir do cadáver de pessoas diferentes, devolvido à vida graças às propriedades incríveis da energia elétrica. Mas em 1818, no texto de Mary Shelley, a criatura é nomeada apenas como o monstro ou a "criatura". Mas como o destino da coisa é perguntar por seu criador e, portanto, descobrir seu verdadeiro nome, nós deslocamos a resposta para chamar o monstro sem nome de Frankenstein, afinal o cientista que o criou chamava-se Victor Frankenstein.

Sabe-se que Mary Shelley escreveu a novela um uma aposta, feita em uma noite de trovões e tempestades, respondendo à provocação sobre quem escreveria a melhor história de terror.
Mas sabe-se também que ela estava passando por um doloroso luto ocasionado pela perda recente de um filho. Durante o processo ela tivera um sonho onde uma criatura voltava à vida, mas tinha um aspecto insólito e inumano que a deixava devastada.

Lanthimos é conhecido por sua capacidade de criar mundos heterotópicos, ou seja, mundos definidos por relações paradoxais com o mundo hegemônico no qual vivemos.
Barcos, aviões ou espaçonaves são suportes ideais para espaços heterotópicos, pois eles de fato são meios que conectam mundos diferentes, alguns deles incompatíveis entre si. Não é por outro motivo que, até o século XVI, se embarcava os loucos em navios, como que a devolvê-los para o outro mundo de onde eles supostamente vieram. Também os primeiros contos de horror na modernidade envolvem marinheiros, como na canção do "Ancient Mariner" (depois transformado em música pelo Iron Maiden) e o navio-fantasma da mítica holandesa.

Mas existem heterotopias mais simples, como um espelho, que combina realidade real e realidade virtual em um sistema de correspondências. O sonho que combina duas experiências por meio das portas de entrada e de saída que são o adormecer e o acordar.
Há heterotopias de crise em que os mundos não podem se comunicar, como, por exemplo, o motel ou a sauna para certas práticas sexuais.

Há heterotopias temporais, como museus. Espaciais, como filmes e livros de ficção. E há heterotopias de desvio e purificação, como prisões, hospitais, templos sagrados.
Há heterotopias onde a consciência sabe da realidade contingente que está experimentando, como quando nossa própria consciência diz que estamos sonhando e há estado de indeterminação onde a consciência duvida da realidade que está vivendo. Depois de Luis Buñuel, Terry Gilliam, Kim Ki-duk e David Lynch, não há diretor mais heterotópico do que Yorgos Lanthimos.

"O Lagosta" (2015), com Colin Farrell e Rachel Weisz, se passa no futuro, onde pessoas são proibidas de viverem sozinhas. Quando se tornam solteiras são encaminhadas a um hotel onde podem ficar por até 45 dias. Lá elas são incentivadas a todo tipo de situação para encontrar um novo parceiro para toda a vida. Caso contrário são transformadas em um animal "de sua própria escolha" e viver solto na natureza.

Em "O Sacrifício do Cervo Sagrado" (2017), uma família de cirurgiões recebe o filho de um ex-paciente, morto durante uma cirurgia conduzida pelo pai de família. O que deveria pertencer a duas realidades distintas —a do filho órfão e a do assassino— vão sendo lentamente fusionada pela convergência insólita de interesses em torno da vingança.
Em "A Favorita" (2018), ele explora a perfídia e o jogo de interesses na corte britânica do século XVII, no fim da dinastia dos Stuarts.

Se Freud estivesse vivo diria que Lanthimos é um mestre do Unheimliche, palavra heterotópica que designa em alemão ao mesmo tempo o que é familiar e o que é estranho.
O sentimento de estranhamente familiar ou familiarmente estranho depende de um conjunto de torções cognitivas entre espaços múltiplos que costumamos ordenar aos pares: casa versus rua, próximo versus distante, segredo versus oculto, vivo versus morto.

O estranhamento acontece quando temos três pares de oposições funcionando normalmente, ou seja, homotopicamente, e pelo menos um deles aparecendo de forma invertida.
Por exemplo, em "Pobres Criaturas", Bella Baxter (Emma Stone) vivia dentro de casa, estava proibida de sair, era como uma criança que não sabia se comportar lá fora (oposição casa e rua). Ela era fruto de uma operação sigilosa, cujos planos são descobertos por seu auxiliar Max McCandles (Ramy Youssef) (oposição segredo e revelação).

Aliás, os nomes dos personagens são estranhos porque seguem esta lógica, por exemplo, o confronto entre a forma antiga de iluminação de Max "McCandelabro", contrasta com os poderes da eletricidade e da cirurgia dominados pelo doutor Godwin, literalmente "Dr. Deus Vence", provavelmente uma homenagem a Mary Wollstonecraft Godwin, o nome de Mary Shelley.
Bella viaja para lugares distantes como Portugal, rediviva e mágica como uma mistura de caravelas do século XVI com bondes elétricos aéreos do futuro (o próximo e o distante, no espaço e no tempo).
Mas é o sexo como mediana entre vida e morte, que perturba a oposição, criando a heterotopia e o efeito de estranhamento definitivo do filme.

Ela trabalha em Paris como prostituta até regressar à vitoriana Londres. Descobre, por experiência própria, que o sexo é algo que reúne e separa os pares de opostos que definem cada perspectiva de mundo. Resta a relação incógnita entre sexo e morte que define o próprio destino de Bella, mas você terá que ver o filme para descobrir qual é.

