Livro de luxo celebra os 100 anos da criação dos mangás no Japão
Livro analisa o impacto dos quadrinhos de heróis no Japão após derrota do país na guerra
O Estado de S. Paulo.25 Jul 2022 ANTONIO GONÇALVES FILHO
Ofenômeno mangá, após sete décadas de existência de Astro Boy, o garoto androide, não é exatamente novo, mas o que poucos sabem é que ele ainda é mais velho que o personagem criado pelo mangaka (desenhista de mangás) Osamu Tezuka (1928-1989) em 1952. Séculos antes de Tezuka, outros artistas japoneses já esboçavam os primeiros capítulos da história do mangá. Mais precisamente no século 12, as primeiras composições pictóricas em rolos, contendo narrativas fantásticas com animais, monstros e demônios, já circulavam entre os aristocratas japoneses, antecipando o futuro mangá popular consagrado pelo traço de um mestre da gravura Ukyio-e, Hokusai (1760-1849).
Para quem não se lembra, Hokusai é o autor da onda gigantesca que tem ao fundo o monte Fuji. Essa é apenas uma das saborosas histórias de Mil Anos de Mangá, da nipo-francesa Brigitte Koyama-richard, lançado pela editora Estação Liberdade.
Trata-se de uma ótima – e bem ilustrada – introdução ao universo dos mangás, dos rolos do século 12 ao advento dos Gekiga, quadrinhos para adultos produzidos nos anos 1950 por Yoshihiro Tatsumi, que, influenciado por Tezuka, levou essa linguagem a uma dimensão realista. E essa história vai além dele e Tatsumi, chegando às edições alternativas de mangá (como a revista Garo), ao universo demoníaco das ilustrações de Mizuki Shigeru (1922-2015) e aos recentes mangás dramáticos de Taniguchi Jiro (1947-2017).
MONSTROS.
Parece compreensível que uma história tão longa e rica não caiba num volume com 272 páginas. De fato, dois terços do livro são dedicados às preliminares da história do mangá, o que é bom para quem se interessa pela história da arte no Japão e nem tanto para quem está em busca de uma análise sociológica do fascínio dos japoneses pelos mangás populares com monstros disformes e garotos com grandes olhos ocidentais.
Enfim, os capítulos que analisam dos rolos pintados do século 12 às gravuras do Ukyio-e, que tanta influência tiveram sobre os impressionistas e pós-impressionistas europeus (especialmente Van Gogh), são os melhores, mas, de 1990 em diante, fica uma história menos profunda. É certo, porém, que ela foi explorada em outros livros pela autora, professora de História da Arte na Universidade Musashi de Tóquio – e um exemplo disso pode ser L’animation Japonaise: Du Rouleau Peint aux Pokémon (Flammarion, 2009).
Mil Anos de Mangá, com 400 ilustrações, compensa pequenas omissões. O foco da professora é a correspondência visual entre a arte clássica e contemporânea japonesa e a ocidental – Osamu Tezuka foi fortemente influenciado por Walt Disney, a ponto de seu Astro Boy assimilar certos traços de Mickey Mouse (como as orelhas). Foi, aliás, Astro Boy, o primeiro mangá que leu, revela a professora.
ANDROIDES
Assim como os mangaka sofreram a influência de artistas ocidentais, também o Ocidente foi marcado por histórias como a do garoto androide de Osamu (uma espécie de robô criado para suprir a ausência do filho de um cientista num desastre). Super-heróis sem pais nos quadrinhos ocidentais o leitor conhece às dezenas, mas Astro Boy condensa a inocência e o amor pela humanidade como poucos.
O mangá, defende a autora, tem, enfim, uma função pedagógica, além de puro entretenimento, mas o Japão demorou para legitimar o gênero como arte (o primeiro museu de mangás só abriu no século 21, em Kyoto, informa o livro). Depois da derrota do Japão na 2.ª Guerra, os artistas japoneses buscaram no modelo ocidental, particularmente no americano, heróis para estimular o imaginário das crianças, fascinadas por Tarzan.
Contra o homem-macaco de Rice Burroughs, as histórias de samurais, banidas durante a guerra, são resgatadas do limbo também nos anos 1950, segundo a autora, respondendo pela recuperação dos laços do Japão com suas raízes. Houve até reações violentas contra a “ocidentalização” de criadores como Osamu Tezuka. Queimaram seus quadrinhos nas ruas, acusando-o de “exercer uma influência nefasta sobre a juventude japonesa”. Tezuka não se abalou. Foi até um protofeminista ao assinar o primeiro shöjo manga para garotas, em 1953, A Princesa e o Cavaleiro.
Outros mangaka seguiram o seu caminho e ajudaram a sedimentar a imagem da nova mulher japonesa do pós-guerra, menos sensata e longe do estereótipo de boa mãe de família. Eles buscaram inspiração no comportamento das ruas. Seus mangás, observa a autora, influenciaram a moda, os penteados e a maquiagem.
A heroína do shöjo manga, Ikeda Riyoko, viveu pouco (morreu aos 46 anos, em 2005), mas deixou obras seminais sobre mulheres independentes, entre elas uma adaptação de Lady Oscar. Depois dela, só mesmo uma “demônia” como Nezuko, a irmã de Tanjira em Demon Slayer, mangá de Koyoharu Gotouge, para chamar a atenção do público. Dependente do irmão para recuperar a forma humana, ela representa, de certa forma, uma regressão. Mas a história é assim mesmo, cheia de revisitações e busca de sucesso. A franquia cinematográfica de Demon Slayer já rendeu quase US$ 9 bilhões. Isso diz alguma coisa sobre os japoneses. E muito sobre os mangás. •
Tarzan Homem-macaco de Rice Burroughs e histórias de samurais, banidas na guerra, voltaram a circular nos anos 1950
Adolescentes em busca de um modelo adotam os super-heróis japoneses
O Estado de S. Paulo.25 Jul 2022
EDITORA ESTAÇÃO LIBERDADE
Há pelo menos duas razões que explicam o êxito dos mangás fora do Japão: a descentralização da cultura na era global e a estreita relação entre culturas pós-modernas e a indústria cultural. No Japão, a popularidade dos mangás após a 2.ª Guerra cresceu principalmente pela necessidade de entretenimento de um povo castigado pela derrota, tentando uma compensação por meio dos quadrinhos. Mas, usado inicialmente como diversão, o mangá serviu depois para educar crianças e transmitir mensagens positivas.
Há exemplos que fogem a essa lógica, como Machiko Hasegawa (1920-1992), pioneira na publicação desses quadrinhos nos jornais com a série Sazaesan, que contestou a ordem patriarcal ao criar a figura da dona de casa fora do eixo, liberada, uma extensão de seu caráter antissocial. A exemplo de Machiko Hasegawa, o mais popular entre os artistas criadores de mangá, Osamu Tezuka, também começou a publicar seus quadrinhos em jornais e tinha, como ela, certa desconfiança de que a humanidade é uma invenção sem futuro. Tezuka era pessimista e, curiosamente, um tipo pouco disposto a aceitar as diferenças, ao contrário dos mais modernos desenhistas de mangá.
Um traço característico do mangá é a figura humana tipicamente desenhada com traços exagerados e proporções nada simétricas, notadamente os olhos arredondados, que traduzem mais diretamente as emoções dos personagens. É um gênero etnicamente ambíguo, o que facilita seu trânsito entre orientais e ocidentais (o mangá, no auge de sua popularidade, 1996, chegou a responder por um terço de todo o mercado editorial do Japão, rendendo fortunas no mercado americano).
Esse tipo de identificação com personagens japoneses tem a ver sobretudo com a criação de uma nova identidade por meio do mangá. Estudos foram feitos e descobriu-se que leitores adolescentes americanos usam os quadrinhos para forjar uma nova persona com base no que lhes falta – eles desejam, sobretudo, o poder dos heróis dos mangás.
FORA DO RADAR.
Como se sabe, o conceito de cultura vem amalgamado com o conceito de civilização. Se, antes, o “outro” (o japonês) era o inimigo, hoje é o modelo a ser adotado: gênero e raça são desmontados pela lógica do mangá. Tal modelo híbrido pode não ser visto como uma combinação de identidades autênticas, mas como uma “nova” identidade, observaram estudiosos do assunto. Há quem diga que esses jovens ocidentais buscam identidades alternativas fora de seu ambiente social. Pode ser. Afinal, o mundo ocidental anda carente de modelos. É animador ver algo fora do radar da homogeneização cultural. Não se deve esquecer, porém, que os mangás criados no Japão são limitados pela autocensura. Os quadrinhos ocidentais há muito exploram a sexualidade. No Japão, pelos públicos são considerados uma ofensa (até nas telas). •
A.G.F.
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