domingo, 5 de março de 2023

Um de nós está mentindo

Mario Prata

O Cândido me pede um texto de/ou sobre humor.

Pensei em falar sobre o desprezo dos acadêmicos (e os jurados de prêmios) em geral para com os escritores que trabalham com o humor. Fiz até algumas pesquisas entre os Nobel da Literatura e os Pullitzer americanos. Tirando o Dario Fo, o García Márquez e o Bernard Shaw, só sobram saramagos, sartres, pasternaks, graas e vargasllosa depois de velho. Mesmo o Ernest que era muito engraçadinho bebendo no bar, ficava seríssimo em alto mar. Enfim, os intemeratos, empolados e glorificados como salvadores da pátria sem chuteira é que são considerados os grandes mestres da literatura. Desde aqueles gregos. Barão de Itararé, Millôr Fernandes, Luis Fernando Verissimo não ganham prêmios nem no Brasil. São menosprezados pela academia, como se fácil fosse fazer humor. Nenhum deles esteve nas listas dos “vinte melhores escritores brasileiros do século XX”, que proliferaram no começo deste século.

Vou contar uma historinha despretensiosa que eu acho engraçada e envolve um grande poliglota acadêmico (e político) brasileiro, o doutor Rui Barbosa, também conhecido como A Águia de Haia. Foi considerado agora em 2013, por uma pesquisa do jornal A Tarde, da Bahia, como o maior baiano de todos os tempos (não em tamanho, pois tinha um metro e cinquenta e oito e pesava 48 quilos), deixando para trás Jorge Amado, ACM, Anísio Teixeira, Obina e outros menos votados. Mas trata-se, sem nenhuma dúvida, de um brasileiro importante não só na Bahia, como no Brasil (foi três vezes candidato à presidência da República). Polímata, tendo se destacado principalmente como jurista, político, diplomata, escritor, filólogo, tradutor, orador, ministro, embaixador, deputado, escritor e chato, só não foi jogador de futebol porque não tentou a ponta-direita do Vitória. E no exterior, abafou falando até em latim.

Foi na Holanda, em Haia, onde aconteceu o fato que passo a narrar que foi protagonizado por ele, o Rui, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras.

Quem me contou a história foi o escritor, jornalista e biógrafo Fernando Morais. E quem contou para ele foi o também jornalista e escritor Moacir Werneck de Castro que, por sua vez, jurava ter ouvindo do próprio personagem do caso, o doutor Rui. Fiz um Google rápido e descobri que quando Rui Barbosa morreu, aos 73 anos, em 1929, o menino Moacir tinha oito anos. Como ambos moravam no Rio, sei lá, podiam ser amiguinhos. Deviam ter a mesma altura, quem sabe? Ou talvez o Rui contou para alguém que passou para o Moacir alguns anos depois.

Vamos lá. Todo mundo sabe que o Rui Barbosa chegou na IIª Conferência da Paz em Haia, em 1907, carteando marra. Na hora de fazer o seu discurso, petulante, indagou:

— Em quem língua quereis que eu fale?

Pode?

Dizem que falou em latim e arrasou. De noite, o Czar Nicolau II, o último dos czares (pai da princesa Anastácia, lembra?) deu uma festa no consulado da Rússia. Nosso poliglota foi convidado. Havia uma fila enorme de gente do mundo todo para cumprimentar o Nicolau. O sujeito chegava perto, um ajudante de ordem dizia o nome e o país do cidadão e Lalau falava na língua do elemento. O Rui Barbosa, que estava na fila, foi ficando impressionado com aquilo. O homem falava mais línguas do que ele? Impossível! Quando ele chegou, foi anunciado:

— Rui Barbosa, Brasil.

E o czar, em português:

— Como vai aquela terra maravilhosa? Copacabana continua linda? Como vai o presidente Afonso Pena?

O nosso diplomata respondeu e se despediram. Mas o Rui ficou invocado (gíria daquela década) com aquilo. Resolveu testar o czar. Deu a volta e pegou a fila de novo. Quando chegou, foi anunciado:— Rui Barbosa, Brasil.

E ele perguntou ao czar:

— Nicolau, Nicolau, vamos comer mingau?

O russo apertou a mão dele e respondeu:

— Só se for de araruta, seu filho da puta! (um de nós mentiu).

Mario Prata é escritor, dramaturgo e jornalista. Autor, entre outros, de Sete de paus. Mora em Florianópolis (SC).

Ilustração: Renato Faccini

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