Relançamentos de Antônio Candido mostram força e limites de sua obra. Título mais relevante, 'Formação da Literatura Brasileira' sofreu contestações de outros críticos
Manuel da Costa Pinto FSP, 25/03/2023
Mestre em teoria literária pela USP, autor de ‘Paisagens Interiores e Outros Ensaios’ e apresentador do programa ‘Entrelinhas’, da TV Cultura
[RESUMO] Obra de Antônio Candido volta às livrarias em novas edições, o que permite reavaliar a trajetória do principal crítico brasileiro. Primeira leva inclui cinco títulos, entre eles "Formação da Literatura Brasileira", seu mais importante trabalho, no qual procura demarcar os momentos decisivos da criação de um sistema literário no país, o que despertou contestações do também crítico Afrânio Coutinho e do poeta concreto Haroldo de Campos.
Os primeiros cinco lançamentos que marcam a edição, pela Todavia, da obra completa do crítico literário e ensaísta Antonio Candido (1918-2017) incluem sua obra mais ambiciosa e importante, "Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos (1750-1880)", de 1959, e uma "Iniciação à Literatura Brasileira" que, escrita em 1987 para publicação na Itália que acabou não se materializando, saiu no Brasil em 1997 e não deixa de ser uma versão sintética da primeira, com acréscimo de seção que resume o período posterior àquele abrangido por "Formação", indo de Machado de Assis à poesia concreta.
São lançados também dois livros de ensaios. "Literatura e Sociedade" (1965) contém textos de teoria literária "pura", algo não muito frequente na bibliografia de Candido, se bem que sempre escorados na análise de autores, livros e períodos literários específicos.
Já "O Discurso e a Cidade" (1993) traz um dos estudos mais importantes do autor no âmbito da literatura brasileira, "Dialética da Malandragem", além de textos sobre escritores de outras línguas que não o português — em especial o ensaio em quatro partes intitulado "Quatro Esperas", no qual percorre as diferentes expressões de uma temática comum em poema de Konstantinos Kaváfis, conto de Franz Kafka e romances de Dino Buzzati e Julien Gracq.
Fecha a leva de lançamentos "Os Parceiros do Rio Bonito", fruto de pesquisa de campo apresentada em 1954 como tese de doutorado na USP e publicada pela primeira vez em 1964, com o subtítulo "Estudo sobre o Caipira Paulista e a Transformação dos Seus Meios de Vida".
É um livro, à primeira vista, de interesse exclusivo de cientistas sociais e estudiosos da trajetória intelectual do autor, mas apresenta discussões sobre o "ajustamento ecológico" dessa "cultura rústica", diante das alterações de sua relação com o meio ambiente acarretadas pela modernização capitalista, que acabam por dar uma inesperada atualidade à obra em tempos de debate sobre desenvolvimento e sustentabilidade.
Há um dado material na nova edição que não deve passar despercebido. Os volumes da Todavia não trazem aparatos críticos de monta — prefácios ou posfácios que atualizem o significado de uma produção intelectual que, em livro, começa no ano de 1945, com a publicação de "Brigada Ligeira", e chega à primeira década deste século com "O Albatroz e o Chinês", de 2004. Ensaios inéditos sobre os os livros, assinados por críticos contemporâneos, foram publicados apenas no site da editora.
Na prática, e a julgar por esses primeiros cinco lançamentos, trata-se de uma reedição que em nada difere das edições anteriores pela Ouro sobre Azul, casa editorial de Ana Luísa Escorel, filha de Antônio Candido que, aliás, vem desenvolvendo obra ficcional tão tardia quanto notável (arrebatou o Prêmio São Paulo com o romance "Anel de Vidro", de 2014).
Não vão aqui maiores restrições à ausência de aparatos críticos na edição da Todavia (o mesmo, de resto, ocorria nos livros da Ouro sobre Azul), que pode decorrer da precaução de evitar os excessos de celebração de um autor por demais reverenciado ou, ao contrário, denotar que sua obra prescinde de apresentação — o que é verdade, mas põe a perder a oportunidade de recensear uma recepção que levanta várias questões importantes.
Entre elas, está aquela que diz respeito ao recorte poético-histórico que estrutura "Formação da Literatura Brasileira". Convém, antes, apresentar as linhas gerais da obra, com as inevitáveis mutilações que uma sinopse impõe a um livro de 800 páginas.
