1. Vício Inerente, Inherent Vice, 2014, Paul Thomas Anderson
2. Blade Runner 2049, 2017, Denis Villeneuve
3. A Ultima Barricada, The Last Command, 1955, Frank Lloyd
4. RRR: Revolta, Rebelião, Revolução, RRR (Rise Roar Revolt), 2022, S.S. Rajamouli
5. O Retrato de Jennie, Portrait of Jennie, 1948, William Dieterle
6. À Noite Sonhamos, A Song to Remember, 1945, Charles Vidor
7. Tudo Isto e o Céu Também, All This, and Heaven Too, 1940, Anatole Litvak
8. Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, Everything Everywhere All at Once, Dan Kwan e Daniel Scheinert, 2022
9. A Bruxa, The VVitch: A New-England Folktale, 2015, Robert Eggers
10. Evidências de um Crime, Cleaner, 2007, Renny Harlin
11. Fugindo do Passado, Unstoppable, 2004, David Carson
12. Os Vampiros, Les Vampires, 1915, Louis Feuillade
13. Clean, 2004, Olivier Assayas
14. Os Violentos Vão Para O Inferno, Il mercenário, 1968, Sergio Corbucci
15. Grandes Esperanças, Great Expectations, 1946, David Lean
16. Passos na Noite, Where the Sidewalk Ends, 1950, Otto Preminger
17. Morro da Traição, The Yellow Mountain, 1954, Jesse Hibbs
18. Quando os Brutos se Defrontam, Faccia a faccia, 1967, Sergio Sollima
19. Raízes do Céu, The Roots of Heaven, 1958, John Huston
20. Keoma, 1976, Enzo G. Castellari
21. erra dos Bravos, Badland, 2019, Justin Lee
22. O Benzinho de Todas, Ladies' Man, 1931, Lothar Mendes
23. O Grande Segredo, Cloak and Dagger, 1946, Fritz Lang
24. Fibra de Heróis, Buchanan Rides Alone, 1958, Budd Boetticher
25. Johnny Yuma, 1966, Romolo Guerrieri
26. Conflito de Duas Almas, Golden Boy, 1939, Rouben Mamoulian
27. O Amanhã é Eterno, Tomorrow Is Forever, 1946, Irving Pichel
28. Dívida de Honra, The Homesman, 2014, Tommy Lee Jones
29. True Heart Susie, 1919, D.W. Griffith
30. Czarina, A Royal Scandal, 1945, Otto Preminger, Ernst Lubitsch (não creditado)
31. Escravo de Si Mesmo, Beware, My Lovely, 1952, Harry Horner
32. Eu Vi o Diabo, Ang-ma-reul bo-at-da, 2010, Jee-woon Kim
33. Longe dos Homens, Loin des hommes, 2014, David Oelhoffen
34. A Grande Chantagem, The Big Knife, 1955, Robert Aldrich
35. A Morte num Beijo, Kiss Me Deadly, 1955, Robert Aldrich
10/06/22
Vício Inerente, Inherent Vice, 2014, Paul Thomas Anderson
Conrado Heoli
Dentre todos os possíveis e majoritariamente lisonjeiros apontamentos cabíveis à obra de Paul Thomas Anderson, talvez o mais certeiro é que o diretor faz um cinema único e exclusivamente pessoal. Autor na definição mais específica do termo emprestado por François Truffaut para destacar grandes cineastas, o norte-americano imprime em seu mais novo e desconcertante filme, Vício Inerente (2014), algumas das melhores características definidoras de sua singular filmografia, o que já faz valer o ingresso.
Sétimo filme de PT Anderson e primeira adaptação cinematográfica para um livro de Thomas Pynchon,
Vício Inerente apresenta o estranho, obscuro e lisérgico novo caso de Larry “Doc” Sportello, investigador particular que a pedido da ex-namorada se envolve no caso do suposto sequestro de um milionário desaparecido, possivelmente arquitetado por sua esposa e o amante dela. Além de improváveis conjecturas, a busca de Doc revela um mundo psicodélico e misterioso, repleto de tipos ainda mais estranhos do que ele e seus amigos: surfistas, viciados, detetives peculiares e um saxofonista disfarçado são apenas alguns deles. Depois de Boogie Nights: Prazer sem Limites (1997), Anderson possuía crédito de sobra – entre crítica e audiência – para realizar o filme que desejasse.
Nos anos seguintes ele dirigiu Magnólia (1999), Embriagado de Amor (2002), Sangue Negro (2007) e O Mestre (2012), ultrapassando quaisquer expectativas geradas por seus trabalhos prévios e gradativamente ampliando as perspectivas otimistas para seus projetos futuros. Nesse cenário, Vício Inerente não decepciona e funciona como um retorno ao universo de Boogie Nights com direção e montagem frenéticas, numa narrativa ritmada pelos pontos de giro e trilha sonora setentista – química amplificada por conta de um elenco afiado e afinadíssimo.
Em parte um recorte da subcultura de sexo e drogas da costa californiana no início dos anos 1970, em parte um thriller cômico e errático que subjuga as regras do cinema noir e se direciona para algum lugar entre a paródia e a sátira. Vício Inerente se perde entre pontas soltas e uma sincronicidade confusa, complexa também pela inacabável lista de personagens secundários que entram e saem da trama quando é conveniente ao roteiro também assinado por Anderson, indicado ao Oscar. Ainda assim, tais particularidades são intrínsecas a obra de Pynchon, um intelectual reconhecido por sua literatura densa repleta de digressões, temáticas e gêneros, o que garante autenticidade e explicita a homenagem ao estilo do autor, traduzido soberbamente para o cinema. Como de costume, Joaquin Phoenix mergulha na composição de seu personagem sem qualquer reserva ou vaidades; como Doc, ele aparece com um cigarro de maconha praticamente em todas as sequências do filme, numa performance inebriada, paranoica e irretocável. Como a premissa sugere, a trama labiríntica segue oferecendo personagens ilimitados, que se validam em maioria pelas atuações que os acompanham – Josh Brolin, Katherine Waterston, Jena Malone, Benício Del Toro, Reese Witherspoon, Maya Rudolph e até Eric Roberts e Owen Wilson são alguns dos nomes estrelados.
Seja pelo material de origem ou pela aproximação de Paul Thomas Anderson, Vício Inerente oferece muitas qualidades para sublimar problemas com artifícios que compensam a sessão. Em algum ponto do filme você deve lembrar de O Grande Lebowski (1998), e isso não é ruim. Os dois filmes funcionariam maravilhosamente bem numa sessão dupla – isso se você tiver quase cinco horas à disposição de uma viagem alucinógena e com efeitos permanentes.
10/06/22
Blade Runner 2049, 2017, Denis Villeneuve
Blade Runner 2049 - Comentários SEM spoilers Pablo Villaça vídeo
Blade Runner - O Caçador de Andróides
11/06/22
A Ultima Barricada, The Last Command, 1955, Frank Lloyd
No iutub
Sobre Anna Maria Alberghetti, 1936
Sterling Hayden, Anna Maria Alberghetti, Richard Carlson, Eduard
Franz, Virginia Grey, and John Russell in A Ultima Barricada (1955)
A Última Barricada (1955)
SINOPSE: Em 1836, Jim Bowie e Davy Crockett lideram os rebeldes mexicanos que buscam a independência de seu país. Em desacordo com a forma como o general Santa Anna lidera o povo, eles enfrentam seu equipado exército, mesmo que esta seja a última batalha de suas vidas.
SOBRE O FILME: As histórias de bastidores de certos filmes são por vezes até melhores que os próprios filmes e este é o caso de “A Última Barricada” (The Last Command), de 1955. E conhecer os fatos que levaram a Republic Pictures a filmar o cerco do Álamo pelo exército mexicano em 1836, torna praticamente obrigatória a revisão deste filme. Após a discutida versão de 1960 (de John Wayne) e a fracassada refilmagem de 2004 (de John Lee Hancock), e por ser um fato histórico bastante conhecido do público, a história do Álamo encontra o espectador familiarizado com o que vai assistir. Isso provoca as inevitáveis comparações entre os filmes, personagens e intérpretes. “A Última Barricada” surpreende por mostrar um Davy Crockett diferente e divertido; um Coronel Travis menos soberbo; e um Jim Bowie verdadeiramente heroico e a figura central do filme.
13 dias para uma derrota histórica – Quem assina a história de “A Última Barricada” é Sy Bartlett, com roteiro de autoria de Warren Duff, ambos fugindo por vezes à exatidão dos fatos históricos. Em “A Última Barricada” James ‘Jim’ Bowie (Sterling Hayden) é um dono de terras no México que participa das discussões politicas de norte-americanos em San Antonio para fazer com que o General Santa Ana (J. Carroll Naish) respeite a Constituição de 1824 que dava autonomia à Província do Texas. De início relutante, Bowie adere à causa dos texanos e expõe sua posição ao seu amigo General Santa Anna. A intransigência de ambos os lados leva ao conflito armado e os norte-americanos decidem resistir fazendo de uma missão em ruínas construída pelos espanhóis e abandonada em San Antonio de Bexar seu reduto.
O nome da missão é O Álamo e nesse abrigo precário enfrentam o exército de Santa Ana. Jim Bowie e o Coronel William B. Travis (Richard Carlson) são os líderes da resistência que contam em vão com reforços que nunca chegarão. Bowie e Travis recebem apenas um grupo de 29 homens vindos do Tennessee e liderados por Davy Crockett (Arthur Hunnicutt). A luta desigual se dá entre os 187 homens que estão na missão transformada em forte e que tencionam deter as forças do General Santa Ana o maior tempo possível. Com isto possibilitarão mais tempo para que o General Sam Houston arregimente e treine um exército norte-americano. O exército mexicano é composto de cinco mil homens que após 13 dias de cerco exterminam os defensores do Álamo.
O heróico Jim Bowie – A imprecisão histórica de “A Última Barricada” choca de início mas logo é esquecida, à medida que Jim Bowie demonstra ser o que os norte-americanos chamam de ‘bigger than life’. Jim Bowie é, além de quase invulnerável fisicamente com seus quase dois metros de altura, inteligente, persuasivo com as palavras e homem que transita com a mesma facilidade entre os inimigos políticos.
O próprio Generalíssimo Santa Ana é antigo amigo de Bowie por quem Santana Ana nutre profundo respeito. Consuelo (Anna Maria Alberghetti), personagem ficcional filha do mexicano Lorenzo Quesada (Edward Franz) se apaixona por Jim Bowie mesmo com a grande diferença de idade e sendo ele casado. Mediador e nada egoísta, Bowie divide a liderança do contingente de 187 homens com o Coronel Travis e Davy Crockett reconhece a liderança indiscutível de Jim Bowie. Provocado pelo fanfarrão briguento Mike Radin (Ernest Borgnine), Bowie o derrota numa luta com facas, mas consegue a simpatia de Radin que passa o resto do filme lembrando que Bowie “é um homem bom”. A generosidade de Bowie é demonstrada quando diz a Consuelo que o jovem Jeb Lacey é a pessoa indicada para fazê-la feliz. Assim é o Jim Bowie de “A Última Barricada”, nada parecido com o Jim Bowie da vida real, este um criminoso perseguido pela Justiça, traficante de escravos e homem de poucos amigos. Mais lembrado por ter sido o criador de uma lendária faca de desenho exclusivo, instrumento para intimidar quem ousasse afrontá-lo. Em “A Última Barricada” Jim Bowie é o mais heróico personagem da heróica resistência e, como de fato ocorreu, não participa da batalha. No filme devido a ferimentos sofridos em seu tórax e não à febre tifóide que de fato o acometeu.
Muita ação de excelente qualidade – “A Última Barricada” em sua primeira parte situa o contexto histórico mostrando de forma bem elaborada as raízes que levaram ao conflito. O filme começa lento com uma única cena de ação que é a luta de facas entre Bowie e Radin. Nessa parte inicial é ainda inserido no filme o inconvincente romance entre Bowie e Consuelo Quesada. Com a chegada dos homens do Tennessee e os preparativos para a defesa do Álamo o filme ganha em ação, como não poderia deixar de ser, com o clímax da carga final após soar o “Deguello”. O significado da mórbida canção entoada pelos trompetes mexicanos é deixar prisioneiros norte-americanos vivos após o ataque.
Para os padrões da Republic Pictures “A Última Barricada” é uma superprodução e as cenas de batalhas espetacularmente realizadas justificam artisticamente o investimento. O filme foi dirigido pelo veteraníssimo Frank Lloyd, vencedor de dois prêmios Oscar de Melhor Diretor. O primeiro por “Cavalgada” (1933) e o segundo por “O Grande Motim (1935). Lloyd dirigiu seu primeiro filme em 1914 e estava com 68 anos quando foi contratado para dirigir “A Última Barricada”, que foi seu filme derradeiro. Frank Lloyd contou com a preciosa ajuda de William Witney como diretor de segunda unidade para as cenas de batalha. Witney, lendário diretor de seriados e faroestes B da Republic, comandou uma equipe de stuntmen formada por grandes profissionais a quem se deve o realismo das ótimas sequências de ação. O competente grupo de stuntmen foi composto pelos irmãos Joe e Tap Canutt (filhos de Yakima Canutt), Kermit Maynard, Chuck Roberson, Boyd ‘Red’ Morgan, Charles Horvath e outros. As muitas e espetaculares quedas de cavalo, quedas de paliçadas e confrontos diretos funcionam excepcionalmente bem e são o ponto alto do filme.
Música de Max Steiner – Apesar da pobreza do Trucolor (processo de colorização criada pela Republic Pictures para não pagar o caro Technicolor) Herbert J. Yates abriu os cofres e contratou Max Steiner que compôs e orquestrou a bela trilha sonora. O destaque é a canção “Jim Bowie”, com música de Steiner e letra de Sidney Claire, canção interpretada por Gordon MacRae. É preciso lembrar que à época da produção de “A Última Barricada”, Gordon MacRae era um dos grandes nomes dos musicais da Warner Bros. em parceria com Doris Day, estrelando ainda “Oklahoma” e posteriormente “Carrossel”.
O cinegrafista Jack A. Martha realizou proezas com sua câmara criando a impressão que havia muito mais extras em ação do que a mera centena de figurantes vestidos como soldados mexicanos. Um filme de ação depende muito de uma edição precisa e “A Última Barricada” contou com a edição inspirada de Tony Martinelli cujo trabalho muito colaborou para o bom resultado de “A Última Barricada”.
Bowie forte, Travis fraco – Sterling Hayden era conhecido como ‘o John Wayne de esquerda’ e também como ‘o Burt Lancaster dos filmes B’. E Hayden está bem e é convincente como Jim Bowie, até porque o personagem havia sido escrito para John Wayne. Alto, forte e por vezes lacônico, Hayden mostra que, não por acaso, atuou em tantos filmes importantes. Richard Carlson não demonstra a personalidade suficiente para se impor e faz seu personagem parecer melancólico e derrotado.
Parece mesmo impressionado com a enorme presença física de Sterling Hayden, o que não intimidou atores como Ernest Borgnine, Arthur Hunnicutt e J. Carroll Naish. Estes, quando em cena, não permitem que ninguém lhe para o gigante Hayden. Hunnicutt criou um picaresco Davy Crockett num filme no qual, sem ele, não haveria momentos de comicidade. Anna Maria Alberghetti têm a árdua missão de carregar um personagem forçado em cenas ainda mais forçadas. O pior momento da atriz é quanto entoa uma terrível canção lembrando Jim Bowie que está distante dela. Não há referências quanto ao autor da canção que certamente não deve ser de Max Steiner. Ben Cooper completa o triângulo amoroso com Hayden e Anna Maria. O elenco composto por muitos nomes conhecidos traz ainda, John Russell, Jim Davis, Virginia Grey, Slim Pickens, Russell Simpson, Morris Ankrum, Harry Woods, Walter Reed e Eduard Franz, ou seja, garantia de boas interpretações secundárias. Infelizmente nenhum deles tem, no filme, espaço condizente com seus talentos.
Filme ‘A’ ou filme ‘B’? – Em “O Álamo”, de 1960, John Wayne praticamente copiou a sequência de morte do Davy Crockett de Arthur Hunnicutt. E fica claro que o personagem que Wayne deveria interpretar em seu filme era o de Jim Bowie e não Davy Crockett. Apesar de caro para um estúdio como a Republic Pictures, “A Última Barricada” custou a décima parte do dinheiro gasto com “O Álamo” de 1960. E a economia típica da Republic Pictures é lembrada em cenas com cenários pintados. Produzido como filme ‘A’, “A Última Barricada” acabou virando filme de programa duplo e praticamente ignorado pela crítica. Mas nada disso desmerece esse pequeno, belo e desprezado épico produzido por Herbert J. Yates.