O Prometeu antigo foi condenado a ter seu fígado comido por um abutre, todo dia, porque roubara o fogo dos céus para dar aos homens. Na novela de Mary Shelley, o Prometeu moderno se perguntava pelo sentido da existência em um mundo governado pela técnica. A nova Prometeia não se pergunta sobre seu criador, nem por seu nome verdadeiro, mas investiga o que sobrou de nós enquanto pobres coisas. Coisas trepantes, coisas trepanadas, coisas quase animais que se reproduzem.

Nisso é imperdível o diálogo sobre sexo travado por Bella no navio de luxo com uma velha senhora rica. Na verdade, trata-se de Hanna Schygulla, a musa de Rainer Werner Fassbinder, representante do melhor cinema alemão sobre deslocados e heterotópicos, desde Robert Wiene e "O Gabinete do Dr. Caligari". É um diálogo heterotópico, entre dois tempos, sobre nós enquanto coisas sexuais.
Mas o maior impacto que o filme me trouxe deveu-se ao fato de que voltei recentemente da Hungria onde visitei a casa do mais heterotópico dos psicanalistas da primeira geração: Sándor Ferenczi.
Numa manhã fria fomos recebidos pela presidente da Sociedade Húngara de Psicanálise, e naquilo que restou da vila adquirida por Ferenczi, ao final de sua vida, ela nos contou sobre as dificuldades seguidamente vividas pelo povo húngaro em sua luta por liberdade e autonomia. Invadidos por romanos, otomanos e mongóis, anexados por Habsburgo, entregues ao papado, sufocados pelos soviéticos, ocupados pelos nazistas, sem falar no atual e opressivo regime de Orbán.

Tudo aquilo que tínhamos acompanhado um dia antes visitando a Casa do Terror, museu instalado na sede da antiga polícia secreta e lugar de tortura sistemática, agora nos ajudava a entender a estranha mistura entre dureza e tristeza, de rudeza e profundidade, que escorriam por nossos encontros húngaros.
Lanthimos é um neobarroco, assim como o que melhor se pode encontrar na arquitetura húngara. O filme "Pobres Criaturas" é um tratado sobre nossas estruturas de ficção, combinado com o Real, em excesso surrealista. Foi rodado em Origo Studios, em Budapeste, seus personagens secundários são feitos por magiares e o figurino especula com as roupas e objetos eslavos. Os mares, os céus e o chão aparecem sempre como se tivessem sido pintados à mão, coloridos de maneira a ressaltar detalhes em movimento, mas sem nenhum realismo fílmico, apenas aquela solidão criada pelo excesso de realidade, como nas pinturas de Edward Hopper.

Um dos trabalhos mais heterotópicos de Ferenczi, tirando o clássico "Confusão de Línguas entre Adultos e Crianças" é "Thalassa: Ensaio sobre a Teoria da Genitalidade", de 1923. Thalassa é a deusa grega que personificava o mar Mediterrâneo, e o texto foi escrito enquanto Ferenczi servia em um hospital militar durante a Primeira Guerra Mundial.
Assim como o cinema de Lanthimos, Ferenczi recebeu comentários dúbios sobre sua obra. Para uns ele estava ficando psicótico, para outros tinha fundado um novo paradigma em psicanálise (as relações de objeto).
Temos exemplos vívidos de conceitos como falha básica, thrilling, e erotismo lúdico em "Pobres Criaturas". Temas como o ato sexual (ele mesmo), o trauma do nascimento e a filogênese animam tanto a bioanalítica de Ferenczi quando o cinema de Lanthimos.

O Amphioxus lanceolatus, peixe originário, ancestral filogenético dos vertebrados, segundo o psicanalista húngaro, combina admiravelmente com o inesquecível "galiporco" de Lanthimos. Vigora aqui a ideia ferencziana de que o Eu pode se tornar não apenas outro humano, mas também um animal de outra espécie (como um peixe), um órgão corporal (pênis, útero), uma substância (excremento, sêmen), até mesmo uma paisagem ou meio ambiente (oceano, terra).

Exatamente como encontramos em "Thalassa", o cineasta grego descreve o ato sexual com riqueza de detalhes, envolvendo movimentos, sensações e secreções, fora as interpretações "estranhas", como convém aos estados heterotópicos, crepuscular e transitório, que governam a cópula.
Múltiplas perspectivas trabalham nos dois autores, por colagem de imagens por meio de lentes que arredondam a realidade, mostrando como a ilusão está sendo construída pela nossa própria tendência ao cone óptico. Método de abertura e combinação de perspectivas teóricas que Ferenczi chamou de utraquismo, ou pensamento por misturas (anfimixia).

Vale também para ambos a ideia de que os dois sexos se misturam, mas sem síntese [1].
Sendo a criança uma alquimista do erotismo, como nesta versão feminina de "O Enigma de Kaspar Hauser", filme de 1974 de Werner Herzog, podemos perceber a atualidade de Lanthimos e suas lagostas, cervos, cabras e demais híbridos, e como nós mesmos nos entendemos muito mais homotópicos do que realmente somos.

REFERÊNCIA

[1] "O erotismo uretral empresta as qualidades de precipitação e emissão, enquanto o erotismo anal determina as qualidades de paragem e retenção. O erotismo oral, por sua vez, confere o ritmo dos movimentos que são desencadeados no coito. A mistura destes três modos no erotismo genital confere ao mesmo graus variáveis de precipitação, retenção e ritmo - graus variáveis que dependem da quantidade de que cada modo de erotismo foi empregada. A geometria dos erotismos misturados desenvolve, neste sentido, a coreografia da dança que o genital e o corpo empreendem durante o ato sexual." Camara, Leonardo Cardoso Portela e Herzog, Regina. Um prefácio imaginário para Thalassa. Estud. pesqui. psicol. [online]. 2018, vol.18, n.1 [citado 2024-02-13], pp. 244-260.