Em "Formação", Antônio Candido examina, conforme explicitado por seu subtítulo, os "momentos decisivos" que constituíram o que hoje denominamos literatura brasileira. No seu entendimento, só poderia existir uma literatura brasileira (distinta de sua matriz linguística lusitana) se nela reconhecêssemos um "corpus" de obras em que identificamos um liame —como identificamos, por exemplo, na literatura francesa, em que o liame entre Rabelais (século 16), Racine (século 17), Balzac (século 19) e Proust (século 20) é percebido de modo não problemático por qualquer leitor.
Esse paralelo com outras literaturas aparece, na "Formação", em termos tanto valorativos quanto de funcionalidade social. Candido chega a dizer que um leitor francês, inglês ou italiano, mesmo russo ou espanhol, "não precisa sair" de sua própria cultura para "enriquecer a sensibilidade" e experimentar "as mais altas emoções literárias". Não é o que acontece, porém, com a literatura de Portugal e, por extensão (dado o vínculo histórico, cultural, linguístico), com aquela que passa a ser feita no Brasil.
Vem daí a célebre e polêmica formulação que aparece no início do livro: "A nossa literatura é galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das Musas...". Em outras palavras, a literatura portuguesa já constituía um "corpus" próprio – embora rarefeito no sentido do valor literário e por comparação a outras tradições – quando estendeu uma ramificação no território colonizado.
Neste, os autores e as obras não poderiam ser vistos como integrantes de uma literatura "brasileira", pois não havia nem mesmo a percepção da sociedade colonial como "nação", algo que só ocorreria no contexto dos movimentos pela Independência, no século 18, consolidando-se no século 19, quando o próprio conceito surge. Para Candido, portanto, aquilo que ocorria nas terras brasílicas nos primeiros séculos da presença portuguesa eram "manifestações literárias" de autores espalhados pelo território.
Como dito acima, "Iniciação à Literatura Brasileira" é em boa parte uma síntese didática, para público estrangeiro (embora o opúsculo acabasse sendo publicado por aqui), de alguns pressupostos e desenvolvimentos da "Formação". Então é oportuno transcrever a explicação resumida e clara que ele dá ao leitor sobre as conotações da expressão "manifestações literárias":
"Isolados, separados por centenas e milhares de quilômetros uns dos outros, esses escritores dispersos pelos raros núcleos de povoamento podem ser comparados a vaga-lumes numa noite densa. Podia haver lugares, como a Bahia, onde se reuniam homens cultos, sobretudo clérigos e legistas. Podia haver sermões brilhantes que encantavam o auditório, ou poetas de mérito recitando e passando cópias de seus poemas. No conjunto, eram ‘manifestações literárias’ que ainda não correspondiam a uma etapa plenamente configurada da literatura, pois os pontos de referência eram externos, estavam na metrópole, onde os homens de letras faziam seus estudos superiores e de onde recebiam prontos os instrumentos de trabalho mental."
A configuração plena de uma literatura – e já voltando ao texto da "Formação"– dependeria da existência de um "sistema literário", outro conceito-chave introduzido por Antônio Candido.
Nos seis capítulos metodológicos que compõem a introdução da obra, em especial "Literatura como Sistema", ele entende esse sistema como um todo orgânico que pressupõe a "existência de um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel", um "conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público" e um "mecanismo transmissor (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos)", que estabelecem "um tipo de comunicação inter-humana, a literatura, que aparece sob este ângulo como sistema simbólico", no qual as opções individuais de cada escritor "se transformam em elementos de contato entre os homens, e de interpretação das diferentes esferas da realidade".
Compreende-se, a partir dessas premissas, que Candido tenha circunscrito as análises que compõem o grosso da "Formação" às obras que correspondem aos períodos do arcadismo e do romantismo, quando passa a existir, por razões econômicas e políticas, uma "interação dinâmica" entre os autores e o público, e entre os próprios autores, configurando uma continuidade, uma "tradição", que se poderia denominar, aí sim, "brasileira".
Tal abordagem provocou contestações de Afrânio Coutinho, no calor da hora, e de Haroldo de Campos em "O Sequestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira", livro de 1989 com reedição em 2011 pela Iluminuras. Ambas remetem à "questão da origem".
Para Afrânio Coutinho, "sem embargo de sua dependência política a Portugal, o Brasil, como país, começou com os primeiros passos de colonização" e "a literatura brasileira teve início ‘imediato’ pela voz de seus cantores populares através das inúmeras formas folclóricas e, em fase mais avançada, pelos seus poetas, pregadores, oradores", sendo que sua autonomia estética independe de autonomia política, manifestando-se desde os "primeiros instantes" nos sermões do jesuíta Antônio Vieira e na poesia de Gregório de Matos.
Este último será o objeto central de Haroldo de Campos, para quem o "sequestro" do barroco — ou seja, a exclusão de Gregório de Matos na "Formação"— se deve a uma noção de "momentos decisivos" e de um "sistema" feitos a partir de um conceito de nacionalidade como fim último da evolução histórico-cultural.
Essa finalidade inscreve o passado em uma linearidade que conduz a sua consumação e exclui aquilo que não se encaixa no esquema como protoliteratura brasileira, "manifestação literária", ou ainda "literatura comum (brasileira e portuguesa)", segundo outra expressão de Candido. Para Haroldo, ao contrário, Gregório de Matos pertenceria a uma "origem vertiginosa", irredutível à nacionalidade — ou a ela sacrificada.
A questão da nacionalidade, por sua vez, aparece amplificada em reflexões de Luiz Costa Lima e, mais recentemente, do ensaísta português Abel Barros Baptista, que partem de pontos de vista diferentes, porém confluentes. Para o primeiro, Candido estaria ainda no âmbito de historiografias nacionalistas do século 19 e inícios do 20, que transformavam as histórias literárias em uma "sucursal do ‘pathos’ das histórias políticas".
Barros Baptista —em "O Cânone como Formação", sóbrio e minucioso texto introdutório a uma antologia de ensaios de Antônio Candido publicada em Portugal — aponta que, "para Candido, a literatura brasileira não começou com o arcadismo: o começo perde-se no transplante ou no enxerto do galho [do arbusto lusitano] em território brasileiro. Mas, por outro lado, a mesma noção também lhe serve para estabelecer a possibilidade de ler na tradição letrada colonial ‘o esboço’ ou ‘as raízes’ do ‘sistema’: as ‘manifestações literárias’ seriam, digamos, certa parte da literatura portuguesa que já anuncia o Brasil".
Uma das vantagens desse método estaria em desvencilhar a teoria da formação do credo nacionalista romântico e inscrevê-lo em um "estádio de síntese de tendências universalistas e particularistas".
Tal síntese não seria então exclusivamente brasileira, mas uma dinâmica que, como em qualquer outro lugar, assume fatalmente expressões específicas — seja o classicismo árcade, seja o indianismo romântico, igualmente empenhados em um projeto de sociedade, seja ainda o misto de nativismo e experimentalismo dos modernistas de 22, que (de modo aparentemente paradoxal) rompem com aquilo a que dão continuidade.
O mais importante, porém, é que, na esteira de outros críticos, mas com redobrada profundidade, Barros Baptista identifica em Candido uma leitura teleológica da história literária brasileira: um modelo crítico que se despe da genealogia, da pesquisa da origem, para reconstruir o passado, nele identificando, em graus diferentes ("manifestações literárias", "momentos decisivos"), a participação antecipada em um processo concluído e logicamente necessário — um fim, um "télos".
Simplificando brutalmente, só é brasileira a literatura que se insere no ineludível processo de formação do país no concerto das nações. O que vincula a literatura ao ato de uma vontade política essencializada, naturalizada como tarefa do Estado moderno em um destino universal e segundo uma lei histórica, mesmo quando noções como Estado, nação, leis da história e a própria formação (nacional e literária) ainda só existem em esboço e, se aplicadas uniformemente a diferentes recortes, correm o risco de cair no anacronismo.
Em todas essas leituras, com suas diferenças de abordagem, permanece latente a ideia de que Antônio Candido faz prevalecer a dinâmica social sobre o acontecimento estético ou (para usar o vocabulário poético dos concretos) a diacronia sobre a sincronia.
Pode-se, talvez, especular uma outra possibilidade interpretativa, em que a questão da nacionalidade e o gesto de implantação de uma literatura não sejam uma premissa "metodológica" de Antônio Candido, mas um fato objetivo, presente nos textos dos árcades e românticos, conforme lemos copiosamente naquilo que afinal constitui o cerne da "Formação": os estudos de obras e autores, aos quais ele não impõe um papel em uma teleologia, mas nos quais identifica um empenho que já lá está.
Tanto é assim que, em duas passagens do capítulo "Uma Literatura Empenhada", da "Introdução", ele afirma que "este ponto de vista [...] é quase imposto pelo caráter de nossa literatura", para ao final dizer que o livro evitou "estudar nas obras apenas o aspecto ‘empenhado’". É razoável, assim, pensar que Candido identificou no empenho formativo um elemento poético intrínseco à literatura que se fazia no Brasil, a ponto de engendrar uma tradição coesa, "orgânica".
Elemento poético e coesão, de resto, inexistentes nos períodos anteriores, em que por isso mesmo ainda não se podia falar de uma literatura brasileira, mas sim (e para permanecer no âmbito das analogias botânicas) de um híbrido da literatura portuguesa em terras ultramarinas, justificando o emprego da expressão "manifestações literárias" para se referir a autores como Gregório de Matos e Vieira.
Nos prefácios que escreveu para as sucessivas edições de "Formação" (incluídos na presente edição) e em obras posteriores, como o volume "Literatura e Sociedade", que aparece entre os novos lançamentos, Candido consolidou sua visão da literatura.
Neste último, aliás, o ensaio "Crítica e Sociologia" traz entre parênteses o subtítulo "(tentativa de esclarecimento)" e procura justamente "esclarecer" sua discordância tanto em relação a teorias que veem na relação entre obra literária e condicionamento social uma chave de leitura, quanto em relação a uma abordagem estritamente formal, que considera o condicionamento social "inoperante como elemento de compreensão".
Candido propõe, então, uma interpretação dialética na qual o elemento externo se torna interno à obra, dando como exemplo o romance "Senhora" (1874) , de José de Alencar, que assimila a dinâmica da exploração econômica à temática romântica, numa narrativa em que um casamento mediado por manobras e concessões expressa a "mineralização da personalidade, tocada pela desumanização capitalista".
Esse mesmo tipo de apreensão dialética do objeto literário será desenvolvido em "Dialética da Malandragem", agora do livro "O Discurso e a Cidade", que formula a ideia da "dialética da ordem e da desordem" a partir do romance "Memórias de um Sargento de Milícias" (1854), de Manuel Antônio de Almeida.
A ordem, aqui, representa convenções e hierarquias do Rio de Janeiro de dom João 6º; a desordem, sua dissolução ou subversão por práticas ofensivas às leis e aos costumes — sendo que essa imbricação, na análise de Candido, ganha força literária não propriamente pela representação pitoresca, mas pelas flutuações da ação, que incorporam ao ritmo malandro da prosa e à estrutura picaresca as porosidades entre o lícito e o ilícito da sociedade joanina.
A leitura dos ensaios posteriores à "Formação" sugere a ideia de que, na produção de Antônio Candido, não existe propriamente um método crítico com premissas que reivindiquem um conceito ou uma teoria geral da literatura, e sim a percepção de linhas gerais (contexto social e histórico, diálogo com a tradição, relação com gêneros literários codificados) a partir dos quais surgem métodos por assim dizer "imanentes", que abstraem conceitos de situações textuais concretas, como "sistema", "formação", "dialética da ordem e da desordem".
E isso fica mais claro quando, desviando-se da matéria brasileira, ele coloca em confronto autores de tradições literárias diferentes entre si, como os analisados em "Quatro Esperas".
Como de propósito, Candido escolhe quatro obras enlaçadas pelo tema das "esperas angustiadas", que depuram situações de ansiedade e aniquilação até o ponto de apagamento de seus traços geográficos e temporais. A saber: o poema "À Espera dos Bárbaros", do grego Kaváfis Konstantinos, a narrativa "A Construção da Muralha da China", de Franz Kafka, e os romances "O Deserto dos Tártaros", do italiano Dino Buzzati, e "O Litoral das Sirtes", do francês Julien Gracq.
Na impossibilidade de esmiuçar aqui as análises que Candido dedica a cada obra nesse políptico, vale notar que, ao enfocar discursos poético-ficcionais que exploram explicitamente o vácuo ou, no caso de Kafka, a vagueza contextuais (sendo, portanto, refratários a apreensões de caráter "sociologizante") e ao contrastar os autores entre si (e não com suas respectivas tradições "nacionais"), o ensaísta realiza um exercício de afastamento de suas próprias marcas ensaísticas.
Para então, em mais uma volta do parafuso, construir pela leitura cerrada um veio subterrâneo que remete obliquamente a esmagadoras engrenagens históricas — na literatura universal e no Brasil.
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