12/06/22
RRR: Revolta, Rebelião, Revolução, RRR (Rise Roar Revolt, 2022, S.S. Rajamouli
Writing Credits
Vijayendra Prasad (story), Sai Madhav Burra (telugu dialogue)
Madhan Karky (tamil dialogue), S.S. Rajamouli (screenplay), Riya Mukherjee (hindi dialogue)
‘RRR’: épico indiano dá aulas em extravagância fílmica
Postado por Marcos Faria jun 20, 2022
Já virou certo clichê entre a parcela ocidental da crítica cinematográfica a comparação entre “RRR” e os blockbusters hollywoodianos. Hollywood, dizem os críticos, deveria voltar sua atenção às terras ao leste do globo, porque “RRR” os deixa no chinelo em termos de espetáculo. Ora, até mesmo este que vos fala tem resmungado sobre a mesmice hollywoodiana já há alguns textos.
O interessante nessa história toda é que tanto Hollywood quanto as diferentes indústrias cinematográficas indianas partem de uma mesma mentalidade. (E não, a Índia não é só “Bollywood”, que representa apenas a parcela em hindi da sua produção; “RRR”, por exemplo, é falado em télugo, apesar da versão disponível na Netflix ser dublada em hindi.) A mentalidade é: fazer filmes que possam ter apelo para diferentes faixas demográficas.
Um filme do MCU, por exemplo, precisa ter algo para as crianças, para os adultos, para os homens, para as mulheres, para os LGBTQIA+ e assim por diante. (Sabemos que para o último grupo se trata sempre de alguma menção fuleira sobre a sexualidade de algum personagem terciário, slogans ditos da boca para fora de forma cínica). Da mesma forma, o cinema indiano também quer agradar a todos – como S. S. Rajamouli, diretor de “RRR”, prontamente afirma.
A diferença é que, se em Hollywood, o resultado dessa empreitada é frequentemente o menor denominador comum cinematográfico – um amotoado homogêneo de referências e personagens pré-existentes –, em um filme como “RRR” há, ao contrário, uma amálgama heterogênea de tons e gêneros. Assim, enquanto um “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura” da vida se mostra mais um filme de comitê que qualquer outra coisa, “RRR”, por sua vez, quer te entreter a qualquer custo, preservando certa autonomia entre suas diversas vertentes. Você gosta de musicais? Aqui você tem um. Bromance? Idem. Comédia romântica? Drama histórico? Ação super-heróica? É só chegar.
É um certo malabarismo, portanto, o que Rajamouli executa no desenvolvimento de seu filme. Com 185 minutos de duração, a sensação que se tem assistindo ao longa é a de ser esmagado no sofá pelo peso do seu espetáculo – o que, de minha parte, é algo positivo. A cola que une todos esses impulsos díspares é, eu diria, a sensibilidade particular do modo de ser indiano – que, em cinema, se aproxima mais de uma lógica da mostração que da narração.
Explico. Em geral, identificamos em Hollywood uma certa lógica fílmica que depende, primeiramente, da narração: cada cena deve contribuir para o andamento da narrativa, e o que não cumpre tal propósito na trama é visto como gordura, devendo ser, portanto, eliminado. São filmes que, estilisticamente, tendem a ser mais contidos no geral, já que seu princípio-mor é mostrar uma história, e não se mostrar (claro que há inúmeras exceções, mas sempre que um diretor com forte senso de estilo aparece, é taxado de “excessivo” – Sam Raimi, De Palma, Scorsese etc).
O contrário ocorre na “lógica da mostração”, exibicionista por natureza. Aqui, o prazer não está (apenas) na eficiência narrativa e na resolução dramática; é preciso, antes, deleitar o espectador com o que se dá à vista – em detrimento da progressão narrativa, se necessário.
Assim, em “RRR”, Rajamouli frequentemente pausa o andamento da trama para prolongar-se sobre alguma nova vista espetacular – e tome slow motion e dollys circulares. Seu uso de CGI é, nesse sentido, perfeito, complementando uma certa fluidez espacial que está mais preocupada em deslumbrar do que se ater às nossas monótonas leis da Física.
Rebelião e amizade
Já virou certo clichê entre a parcela ocidental da crítica cinematográfica a comparação entre “RRR” e os blockbusters hollywoodianos. Hollywood, dizem os críticos, deveria voltar sua atenção às terras ao leste do globo, porque “RRR” os deixa no chinelo em termos de espetáculo. Ora, até mesmo este que vos fala tem resmungado sobre a mesmice hollywoodiana já há alguns textos.
O interessante nessa história toda é que tanto Hollywood quanto as diferentes indústrias cinematográficas indianas partem de uma mesma mentalidade. (E não, a Índia não é só “Bollywood”, que representa apenas a parcela em hindi da sua produção; “RRR”, por exemplo, é falado em télugo, apesar da versão disponível na Netflix ser dublada em hindi.) A mentalidade é: fazer filmes que possam ter apelo para diferentes faixas demográficas.
Um filme do MCU, por exemplo, precisa ter algo para as crianças, para os adultos, para os homens, para as mulheres, para os LGBTQIA+ e assim por diante. (Sabemos que para o último grupo se trata sempre de alguma menção fuleira sobre a sexualidade de algum personagem terciário, slogans ditos da boca para fora de forma cínica). Da mesma forma, o cinema indiano também quer agradar a todos – como S. S. Rajamouli, diretor de “RRR”, prontamente afirma.
A diferença é que, se em Hollywood, o resultado dessa empreitada é frequentemente o menor denominador comum cinematográfico – um amontoado homogêneo de referências e personagens pré-existentes –, em um filme como “RRR” há, ao contrário, uma amálgama heterogênea de tons e gêneros. Assim, enquanto um “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura” da vida se mostra mais um filme de comitê que qualquer outra coisa, “RRR”, por sua vez, quer te entreter a qualquer custo, preservando certa autonomia entre suas diversas vertentes. Você gosta de musicais? Aqui você tem um. Bromance? Idem. Comédia romântica? Drama histórico? Ação super-heróica? É só chegar.
É um certo malabarismo, portanto, o que Rajamouli executa no desenvolvimento de seu filme. Com 185 minutos de duração, a sensação que se tem assistindo ao longa é a de ser esmagado no sofá pelo peso do seu espetáculo – o que, de minha parte, é algo positivo. A cola que une todos esses impulsos díspares é, eu diria, a sensibilidade particular do modo de ser indiano – que, em cinema, se aproxima mais de uma lógica da mostração que da narração.
Lógica exibicionista
Explico. Em geral, identificamos em Hollywood uma certa lógica fílmica que depende, primeiramente, da narração: cada cena deve contribuir para o andamento da narrativa, e o que não cumpre tal propósito na trama é visto como gordura, devendo ser, portanto, eliminado. São filmes que, estilisticamente, tendem a ser mais contidos no geral, já que seu princípio-mor é mostrar uma história, e não se mostrar (claro que há inúmeras exceções, mas sempre que um diretor com forte senso de estilo aparece, é taxado de “excessivo” – Sam Raimi, De Palma, Scorsese etc).
O contrário ocorre na “lógica da mostração”, exibicionista por natureza. Aqui, o prazer não está (apenas) na eficiência narrativa e na resolução dramática; é preciso, antes, deleitar o espectador com o que se dá à vista – em detrimento da progressão narrativa, se necessário.
Assim, em “RRR”, Rajamouli frequentemente pausa o andamento da trama para prolongar-se sobre alguma nova vista espetacular – e tome slow motion e dollys circulares. Seu uso de CGI é, nesse sentido, perfeito, complementando uma certa fluidez espacial que está mais preocupada em deslumbrar do que se ater às nossas monótonas leis da Física.
Rebelião e amizade
Tudo isso, e ainda nem dissemos do que se trata o filme. Passado na década de 1920, em uma Índia ainda colônia do Império Britânico, “RRR” conta a história da improvável amizade entre um oficial indiano servindo aos britânicos, Raju (Ram Charan), e o camponês revolucionário Bheem (N. T. Rama Rao Jr.). Raju e Bheem, diga-se de passagem, são nomes de figuras reais na história revolucionária indiana. “RRR”, contudo, é um filme e não uma aula de história; boa parte do que o filme mostra em se tratando de seus heróis – incluindo, pasmem, sua força sobre-humana e habilidade musical – é fictício, a começar pelo fato de que, na vida real, Raju e Bheem nunca sequer se encontraram.
O título, é verdade, não nos diz muito: “Rise, Roar, Revolt” em inglês, e “Revolta, Rebelião, Revolução” em terras tupiniquins. Mas, originalmente – e esse é o pulo do gato –, as iniciais representam os nomes de seus astros: Ram Charan como o temível militar Raju, Rama Nao como o afável Bheem e, finalmente, o próprio diretor Rajamouli. O diretor, que já trazia no seu histórico a maior bilheteria da história da Índia com seu “Baahubali 2”, desbancou a si mesmo com “RRR”, que tomou o título para si.
Línguas diferentes
Esse aspecto é apenas um dos muitos que se “perdem na tradução”, por assim dizer. Mentes mais cultas que a minha provavelmente reconhecerão as inúmeras referências a personalidades históricas e divindades indianas que, mudas para os incautos, sem dúvida fazem o filme ressoar ainda mais forte com seu público-alvo.
Por isso mesmo, este é um daqueles filmes que deveriam ser vistos, preferencialmente, em um cinema grande e lotado. No êxtase da experiência cinematográfica, em meio aos urros e gritos de uma plateia em polvorosa, é muito mais fácil se perder de vez no apelo sensorial de um filme como este.
Mesmo que o impacto seja mitigado pela placidez da sala de estar, “RRR” segue sendo, em termos de espetáculo, imperdível.
12/06/22
O Retrato de Jennie, Portrait of Jennie, 1948, William Dieterle
No iutubi
Sobre Lillian Gish (1893–1993)
Portrait of Jennie (1948) de William Dieterle de Carlota Gonçalves · Em Julho 25, 2017
Filme de fantasmas, inquietante e brumoso, Portrait of Jennie (O Retrato de Jennie, 1948), de William Dieterle, adaptado do livro de Robert Nathan, leva-nos numa viagem de sonho, mais realidade, para um reino de imagens que se encontram e sustentam ao longo dos seus 86 minutos de duração, absorventes e próximas de uma experiência onírica. Não foi por acaso (neste caso), que Breton adorou o filme e o elogiou como um conto (talvez canto), surrealista, cheio de material onírico d’amour fou eterno.
O Retrato de Jennie, desenvolve-se assim por um fio brumoso de imagens, marcadas por um tom fantástico de uma assombrosa realidade-sonho. Admirável dualidade que viverá muito bem junta, amparando-se num jogo que fabrica um efeito do real, perfeitamente definido, na sua própria matéria nebulosa. O filme começa exactamente lá em cima no céu, pelas nuvens, atravessadas por uma voz off, grave e pomposa, que lança as questões de sempre que marcam a permanente inquietação humana: “O que é o tempo? O que é o espaço? O que é a vida? O que é a morte?”. Esta entrada que conduz ao miolo das coisas e à persistência da dúvida, procura uma resposta maior, menos tangível que se rematará muito bem, e logo de seguida, com outra pergunta (que permitirá uma ideia para uma resposta): “Quem sabe se a Morte não é, finalmente, a vida e o que os mortais chamam vida não é, finalmente, a morte?”, com assinatura de Eurípides. Aqui está, bem lançada, e sugerida no trocadilho, a pista a seguir, deixar que estas dimensões vivam ou morram como quiserem, ou como nós quisermos.
Este era um filme da vida de João Bénard da Costa que falava do seu amor incontestável por ele, referindo-se à força exercida pela voz off inicial, vagarosa e magnética, não deixando de lado a música de Tiomkin com Debussy e Herrmann, como pedra de toque bem cheia de uma potência qualquer que lhe vai dar o tal poder mágico. O produtor do filme David O. Selzenick, tê-lo-á feito para o dar de presente à sua futura mulher Jennifer Jones, a soberba actriz que vive no corpo da menina e depois da mulher, a protagonista Jennie.
Jennifer Jones mostra aqui a sua gigante versatilidade e prova como após o passional e carnal papel em Duel in the Sun (Duelo ao Sol, 1946) de King Vidor, consegue encarnar, na mesma medida, uma etérea e corpórea personagem, humana e irreal que vem de longe no tempo para amar de perto o pintor, Eben Adams (Joseph Cotten), e dar-lhe também a ele uma nova vida, na vida. E assim eles vão amar-se, ela vai viver duas vezes e morrer mais duas; vai aparecer-lhe menina, enquanto ele homem feito procura dias melhores como pintor que não vende as suas obras. Ela traz-lhe vida e parece indicar-lhe o caminho para chegar mais longe na arte da arte, e na arte da vida, dando-se ainda apaixonadamente, tirando-o do ‘’inverno do espírito”, porque ela apenas sabe as coisas, não se lembra delas mas sabe-as simplesmente; ela vai prometer crescer depressa (e cresce), os meses corresponderão a anos e a menina ficará mulher. Podemos também falar dos encontros no Central Park, cenário que serve como uma luva o ritual de aproximação destes dois seres solitários e tristes, sob céus profundos a romper luz, numa Nova Iorque fantasmática e tão atmosférica.
A imagem como uma tela que Dieterle trabalha como uma trama, vê-se por vezes no arranque das cenas, e é outro incrível detalhe que nos leva para o mundo das histórias que se contam como um livro de imagens animadas. Até apetece citar o Huberman quando este fala da imagem como: “uma tecelagem, uma tela do tempo, que abre infinitamente a temporalidade e alarga a legibilidade”. Há muitas naturezas temporais no Retrato de Jennie, como há também uma abertura gigante à noção de duração porque este ‘’tempo’’ terá uma natureza própria, na carga anacrónica que transporta e no fulgor irreal que veicula. E o amor entre o dois é também fruto de uma “tecelagem”, isto segundo as próprias palavras de Jennie: “As linhas da nossa vida foram tecidas juntas”(…). E pronto, aqui estamos perante a anormalidade de um sentimento imperativo, incontornável.
Absurdamente romântico é então O Retrato de Jennie, e tem ainda uma beleza triste que pode vir do lado trágico e intenso da história. Inúmeras vezes é referido o olhar triste de Jennie, e a sua canção-tema tem um verdadeiro poder hipnótico, e ela canta-a com um fio de voz que encanta. A imagem vem ainda reforçar toda a estranheza sombria que paira na atmosfera plástica. O trabalho da fotografia de Joseph H. August tem um importante rasgo estético que dissemina logo os conteúdos pela materialidade etérea que projecta, na incandescência do sonho, com o seu jogo incansável de luz e sombra, num preto e branco pleno que vai culminar em cor num momento soberbo com imagem a preto e verde, mais sépia, para o final (já lá voltamos).
Nesta linha de imaginários de fantasmas no cinema, acordam logo outros grandes filmes que se projectam neste mundo de vida e morte, de memórias que se enlaçam, altamente perturbados e estilizados, e muito cheios de sintoma que viveram em grande na época dos 30, 40 e 50.
Ergue-se logo o grande e incontornável, The Ghost and Mrs. Muir (O Fantasma Apaixonado, 1947) de Joseph L. Mankiewicz, que permite a intrusão do fantasma no mundo dos vivos no corpo do capitão (Rex Harrison), por quem a viúva, (Gene Tierney), se apaixonará numa relação intensa e viva de um amor irrepetível. Lembramo-nos de Peter Ibbetson (Sonho Eterno, 1935) de Henry Hathaway, em que a cumplicidade de um menino e de uma menina, separados em crianças, vão perpetuar a relação mais tarde na fase adulta, através de um forte amor que comunica pelo sonho. Esta relação tem na imagem o tom perfeito de uma soberba correspondência estética, carregadinha de onírico. Outro filme bem amado por Breton e visto como um triunfo do pensamento surrealista.
O pulsional Secret beyond the door…(Segredo da porta fechada, 1947) de Fritz Lang com os fantasmas traumáticos do protagonista, desenvolve-se num ambiente de medo e mistério com a notável colecção dos quartos fechados. A lembrar o magnifico sonho da protagonista que inaugura o filme como um esquema perfeito que anuncia possibilidades simbólicas, chaves possíveis de sinais especulares. E muitos outros filmes se podem juntar a uma galeria de projecções, assombrações, sonhos e fantasmas que o cinema tão bem tem alimentado: Liliom, (1934), Rebecca (Rebeca, 1940), A Guy Named Joy (Um Certo Rapaz, 1943), Heaven Can Wait (O Céu Pode Esperar, 1943), A Matter of Life and Dead (Caso de Vida e Morte, 1946), La beauté du diable (O Preço da Juventude, 1949), Pandora (1951), etc., etc., etc.
Surgem ainda outros filmes que usam o “retrato” como motor narrativo e dramático, com projecções imaginárias singulares, a ver alguns dos anos 40 e 50, época fértil destes universos: Experiment Perilous (Noite na Alma, 1944) de Jacques Tourneur, Laura (1944), de Otto Preminger, The Woman in the Window (Suprema Decisão, 1944) de Fritz Lang, The Picture of Dorian Gray (O Retrato de Dorian Gray, 1945) de Albert Lewin, The Locket (O Medalhão Maldito, 1946) de John Brahm, Born to Be Bad (A Deusa do Mal, 1950) de Nicholas Ray, Scarlet Street (Almas Perversas, 1957), outra vez Lang, Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958) de Alfred Hitchcock, entre outros.
Voltando à ‘’lenda inquietante’’ do Retrato de Jennie, desenvolve-se pois sob um clima intenso que leva o espectador numa viagem, ao entrar no pacto que o filme propõe sugerido na ambivalência criada entre vida e morte. É também um filme bondoso, não há maldades aqui, não há lutas entre maus e bons (há uma luta final com as forças da natureza, é tudo), não há problemáticas muito complexas (espera-se Jennie), e não há nós a desatar. Quando Jennie está com Eben não há testemunhas, a força do sonho, da irrealidade, ou daquela realidade, não precisa de mais ninguém. Ela aparece, desaparece, diz coisas e não se lembra, e está bem assim, porque se fabrica tanto um corpo carnal, como uma figura espectral, simples e sábia, bela e palpável, possível e impossível.
Em relação às personagens secundárias há que falar da sua importância e apoio (de bondade), da sua dimensão humana, pois logo irão ajudar Eben a providenciar a sua pobreza. Quando ele precisa de ganhar dinheiro lá estão os galeristas solícitos a comprar pinturas (as flores, o esboço de Jennie); ou Gus, o taxista a inventar a pintura de um mural num restaurante para que não falte a Eben a refeição diária. A galerista, Miss Spinney (Ethel Barrymore), mulher solitária e mal amada (um piropo de Eben vem alegrá-la e cobrir anos de vazio), vai ligar-se numa amizade estreita e cúmplice com ele, dizendo-lhe (premonitoriamente logo no início): “tem de aprender a querer [desejar] profundamente alguma coisa”. Há um pequeno mundo que se adapta à volta dos amantes, e quando factos se clarificam (a Irmã no convento fala da real morte de Jennie no passado), nada se fecha. Há ainda alguns elementos para validar aquela realidade irreal: o lenço, o jornal de época, o Farol de Land’s End, o maremoto… Há o retrato que valida o título do filme e corporifica a figura ultra romântica e trágica de Jennie. Ela é musa e mulher, sedutora e perturbada, carrega vida e também carrega morte, e atravessa o tempo.
Há um final soberbo em que as forças da natureza reaparecem numa tempestade violenta para juntar os amantes no cenário trágico do farol de Land’s End, uma terra de fim, ou sem fim, cíclica e lapidar, que se torna visceralmente verde e preta, e depois sépia, para engolir o filme pela cor e deixar, por fim, ver-se o retrato, abrigado no museu, desta trágica heroína vibrar num relance em technicolor. É daqueles filmes farol, a iluminar noites sombrias, aéreo e fugidio, de uma beleza perturbada, que vem de um lugar distante do cinema e das histórias, secreto e triste como uma canção, a canção de Jennie que começa assim: “Where I come from, nobody knows and where I am going everything goes”. Uma caixa de música para abrir várias vezes.
15/06/22
À Noite Sonhamos, A Song to Remember, 1945, Charles Vidor
No iutubi
Frédéric Chopin
À Noite Sonhamos
“Música e Liberdade são a mesma coisa. Ambas pertencem ao mundo… Frederic Chopin é polonês; seu povo deve ser livre”.
À Noite Sonhamos (A Song To Remember, 1945), EUA, 112 minutos de duração, com direção de Charles Vidor, é um filme que retrata, de forma romanceada, a vida de um dos maiores gênios da música de todos os tempos — Frédéric Chopin (Cornel Wilde). Depois de ser expulso da Polônia, por se recusar a tocar para o governador Czarista, Chopin e seu professor musical fogem para Paris. Lá, Chopin conhece a escritora Aurore Dupin (Merle Oberon) — mais conhecida pelo pseudônimo masculino que usava para assinar seus livros, George Sand — por quem se apaixona. Debilitado fisicamente e temendo que seu romance se torne público, Chopin, acompanhado de Sand, viaja para Majorca, onde o clima úmido e chuvoso favoreceria o agravamento de sua tuberculose.
Essa adaptação para as telas rendeu seis indicações para o Oscar, incluindo Melhor Ator (Cornel Wilde) e Melhor Roteiro Original. O filme foi produzido para promover o discurso em favor da liberdade da Polônia (então sob o domínio nazista, afinal foi a invasão dela que provocou a Segunda Guerra e logo mais tarde, pelos russos novamente). Paul Muni, no papel do professor de Chopin, é um grande destaque. O crítico de cinema Rubens Ewald Filho sugere até que, por causa dele, “o filme fica desequilibrado e podia se chamar ‘O Professor de Chopin’.” Naturalmente a história contada tem pouco a ver com a verdadeira história do músico. Tendo em vista a vida e obra de Chopin, o título em português não é exatamente ruim.
A trilha sonora do filme é simplesmente soberba, e só por isso já compensa assisti-lo. O álbum contém 16 das mais conhecidas músicas do compositor polonês, entre elas: Noturno Opus 9 nº 2, Estudo Revolucionário (Dó menor) Opus 10 nº 12, 15º e 16º Prelúdios Opus 28, Estudo Opus 10 nº 3 (Tristesse), Primeira Balada Opus 23 e muitas outras. A música piano da trilha sonora é executada por José Iturbi.
Ao Piano
Falar em Chopin é falar em piano. A maioria esmagadora de suas obras é para esse instrumento, e mesmo suas obras orquestrais o incluem. Ele é amplamente conhecido como um dos maiores compositores para piano e um dos pianistas mais importantes da história. Várias de suas obras têm influência do folclore polonês, como é o caso das mazurcas e das polonaises.
Suas músicas mais famosas pertencem ao período parisiense. São obras breves que garantem a imortalidade de Chopin, não apenas por sua profusão de belas melodias, mas também por suas harmonias inovadoras e utilização de todos os recursos do piano, explorado como o mais lírico dos instrumentos.
Da Polônia para o Mundo
Frédéric François Chopin — ou Fryderyk Franciszek Chopin no original polonês — nascido em 22 de fevereiro de 1810, era filho do professor francês Nicolas Chopin, que dava aulas de língua e literatura francesas, e da pianista polonesa Justina Krazizanovska. Chopin teve uma infância culta. Aos seis anos passou a ter um professor de piano, Adalbert Zwini, que lhe apresentou as obras de Bach e Mozart. Seu primeiro concerto público ocorreu quando ele tinha oito anos. Na mesma época viu publicada sua primeira obra, uma polonaise. Prosseguiu conciliando seus estudos no Liceu de Varsóvia com as aulas de piano.
Em 1825, apresentou-se para o czar Alexandre I. No ano seguinte ingressou no Conservatório de Varsóvia, onde iniciou seus estudos com o compositor Joseph Elsner. Em 1830, dias antes de eclodir a Revolução Polonesa contra a ocupação russa, Chopin resolveu deixar Varsóvia e partir para Viena, que vivia sob o regime autoritário de Metternich. Nunca mais retornou à Polônia. Em julho de 1831, o jovem Frederic Chopin chegava a Paris. Trazia na bagagem algumas poucas de suas melhores obras e um amor inabalável por sua terra natal.
Em Paris encontra rapidamente a fama e o sucesso. Seu perfil reunia os predicados para ser aceito na sociedade francesa. Além disso, os poloneses contavam com a simpatia do povo francês, o que lhe facilitou ainda mais a estadia em seu novo país. Tímido e reservado, de maneiras aristocráticas, Chopin destacou-se primeiramente como concertista de piano e professor, no que era muito requisitado pelas famílias ricas. Seu virtuosismo ao piano, somado ao seu aspecto doentio, contribuíam para a difusão da imagem do gênio. Em Paris tornou-se amigo de Franz Liszt, Hector Berlioz, Vitor Hugo e toda a plêiade de artistas que estava na capital francesa nessa época. Conheceu músicos consagrados, como Rossini e Cherubini e outros de sua geração, como Mendelssohn e Schumann.
Jovem, solteiro, rico e bem posicionado na capital francesa, a popularidade de Chopin era enorme. Muito cortejado, teve um envolvimento com Aurore Dudevant, mulher que assinava seus escritos com o nome de Georges Sand, e vestia-se como homem.
Uma das irmãs de Chopin já havia morrido de tuberculose. O “mal do século” também o atingiu. Passou um longo período, junto de Georges Sand, na ilha espanhola de Majorca. Ali seu quadro de saúde agravou-se. Em 1839, os dois voltaram para a França e em 1847 romperam definitivamente o relacionamento.
Em 17 de outubro de 1849, aos trinta e nove anos, a tuberculose o matou. Chopin foi sepultado em Paris. Alguns de seus amigos poloneses trouxeram um jarro de terra proveniente de sua terra natal, e a espalharam por seu túmulo, para que Chopin se mantivesse em solo polonês. Era sua última vontade e sua última declaração de amor à Polônia. Seu coração foi colocado dentro de um dos pilares da igreja de Santa Cruz, em Varsóvia, conforme o seu pedido. O coração foi colocado debaixo da inscrição do Evangelho de Mateus 6.21: “Onde estiver o seu tesouro, aí estará também seu coração”.
Em 2008, estudos de Wojciech Cichy, da Faculdade de Medicina da Universidade de Poznan, atribuíram a morte de Chopin a uma fibrose quística, contrariando a versão tradicional de que teria morrido de tuberculose.
16/06/22
Tudo Isto e o Céu Também, All This, and Heaven Too, 1940, Anatole Litvak
No iutubi
Sobre Ernest Haller (1896–1970), Cinematographer
Drama Real inspirou filme com Bette Davis e Charles Boyer
Por Carla Marinho Leal 6 de janeiro de 2020
(...) Em 1938 foi publicado o livro All This and Heaven Too, escrito pela romancistas Rachel Field, sobrinha neta de Henriette Deluzy-Deportes. Dois anos depois, o best seller foi adaptado para as telas trazendo como protagonistas Charles Boyer (como o duque), Bette Davis (como Madame Deluzy) e Barbara O’Neil (como a duquesa).
Dirigido por Anatole Litvak, Tudo Isto e o Céu Também traz grandes atuações. Charles Boyer entrega grande dignidade a um personagem que sofre sem poder escapar de um casamento e ocultar o amor que sente por outra mulher. Sempre perfeccionista, Bette Davis julgou que sua própria atuação, no entanto, não foi tão boa quanto merecia. A atriz comentou posteriormente que o estilo de direção de Litvak a tinha engessado no papel, não permitindo a ela liberdade de atuação. No entanto, olhando tanto tempo depois, percebemos que o estilo contido contribui para o caráter firme de sua personagem.
Barbara O’Neil foi uma indicação de Charles Boyer. Ela seria nomeada ao Oscar por sua atuação magnífica de uma esposa que se sente colocada de lado e passa a atormentar a vida de todos.
O filme foi uma grande produção da Warner. Os figurinos criados por Orry-Kelly recriavam uma época. Foram utilizados até mesmo roupas íntimas e espartilhos que levavam quase meia hora para serem vestidos pelas atrizes. Somente para Bette Davis foram feitos 37 vestidos que chegavam a custar 1000 dólares cada. Também Charles Boyer usava um espartilho que visava diminuir sua barriga e fazer com que sua postura ficasse reta.
Além disso, a Warner criou 67 cenários diferentes, algo que foi um recorde na época. Tais gastos foram justificados pelo fato de Jack L. Warner querer uma produção que se tornasse uma espécie de E o Vento Levou da Warner. Mas havia mais em comum com a grande produção: a cama da duquesa foi a mesma utilizada pela personagem Scarlet O’Hara no filme da MGM. No final, o drama teve um orçamento de US $ 1.370.000 e mais de quatro horas de duração. Teve que ser cortado praticamente pela metade para exibição nos cinemas.
Um caso sem solução
Até hoje, o assassinato da duquesa continua sendo um dos mais famosos assassinatos não resolvidos da França. Posteriormente surgiram boatos de que ele na verdade não tinha se suicidado, mas apenas forjado sua morte e escapado para a Nicarágua. Lá teria se casado mais uma vez, se tornado médico e tido outros filhos, apenas falecendo em 1882. O caso do duque também serviu como estopim para a revolução de 1848. O povo não se conformava mais com os privilégios dos nobres que nunca eram condenados.
Um fato triste a ser citado é que Charles Boyer, que interpreta o duque faleceu de maneira semelhante à seu personagem. Entristecido pela perda da esposa, o ator ingeriu uma alta dose de veneno, dando fim à sua própria vida em 26 de agosto de 1978.
17/06/22
Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, Everything Everywhere All at Once, 2022, Dan Kwan e Daniel Scheinert
Tudo Em Todo o Lugar Ao Mesmo Tempo: O universo se expande nessa obra-prima
Roberto Sadovski, Colunista do UOL, 17/06/2022
Você nunca viu nada igual a "Tudo Em Todo o Lugar Ao Mesmo Tempo". A hipérbole pode ter sido banalizada nos últimos anos, mas ela é real quando o assunto é o filme assinado pelos Daniels.
Poucas vezes o cinema promoveu um ataque aos sentidos tão vibrante. Poucas vezes um conceito mirabolante foi executado em uma explosão de criatividade tão intensa quanto surpreendente. Para quem busca originalidade, é um verdadeiro banquete. O filme explora, também, o conceito do multiverso. Eu sei, é a ferramenta narrativa da vez, de "Homem-Aranha no Aranhaverso" a "Doutor Estranho no Multiverso da Loucura", passando por "Rick and Morty" e, vá lá, "Lightyear". (...)
19/06/22
A Bruxa, The VVitch: A New-England Folktale, 2015, Robert Eggers
Crítica | A Bruxa (The VVitch: A New-England Folktale) [2015] Cinematologia 30/05/2018
Há alguns anos o terror vem se modificando, tentando encontrar mais espaço através de obras mais subversivas. O susto barato, também conhecido como jump scare, já não tem mais tanto espaço para os diretores que desejam novos ares para o gênero. Em 2015, embalado por essa onda revolucionária, o então desconhecido cineasta Robert Eggers embarcou na missão de contar uma estória sobre bruxas, através de uma roupagem que rompesse com os contos clássicos, mas sem perder a essência dos mesmos. Para sorte dos produtores e do próprio Eggers, A Bruxa consegue atingir os objetivos propostos, criando um filme aterrorizante, recheado de simbologias e com duas interpretações diferentes.
Como plot do longa, temos uma típica família inglesa do século 17, recém-chegada ao estado da Nova Inglaterra, nos Estados Unidos. Após o pai da família (ator Ralph Ineson) cometer um crime desconhecido na vila onde moram, ele, a esposa e os filhos são banidos do local, sendo obrigados a encontrar um lugar na floresta para morar. Lá, estranhos acontecimentos começam a atormentá-los, levando-os a acreditar que trata-se de um castigo pelos seus pecados.
Para criar uma ambientação sombria, a fotografia opta por muitas cenas na penumbra, com apenas a luz de velas ou fogueiras clareando contornos, deixando a maior parte da tela totalmente na escuridão – a fim de reforçar a sensação de solidão e abandono da família, que está cercada por uma ameaça desconhecida. Em casos de cenas diurnas, o céu está sempre nublado ou coberto por longos pinheiros, dando um típico ar gótico (característica clássica da literatura sobre bruxas).
Outro ponto forte é a trilha sonora (composta por Mark Korven), sempre desconfortante, em sincronia com a sensação que os planos querem passar. Os sons geralmente são oriundos de graves de violinos ou de um coral fantasmagórico, que vão aumentando o volume gradativamente, deixando a tensão cada vez maior. Assim, o terror não se propaga apenas por meio de aparições e ruídos súbitos, mas também de longas exposições tanto visuais quanto sonoras.
A narrativa também usufrui de símbolos milenares que representam a personificação do mal (segundo o evangelho), como a maça de Eva e o bode preto. Há também signos específicos de rituais de bruxaria, como livros, galhos de vassouras, corvos e rãs. Nesse sentido, o filme derrapa levemente, pois os espectadores pouco entendidos do assunto podem não entender o significado por trás de algumas cenas (como a do corvo no seio da mãe).
O que faz a obra ser tão grandiosa, além de ter uma técnica consistente do início ao fim, é um truque ardiloso do roteiro, capaz de dar duas interpretações possíveis para os eventos. A primeira forma de entender o filme é destinada a quem viveu no século 17, que pode explicar a maldição da família através dos pecados cometidos por ela, o que justificaria absolutamente tudo que acontece da primeira à última cena, baseado em crenças da época. No decorrer da trama, descobrimos que todos ali cometeram algum tipo de “pecado” (inclusive o bebê). Já o segundo entendimento tem como alvo nós, que vivemos nos dias atuais. E de acordo com essa percepção pós-moderna, o longa fala sobre a sexualidade feminina e a liberdade da mulher (ideias reforçadas nas duas últimas cenas), assuntos que nunca foram pautas em séculos passados, uma vez que a grande protagonista é Thomasin, a filha mais velha (atriz Anya Taylor-Joy), que acaba sendo culpada, de maneira hipócrita, por todo o mal que atinge a família.
Nas atuações, o maior destaque fica para o ator Harvey Scrimshaw, que vive Caleb, o filho mais velho. Numa cena específica (um dos pontos mais altos do filme), o menino contorce o corpo desesperado e em seguida transmite a serenidade de quem está feliz e em paz, através de uma sequência de movimentos e falas marcantes.
Devido ao conjunto de acertos, ‘A Bruxa’ consegue entrar para a prateleira como um dos melhores títulos de terror da última década. Aterrorizando de uma maneira pouco convencional e inteligente, talvez não caia nas graças de quem gosta de mortes e sustos gratuitos, mas é inegável sua qualidade artística dentro dos limites dos enlatados hollywoodianos, afinal, é um gênero que precisa de inovação.
20/06/22
Evidências de um Crime, Cleaner, 2007, Renny Harlin
No iutubi
Anotação em 2009: Este Evidências de um Crime é um thriller muito bom. É assim um filme com um espírito bem noir, numa aparência muito colorida, com uma câmara que parece a de um diretor de filmes publicitários. É uma mistura estranha, esquisita – mas que acaba sendo fascinante.
E não vai aí, na menção ao cinema publicitário, nenhuma crítica – é apenas uma constatação. O filme usa e abusa de super-hiper-big-close-ups bem feitíssimos, o que é uma característica dos comerciais.
Vemos, ocupando a tela inteira, a campainha de uma casa, as mãos do protagonista se lavando na pia, uma tranca da porta da casa dele sendo fechada, o chaveiro dele sendo colocado num porta-chaveiros etiquetado, o celular dele sendo posto em cima de um móvel no hall de entrada da casa.
Várias dessas imagens em grande close serão repetidas algumas vezes ao longo do filme – mas nada disso é gratuito, não é apenas um maneirismo do diretor. Tem a ver com o que está sendo dito, tem função na narrativa. Com essas imagens de pequenos detalhes que ocupam toda a tela, o filme está demonstrando que o protagonista, Tom Cutler, interpretado por Samuel L. Jackson, o cleaner do título original, limpador, é um sujeito absolutamente metódico, de hábitos regulares, que segue uma rotina rígida, que repete sempre os mesmos gestos.
Um sujeito obsessivo por ordem – e sua vida vira de pernas pro ar
Tom Cutler é um obsessivo – tem obsessão por ordem, arrumação, limpeza, asseio.
E a história mostra um momento da vida dele em que tudo vira de pernas pro ar, a ordem é desfeita, vira tudo uma imensa confusão.
Tom Cutler é um ex-policial; aposentou-se, e criou uma empresa especializada em limpeza de locais onde houve crimes ou mortes violentas, as cenas de crime. Tem alguns empregados, mas ele mesmo vai à rua executar o serviço – metodicamente, organizadamente. Leva uma grande pasta com seus produtos químicos, entra nos lugares onde muitas vezes houve um banho de sangue, e os deixa, depois de algumas horas de serviço duríssimo, imaculadamente limpos. Faz isso de forma absolutamente legal, depois que a polícia e seus peritos já fizeram todo o serviço e autorizam que o local seja limpo.
Quando a ação começa, ao longo dos créditos iniciais, Tom Cutler está descrevendo – detalhadamente, metodicamente – o seu serviço para um grupo espantadíssimo de pessoas. Veremos que ele está numa reunião de turma de ginásio, que se reencontra 30 anos depois, aquela situação em que um pergunta para o outro: e aí, o que você anda fazendo? Alguém deve ter perguntado isso a Tom Cutler, e então, quando o filme começa, ele está respondendo, para assombro dos antigos colegas – detalhadamente, metodicamente, como tudo o que, veremos em seguida, ele faz na vida.
Tom é viúvo, tem uma filha de 14 anos, Rose (Keke Palmer), pela qual é apaixonadamente devotado. O roteirista Matthew Aldrich e o diretor Renny Harlin vão nos mostrar, aos poucos, de uma forma habilidosa, talentosa, que a mulher de Tom, a mãe de Rose, foi brutalmente assassinada durante uma tentativa de assalto, anos atrás, quando ele ainda era policial. Ficaremos sabendo também, lá pela metade do filme, o destino do assassino.
Bem no início da ação, Tom está na sua sala na empresa de limpeza, conversando com um funcionário, Miguel (Jose Pablo Cantillo). Miguel – saberemos mais tarde – é um ex-presidiário, para quem Tom, um homem de bem, deu uma segunda chance. Miguel diz ao patrão que quer sair do emprego: não agüenta o trabalho sujo, limpar sangue, ver cadáveres; tem sonhado com sangue. Tom diz que não quer perdê-lo; diz que ele pode continuar na empresa fazendo serviços internos. Miguel agradece, comovido, mas pergunta a Tom: Rose sabe o trabalho que o pai faz? E Tom responde uma frase maravilhosa: diz que sim, Rose sabe direitinho, não há segredo entre eles. “O que fazemos não é limpar sangue; é limpar raiva, tristeza.”
Estamos com uns 10, no máximo 15 minutos de filme quando a secretária entrega a Tom uma ordem de serviço. Parece tudo certo, há a permissão por escrito da polícia para que seja limpada a cena de um crime numa mansão.
É uma cilada. A vida daquele sujeito de bem, bom pai de filme, bom empregador, um trabalhador esforçado, vai virar um inferno. (...)
21/06/22
Fugindo do Passado, Unstoppable, 2004, David Carson
No iutubi
Sinopse
O ex-agente da CIA Dean Cage (Wesley Snipes) está passando por um tratamento para se recuperar do trauma de ter presenciado o assassinato cruel de seu melhor amigo. Num dia, ao encontrar com sua namorada, a detetive Amy Knight (Jacqueline Obradors), em um restaurante ele é confundido com um agente da CIA envolvido com o roubo de um experimento militar que funcionaria como uma espécie de "soro da verdade". Ele é raptado pelos verdadeiros ladrões, que injetam a droga em seu corpo, fazendo ele relembrar seu passado doloroso e ter dificuldades para distinguir a realidade da fantasia. Amy terá seis horas para encontrar o antídoto e salvar a vida de seu companheiro.
22/06/22
Os Vampiros (Les Vampires, 1915) de Louis Feuillade
No iutubi
Musidora (1889–1957)
Les Voix du Siècle : Musidora (1889–1957) Mémoires d’une «vamp» [video 360]
Musidora wiki
CRÍTICA | OS VAMPIROS (1915) por RODRIGO GIORDANO 6 de maio de 2018
Esqueça a imagem arquetípica que lhe vem à cabeça quando lê o título Os Vampiros. Os protagonistas da obra de 1915 do diretor francês Louis Feuillade não possuem enormes caninos, nem aparência pálida, muito menos se alimentam de sangue. Em um filme que antecipa um número considerável de futuros estereótipos cinematográficos, este certamente não é um deles.
Neste filme-seriado dividido em dez episódios, o jornalista Philippe Guérande é o artífice da busca por uma gangue de criminosos conhecida como “Os Vampiros”, a qual aterroriza Paris com seus roubos, sequestros e homicídios na calada da noite – uma possível explicação para a alcunha do grupo. Feuillade apresenta nesta obra uma gênese do thriller como conhecemos: um herói destemido e seu fiel escudeiro (Mazamette) se envolvem em perseguições, armadilhas e afins contra um grupo instigante de contraventores, os quais nunca se dão por vencidos, bolando planos cada vez mais mirabolantes, e gerando uma narrativa cheia de surpresas e reviravoltas.
Ao longo do filme, a liderança d’Os Vampiros é trocada várias vezes; a morte de um chefe em algum episódio não significa sossego para Guérande, mas sim que passa a ter que enfrentar um novo vilão mais feroz e poderoso. No entanto, é a número dois do grupo quem realmente chama atenção. Irma Vep – anagrama de vampire – é sempre o braço direito dos respectivos Grandes Vampiros (como os chefes eram chamados), colocando seus planos em prática; com uma vitalidade e carisma singulares, ela empresta um tom amoral a um roteiro maniqueísta, tornando-se assim o motor da narrativa – sua cena de dança é provavelmente a imagem mais marcante do filme até hoje. A expressiva atriz Musidora fez grande fama com essa personagem, seu collant preto servindo de inspiração para o visual gótico de vampiros vindouros.
Outro fator que mantém o encanto com a obra ao longo do tempo é a miríade de cenários. Palácios, castelos e mansões são utilizados não só como locais mas também como instrumentos dos golpes: sempre há um teto falso, uma passagem secreta, fazendo da vida burguesa parisiense um caos – destaque para a cena em que aristocratas, presos em uma sala nobre e envenenados por um gás, tentam desesperadamente fugir. Além disso, são várias as cenas externas, que dão à cidade uma presença marcante, seja pelo viés realista que ela empresta, seja pelo ingrediente social com que tempera a história. Não é para menos, portanto, que Feuillade ganhou admiração dos surrealistas à época. Ao situar os eventos fantásticos do roteiro em locações reais, acabou por criar um universo duplo: real/imaginário, concreto/onírico.
Uma série de filmes ou filmes em episódios? Não é tarefa simples definir qual exatamente o formato de Os Vampiros. Ao mesmo tempo que lança mão de estratégias típicas dos seriados atuais — como o surgimento recorrente de novos personagens a fim de fazer surgir novos conflitos na história — se afasta desse formato ao fechar o arco dramático da maioria dos episódios, sem deixar ganchos para o que vem em seguida. Além de estar inserido em um contexto completamente diferente de produção e distribuição, tal escolha fica mais fácil de ser entendida quando sabemos que os episódios foram lançados em intervalos irregulares. De qualquer forma, Feuillade fez desse formato seu filão, sendo inclusive chamado por alguns de “o pai dos seriados de aventura” – outros sucessos foram Fantômas e Judex.
Os Vampiros se localiza num ponto histórico de transição no desenvolvimento do cinema, o que fica evidente na análise de sua forma. Pode-se dizer que é um precursor no uso da profundidade de campo como recurso estético, o que podemos perceber de cara, logo no primeiro episódio, quando a olhadela de Mazamette no segundo plano o entrega como culpado de uma investigação que Guérrande faz no plano principal. No entanto, enquanto os filmes americanos já aprimoravam um estilo de edição e movimentos de câmera mais complexos, Feuillade mantinha seu filme em uma tradição teatral – câmera em posição central, com deslocamentos apenas para zooms de detalhe e isolamento de reações faciais. Além disso, aos nossos olhos modernos, as “falhas” técnicas (as aspas sendo necessárias para diferenciar o julgamento da época) são várias: os bonecos que caem da janela, acontecimentos que extrapolam os limites do verossímil, demora excessiva nas ações em paralelo à rapidez incompreensível de certos eventos.
Nascido em 1873 na cidade de Lunel, na França, Louis Feuillade foi um cineasta prolífico, dirigindo mais de 700 filmes – a maioria deles curtas e médias-metragens, além dos filmes seriados – explorando diversos gêneros e firmando seu nome principalmente com as séries policiais. Querido pelos surrealistas, era considerado “baixa cultura”, dado que seus filmes eram considerados antiquados em relação a Griffith e à nova tendência realista de grandes histórias.
Como já foi dito anteriormente, se traçarmos uma linha do tempo da história do cinema, encontraremos Os Vampiros em um momento de transformação, marcado pela utilização das possibilidades técnicas em prol da narrativa. Feuillade, ao contrário, remete à infância do cinema, mais exatamente o período que vai desde sua descoberta até 1910, e que é marcado pela disposição à descoberta. Situações fantásticas, trucagens explícitas, descompromisso com a narrativa e a moralidade são algumas das características dessa etapa conhecida como “Primeiro Cinema”, a qual devemos evitar julgar como inferior ou menos evoluída que as conquistas estéticas seguintes. Como o filme está inserido num contexto de constantes mudanças – uma delas a transição do cinema de arte popular para arte burguesa -, a obra de Feuillade não foi bem vista por um público já conquistado pela revolução narrativa griffithniana e agora interessado num cinema “artisticamente mais elevado”. Se a distância temporal, porém, dificulta nossa apreciação deste tipo de filme – muito movimento, problemas de ritmo, espetáculo acima da narração – ela também nos dá a chance de, retrospectivamente, buscar suas singularidades e entende-lo como um exemplo notavelmente moderno dos primórdios do cinema.
Episódios
1. A Cabeça Cortada, 2. O Anel Assassino, 3. O Criptograma Vermelho, 4. Espectro, 5. A Fuga Do Homem Morto, 6. Os Olhos que Fascinam, 7. Satanás, 8. O Mestre do Relâmpago, 9. O envenenador, 10. Bodas Sangrentas
Os Vampiros (Les Vampires) – França, 1915, Direção: Louis Feuillade, Roteiro: Louis Feuillade, Elenco: Musidora, Edouard Mathé, Marcel Lévesque, Jean Ayme, Fernand Herrmann, Stacia Napierowska, Duração: 440 min.
Feuillade improvisou livremente, durante a filmagem, o roteiro deste fabuloso folhetim, publicado diariamente por Le Matin, segundo a fórmula dos seriados, cada episódio sendo programado toda semana. A heroína era Musidora, cujo “maiô de seda negra moldava formas de marfim”. Desprezados então pelos intelectuais, Les Vampires entusiasmaram Aragon, Breton, Eluard, futuros fundadores do surrealismo. “Um dia se compreenderá que não houve nada mais realista e mais poético, ao mesmo tempo, que o cinema-folhetim, responsável outrora pela alegria dos espíritos fortes. É em Les Mystères de New York, em Les Vampires, que se deve procurar a grande realidade deste século. Além da moda, além do gosto” (Aragon e Breton, 1928). “Eu poderia defender”, escreveu Aragon em 1918, “estes filmes policiais, tão significativos para nossa época quanto os romances de cavalaria, os romances preciosos, os romances libertinos. Poderia dizer que exaltação íamos procurar, jovens e livres de preconceitos literários, quando a Décima Musa, Musidora, representava na tela a epopeia hebdomadária de Les Vampires.” Um episódio em que os convidados estão presos e asfixiados num grande salão inspirou o Luís Bunuel de O Anjo Exterminador, que desde o início de sua obra se proclamava discípulo não de Feuillade (cujo nome ignorava), mas de seus filmes que admirava profundamente. (Georges Sadoul, Dicionário de filmes, p. 417, L&PM, 1993)
23/06/22
Clean, 2004, Olivier Assayas
Une nouvelle vie
Quando acaba um filme de Olivier Assayas, sempre fica a impressão de que havia um mundo de coisas acontecendo, mas ainda assim nada acontecia. Se seus filmes são coletâneas de casualidades, são amontoados de encontros, passeios e diálogos que pouco parecem significar, o que os torna tão peculiares é o fato de os personagens estarem rodeados por signos das mais diversas procedências. Nada acontece, realmente – pelo simples fato de que tudo acontece. E não se trata de narratividade mínima, tampouco de disjunção narrativa: é preciso esquecer esse tipo de conceito para começar a se aproximar de um filme como Água Fria (ou Paris se Levanta, ou Irma Vep, ou demonlover...). Eis um dos motivos pelos quais a obra de Assayas possui menos admiradores do que merece: seus filmes não se explicam nem pelos jargões do cinema moderno e do cinema de autor (o que afasta deles um público que só se sente confortado quando reconhece certos traços de “artista”) nem pelos quadros do cinema comercial de grande público.
O esquema narrativo de Assayas é centrifugar o filme e guardar apenas o sobrenadante, descartar tudo que é sólido. A câmera, como decorrência natural, é o dispositivo que flutua por essa narrativa liquefeita, intensificando algumas de suas regiões. Mais um diretor que reverbera a formulação de Jean Mitry: enquanto a literatura parte de uma narrativa e cria um mundo, ao cinema já é dado o mundo – resta criar uma narrativa a partir dele (1). Independentemente do seu tema central (que chega a variar bastante de um trabalho para outro), qualquer filme de Assayas é, também – no que sua verve se assemelha à de Godard –, um filme sobre o mundo. Feitos por alguém que escreveu nos Cahiers du Cinéma na primeira metade dos anos 80, esses filmes nunca esquecem de fazer eco a alguns dos questionamentos-chave daquele momento. Nesse sentido, sua obra é herdeira tanto do cinema de Maurice Pialat quanto dos escritos de Serge Daney (que já proclamava o “ver o mundo através do cinema”). Filmes como Irma Vep, demonlover e Clean assumem seu pertencimento (e o de seus personagens) a um regime de circulação de imagens em que a função editorial (que escolhe, decupa, analisa) perde força diante da inextensão do campo que elas ocupam, criando uma aparente aleatoriedade da qual depende, no fundo, uma importante função de continuidade. Muito antes de provocar reinícios, as enormes elipses de Clean são análogas àquelas de Destinos Sentimentais: não importa o que aconteça, basta saltar no tempo e perceber que... a vida continua. Apesar das referências à cultura pop, Clean nada tem de assunto para “entendidos”; é o filme que ele faz com mais cara de “vida e nada mais” desde Fim de Agosto, Começo de Setembro.
Clean almeja – e conquista em grande parte – a difícil posição de filme ultrapensado-e-ainda-assim-emotivo, vindo a se somar ao corpus estético do “plano-conceito sentimental” (2). Um filme de rock sem distorção. Um filme de drogas sem hype. Uma personagem cujo percurso “espiritual” comanda a narrativa discretamente, sem que notemos os pontos precisos de sua mudança de vida. Se há um mérito particular de Assayas na consolidação desse intento? Para ter certeza, basta imaginar como seria o Clean de Danny Boyle. Ou o de Michael Winterbottom. Felizmente Assayas filma de outro jeito. Os melhores momentos de Clean são parecidos com os melhores momentos de todos os seus filmes pregressos: a câmera perseguindo Emily (a personagem de Maggie Cheung que está em nove a cada dez planos do filme) desde o salão do restaurante chinês até o estacionamento onde ela acenderá um cigarro (com a música de Brian Eno provocando um efeito siderante), a festa em que a performance da banda de rock é mais etérea do que visceral (ao mesmo tempo continuação e contraponto à seqüência da festa em Água Fria – melhor seqüência já filmada por Assayas? –, na qual cada acorde é uma rebelião declarada), o sorriso tímido de Maggie Cheung quando reencontra o filho (contenção de expressões comum a quase todas as personagens femininas de Assayas), as conversas com Nick Nolte filmadas por uma câmera que realiza um campo/contra-campo deslizante (é muito raro ele filmar um plano estático).
Já era possível notar, nos últimos filmes do diretor, uma constatação pessoal: o homem precisa amadurecer. Se antes a adolescência parecia dilatada ao máximo na vida dos seus personagens masculinos (do que Jean-Pierre Léaud em Paris se Levanta é o melhor exemplo), Fim de Agosto, Começo de Setembro já aponta para uma transição que é tão inexorável quanto o avanço do calendário anual. Os anos passam, a vida muda e na sua esteira vem a responsabilidade. Daí a atitude completamente pé-atrás de Assayas em relação ao estatuto da imagem na contemporaneidade em demonlover, um filme feito com a ousadia empírica de um “filho”, mas com a palavra final plena da responsabilidade de um “pai”. Curiosa postura para um cineasta que muitas vezes se mostra porta-voz da geração pós-rock (que basicamente desconhece o que seria uma concepção teleológica do mundo), essa fase recente talvez se resuma à questão de passar a pensar pelo prisma da descendência: o mundo agora construído será herdado por outra geração. É justamente numa relação mãe-filho que o enredo da regeneração invade sua obra: para rever seu filho, Emily decide se livrar das drogas, re-perspectivar sua vida. Do céu incendiado do início ao horizonte azul-claro do final, o filme afirma nitidamente seu processo de “limpeza”. Embora já tenha recebido críticas que sugerem esses termos, contudo, Assayas está longe de ter reavivado o academicismo enfadonho do cinéma de papa (expressão que Truffaut utilizava para se referir à “tradição de qualidade” que tanto combatia nos anos 50). Seu cinema permanece obstinado na captação de uma força de vida que a câmera busca sentir quase de dentro (e o trabalho realizado ao lado de Maggie Cheung em Clean não é para qualquer um).
É tremendamente fácil encontrar ressonâncias de outros cineastas na obra de Assayas; o incomum é alguém identificar onde começa o cinema dele próprio. Trata-se de um cineasta que teve uma formação estética abrangente, adepto de uma nova cinefagia, por conta da ampliação da oferta de imagens. Perfeitamente compreensível a inclusão de Shinji Aoyama (diretor de Eureka) nos agradecimentos finais de demonlover: ele também faz um cinema que aponta para uma disponibilidade estética tão maior quanto menor é sua capacidade de organizá-la racionalmente, como se houvesse uma infinidade de formas instantaneamente utilizáveis, mas um número limitado de molduras a comportá-las. Embalados por Sonic Youth (demonlover) ou por Jim O’Rourke solo (Eureka), os cinemas de Assayas e Aoyama comprovam que, no ambiente contemporâneo, a circulação de signos excede a circulação de “processos significantes”, e a produção de afetos é mais determinante que a produção de discursos. Por isso a colocação da música se dá sempre no cerne da composição das cenas em Assayas: seu cinema não vive sem o poder da música de catalisar sensações puras. E Clean atende ainda mais a esse princípio, pois estruturalmente ele se apresenta como um filme-partitura. Para quem aprende a sua linguagem, a partitura contém virtualmente a música, basta lê-la e senti-la. Clean é mais ou menos isso: ouvir uma música que está amortecida em uma superfície plana. Assayas já soube impregnar nossos ouvidos com maior intensidade, sem dúvida, mas sua nova música merece também destaque: bonita e calma.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
25/06/22
Os Violentos Vão Para O Inferno, Il mercenário, 1968, Sergio Corbucci
No iutubi
Crítica | Os Violentos Vão Para O Inferno por Luiz Santiago 31 de janeiro de 2015
“Mais vale ser um palhaço vivo do que um herói morto.”
Quando dirigiu Os Violentos Vão Para O Inferno (1968), Sergio Corbucci já tinha seis westerns no currículo (Massacre no Grand Canyon, 1964; Minnesota Clay, 1964; Django, 1966 – este, o seu primeiro grande sucesso comercial; Ringo e Sua Pistola de Ouro, 1966; Joe, o Pistoleiro Implacável, 1966, e Os Cruéis, 1967), obras nas quais podemos ver sua evolução como diretor e sua identidade como criador de um estilo que mesclava várias influências do gênero, especialmente de Sergio Leone, e que tinha um grande apreço pela comédia, um dos gêneros característicos da filmografia de Corbucci.
Em Os Violentos Vão Para O Inferno — infeliz título nacional, pra variar –, o mercenário Sergei Kowalski, o polaco (interpretado por Franco Nero, com sua esterna simpatia), se vê envolvido em um momento tardio da Revolução Mexicana, o que caracteriza o longa como um Zapata western , porém, com menos importância dada aos aspectos políticos e mais à relação entre “o polaco” e Paco Roman (muitíssimo bem interpretado por Tony Musante), uma relação de companheirismo e desconfiança que marca a maioria os westerns italianos.
A forte influência de Leone sobre Corbucci neste filme vem principalmente de Três Homens em Conflito (1966), dos créditos iniciais ao duelo na arena de tourada, mas nós podemos ver traços da transformação realizados por Corbucci que dão ao longa uma alma própria, sempre jogando pesado com a comédia — esta, exposta de forma irônica e até cínica, vide a figuração de Paco, o revolucionário, como um palhaço — e de maneira muito sábia equilibrando doses de erotismo, ação e elementos canônicos do western como o roubo do trem, o roubo do banco, cenas de cavalgada e uma sequência no saloon.
Sobre Giovanna Ralli, 1935
A música de Ennio Morricone e Bruno Nicolai ajudam a montar essa identidade geral através de uma melodia recorrente, com o famoso ‘assobio de reconhecimento’ que marca a personalidade dos envolvidos na história e dá para o espectador um parâmetro de comportamento ou ações que podem surgir toda vez que ouvimos a melodia. Junto a isso, algumas composições que misturam ingredientes de música mexicana e famosas partituras de westerns estão presentes, colocadas de maneira bem equilibrada ao longo da fita, nunca entrando no patamar de muleta narrativa.
Corbucci consegue excelentes panorâmicas do espaço geográfico e seus movimentos e planos inventivos ajudam a criar um significado estético marcante para o filme (com exceção à fotografia noturna). O ritmo dado pela montagem de Eugenio Alabiso, especialmente nos tiroteios, fixam um constante interesse do espectador para o que está acontecendo, mesmo que esbarre na tendência cronista do roteiro, cuja linha narrativa é bem tênue, estabelecida através de personagens recorrentes e pensada como uma “sequência lógica de blocos independentes”.
O grande problema desse tipo de enredo é que ele sofre praticamente em todo o miolo, mas consegue resultados quase irreparáveis na abertura e no desfecho, uma característica que talvez nuble o olhar de alguns espectadores que acabam perdoando o desenvolvimento permeado de pontos pouco interessantes. O que acaba salvando uma parte desse aspecto é a oposição entre Paco e o polaco. A dubiedade moral e a traição (elementos-chave da Trilogia dos Dólares, na qual o time de roteiristas se inspirou para escrever esta história) vai ganhando espaço à medida que conhecemos a dupla e simpatizamos ou antipatizamos com ela. De todos os envolvidos nesses meandros comportamentais, a única personagem que recebe um mal tratamento é Columba (Giovanna Ralli), cuja presença no longa tem pouquíssima utilidade e que poderia ser facilmente substituída, uma vez que o mote da obra não gira em torno dela, não se expande consideravelmente com sua presença e nem depende dela para existir.
Mesmo com alguns problemas de roteiro, Os Violentos Vão Para O Inferno é um dos Zapata westerns mais icônicos do cinema e uma das obras mais interessantes de Corbucci, que no mesmo ano lançaria um outro filme, este sim excelente, O Vingador Silencioso. O espectador é enganado ao final com frequentes “ameaças” de que a obra terminaria mas outra e outra sequência se acrescentam ao desfecho, que alcança o seu término numa conciliação discordante e solitária entre os protagonistas, como não poderia deixar de ser. A sina do cavaleiro solitário, máxima dos grandes faroestes, se dá aqui de duas formas e tanto Paco quando o polaco sentem a separação, mas suas vidas e seus interesses acabam falando mais alto que o sentimento de pertencer, empurrando cada um para um caminho diferente. O filme se fecha, então, em um ciclo canônico e da melhor maneira possível.
Os Violentos Vão Para O Inferno (Il mercenario) — Itália, Espanha, 1968
Direção: Sergio Corbucci Roteiro: Sergio Corbucci, Adriano Bolzoni, Giorgio Arlorio, Franco Solinas, Sergio Spina, Luciano Vincenzoni Elenco: Franco Nero, Jack Palance, Tony Musante, Giovanna Ralli, Eduardo Fajardo, Lorenzo Robledo, Álvaro de Luna, Raf Baldassarre, Vicente Roca, José Canalejas, Franco Ressel
Duração: 110 min.
25/06/22
Grandes Esperanças, Great Expectations, 1946, David Lean
No iutubi
GRANDES ESPERANÇAS (1946)
Charles Dickens é um dos mais populares escritores da literatura mundial. Uma de suas últimas obras, Grandes Esperanças, foi publicada em 1861 e ganhou sua primeira adaptação para o cinema em 1946, considerada até hoje a melhor de todas as versões já feitas. Dirigida por David Lean, que escreveu o roteiro junto com Ronald Neame, Anthony Havelock-Allan, Cecil McGivern e Kay Walsh, trata da trajetória de Pip, vivido na infância por Anthony Wager e na fase adulta por John Mills. Pip é um menino pobre que se apaixona por Estella (Jean Simmons e Valerie Hobson) quando ainda era criança. Ela vive com a avó (Martita Hunt), uma mulher solitária e carregada de amargura. Pip recebe ajuda financeira de um misterioso padrinho. Anos depois, morando em Londres, Pip está bem diferente daquele humilde garoto do passado. Mas, a paixão por Estella continua intacta. Grandes Esperanças já deixa bem claro o talento de Lean para grandes temas. Talento já latente aqui e que viria a se manifestar em sua plenitude onze anos depois, quando realizou A Ponte do Rio Kwai, e, principalmente, em 1962, com Lawrence da Arábia. Marca também o início de uma parceria com o ator Alec Guinness, que participaria de outros cinco filmes com o diretor. Grandes Esperanças recebeu cinco indicações ao Oscar e saiu vencedor em duas: direção de arte e a bela fotografia em preto e branco.
26/06/22
Passos na Noite, Where the Sidewalk Ends, 1950, Otto Preminger
No iutubi
Crítica
Passos na Noite reúne os principais talentos do filme Laura (1944), a fim de repetir o seu sucesso. Contudo, o diretor Otto Preminger utiliza os atores Dana Andrews e Gene Tierney em papéis com perfis bem diferentes daquela película.
Os protagonistas
Desta vez, o detetive de Dana Andrews está longe de ser um modelo da corporação. Pelo contrário, pois ele recebe severas críticas por sua atitude agressiva. Realmente, ao vê-lo em ação, fica evidente que ele utiliza a violência para abordar os suspeitos. Como resultado, ele acaba batendo muito, mas também apanhando na mesma medida.
Quanto ao personagem de Gene Tierney, ela não é uma femme fatale. De fato, ela está até desglamurizada, como uma mulher simples que namora um malandro e cujo pai é acusado de assassiná-lo. Então, ela é ajudada pelo detetive interpretado por Dana Andrews. Em suma, um papel bem menos interessante daquela protagonista de Laura.
A trama
Em suma, a trama conta como o detetive de Nova York, Mark Dixon (Andrews), provoca, sem intenção, a morte de Ken Paine, o namorado de Morgan Taylor (Tierney), quando o interpela como testemunha de assassinato. Em seguida, Dixon esconde o corpo e tenta jogar a culpa pela morte no chefão criminoso Tommy Scalise. Enquanto isso, o pai de Morgan é acusado pela morte de Paine, o que coloca um dilema na consciência de Dixon.
Ou seja, a trama salienta a ousadia de Passos na Noite. Afinal, o protagonista, suposto herói do filme, é um policial abusivo, inclinado a fazer a justiça pelas próprias mãos. Em outras palavras, tão abominável quanto os criminosos que ele tenta combater. Aliás, abrindo um parêntese, vale destacar a figura do bandido Tommy Scalise, um dos mais asquerosos que o cinema já trouxe para as telas.
Como esperado, o filme abrirá uma oportunidade para a redenção de Mark Dixon. Apesar de essa conclusão não prejudicar o filme, a forma como se dá a resolução é um tanto decepcionante. Afinal, ele apenas prende os bandidos, mas o desfecho do caso se dá devido a uma confissão obtida em paralelo pelo chefe de polícia Thomas (Karl Malden em início de carreira).
Com tudo isso, Passos na Noite se diferencia por ser um film noir cujo protagonista é um policial abusivo. Certamente, não era o filme de grande apelo popular planejado pela 20th Century Fox ao reunir seus astros. Mas, assim era Otto Preminger, o irascível diretor que não se curvava a ninguém.
Ficha técnica:
Passos na Noite (Where the Sidewalk Ends) 1950. EUA. 95 min. Direção: Otto Preminger. Roteiro: Ben Hecht. Elenco: Dana Andrews, Gene Tierney, Gary Merrill, Bert Freed, Tom Tully, Karl Malden, Ruth Donnelly.
27/06/22
Morro da Traição, The Yellow Mountain, 1954, Jesse Hibbs
No iutubi
Pete Menlo (Howard Duff) possui terras para garimpo de ouro em Nevada e une-se a ele seu velho amigo Andy Martin (Lex Barker). O malandro dono de mina Bannon (John McIntire) quer também unir-se a eles para formar um monopólio mas é afastado.
27/06/22
Quando os Brutos se Defrontam, Faccia a faccia, 1967, Sergio Sollima
No iutubi
Um professor de história, em tratamento de saúde, conhece um pistoleiro foragido, que o fascina e inspira a tornar-se também um violento bandoleiro
29/06/22
Raízes do Céu, The Roots of Heaven, 1958, John Huston
No iutubi
Peer Qvist (Friedrich von Ledebur (Morel)
Eu protejo todas as espécies. Todas as raízes vivas que o céu plantou na terra. Lutei toda a minha vida para elas. O homem destrói as florestas, envenenando os oceanos... envenenando o ar com radiação. As florestas, o oceano, animais, os homens... são as raízes do céu. Envenene as raízes do céu e as árvores morrerão. As estrelas cairão e o céu se destruirá. "Monsieur" Morel (Trevor Howard) estava certo. Os elefantes são o símbolo de liberdade Africana. Serão nossas bandeiras. E quando tivermos o poder iremos protegê-los.
