quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Privatização da telefonia

 “Não foi a privatização que ampliou acesso à telefonia, foi a tecnologia”

Duas décadas após privatização da Telebrás, Brasil tem uma das tarifas mais caras do mundo

Wallace Oliveira Brasil de Fato, 07/03/2019

Muitas promessas acompanharam a privatização do setor de telecomunicações no Brasil, no final dos anos 90: livre concorrência, ampliação do acesso aos serviços, barateamento das tarifas, redução da dívida pública, avanço tecnológico e um serviço melhor. Quem era contra sustentava que o fim do monopólio estatal não podia ser confundido com a entrega do setor para empresas privadas.

Passados 20 anos, dados da Anatel apontam que 2.221 municípios brasileiros  possuem conexão de banda larga fixa limitada (menos de 5 Mbps) e 2.345 não possuem rede de transporte com fibra óptica. São cada vez mais frequentes as reclamações pelos serviços prestados na telefonia, enquanto temos, no Brasil, uma das tarifas mais caras do mundo. Será mesmo que a venda da Telebrás foi o sucesso que tanto se propagandeia no meio liberal?

Para discutir o assunto, o Brasil de Fato entrevistou o economista João Batista Santiago. Para ele, o avanço tecnológico e os investimentos públicos produziram benefícios que depois foram apropriados pelas empresas do setor privado, sem grandes retornos para a população e o desenvolvimento nacional.

Para João Santiago, avanço tecnológico e investimentos públicos produziram benefícios 
que foram apropriados por empresas do setor privado - Foto: Arquivo Pessoal

Brasil de Fato - Qual era a situação do setor no Brasil nos anos 90? Por que a privatização interessava às empresas que participaram do leilão de 1998?

João Batista Santiago - Em 1991, pouco antes do impeachment do ex-presidente [atual senador] Fernando Collor (PRN), o Banco Mundial pressionava o governo brasileiro a assinar um acordo de privatização do sistema de telecomunicações. A privatização ocorreu sete anos depois. Havia ocorrido uma queda nos custos de instalação, por conta do avanço tecnológico da década de 80, especialmente com o advento da telemática (combinação entre telecomunicações e informática).

Na década de 1970, instalar um telefone na casa de uma pessoa, em BH, custava 5 mil dólares. Em 1998, passou a custar 20 dólares. Os mais velhos devem lembrar que, em determinada época, as pessoas deixaram de comprar telefone, passaram a alugar. Depois, até a tarifa básica desapareceu e as pessoas só pagavam por chamada. 

Ora, a diminuição de custos aconteceu pelos investimentos que foram feitos no Brasil nos anos anteriores. O sistema Telebrás era altamente eficiente. Depois das quatro grandes gigantescas dos Estados Unidos, era uma das melhores empresas do mundo. Em 1998, a Telebrás deu mais lucro que a Coca-Cola internacional. Tinha problemas? Sim. No Rio de Janeiro, a Telerj era fraca, pois o regime militar abandonou o estado em termos de investimentos em telecomunicações.

O sistema Telebrás tinha empresas muito lucrativas, especialmente Telemig, Telesp e Teleparaná, algumas menores no Nordeste, que também davam lucro. Não podemos esquecer a Embratel, que foi a primeira empresa criada para ligações internacionais e longas distâncias, com grandes radiotransmissores.

A Telebrás deu em 1998 um lucro de 2 bilhões de dólares e foi vendida por 19 bi. Estamos falando de empresas que davam muito lucro, por terem uma gestão muito fiscalizada pelo Tribunal de Contas, que pagavam muitos impostos e muitos dividendos para a União.

Eu trabalhava no setor de estudos de viabilidade econômica de projetos. Como estatal, o estudo de viabilidade partia de rentabilidade de 12% ao ano. Após a privatização, eles só aprovavam projetos com rentabilidade acima de 24% ao ano. Como você tem uma rentabilidade de 24% em Santana do Garambel, em Lagoa Dourada, em Raposos? Então, a empresa muda o foco, de quem pensava que tinha um déficit de acompanhamento, com necessidade de alguma forma de subsídio cruzado para expansão, para uma empresa cujo foco exclusivo é o lucro.

Tínhamos uma empresa altamente lucrativa, com desenvolvimento tecnológico nacional para construção de fibra ótica, centrais telefônicas digitais e investimento social. Quem começou a arrebentar esse centro de pesquisas para o desenvolvimento das telecomunicações foi o governo Collor, em 1991.

Então, houve retirada de investimentos para viabilizar as privatizações?

O que houve, na verdade, foi redução de custos, especialmente trabalhistas, terceirização, precarização do trabalho, com contratação de empreiteiras, planos de demissão voluntária e incentivada, por um lado, e muitos investimentos, embarcando tecnologia, aumento de investimentos públicos, para depois privatizar a preço de banana. Arrumaram a casa, deixando-a cada vez mais eficiente para vender. Na Lei Geral de Comunicações, em 1997, havia um plano com metas para a telefonia fixa cumprir, de oito a dez anos. A Telebrás já tinha feito, em alguns lugares, entre 60% e 80% dos investimentos em digitalização.

Na privatização, venderam por 19 bi e liberaram empréstimos de 11 bi pelo BNDES, para financiar as empresas. E o ex-ministro Pedro Malan, depois da privatização, tomou medidas para permitir que as empresas descontassem o ágio (diferença entre o valor total das ações e o valor patrimonial) em impostos devidos à União. O governo pegou 11 bilhões de dólares e os devolveu pelo BNDES, além do ágio.  Então, não entrou nada para o país na privatização da quinta melhor empresa do mundo no setor.

E as empresas privadas que hoje dominam o setor no Brasil? Elas dependem de recursos públicos?

De financiamento, sim. Recentemente, a Oi estava quebrando e o governo estava prevendo liberar outro empréstimo gigantesco para a Andrade Gutierrez, que foi quem acabou ficando com o controle acionário da Oi.

A telecomunicação fixa entrou em processo de decadência, pois, hoje, depende-se muito mais da internet. A NET é da Globo. A Telemig já tinha passado seus próprios cabos para competir com a NET, só que, na época, foi baixado um decreto proibindo as empresas de telecomunicações locais de criarem suas próprias empresas de transmissão de dados e TV a cabo. Tudo isso para impedir uma empresa estatal que tinha grande eficiência de competir no mercado com as privadas – e eu duvido que as privadas conseguissem fazer frente a ela.

Os defensores das privatizações alegam que o acesso à telefonia no Brasil foi ampliado. Ficou mais rápido e barato adquirir uma linha. Isso é, de fato, consequência das privatizações?

Não é questão de ser privado ou estatal, foi a tecnologia. Isso graças ao que aconteceu na década de 80, com o desenvolvimento da telemática, dos softwares, dos novos hardwares, a tecnologia digital, causando uma mudança total no sistema de telecomunicações. Bom, se tínhamos capacidade de investimento, capacitação dos trabalhadores e a tecnologia chegou de maneira muito mais barata, passou a ser possível atender de forma muito melhor.

Na década de 90, foram feitos investimentos para que a empresa chegasse onde ela chegou, com o Estado deixando de investir em habitação, saúde, hospitais e com endividamento, a fim de criar redes com milhares de quilômetros de fios e rádios, interligando estações, centrais telefônicas nas cidades. A telefonia celular não teve um plano. Os governos estaduais, para levar as antenas para o interior, tiveram que gastar recursos públicos.

Havia nos celulares a questão da transferência de tecnologia e produção no Brasil de telefones. Hoje, o Brasil é um grande montador, mas não tem pesquisa em desenvolvimento de tecnologia. O Brasil é um grande importador de tudo.  

E o que a privatização da Telebrás mudou na vida dos trabalhadores do setor? E na economia brasileira?

A empresa sai da década de 1980 com 7 mil trabalhadores diretos para chegar aos anos 2000 com cerca de 1,5 mil trabalhadores diretos, mais 5 mil indiretos, terceirizados ou quarteirizados.

Em 1999, um ano após a privatização, houve um incêndio na Praça Milton Campos, em BH. Eles já haviam demitido os trabalhadores diretos. Acionaram um rapaz que não conhecia o tipo de chama desses incêndios em centrais digitais. Ele entrou na estação, fechou a porta, não conseguiu enxergar o fogo e morreu queimado.

Houve precarização do trabalho nos postes. Os trabalhadores da Telefónica, que comprou a Telesp, subiam no poste e as pessoas jogavam pedras neles. Eram trabalhadores sem qualificação profissional e, quando iam ligar um telefone, desligavam os outros.

Quando o ex-presidente Itamar Franco (PMDB) entregou o governo federal para Fernando Henrique Cardoso (PSDB), a carga tributária no Brasil era de 25% do PIB. Quando este entregou para Lula (PT), era 36%. Porém, o endividamento do Estado brasileiro saltou. Com todas as privatizações feitas com a desculpa de diminuir a dívida pública, o endividamento só aumentou. Só diminuiu no governo Lula, quando o PIB passou a crescer mais do que a dívida.

Como você avalia a regulação do setor pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel)?

Esse modelo partiu da Suécia e a experiência foi para outros países. Aqui no Brasil, ele não funcionou. A relação que se tem entre empresas privadas e o Estado brasileiro é muito forte. No livro de presença da Anatel, quem mais entrava para visitar os diretores e conselheiros eram empresas, muito mais do que clientes das empresas. Para você fazer uma reclamação e isso dar resultado, é péssimo.

Nos primeiros anos, não foram feitos concursos públicos para fiscalização. Quem fiscalizava eram engenheiros eletricistas contratados pela agência. Eles chegavam a uma empresa com a carteira da Anatel para fazer a fiscalização. Se o cara multasse a empresa, o que acontecia com o nome dele no mercado? E o cara não tinha estabilidade nenhuma, quando acabasse o contrato dele na agência, onde ele iria trabalhar? Empresas criavam listas sujas com nomes das pessoas e essas pessoas eram constrangidas, ao fazerem fiscalização.

Criaram o conselho de clientes. Na época FHC, o presidente do conselho de clientes, nomeado pelo presidente da República, era dono de uma empresa que prestava serviços de telecomunicações para o governo. Então, estava tudo dominado.

A ideia da regulação parte de uma teoria da neutralidade, supondo que se pode distribuir bem estar, não deixando que o poder das empresas faça o preço subir demais ou a qualidade cair. Ora, a qualidade das fixas caiu violentamente e, na telefonia celular, o Brasil tem uma das tarifas mais caras do mundo e áreas de abrangência repletas de falhas.

Não houve por parte da Anatel nenhuma meta para esse setor. Quando eu trabalhei na Telemig, em 1998, o setor de tecnologia da empresa já previa o fim do telefone fixo dentro das casas. Hoje, quase ninguém tem telefone fixo em casa. As pessoas falam mais pelo WhatsApp do que pelo telefone fixo.

O avanço tecnológico que veio de fora não foi apropriado pelas empresas que exploram telecomunicações no Brasil, o serviço é de péssima qualidade. Embora nós tenhamos 225 milhões de chips ativos, isso não quer dizer que tenhamos uma área de abrangência razoável. Ande com o celular falando dentro do metrô, do ônibus. Há vários buracos. Se isso acontece, é porque não houve o investimento necessário. 

A desigualdade no Brasil

 A desigualdade de renda no Brasil é alta. E vai piorar

Marcelo Roubicek, 11/05/2020, Nexo Jornal

Números do IBGE destrincham as disparidades nos rendimentos dos brasileiros em 2019. Economistas ouvidos pelo ‘Nexo’ apontam por que as diferenças devem se aprofundar na crise do novo coronavírus

O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) publicou em 6 de maio números que retratam a desigualdade de renda no Brasil em 2019. Por meio dos dados, é possível entender como se manifestam as diferenças nos rendimentos dos brasileiros em termos de gênero, cor ou raça, região do país e grau de instrução.

Os números foram obtidos pela realização da Pnad Contínua – a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. A cada três meses, o instituto visita 211 mil domicílios de todo o território nacional e coleta informações sobre trabalho e renda, entre outros itens. Em 2020, em meio à pandemia, a coleta de informações está sendo feita por telefone.

A Pnad tem uma versão divulgada mensalmente, mas os dados que destrincham os rendimentos e que permitem identificar diferentes desigualdades na renda são publicados com frequência anual. Abaixo, o Nexo traz cinco recortes diferentes sobre a desigualdade de renda no Brasil em 2019, conforme registrado pelos dados do IBGE.

A desigualdade por faixa de renda

Os números do IBGE mostram o tamanho da diferença dos rendimentos entre aqueles que recebem mais e os que recebem menos a cada mês. Dividindo os brasileiros em dez faixas (chamadas “decis”) – começando pelos 10% que menos recebem e indo até os 10% que mais ganham –, a diferença que aparece é significativa.

Na média, quem está no topo recebe mais de 36 vezes do que ganha quem está na parte de baixo. Os números ainda mostram que os 10% com maior renda ficam com 43% de todos os rendimentos do trabalho do país.

Olhando com mais detalhes para os extremos da renda do trabalho no Brasil, a diferença fica ainda maior. O 1% com maior rendimento mensal ganha, em média, 180 vezes o que ganha a pessoa que está na parcela dos 5% com menor renda.

R$ 160 é o que ganha por mês uma pessoa que está entre os 5% com menor rendimento habitual do trabalho

R$ 28.659 é o que ganha por mês uma pessoa que está no 1% com maior rendimento habitual do trabalho

O recorte por cor ou raça

Em 2019, não houve alteração no quadro de desigualdade de renda sob a ótica da cor ou raça, que se manteve expressiva. Assim como em todos os anos desde 2012, que marca o início da série do IBGE, a população preta e a população parda receberam valores médios praticamente idênticos pelo trabalho do mês. Já a população branca, na média, recebeu consideravelmente mais.

O gráfico acima mostra a evolução recente da desigualdade de renda pelo recorte da cor e raça. Em todos esses anos, uma pessoa branca recebeu, em média, entre 70% e 80% mais que uma pessoa preta ou parda em um mês. Em 2019, essa diferença significou uma renda do trabalho maior em cerca de R$ 1.300 a cada mês.

O recorte por gênero

O IBGE também mostrou nos dados como a desigualdade de renda entre homens e mulheres no Brasil aumentou em 2019 em relação a 2018. O rendimento médio mensal do trabalho de um homem em 2019 ficou praticamente estável em relação ao ano anterior, subindo de R$ 2.551 para R$ 2.555. Já o rendimento médio da mulher caiu de R$ 2.010 em 2018 para R$ 1.985 em 2019.

Desigualdade entre homens e mulheres 

Olhando desde 2012, a diferença entre o que ganham homens e mulheres caiu. Em 2012, um homem ganhava em média 35,8% a mais que uma mulher; em 2018, essa diferença havia caído para 26,9%. Mas em 2019, voltou a aumentar, e os homens receberam em média 28,7% a mais que as mulheres naquele ano.

Grau de instrução

A desigualdade de renda aparece também no recorte da escolaridade (ou grau de instrução) dos brasileiros. Em 2019, o rendimento mensal de quem tem ensino superior completo foi consideravelmente maior que de outros níveis de escolaridade.

O gráfico acima mostra o tamanho da distância entre quanto ganhou, em média, alguém com diploma de ensino superior em relação aos outros níveis de instrução. Mas essa discrepância com relação aos grupos com menor escolaridade vem caindo ao longo dos anos. Se em 2012 uma pessoa com ensino superior completo ganhava 6,4 vezes o que ganhava uma pessoa sem instrução, esse valor caiu para 5,6 em 2019.

A pesquisa mostra que, em 2019, a média do quanto recebeu quem tem fundamental completo foi maior do que a de quem não terminou o ensino médio. O dado parece contraintuitivo, mas não é uma novidade de 2019 – em todos os outros anos desde o início da série do IBGE em 2012 ocorreu o mesmo fenômeno.

A questão regional

O Brasil é um país onde há disparidades entre os rendimentos nas diferentes regiões. Nos números do IBGE, esse fenômeno apareceu nos rendimentos totais, que contabilizam a renda do trabalho e de outras fontes, tais como aposentadoria, aluguéis, pensões e benefícios como o Bolsa Família.

Segundo os números do instituto, Sudeste, Centro-Oeste e Sul mantiveram uma distância considerável nos rendimentos mensais em relação a Nordeste e Norte. Se Sul e Centro-Oeste registraram rendimentos médios mensais muito próximos de R$ 2.500, isso significou cerca de R$ 900 a mais do que a renda média no Norte e quase R$ 1.000 a mais do que a renda média no Nordeste.

Em 2019, o rendimento médio nas regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste permaneceram praticamente estáveis em relação a 2018. No Nordeste, houve crescimento de 3,1% nesse período; no Norte, houve queda de 6,4% em relação ao ano anterior.

A desigualdade em 2020

Ainda não há dados que mostrem exatamente como caminha a desigualdade de renda no Brasil em 2020. Mas perspectiva para este ano é que o Brasil registre uma das piores crises econômicas de sua história – se não a pior. Isso porque a pandemia do novo coronavírus está fazendo com que as pessoas circulem menos nas ruas, afetando o consumo e levando empresas a quebrarem ou reduzirem os quadros de funcionários para permanecer de pé.

Diante disso, o Nexo conversou com três economistas para entender como a pandemia deve afetar o quadro geral da desigualdade no país.

    Juliana Inhasz, professora de economia do Insper

   Guilherme Mello, professor de economia da Unicamp

    Renan Pieri, professor de economia da FGV (Fundação Getulio Vargas)

Como a crise da pandemia pode impactar a desigualdade de renda no Brasil?

Juliana Inhasz: A crise que vivemos hoje com a pandemia pode impactar bastante a distribuição de renda; primeiro porque ela afeta as pessoas de forma muito diferente. Quando falamos de pessoas que estão sendo impactadas por essa pandemia, estamos falando que tanto o pequeno quanto o grande empresário estão sendo impactados. Mas os pequenos empresários no geral têm mecanismos de proteção muito menores do que os grandes.​

Há uma outra característica que é o fato de que, hoje, quem consegue se manter minimamente dentro dessa situação são no geral as pessoas que têm trabalhos formais, que contam com algum tipo de segurança que vem da formalização no mercado de trabalho. É óbvio: nem todos os formais estão de alguma forma seguros. Mas, eventualmente, se pessoas que estão no mercado formal ficarem desempregadas, vão ter como acionar o seguro-desemprego, fundo de garantia – vão ter algum tipo de colchão de proteção. Isso não acontece com os trabalhadores informais, que são uma parte significativa hoje da população brasileira.

E esses trabalhadores informais, no geral, têm uma qualificação menor. Estamos muitas vezes falando da manicure ou da empregada doméstica, que moram nas periferias e que precisam dessa renda para sobreviver e alimentar sua família. Também utilizam essa renda em negócios na região onde moram. As pessoas vão ficar desempregadas, e uma parte da renda que antes iria para essas periferias não vai estar mais sendo canalizada para isso. É uma parte do fluxo de renda que é interrompido.

São regiões que já eram marginalizadas e que podem ficar ainda mais marginalizadas. Isso pode sim acirrar bastante a distribuição de renda, piorar bastante a desigualdade de renda no Brasil. A gente vai ter uma sociedade obviamente muito mais desigual.

Guilherme Mello: Para entender o impacto econômico da crise do coronavírus na desigualdade de renda, é importante ter um cenário de como vinha a evolução da desigualdade no Brasil nos últimos anos. O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, seja do ponto de vista da desigualdade de renda, seja do ponto de vista da desigualdade de riqueza. O cenário não é só de concentração, é de polarização de renda. Isso é estrutural no Brasil, tem a ver com nossa formação econômica e social.​

Isso aparentemente chegou a mudar um pouco nos anos 2000 e também no início dos anos 2010. No entanto, as pesquisas mais recentes mostram que esses ganhos dos assalariados não foram suficientes para mexer tanto na estrutura polarizada de renda, porque os ganhos dos mais ricos com os seus estoques de riqueza – sejam imobiliários ou de títulos da dívida pública ou título privados – equipararam ou até superaram os ganhos dos assalariados. A partir de 2015, a concentração de renda volta a se agravar em todas suas medidas, até pelo menos 2018. Isso também vem junto não só com o aumento do desemprego e da precarização, mas da pobreza e da miséria. Esse era o cenário brasileiro quando chegou agora a crise econômica decorrente do coronavírus.

Essa crise tende, como na maioria das crises, a agravar as desigualdades de renda, que já vinham crescendo nos últimos anos. Isso ocorre porque a crise afeta de maneira desigual as diferentes classes sociais e classes de renda. Só do ponto de vista sanitário, por exemplo, já é possível perceber que a maioria das mortes e dos casos graves se concentram na população mais pobre, que mora na periferia das grandes cidades, e nos trabalhadores negros.

E, também do ponto de vista das rendas do trabalho, essas pessoas são mais afetadas, porque geralmente são trabalhadores precários, e a paralisação econômica afeta diretamente as suas atividades. Eles não têm nenhuma garantia de emprego e salário como teria um trabalhador formal ou um trabalhador do setor público. Isso vai aprofundar a desigualdade de renda que já observávamos nos últimos anos.

Renan Pieri: Nós já tivemos períodos na história em que o crescimento econômico esteve relacionado à queda da desigualdade ou até aumento da desigualdade. Olhando para os anos 1960 e 1970, o crescimento econômico estava mais associado ao aumento da desigualdade. Nesse último ciclo longo de crescimento do começo dos anos 2000, tivemos um crescimento econômico associado a uma redução da desigualdade. Então, explicar desigualdade é sempre difícil: depende muito das fontes do crescimento econômico, e não do crescimento econômico em si.​

O que aprendemos dessa primeira década do século sobre crescimento e desigualdade é que se o emprego estiver relacionado (como esteve) ao aumento do número de vagas formais – que em geral pagam melhor e dão mais estabilidade ao trabalhador – e ao aumento da escolaridade média, você pode sim ter um movimento de redução da desigualdade social com crescimento econômico.

Estou dizendo isso porque esse novo ciclo da crise da pandemia possivelmente vai reduzir o crescimento econômico; não é óbvio, a princípio, se haverá um aumento da desigualdade por conta disso. Mas já é possível prever e analisar que muitas vagas formais vão ser perdidas. Também é possível verificar que temos uma dificuldade muito grande de boa parte dos alunos – sobretudo de escolas públicas – de se manterem estudando.

Juntando essas duas coisas – uma dificuldade maior dos mais pobres de ter acesso à boa qualidade de educação, e as vagas formais desaparecendo do mercado – é possível e provável que tenhamos um aumento da desigualdade nos próximos anos. A gente já vinha de um movimento de aumento da desigualdade desde a crise de 2015-16; observamos que conforme os empregos voltaram a acontecer, ainda que de forma lenta, a maior parte desses empregos era informal. São empregos que pagam menos e dão menos segurança para o trabalhador. Então nesse próximo ciclo de crise, é possível que o grau de informalidade aumente ainda mais. E menos formalização, menos acesso à educação: mais desigualdade.


quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Filmes parte 10

Diário de um cinéfilo

Too late for tears (Lágrimas Tardias), 1949, Byron Haskin
The Servant (O criado), 1963, Joseph Losey
CANDELARIA (2017), Jhonny Hendrix
Estate violente (Verão violento), 1959, Valerio Zurlini
Kiss Me, Stupid (Beije me, idiota), 1964, Billy Wilder
Ride in the Whirlwind (Vingança do pistoleiro), 1966, Monte Hellman
People Will Talk (Dizem que é pecado), 1951, Joseph L. Mankiewicz
O monstro de Londres (The sleeping tiger), 1954, Joseph Losey
Goodbye Again (Mais uma vez, adeus), 1961, Anatole Litvak
Dishonored Lady (Mulher caluniada), 1947, Robert Stevenson
Time Without Pity (A sombra da forca), 1957, Joseph Losey
Secret Ceremony (Cerimônia secreta) 1968, Joseph Losey
A Doll's House (A casa das bonecas), 1973, Joseph Losey
Notorious (Interludio), 1946, Alfred Hitchcock
Friendly Persuasion (Sublime tentação), 1956, William Wyler
Waiting for the barbarians, 2019, Ciro Guerra
Skammen (Vergonha), 1968 Igmar Bergman
Marie Kroyer, 2012, Bille August
Pocketful of Miracles (Dama por um dia), 1961, Frank Capra
Silêncio das trevas (The spiral starcase), 1946, