Com ‘Deus e o Diabo’, uma noite histórica na Cinemateca Brasileira
Luiz Zanin Oricchio, 07 de julho de 2022, O Estado
Foi uma noite para ser lembrada. No telão da parte externa da Cinemateca foi projetada a cópia restaurada em 4K do clássico Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Até então não tínhamos uma cópia à altura desse filme fundamental, tal qual ele foi exibido a partir de 1964. A exibição foi precedida por um debate com os restauradores da obra – José Luiz Sasso, Rodrigo Mercês, Paloma Rocha e Lino Meirelles.
Detalhes técnicos à parte, fica o registro de que tanto o debate como a sessão foram sucessos absolutos, com as salas lotadas e cheias de gente jovem. É o renascimento da Cinemateca que devemos comemorar, após dois anos de obscurantismo que a deixaram fechada e sujeitas a incêndios, inundações e outras intempéries.
Sobre Deus e o Diabo, quero dizer que nunca havia visto o filme sob essas condições ideais. A obra brilha na tela em toda a grandiosidade que foi concebida. Todos os diálogos são inteligíveis. A música – de Sérgio Ricardo a Villa-Lobos – ressoa com todo o seu corpo sonoro. É uma experiência impactante, para o crítico como para o público. Foi muito aplaudido no final.
Abaixo, um dos vários textos que escrevi sobre o filme, ao longo da vida:
Há um fato interessante a respeito de Deus e o Diabo na Terra do Sol. O filme foi apresentado à imprensa dia 13 de março de 1964. Nesse mesmo dia houve o famoso Comício da Central do Brasil, no qual o presidente João Goulart defendia as Reformas de Base. O comício, incendiário, foi estopim para o golpe de Estado que derrubaria o presidente duas semanas depois, em 1.º de abril, dando início a uma ditadura de 21 anos.
O quadro histórico é importante, pois Glauber, em Deus e o Diabo, expressa um programa de geração. Mais que um filme, é um manifesto. Mais que manifesto, é todo projeto para um futuro que não se cumpriria. De qualquer forma, Glauber exprime a fé revolucionária e a sua confiança jovem de 20 e poucos anos de que o homem deve se assumir senhor do seu destino, sujeito da sua história, como então se dizia.
O trajeto é exemplar. O vaqueiro Manuel (Geraldo Del Rey), depois de matar o patrão, vaga sem rumo pelo sertão. Conhece primeiro o “Deus Negro”, Sebastião (Lídio Silva) em Monte Santo. É a fase mística. Que, superada, passa à fase seguinte, no encontro com o cangaceiro Corisco (Othon Bastos), até que este caia nas mãos de Antonio das Mortes (Maurício do Valle). No trecho final, Manuel corre em direção ao mar, obviamente aqui significando a esperança de transformação. Esse é o tom otimista. Manuel, essa consciência alienada, supera a fase mística com o beato, a violência sem direção do cangaço, para assumir-se por fim, livre e só, para construir o seu futuro.
Era o clima vigente na época, pouco antes do golpe. Muito diferente, por sinal, daquele expresso no filme seguinte de Glauber, outra obra-prima, Terra em Transe (1967), de certa forma a reflexão de por que as esperanças exibidas em Deus e o Diabo haviam naufragado. Entre outras hipóteses, que podem ser lidas na própria obra de Glauber, mas também fora dela, porque o “progresso” humano não se faz em linha reta, evolutiva. Nem mesmo através das contradições hegelianas, como pode ser intuído no filme. É tortuoso, errático e misterioso. Recua quando parece avançar e vice-versa. Mas, numa época de euforia revolucionária, a racionalidade do progresso e a iminência da libertação parecem fatos evidentes.
Deus e o Diabo na Terra do Sol está disponível numa excelente cópia em DVD, fruto da parceria entre Versátil, Riofilme e Tempo Glauber. São dois discos. Um com o filme, outro apenas reservado aos extras, com depoimentos, músicas, trailer, etc. É uma das obras-primas incontestes do cinema brasileiro.
Ainda não sabemos de outras oportunidades em que esta obra (“uma catedral do cinema brasileiro” na expressão de Lino Meireles) poderá ser vista. Está sendo negociada com exibidores. Mas também é preciso registrar que a mostra de que faz parte – Espetáculo Polêmica Cultura – prossegue até domingo, com super atrações para os cinéfilos. Vejam a programação abaixo, lembrando que os ingressos são gratuitos.
Quinta-feira, 07 de julho
17:00 – A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA
Brasil, 1965, 106 min, p&b, digital, 14 anos
Direção: Roberto Santos
Elenco: Leonardo Villar, Joffre Soares, Maria Ribeiro, Maurício do Valle, Flávio Migliaccio
Sinopse: Augusto Matraga é um fazendeiro violento que, traído pela esposa e emboscado por inimigos, é massacrado a pauladas e dado como morto. Salvo por um casal de negros humildes, enfrenta um longo período de total incapacidade física. Por influência do casal, volta-se para a religiosidade, convencendo-se de que está pagando pelos erros cometidos. Quando ele conhece Joãozinho Bem-Bem, o famoso chefe de jagunços, Matraga oscila entre seu desejo por vingança e a bondade que não consegue mais abandonar.
19:00 – O ANJO EXTERMINADOR (El Ángel Exterminador)
México, 1962, 95 min, p&b, digital, 12 anos
Direção: Luis Buñuel
Elenco: Silvia Pinal, Jacqueline Andere, Enrique Rambal, José Baviera, Augusto Benedico, Luis Beristáin, Antonio Bravo, Claudio Brook, César del Campo, Rosa Elena Durgel
Sinopse: Um casal da convida um grupo de amigos para um jantar em sua mansão. Depois do evento, eles começam a se despedir, mas não conseguem sair da sala em que se encontram. Apesar de não haver nada concreto impedindo-os de ir embora, ninguém se atreve a dar um passo além da porta, estão presos. Os dias passam e os anfitriões e convidados abandonam as regras sociais, revelando os lados mais primitivos de cada um.
21:00 – ESSES MARIDOS (Mariti in Città)
Itália, 1957, 95 min, p&b, digital, 12 anos
Direção: Luigi Comencini
Elenco: NinoTaranto, Renato Salvatori, Memmo Carotenuto, Richard McNamara, Giorgia Moll, Irene Cefaro
Sinopse: Enquanto suas esposas e crianças passam as férias de verão na praia, os maridos ficam em casa trabalhando e buscando aventuras amorosas que nem sempre dão certo.
Sexta-feira, 08 de julho
17:00 – Palestra – História do conceito “Cinema de Arte” com o pesquisador, crítico e professor de cinema Ismail Xavier
19:00 – OS SUBVERSIVOS (I Sovversivi)
Itália, 1967, 93 min, p&b, 35mm, livre
Direção: Paolo Taviani, Vittorio Taviani
Elenco: Giorgio Arlorio, Giulio Brogi, Pier Paolo Capponi, Maria Cumani Quasimodo, Lucio Dalla, Ferruccio De Ceresa
Sinopse: As histórias de quatro personagens impactadas pela morte do líder comunista Palmiro Togliatti. Um venezuelano que abandona a rica mulher italiana que ele ama para lutar em seu país. Um cineasta que entende que a arte não é o bastante. Uma mulher que começa um relacionamento com a antiga amante de seu marido. E um filósofo que quer se desvincular de seu passado.
21:00 – OS AMANTES DE FLORENÇA (Cronache di Poveri Amanti)
Itália, 1954, 107 min, 35mm, p&b
Direção: Carlo Lizzani
Elenco: Anna Maria Ferrero, Cosetta Greco, Antonella Lualdi, Marcello Mastroianni, Bruno Berellini, Irene Cefaro
Sinopse: 1925. Um jovem tipógrafo de Florença muda de cidade paraficar próximo de sua namorada. Lá, ele se aproxima de um grupo antifascista e se apaixona por uma mulher casada. O conflito com os fascistas e seu amorproibido transformarão sua vida para sempre.
Sábado, 09 de julho
16:00 – OS CAFAJESTES
Brasil, 1962, 93 min, p&b, 35 mm, 14 anos
Direção: Ruy Guerra
Elenco: Jece Valadão, Norma Bengell, Daniel Filho, Hugo Carvana, Lucy de Carvalho, Glauce Rocha
Sinopse: Jandir, um rapaz de origem pobre, e seu amigo Vavá, um playboy, vivem no submundo de drogas e sexo de Copacabana. Quando o pai de Vavá vai a falência, eles arquitetam um plano para conseguir dinheiro: extorquir o tio rico de Vavá com fotos comprometedoras de sua amante, Leda. O plano não dá certo e os amigos escolhem sua próxima vítima, Vilma, filha do tio de Vavá por quem ele está secretamente apaixonado.
18:00 – A PASSAGEIRA (Pasazerka)
Polônia, 1963, 62 min, colorido, digital
Direção: Andrzej Munk e Witold Lesiewicz
Elenco: Aleksandra Slaska, Anna Ciepielewska, Jan Kreczmar, Marek Walczewski, Irena Malkiewicz, Barbara Horawianka, Anna Jaraczówna, Leon Pietraszkiewicz
Sinopse: Voltando de navio com seu marido para a Europa, a alemã Liza relembra seu passado como guarda de um campo de concentração quando reconhece Marta, que fora prisioneira em Auschwitz. Enquanto Liza conta sua versão da história ao seu marido, assistimos às cenas brutais do que realmente aconteceu, revelando a crueldade de Liza e a coragem de Marta. Filme inacabado de Andrzej Munk.
20:00 – HARAKIRI (Seppuku)
Japão, 1962, 133 min, p&b, digital, 14 anos
Direção: Masaki Kobayashi
Elenco: Tatsuya Nakadai, Akira Ishihama, Shima Iwashita, Tetsurô Tanba,Masao Mishima, Ichirô Nakatani
Sinopse: No pacificado Japão do século XVII, samurais já não possuem o mesmo prestígio e utilidade como na época da guerra. Um ronin (samurai sem mestre) solicita permissão para realizar um ritual de suicídio na propriedade de um senhor feudal já que sua vida não tem mais propósito. Desconfiado de que o pedido do ronin é um golpe para conseguir dinheiro, o senhor feudal conta a trágica história de outro samurai que tentou o mesmo estratagema. Honra e sobrevivência se tornam pólos de um dilema que culmina em uma das melhores cenas de luta da história do cinema.
Domingo, 10 de julho
16:00 – GARRINCHA, ALEGRIA DO POVO
Brasil, 1962, 61 min, p&b, digital, livre
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Elenco: Manoel Francisco dos Santos (Garrincha), Nair dos Santos, João Paulo Câmara, Juscelino Kubitschek
Sinopse: A trajetória do grande astro do futebol brasileiro, Mané Garrincha. A paixão ardorosa do povo pelo futebol. O lado catártico do esporte em que o torcedor esvai aos berros seus anseios e frustrações acumulados durante a semana. A lenda do ídolo querido e amado é posta em xeque. E as mazelas dos contratos profissionais que subjugam o ser humano ao clube, preso à concentração, são expostas.
18:00 – O CRIME DA ALDEIA VELHA
Portugal, 1964, 105 min, p&b, 35 mm, 16 anos
Direção: Manuel Guimarães
Elenco: Barbara Laage, Rogério Paulo, Mário Pereira, Rui Gomes, Alma Flora, Maria Olguim
Sinopse: Baseado em fatos reais, o filme conta a história de um crime ocorrido nos anos 1930 em uma aldeia serrana. Os seus habitantes perseguem uma jovem que acreditam estar possuída pelo demônio. Quando finalmente percebem que cometeram um grave erro, é tarde demais.
20:00 – A PAIXÃO DE JOANA D’ ARC (La passion de Jeanne d’Arc)
França, 1928, 114 min, p&b, digital, 14 anos
Direção: Carl Theodor Dreyer
Elenco: Maria Falconetti, Eugene Silvain, André Berley, Maurice Schutz, AntoninArtaud, Michel Simon
Sinopse: A prisão, tortura, julgamento e execução de Joana D’Arc, condenada por heresia pela igreja católica. Apesar das táticas inumanas das autoridades eclesiásticas para fazê-la mudar a sua história, Joana D’Arc se mantém fiel às suas crenças. Seu castigo brutal lhe aufere martírio perpétuo.
NB: os cartazes dos filmes e os link imdb são acréscimos deste blog.
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