A caça predatória, que visa comercializar o marfim, e a esportiva são suas principais ameaças. Estima-se que antes da chegada dos europeus na África, 26 milhões de elefantes viviam no continente. Hoje, restam 400 mil. National Geographic
RAIZES DO CÉU (Roots of Heaven, 1958) por Ronald Perrone
Em meados dos anos 40, ainda durante a Segunda Guerra, o diretor John Hunston estava em Los Angeles finalizando algum de seus documentários filmados em campo de batalha. Huston, ao lado de John Ford, Frank Capra, William Willer e outros, contribuiu com o exército americano registrando imagens da guerra. Enfim, o fato é que neste período em que estava em LA, Huston passava os dias entre o trabalho e um bocado de festas. Segundo as palavras do próprio diretor, “Tendo acabado de voltar ao trabalho com heróis de verdade, não estava com vontade de aguentar a subespécie cinematográfica. Foi com essa disposição e ânimo que encontrei Errol Flynn parado no saguão durante uma recepção na casa de David O. Selznick“.
Flynn estava já com um copo de uísque na mão, como lhe era habitual. Devia ter enchido a cara… E Huston conta que o sujeito andava a procura de confusão. Não demorou muito, Flynn chamou a mulher que Huston estava paquerando na época de alguma coisa não muito agradável, Huston retrucou sem muita gentileza e ambos acabaram procurando um local mais isolado, ao fundo dos jardins, para chegarem às “vias de fato”.
Essa história é uma das melhores entre as tantas que Huston conta em sua biografia e que vale a leitura de cada palavra, cada linha, cada descrição… Mas, para resumir, a luta entre Errol Flynn e John Huston realmente aconteceu neste dia, ambos eram pugilistas e trocaram socos violentos por quase uma hora, sem golpes sujos e tudo dentro das normas do Marquês de Queensberry, ou seja, as regras oficiais do boxe. Detalhe que foi visto com grande decência para ambos oponentes.
A coisa foi tão respeitosa entre os dois que, na manhã seguinte, Flynn ligou para Huston para saber como o diretor estava passando (só para constar, o ator foi parar no hospital com algumas costelas quebradas). Todo esse respeito fez com que Huston tivesse sempre Flynn em alta estima. No fim dos anos 50, o diretor foi escalado para dirigir um filme na África em que um dos atores contratados era Errol Flynn. “Ele apareceu logo depois da nossa chegada e nós dois nos apertamos as mãos. Era o nosso primeiro encontro desde aquela noite sanguinolenta séculos atrás“. O filme: RAÍZES DO CÉU.
Quando fez RAÍZES DO CÉU, Errol Flynn estava muito longe de ter aquela imagem que o imortalizou nos filmes de aventura dos anos 30, vivendo heróis como Robin Hood e Capitão Blood. E não apenas por estar mais velho, mas pela seu notório problema com o alcoolismo. Em 1958, Flynn abandonou uma peça de teatro antes da estreia por alegar que era um veículo pobre e banal, mas também porque a essa altura ele era incapaz de memorizar suas falas e sua atuação era deplorável. Ganhou uma chance de Zanuck quando lhe ofereceu uma participação em RAÍZES DO CÉU justamente para fazer o papel de um bêbado…
Já era a terceira vez em seguida que Flynn interpretava um bêbado, desta vez encarnando o Major Forsythe, um desertor britânico que se junta a um grupo de aventureiros – alguns deles bem oportunistas – para seguir o idealista Morel (Trevor Howard) nos seus esforços de preservar os elefantes africanos e impedir que sua caça aconteça.
Tanto o homem do dinheiro, Zanuck, quanto o diretor John Huston ficaram interessados no romance do francês Romain Gary e decidiram tocar o projeto juntos. No entanto, a expedição da equipe de filmagens em território africano resultou numa saga desastrosa com elenco e equipe tentando mais sobreviver à experiência do que no resultado do filme. Temperaturas altíssimas e doenças tropicais tomaram uma boa parcela de tempo da produção… O ator Eddie Albert, por exemplo, teve um colapso e delirou por vários dias. E Flynn se fortificou, obviamente, com suas doses de vodka e outros drinks, administrando sua aventura diante de qualquer contratempo que lhe pudesse ocorrer. Tanto que, em sua autobiografia, Flynn comenta que foi o filme que mais gostou de fazer acima de qualquer outro…
Originalmente, RAÍZES DO CÉU teria William Holden como protagonista, no papel de Morel, com Flynn fazendo um coadjuvante de luxo. No entanto, devido a alguns problemas contratuais entre o ator e a Paramount, Holden foi substituído por Trevor Howard, que não tinha tanta popularidade, o que acabou dando mais destaque ao personagem de Flynn, que aproveitou o momento e entregou um desempenho notável, talvez um dos mais fortes da sua carreira. E estamos falando do cara que fez GENTLEMAN JIM e encarnou o General Custer em THEY DIED WITH THEIR BOOTS ON, ambos do mestre Raoul Walsh.
Seu Forsythe é um típico bêbado alegre, mas que esconde amarguras de um passado sombrio e vê em Morel e seus ideais uma oportunidade de se redimir de alguma forma. A princípio, seu personagem seria um soldado americano que trocou de lado na Guerra da Coreia. Mas seu papel acabou sendo mudado para um oficial britânico que traiu seus companheiros durante a Segunda Guerra quando foram capturados pelos nazistas. “Todos morreram porque não quiseram falar, e eu continuo vivo“, diz o sujeito entre uma golada e outra numa garrafa de uísque.
O filme dá ao personagem uma morte heróica, a última morte que Flynn encenou nas telas. A sua própria morte viria um ano mais tarde, não tão heróica assim… De parada cardíaca, aos 50 anos, em decorrência ao abuso de bebidas.
Tirando os contratempos que prejudicam a obra e as falhas mais visíveis, RAÍZES DO CÉU ainda é uma boa aventura de bela mensagem ecológica, com excelente fotografia e bom uso das locações naturais, que preenchem a tela com a vastidão da savana africana. O elenco também é outro bom motivo pra não tirar os olhos da tela: Além de todos já citados, há participações de Hebert Lom, Juliette Gréco e o grande Orson Welles.
É interessante o compromisso de Huston com o tema e o tom de desilusão que confere ao filme um espírito que eu acho difícil de resistir. Mas é mais curioso ainda que o diretor tenha se interessado em fazer algo com o tema, uma vez que o próprio Huston tenha sido um grande caçador. Talvez o filme funcione como uma forma de reconhecer a crueldade e a falta de senso do “esporte” que ele abraçou e traz a questão da preservação ao público numa época que ninguém pensava nisso
PS: Acho que RAÍZES DO CÉU até cai bem numa dobradinha de CORAÇÃO DE CAÇADOR, com Clint Eastwood fazendo o papel do diretor realizando um filme na savana africana e obcecado por caçar elefantes, baseado justamente nos relatos de John Huston e suas desventuras na África.
Nunca entendi porque só refilmam os grandes sucessos. Não conheço um único caso em que a nova versão fosse comparável à primeira. Não existe nenhuma fórmula que permita a recriação da extraordinária composição química que contribuiu para tornar inesquecível uma determinada obra. Deveria ser exatamente o contrário. Os grandes fracassos – baseados em bom material – que, por questões de momento, local ou circunstâncias simplesmente não saíram direito da primeira vez, são os que mereciam ter uma segunda oportunidade. É, sem sombra de dúvida, o caso de Raízes do Céu. Eu gostaria de filmar essa história de novo. Hoje. Exclusivamente com Darryl F. Zanuck. Mas isso é impossível, pois ele morreu outro dia. (John Huston, Um livro aberto, p. 318, L&PM, 1987)
01/07/22
Keoma, 1976, Enzo G. Castellari
No iutubi
Ao final da Guerra Civil Americana, um pistoleiro mestiço, cansado de fazer da morte um meio de vida, retorna para aquilo que um dia costumava ser seu lar. Seu nome é Keoma. Porém, agora sua cidade natal está totalmente destruída pela peste e sob o comando de um homem chamado Capitão Caldwell. Seus meio-irmãos Butch, Sam e Lenny trabalham para o Capitão e Keoma se vê sozinho contra todos eles. Agora ele está preso no meio de uma batalha selvagem entre inocentes colonos, bandidos sádicos e seus meio-irmãos. Em uma terra de ninguém, o grito de um homem ecoa clamando por justiça... a qualquer custo, um preço que será pago a balas!
03/07/22
Terra dos Bravos, Badland, 2019, Justin Lee
No iutubi
O detetive Matthias Breecher é contratado para rastrear o pior dos criminosos de guerra confederados. Enquanto ele percorre o Velho Oeste em busca de justiça, sua determinação é testada quando ele conhece uma pioneira mulher que é muito mais do que parece.
04/07/22
O Benzinho de Todas, Ladies' Man, 1931, Lothar Mendes
No iutub
Jamie Darricott (William Powell) é um gigolô que transita pela alta sociedade, consolando mulheres casadas que não recebem a devida atenção de seus maridos. Ele se sustenta com presentes que elas lhe dão, apesar de seu estilo de vida ser condenado por Norma (Kay Francis), a única pessoa com quem se importa. Entretanto, seu castelo começa a ruir quando a filha de uma de suas "clientes" se apaixona por ele e o pai/marido traído decide vingar-se.
08/07/22
O Grande Segredo, Cloak and Dagger, 1946, Fritz Lang
No iutubi
Crítica | O Grande Segredo por Guilherme Rodrigues
Muita coisa surpreende em O Grande Segredo, tanto em conteúdo quanto em forma, mesmo que seus aspectos mais complexos tenham sido reduzidos em favor de um tom mais otimista e com maior aceitação ao público, mas os toques de Fritz Lang, o diretor que ousou gerar empatia com um serial killer já nos anos 30 com M – O Vampiro de Dusseldorf, se fazem sentir, já que nesse longa de espionagem, temos um discurso anti-nuclear que só viria fazer parte do cinema com força novamente algumas décadas mais tarde.
Na produção, acompanhamos o professor Alvah Jesper (Gary Cooper), recrutado pelo Serviço Secreto Americano devido sua familiaridade com energia nuclear para criar disrupção no programa atômico nazista, por meio do resgate de uma cientista alemã que desertou mas está sendo ameaçada pelo Reich a retornar ao seu posto. A situação, é claro, se complica quando outros espiões entram em cena, e o acadêmico acaba fazendo um tour pela Europa em guerra, se aliando à resistência italiana.
Jesper é um protagonista curioso, mesmo não sendo versado nas táticas de espionagem e sem grande treinamento, assume facilmente a posição de alguém que precisa de subterfúgios para conseguir o que quer, sem medo de chantagear e agindo com frieza nos momentos de tensão. É uma posição um tanto contrastante com o modo que ele é apresentado, como um homem cheio de conflitos sobre o potencial destrutivo da ciência – daí o discurso anti-nuclear que citei no início – e que aceita a missão menos por alguma espécie de patriotismo, já que ele tem reservas de qualquer um ter tal poder, e sim porque a opção do nazismo ter em mãos uma bomba atômica é simplesmente muito mais aterradora. “Se alguém vai desenvolver a bomba atômica, é melhor que seja a gente, e não eles” diz o agente da SSA, um sentimento difícil de rebater.
O Grande Segredo segue como típico filme de espionagem durante sua primeira metade, com jogos duplos, grandes planos para se obter informação e emboscadas, mas a partir da segunda metade, com a chegada de Jesper na Itália, o longa ganha contornos mais interessantes, mesmo que a partir de uma certa disrupção no ritmo geral da narrativa. Ao se refugiar na casa de um dos membros da resistência até as peças necessárias de um plano de resgate entrarem em jogo, o protagonista começa a se relacionar com rebelde antifascista Gina (Lili Palmer), e cria-se, novamente, um contraste interessante, mas em tom de crítica agora.
A vida de Jesper como espião até aquele momento havia sido glamurosa, com aparatos tecnológicos e estadias em hotéis, enquanto Gina passou por poucas e boas e teve até mesmo que se relacionar com seus inimigos mortais em nome da causa, e isso custou um alto preço a ela. “Quem luta contra escória se torna escória também” diz a personagem, às lágrimas.
Além do discurso à frente do seu tempo, Lang também construiu cenas de ação com uma decupagem muito moderna, que os filmes só iriam adotar muitos anos depois. Ao invés de planos abertos permitindo que a briga simplesmente se desenrolasse na frente da câmera, como era comum na época – a grande briga no bar em Os Brutos Também Amam, lançado 7 anos depois, é feita dessa maneira – temos uma montagem mais ritmada, com closes e cortes rápidos que imprimem uma brutalidade inédita à época.
Assim, similarmente à Quando Desceram as Trevas, O Grande Segredo pode até ser um “arroz com feijão” dos filmes de espionagem envolvendo II Guerra e nazismo, uma temática que não estava em falta na época, mas cujo toque de Lang faz toda a diferença no final das contas.
O Grande Segredo (Cloak and Dagger) – EUA, 1946
Direção: Fritz Lang Roteiro: Corey Ford,Boris Ingster, Ring Lardner Jr., Albert Maltz. Com base no livro de Alastair MacBain e John Larkin Elenco: Gary Cooper, Lili Palmer, Robert Alda, Marjorie Hoshelle, Helen Thimig, Vladimir Sokoloff
Duração: 106 minutos.
09/07/22
Fibra de Heróis, Buchanan Rides Alone, 1958, Budd Boetticher
No iutubi
No caminho de volta para a sua casa, Tom Buchanan passa pela cidade de Agry, na fronteira entre a Califórnia e o México, e acaba se envolvendo em um conflito entre o mexicano Abe Carbo e a família que domina a região.
10/07/22
Johnny Yuma, 1966, Romolo Guerrieri
No iutubi
Sobre Mark Damon
Samantha Felton era uma bela mulher que não mediria consequências para conquistar o que queria, até mesmo encomendar a morte de seu marido para apoderar-se de sua fortuna, mas para isso ela necessitaria fazer um pacto com seu amante e cúmplice Pedro. Ambos teriam mais tarde que enfrentar Johnny Yuma um cavaleiro sem rédeas que possuía o segredo do cofre que continha tal fortuna. Para matá-lo e ficarem livres, Samantha tenta contratar Carradine, com sua irresistível sensualidade e 5.000 dólares, porém além de não aceitar a proposta ele se junta a Johnny Yuma para fazer justiça. Um filme maravilhoso que tem todos os elementos do melhor do Western. Seqüências emocionantes de muita ação com borda de um agradável romance, formidáveis interpretações e um belíssimo cenário. Um final literalmente surpreendente no melhor estilo do Faroeste. Filmnow
10/07/22
Conflito de Duas Almas, Golden Boy, 1939, Rouben Mamoulian
No iutubi
William Holden: O Eterno “Golden Boy” de Hollywood
(...) Em 1939, a Columbia Pictures adquiriu os direitos cinematográficos da peça Golden Boy, de Clifford Odets (1906-1963), que foi estrondoso sucesso na Broadway. Para o papel de Joe Bonaparte, o Golden Boy do título, o estúdio queria Richard Carlson, depois que a Warner Brothers se recusou a emprestar John Garfield, que havia participado da mesma peça com outro papel. Harry Cohn, o chefão da Columbia, estava de litígio com Jack Warner, dono da Warner, daí o motivo a negativa do empréstimo.
Barbara Stanwyck (1907-1990) e Adolphe Menjou (1890-1963) já estavam escolhidos para os outros papéis principais. Entretanto, o jovem Bill Holden, que havia feito apenas duas pontas sem créditos em seus dois primeiros filmes, estava sendo observado pelo cineasta Rouben Mamoulian (1897-1987), que fez um teste com ele, contrariando o todo-poderoso Harry Cohn, que ainda nutria esperanças em ter John Garfield no papel principal. Mesmo depois da aprovação no teste, as objeções de Cohn continuavam. Mas como Jack Warner se mantinha irredutível na recusa, Cohn acabou cedendo que o jovem Holden fosse aproveitado.
Inexperiente (o que deixava o jovem ator em situação difícil perante Barbara Stanwick e Adolphe Menjou), acabou dando um enorme trabalho para Mamoulian, que de forma alguma poderia permitir o fracasso do então iniciante William Holden, senão ficaria mal com Cohn. Para isso, Holden começou a trabalhar 17 horas por dia, estudando e dedicando-se ao violino e treinando boxe para adquirir o necessário realismo em sua atuação no ringue. Muito agitado, ligava meia dúzia de vezes por dia a mãe em Pasadena. Após cabeçadas e mais cabeçadas com as complicadas cenas emocionais do filme, deu sinais de eminente colapso nervoso. Entretanto, a experiente colega Barbara Stanwyck estendeu-lhe a mão amiga em sinal de socorro, apoiando-o por todos os meios e modos, trabalhando com ele por longas horas, à noite, conforme tempos depois o diretor Mamoulian recordava com admiração.
O progresso de Bill Holden foi surpreendente, resultado do trabalho mantido pelo inexperiente ator de 21 anos e a experimentada atriz de 32 nessa rotina, noite após noite, durante várias semanas. Ainda segundo o cineasta, Babs não deixava que as tomadas de cenas fossem reveladas, mesmo se ela estivesse bem, se a atuação de Holden não fosse a melhor que se pudesse conseguir dele. Babs, melhor dizendo Barbara Stanwyck, foi a fada madrinha do jovem e novato William Holden, que nunca se esqueceu de sua solidariedade para com ele e desprendimento. E Conflito de Duas Almas (Golden Boy, 1939), de Rouben Mamoulian conquistou o público e a crítica, e William Holden passou a ser um astro popular no cinema, sobretudo para o público feminino.
Até sua morte em 1981, Holden enviava para Barbara rosas vermelhas em cada aniversário de inicio das filmagens Golden Boy. Para ele, ela era a The Queen (a Rainha), e para ela, ele era o seu Golden Boy. (...)
11/07/22
O Amanhã é Eterno, Tomorrow Is Forever, 1946, Irving Pichel
No iutubi
NB: tem Natalie Wood (1938–1981) com 6 anos
Natalie Wood in O Amanhã é Eterno (1946)
Orson Welles, Natalie Wood, Claudette Colbert, George Brent, Sonny Howe, Richard Long, and Lucile Watson in O Amanhã é Eterno (1946)
Sérgio Vaz
Anotação em 1999: Como a gente conhece pouco, mesmo achando que conhece alguma coisa, mesmo dedicando tanto tempo a tentar conhecer o cinema.
Eu jamais tinha ouvido falar deste filme – que, 52 anos depois de ser feito, está sendo apresentado como estréia no Telecine 5, o canal dos filmes clássicos. E, cacilda, tem Orson Welles no elenco! É um baita dramalhão, com forte gosto de esforço de guerra – me pareceu o tempo todo que foi feito ainda durante a Segunda Guerra; me espantei ao ver, depois que o filme terminou, que ele é de 1946, quando o normal seria de se esperar que fosse de 1943 ou 1944.
Mas é um belo filme, com paixão pela humanidade, pela vida, e ódio forte pelos totalitarismos. A trama parte de uma idéia muito interessante – o homem que é dado como morto na guerra, embora não tenha morrido, e a vida da mulher depois disso e, especialmente, quando homem morto de repente reaparece.
Claudette Colbert, 11 anos depois do Oscar por Aconteceu Naquela Noite, está muito bem. E o gênio Welles, bem, é o gênio Welles, com uma presença forte em cena que pouquíssima gente teve ou terá. Vou ver o que disseram deste filme.
Meu Deus, um choque: perdi os créditos iniciais, e só agora vejo que é Natalie Wood que faz Margareth, a filha adotiva do personagem de Welles, a garotinha austríaca apavorada para todo o sempre por ter visto o pai e a mãe serem assassinados, e que diz a frase poderosa: “Acho que todo mundo que fica perto de mim morre”. Ela estava com oito anos quando o filme foi lançado. E ela está brilhante, não menos do que isso.
12/07/22
Dívida de Honra, The Homesman, 2014, Tommy Lee Jones
Tommy Lee Jones, 1946 e a via-crúcis (Dívida de honra e Três enterros)
Crítica | Dívida de Honra por Gabriela Miranda 22 de março de 2015
A fotografia da terra inóspita. O desconforto é uma sensação árida e vazia estreitamente captada pelas lentes do diretor de fotografia Rodrigo Pietro neste novo filme dirigido por Tommy Lee Jones. Mesmo com uma centralização das imagens, existe algo para descompensar o quadro e causar a sensação de incômodo durante as sequências iniciais e isso diz muito sobre a personagem central. A amplitude da terra é tão vasta que a solidão se torna a companheira mais sincera de Mary Bee Cuddy, interpretada de uma forma bastante controlada por Hilary Swank. Ela é uma mulher rígida e convicta de sua capacidade de prover por si mesma, mas ela tem a vontade sincera e se sente no dever de ter uma vida conforme prega o rosário, com marido e filhos para cuidar. Essa dualidade e frustração a tornam descompensada e a fotografia ajuda em transmitir isso com sutileza.
Considerado um dos últimos grandes filmes do gênero, Os Imperdoáveis, de Clint Eastwood pode muito bem marcar a singularidade desta história contada, desta vez, por vozes e berros femininos em dicotomia com os que vieram antes. Dívida de Honra tem a original capacidade de reacender as fagulhas do faroeste há muito conservadas em brasa, por conseguir impregnar a história de olhares destoantes e que conseguem se relacionar, a partir do estranhamento, com a concepção de mundo que existe hoje — ultimamente os filmes têm se desdobrado em histórias sobre mulheres fortes e este é um filme feito por homens com e para mulheres. E é interessante apontar que Cuddy não precisa ser constantemente livre de dúvidas e fragilidades para demonstrar força.
A trama ganha impulso com a convocação da pequena sociedade por um “Homesman”, um homem de confiança, alguém que preza pelo bem da comunidade para transportar três mulheres de Nebraska para Iowa. Mas não é um homem que assume a tarefa. O desgaste da vida no Velho Oeste, em 1885, é o cenário que incorpora a loucura vivida por essas mulheres. Aqui as cenas são inesperadas e impactam com força. Não há espaço para explicações mastigadas e reincidentes, como de costume em roteiros de Hollywood. O vazio é o que diz mais, como se esta fosse uma história com vários pedaços de páginas em branco entre um ponto e outro. Esse respiro na narrativa é também o que entrega a impressão de sufocamento, que é uma constante figura no filme.
Como diretor, Tommy Lee Jones, se debruça em detalhes e minúcias cheios de poesia e silêncio, como em uma das cenas em que Cuddy lava roupa no meio do deserto e a cena corta para o varal improvisado em cima da carroça. Uma cena simbólica e que faz reverência ao gênero é a de George Briggs, interpretado pelo diretor, preso ao tronco de uma árvore com um pedaço de corda em volta do pescoço e um cavalo pronto para se mover e enforcar o homem desprovido de honra, aos olhos da sociedade.
As cenas com as três atrizes vêm como um susto puxar o espectador para a realidade sofrida e brutal da loucura enraizada nos olhos delas, que sufocam as vozes de quem eram para dar lugar a gemidos e gritos desconcertantes. A vida é apagada delas. Elas se tornam parte da paisagem hostil. Por conta do ambiente inóspito, a sobrevivência versus a decência humana é um dos temas explorados, algo notável na cena em que Briggs toma um abrigo que guardava o defunto de um índio, para se proteger do frio. Em contrapartida existe uma doçura na confiança de Cuddy, advinda da fé, que a faz ter compaixão das mulheres pelas quais se tornou responsável. Dar de beber a uma boneca com um dedal é um detalhe muito gracioso.
É esta peculiar beleza trançada na narrativa dolorosa que arrebata o espectador. As rasteiras da vida e os tropeços aqui e ali vão dando forma ao caminho percorrido por este grupo de pessoas com diferentes histórias, mas com algo em comum: a humanidade.
Dívida de Honra (The Homesman, EUA e França – 2014)
Diretor: Tommy Lee Jones Roteiro: Tommy Lee Jones, Kieran Fitzgerald e Wesley A. Oliver baseado no livro de Glendon Swarthout Elenco: Tommy Lee Jones, Hilary Swank, Grace Gummer, Miranda Otto, Sonja Richter, Meryl Streep, Jo Harvey Allen, Barry Corbin, David Dencik e William Fichtner, entre outros.
13/07/22
True Heart Susie, 1919, D.W. Griffith
No iutubi Susie, o Coração Puro (1919)
Sobre Lillian Gish (1893–1993)
Meio sentimental e vitoriana, esta estória demasiado próxima dos temas caros a Mary Pickford, ilumina-se pela presença de Lilian Gish, com sua graça frágil, seu humor terno, sua sedutora timidez. A direção é perfeita em sua simplicidade natural, na narrativa de sóbria segurança. Contudo, o filme está longe do valor de O lírio Partido, ao qual sucedeu. (Georges Sadoul, Dicionário de filmes, p. 399, L&PM, 1993)
14/07/2022
Czarina, A Royal Scandal, 1945, Otto Preminger, Ernst Lubitsch (não creditado)
No iutubi
Sobre Tallulah Bankhead
A Royal Scandal (br Czarina; pt Os Amores de Catarina da Rússia) é um filme de comédia romântica histórica estadunidense de 1945, dirigido por Otto Preminger. É um remake do filme mudo A Forbidden Paradise de Ernst Lubitsch, por sua vez baseado na peça teatral Die Zarin de Lajos Bíró e Melchior Lengyel ("A Czarina"). Lubitsch foi o diretor inicial mas adoeceu e teve que ser substituído por Preminger. A história é sobre romances da imperatriz russa Catarina II.
Sinopse
O tenente Chernoff, noivo da Condessa Anna, invade o palácio de Catarina II para avisá-la sobre uma conspiração envolvendo alguns generais. O eficiente e sábio Chanceler Nicolai Iiyitch avisa a monarca que já cuidara do caso com a eliminação dos conspiradores mas Catarina fica impressionada com a lealdade do jovem oficial e imediatamente o promove a Capitão e lhe deixa incumbido da Guarda Real do Palácio. Os dois se tornam amantes para desespero de Anna mas Chernoff, agora promovido a General, fica decepcionado quando descobre que suas ordens "em favor dos camponeses" tinham sido literalmente "jogadas no lixo" pelo Chanceler e, ressentido, resolve se aliar ao General Ronsky numa "revolução" para tirar a imperatriz do trono. wikiwand https://www.wikiwand.com/pt/A_Royal_Scandal
15/07/22
Escravo de Si Mesmo, Beware, My Lovely, 1952, Harry Horner
No iutube
Filme sufocante!
Helen Gordon (Ida Lupino) é uma extravagante viúva que contrata Howard Wilton (Robert Ryan) para lhe servir, mas ela se arrepende, pois Ryan é um psicopata que, apesar de parecer uma pessoa normal, tem ataques de loucura seguidos de amnésia.
16/07/22
Eu Vi o Diabo, Ang-ma-reul bo-at-da, 2010, Jee-woon Kim
Crítica | Eu Vi o Diabo por Kevin Rick 6 de fevereiro de 2021
A vingança é uma temática bastante utilizada pelo Cinema Coreano, especialmente pela dupla de diretores Chan-wook Park, criador da trilogia da vingança, e Kim Jee-Woon, responsável por O Gosto da Vingança e Eu Vi o Diabo. Este último em questão, lançado em 2010, acompanha a história de Kim Soo-hyeon (Byung-Hun Lee), um agente secreto que perde sua esposa de maneira brutal nas mãos do serial killer Jang Kyung-chul (Min-Sik Choi). Utilizando suas habilidades policiais, o viúvo encontra o psicopata, e decide iniciar seu próprio estilo de punição sádica, provendo um jogo de gato e rato torturante, enquanto monitora a localização do assassino e continuamente o machuca antes de soltá-lo novamente. Obviamente, as coisas saem do controle de Soo-hyeon.
Superficialmente, o filme pode ser visto como a velha narrativa da vingança consumindo o vingador, e até certo ponto, é exatamente isso. Vemos a tristeza tomando conta de Soo, transformando-se em ódio e obsessão, construindo todo o arco de desumanização do personagem. Porém, a obra acaba usando a temática como uma forma de expressar algo mais melindroso, profundo e ambíguo: a crueldade da natureza humana. Primeiramente, o cineasta concebe um paralelo entre os dois protagonistas. Soo está, inicialmente, sempre limpo, organizado e determinado, enquanto Jang é o símbolo da malignidade; ensanguentado, sujo e desordenado. E aos pouquinhos, o típico retrato do bem e do mal vai perdendo a força, ficando borrado. Os papéis de vítimas se invertem constantemente, e a trama toma ares de uma competição perversa – com um teor de humor negro -, no qual a vingança em si perde o propósito, restando a mera selvageria.
Dessa forma, no intuito de expor esse lado perverso da humanidade, o diretor decide usar e abusar da violência gráfica. E não é um gore gratuito, feito solenemente para o choque audiovisual, mas sim um cuidado macabro na exteriorização da hostilidade que acaba sendo o elemento que domina ambos protagonistas. Jang normalmente de modo natural, sereno e satisfatório, menos quando é confrontado. Enquanto Soo é a todo tempo retratado numa forma de angústia, solidão e tristeza, porém, de certa forma, satisfeito com a purgação sádica. E essa caracterização demonstra o alcance dos tremendos intérpretes. Lee assume perfeitamente a ambiguidade em sua face, amargurado e vil, enquanto Choi é a personificação do mal. É completamente assustador como o ator incorpora por completo a psicopatia e a indignação por se tornar a presa.
Kim Jee-Woon transpõe a linguagem inquietante da fita ao nos imergir num mundo visceral, utilizando close-ups a toda hora, com cenas agressivas, cada vez mais hediondas à medida que a trama avança, mantidas em foco, e o sangue junto dos rostos aflitos e gritos torturados sempre em evidência. Existe até um quê de desafio do diretor, como se nos confrontasse a desviar o rosto ou fechar os olhos. E não há glamour na violência. É tudo muito seco, direto e desagradável. E em paralelo ao realismo brutal, o cineasta constrói muito bem o suspense do thriller na disputa antagônica, além de uma espécie de horror silencioso perturbado que permeia a narrativa, tanto no arco dramático de Soo, no aparecimento de mais criminosos, e das vítimas que vão de encontro ao conflito da dupla.
O filme acaba se estendendo um pouco além da conta, mas continua sendo uma película que, gostando ou não, se tornará inesquecível. Kim Jee-woon concebe uma obra que confronta o espectador moralmente, desde sua narrativa ácida e emocional, até a composição geral da violência entregada sem pudor ou zelo para a audiência. Assim como o título alude, Eu Vi o Diabo é um olhar perverso para uma essência maligna que existe na sociedade, que por vezes preferimos ignorar ou negar. Vítimas, vingança, crueldade, tortura, sadismo, e, no fim, em uma das cenas mais melancólicas do Cinema, tristeza. Uma tremenda obra sobre o pior lado do que há no humano, ou, melhor dizendo, o desumano.
Eu Vi o Diabo (Angmareul boatda) — Coréia do Sul, 2010
Direção: Jee-woon Kim Roteiro: Jee-woon Kim, Hoon-jung Park Elenco: Byung-hun Lee, Min-sik Choi, Jeon Gook-Hwan, Ho-jin Chun, San-ha Oh, Yoon-seo Kim, Moo-seong Choi, In-seo Kim
EU VI O DIABO - FACILMENTE UM DOS MEUS FILMES PREFERIDOS vídeo
16/07/22
Longe dos Homens, Loin des hommes, 2014, David Oelhoffen
No iutub
CAMUS, VIGGO E LONGE DOS HOMENS
Dirigido por David Oelhoffen ("En Mon Absence", "Nos Retrouvailles"), o filme é um drama sobre dilemas interiores e crises existências, que adapta o conto chamado "O hóspede", escrito em 1957 por Albert Camus, escritor ganhador do prêmio Nobel e filósofo francês (nascido na Argélia) conhecido pela sua "filosofia do absurdo".
A produção, distribuída pela A2 Filmes no mercado de home vídeo no Brasil, conta a história de Daru (Viggo Mortensen), um professor idealista que apenas deseja ajudar os seus jovens alunos a crescer e ter uma vida melhor. Um dia é obrigado a escoltar Mohamed (Reda Kateb), um aldeão acusado de homicídio, até à cidade de Tinguit, onde terá de ser entregue à polícia para julgamento. Apesar da recusa inicial, Daru aceita a missão. Porém, perseguidos por homens que procuram fazer justiça pelas suas próprias mãos, os dois vêem-se perdidos no deserto. Sem escolha, eles sabem que têm de continuar o caminho, mesmo cientes das poucas hipóteses de sobreviver aos perigos da jornada…
CAMUS
Albert Camus nasceu na Argélia, então colônia francesa, em 1913. Sua família tinha poucos recursos e seu pai morreu combatendo na Primeira Guerra Mundial. Em 1923, Camus entrou para o liceu e depois para a Universidade da Argélia. Em 1930 contraiu tuberculose, o que o afastou dos esportes (era goleiro) e diminuiu seu tempo de estudo na universidade. Em 1934 ingressou no Partido Comunista Francês e casou-se com Simone Hie, de quem se divorciaria pouco tempo depois. No ano seguinte, licenciou-se em filosofia e fundou o "Teatro do Trabalho". Em 1936, apresentou uma tese sobre o filósofo grego Plotino e engajou-se no Partido do Povo da Argélia. De 1937 a 1940 escreveu para dois jornais socialistas.
Foi recusado no exército francês por causa de suas más condições de saúde. Em 1940, já morando em Paris, casou-se com Francine Faure e começou a trabalhar para a publicação "Paris-Soir". No ano seguinte mudou-se para Bordeaux, junto com a redação da revista.
Em 1942 publicou dois de seus livros mais importantes, o já mencionado "O Estrangeiro" e "O Mito de Sísifo". Segundo muitos críticos, a ideia do absurdo da existência humana, formulada nestas obras, foi a maior contribuição de Camus para a filosofia.
Em 1946, Camus viajou aos Estados Unidos, proferindo palestras sobre o existencialismo, para estudantes em Nova Iorque. Publicou "A Peste", no ano seguinte. O romance é uma alegoria da ocupação alemã e da condição humana (foi traduzido para o português pelo escritor Graciliano Ramos).
Entre 1949 e 1951, Camus viveu recluso, enfraquecido por causa de uma nova recaída da tuberculose. Em 1951 publicou "O Homem Revoltado", em que faz uma análise da ideia de rebelião e revolução, rejeitando o comunismo. Essas idéias foram perturbadoras, em meio a uma intelectualidade francesa comprometida com o marxismo, e provocaram sua ruptura com Sartre.
De 1955 a 56, trabalhou no semanário L'Express. Em 1957, recebeu a maior honraria literária em reconhecimento à sua obra: o Prêmio Nobel de Literatura. Morreu três anos depois, vítima de um acidente automobilístico. Deixou dois filhos gêmeos, Catherine e Jean.
VIGGO
Fruto do casamento de um dinamarquês (também chamado Viggo) com uma americana chamada Grace, o ator passou boa parte do começo de sua vida em Manhattan, nos Estados Unidos, mas também zanzou pela América do Sul, mais precisamente na Venezuela e Argentina, além de passagem também pela Dinamarca.
Tendo começado os estudos de arte dramática em Nova York, alguns anos depois fazia sua estreia em uma mini-série americana George Washington (1984) e em seguida apareceria no clássico A Testemunha (1985) protagonizado por Harrison Ford. Provavelmente, muita gente não vai lembrar mas foi dele o personagem Moses Hochleitner, um dos fazendeiros da complicada comunidade Amish. Depois disso, seu rosto apareceu em outras produções para a TV.
Em 1987, mudou-se para Los Angeles e no mesmo ano daria as caras na comédia Salvation!: Have You Said Your Prayers Today?. Nessa produção conheceu a atriz Exene Cervenka e casou-se com ela no mesmo ano e juntos teriam um filho: Henry. Cerca de onze anos depois o casamento chega ao fim.
Curiosamente, foi o garoto que deu a dica para o pai aceitar (em 1999) o papel de Aragorn no universo criado por J.R. Tolkien porque Mortensen não tinha o menor conhecimento. O filme da trilogia, O Senhor dos Anéis - A Sociedade do Anel, foi lançado em 2001 e, veja você, foi o que projetou a carreira dele junto ao grande público.Antes disso, porém, esse ator que fala fluentemente inglês, espanhol e dinamarquês, trabalhou em produções com grandes nomes na direção e no elenco, como Sean Penn, em Unidos pelo Sangue (1991), O Pagamento Final (1993), de Brian De Palma, e também com os irmãos Tony Scott e Ridley Scott, em Maré Vermelha (1995) e Até o Limite da Honra (1997), respectivamente.
Em 2000, chegou a fazer uma exposição com suas fotografias em uma galeria de Nova York e vale lembrar também que seu livro de poesias "Ten Last Night" foi lançado antes de se tornar ator conhecido. Como músico, já lançou discos de jazz e sua faceta de pintor permitiu que suas obras ilustrassem o set do filme Um Crime Perfeito (1998).
Esse filme, por sinal, foi uma refilmagem de Disque M Para Matar, de Alfred Hitchcock, e o ator estaria em outra do mestre do suspense no mesmo ano: Psicose (1998).
Anos mais tarde, em 2004, Mortensen passaria a integrar a Academy of Motion Picture Arts and Sciences (AMPAS), mas antes disso seu nome já estava projetado internacionalmente, tendo recebido diversos prêmios e indicações, culminando com a de Melhor Ator por seu incrível trabalho em Senhores do Crime (2007). Para o papel, além de aulas de dialeto ucraniano, ele passou várias semanas na Rússia para entender e incorporar melhor as características de seu personagem.
Revelando os contrastes da fama, apesar de ter seu nome presente em diversas listas de "mais quentes ou sexies" em publicações populares, no ano de 2010 ele foi nomeado Cavaleiro pela Rainha Margrethe II da Dinamarca.
Viggo continua buscando papéis diferentes e complexos como este...
LONGE DOS HOMENS
O filme se passa durante a Guerra da Argélia, entre 1954 e 1962, que foi o conflito civil pela independência do país, tendo dois principais partidos revolucionários: o FLN (Frente de Libertação Nacional) e o MNA (Movimento Nacional Argelino). Embora ambos quisessem a proclamação de independência da Argélia, havia uma divergência entre os intransigentes da Argélia francesa e os seguidores da política desenvolvida pelo General De Gaullle. De fato surgiram duas guerras, uma contra o domínio francês e outra entre os dois partidos revolucionários argelinos.
Quanto à guerra entre o principal partido, FLN, e a França, colonizadora do país desde 1830, foi marcada pelos ataques em massa, ataques terroristas de ambos os lados, além de torturas por parte do lado francês. Essas políticas da França foram escondidas da população francesa, que era claramente contra as crueldades, o governo francês censurou vários jornais e meios de comunicação para esconder a verdade. Na luta contra as correntes do partido MNA, o FLN venceu e após vários conflitos, a França teve que reconhecer a independência da Argélia em 5 de julho de 1962.
“Longe dos Homens” revela um confronto de moralidades onde é impossível encontrarmos certos ou errados. Encontramos apenas escolhas, causas e consequências. Daru é um moralista por natureza, enquanto Mohamed vem de um realismo irredutível, tão dependente da família e das suas crenças que a sua vida acaba por valer pouco. Este ponto, sobre o valor da vida, é uma discussão deliciosa, e percorre o filme inteiro, com a música de Nick Cave & Warren Ellis para tornar a obra inesquecível.
17/07/22
A Grande Chantagem, The Big Knife, 1955, Robert Aldrich
No iutubi
A Grande Chantagem (1955)
Marcelo Ferreira Jr. novembro 08, 2010
Pouco depois de ter feito sua primeira obra-prima, A Morte num Beijo, Robert Aldrich lança um novo filme intitulado A Grande Chantagem. De seu antecessor, ele se utiliza de um estilo quase que noir, fugindo do faroeste dos seus primeiros filmes. Porém, esse estio noir fica escondido sob uma estética totalmente teatral, que acaba dominando toda a obra. Suas duas horas de projeção passam-se quase que inteiramente dentro da sala de estar da mansão de seu protagonista, com todos os personagens desfilando por aquele ambiente. Uma gama complexa de figuras, trabalhadas uma a uma e dessa mesma forma apresentadas, coisa que já começava a se mostrar recorrente dentre as obras do diretor
Charles Castle é um ator de hollywood de extremo sucesso, mas que dá mais valor aos sus filmes como negócio do que como arte. Porém, está imerso em uma crise conjugal por conta de sua esposa, idealista, discordar de seu posicionamento em relação ao estúdio. Ele também, por sua vez, deseja poder recomeçar sua carreira com filmes menos comerciais e mais artísticos. Para tanto, contra a vontade de seu agente, ele decide não renovar o contrato. Porém, o produtor do estúdio não fica lá muito feliz com tal atitude e jura fazer de tudo para que o contrato seja assinado, mesmo que para tanto seja necessário chantagear seu astro por conta de um acidente de carro que o mesmo provocara. Junte à isso diversos outros personagens como o melhor amigo de Charles, que pede a esposa desse em casamento; o segurança/agente/capanga do produtor, o empregado, e a amante de Charles que estava com ele no dia do acidente que está armado o palco para que Aldrich conduza seu show de horrores.
Como todo filme sobre o cinema, há aqui a clássica metalinguagem, quase que obrigatória nesse contexto, criticando e satirizando a hipocrisia da indústria cinematográfica. Mas o brilho mesmo fica por conta de seu elenco invejável, que conta com nomes tais quais Jack Palance, Ida Lupino, Jean Hagen, Rod Steiger e Shelley Winters, com atuações ressaltadas por conta do estilo teatral do filme. Porém, essa teatralidade toda acaba tendo um ponto negativo, ao fazer o filme tomar um ar de novela. Um problema, mas que não atrapalha muito a qualidade do filme. Mas o mais interessante mesmo fica por conta da figura de Charles Castle, interpretado por Jack Palance. Ídolo de multidões, astro multimilionário, alguém que, visto de fora, parece intocável do alto de seu castelo (por isso seu sobrenome, Castle). Porém, à medida que o filme avança e vamos nos embrenhando por esse castelo, começamos a perceber que embora mantenha uma fachada majestosa, por dentro ele está em ruínas e ameaça desabar a qualquer momento.
A vida de Charles que aparenta ser perfeita, é na realidade um completo caos, aonde ele tenta reaver o amor de sua esposa ao mesmo tempo que tenta esconder sua amante, se vê traído por seu melhor amigo que pede sua esposa em casamento, mergulha em uma crise existencial ao ver seu talento subjugado em papéis ao ver dele indignos além de ser sua liberdade ser tragada aos poucos por seu trabalho. Sobre isso, A Grande Chantagem acaba sendo, acima de tudo, um trabalho de desconstrução de personagem, demonstrando que por trás da aparencia inabalável de nossos ídolos, há um ser humano repleto de problemas.
Tal como em A Morte num Beijo, em A Grande Chantagem Aldrich guarda o melhor para o final, criando uma reviravolta completa nos últimos 15 minutos que acabam por guiar seu filme até a conclusão. Tal utilização do final surpresa viria a se tornar algo recorrente em sua carreira. Em A Grande Chantagem, Robert Aldrich está apenas no seu terceiro ano como diretor, mas já faz seu quinto filme, marcando uma carreira sólida e prolífica. Um diretor a essa altura já firme em seu posto.
“Meu produtor é uma síntese de Louis B. Mayer, Jack Warner e Harry Cohn. O tema se aplica a qualquer meio, nas artes ou nos negócios, em toda parte onde a liberdade natural do homem, sua possibilidade de exprimir-se, são obstruídas por dirigentes inúteis e tirânicos. Contudo, o filme é dirigido contra certos males tipicamanete hollywoodianos.” (R. Aldrich). Esta peça em três atos (de Clifford Odets) cuja teatralidade Robert Aldrich usou cinematograficamente, é no fundo um retrato polêmico de Hollywood, com seu “colunistas” de escândalo, “assessores de imprensa”, figurantes desempregados, produtores inescrupulosos, com suas estrelas enfim, vítimas da própria glória, do sistema que matou, segundo o herói de Aldrich, Marilyn Monroe. Nenhum desses tipos é reduzido a um esquema, e o próprio produtor é um ser complexo, um monstro demasiado humano. O cenário luxuoso, de teto baixo, contribuiu para criar a atmosfera opressora desta obra, em que Jack Palance é um Frankenstein acuado e aniquilado por seu produtor. (Georges Sadoul, Dicionário de filmes, p. 172, L&PM, 1993)
18/07/22
A Morte num Beijo, Kiss Me Deadly, 1955, Robert Aldrich
Crítica | A Morte num Beijo, por Leonardo Campos 31 de maio de 2015
Uma das tarefas hercúleas de um crítico de cinema diante dos filmes que se encaixam no que se convencionou chamar de cinema Noir, é fugir da análise catalográfica, uma postura quase impossível. A Morte num Beijo, dirigido por Robert Aldrich, o mesmo do angustiante O Que Terá Acontecido a Baby Jane? e do instigante Os Doze Condenados, é um filme basilar para os interessados em conhecer a estética noir e, inclusive, relacioná-la com produções contemporâneas, como os filmes de Quentin Tarantino e David Lynch, ambos tributários, em diversas fases da suas respectivas carreiras, desta estética e deste filme especificamente.
Estabelecendo, logo de início, uma atmosfera sombria, com uma trilha sonora histérica e bastante intrusiva, o roteiro de A. L. Bezerrides, adaptado do romance de Mickey Spillane, nos mostra uma mulher correndo numa estrada deserta, à noite. A sua respiração, captada pelo trabalho de som eficiente nos dá a entender que estamos diante de uma situação de fuga. De repente, o detetive particular Mike Hammer (o hilariante Ralph Meeker) é surpreendido pela mulher ofegante, Christina (Cloris Leachman), uma loira misteriosa.
Após um breve diálogo sobre a situação da mulher diante da sociedade machista e alguns flertes, um dos temas principais da estética noir, no qual irei me deter mais adiante, surge em cena uma perseguição que acaba num misterioso ambiente de crime. A moça é assassinada, Mike é espancado e os dois são colocados de volta no carro e arremessados numa ribanceira. Mike consegue sobreviver e a partir daí, sai em busca da história de Christina, para melhor compreender o que aconteceu naquela sombria e fatídica noite. Engraçado perceber a similaridade com a heroína de Psicose, de Alfred Hitchcock (antes, porém, do livro de Robert Bloch), que é assassinada no meio da história. No caso de A Morte num Beijo, em menos de 10 minutos a personagem desaparece, portanto, mantém-se como uma chama viva, onipresente através de citações até o final da história.
Ponto nevrálgico do filme, a iluminação e a direção de fotografia fazem o trabalho empenhado em nos mergulhar na atmosfera do cinema noir: as sombras fazem dos personagens aparentemente angelicais os “demônios” da noite e a trilha sonora guia as nossas emoções de uma maneira imponente. Os quadros dentro de quadros, bem como a movimentação brusca e os ângulos oblíquos deixam as cenas tortuosas, assim como a curiosa investigação do detetive Mike.
Conforme nos aponta o pesquisador Fernando Mascarello em Filme Noir, parte integrante do livro História do Cinema Mundial, a luz de caráter expressionista, a atmosfera cruel, pessimista e fatalista , bem como o jogo de espelhos em cena (uma “pegada” psicanalítica), os relógios que indicam a passagem do tempo (uma das preocupações do período pós-moderno que se aproximava) e as ruas escuras e desertas são elementos que fazem parte do imaginário noir, adotado pelo cinema em diversas produções desde 1940, chegando até os portões da contemporaneidade.
Gênero que nasceu na França e foi importado pelos Estados Unidos numa época de desilusão após a Primeira Guerra Mundial, o Noir refletia a frustração das pessoas diante do mundo, da corrupção da época e dos estilhaços que as pessoas juntavam de suas vidas, turbulentas após as crises dos conflitos bélicos. Era uma vanguarda que representava, esteticamente, uma sociedade sem perspectiva para o futuro, daí os ângulos tortuosos, as sombras que indicavam as incertezas.
Como não poderia faltar em uma trama noir, o detetive anti-herói durão e a mulher fatal estão presentes. Sádico ao obter as informações que deseja, a figura de Mike é caricata e parte do folclore estadunidense, assim como os caubóis. A mítica mulher fatal, como aponta Peter Haining em Noir Americano: Uma Antologia do Crime de Chandler a Tarantino, representa, do ponto de vista masculino, a independência alcançada no momento histórico pós-guerra, período demarcado pela parca oferta de mão de obra masculina, tendo a mulher em mira para ocupação de cargos anteriormente exercidos por homens. Elas geralmente são punidas como uma forma de reforçar a masculinidade ameaçada e reestabelecer simbolicamente o equilíbrio perdido.
Por fim, a solução deus ex machina do final nos faz lembrar o intrigante Cidade dos Sonhos, de David Lynch, um dos filmes pretensamente mais complexos da história do cinema recente. Além de Tarantino e Lynch, Jean-Luc Godard assume que utilizou alguns recursos narrativos do filme para a composição do seu Alphaville.
A Morte num Beijo é um filme B, alçado para a contemporaneidade graças ao trabalho do campo da crítica, preocupado em recuperar alguns filmes primordiais para a melhor observação do contexto histórico pós-guerra que mudou as configurações sociológicas e políticas de um mundo que tão logo entraria no processo de globalização.
A Morte num Beijo (Kiss me Deadly, EUA – 1955)
Direção: Robert Aldrich Roteiro: Mikey Spinalle e A. I. Bezerrides Elenco: Ralph Meeker, Albert Dekker, Paul Stewart, Juano Hernandez, Wesley Addy, Marjorie Bennet, Mort Marshall, Fortunio Bonanova, Marian Carr Duração: 105 min.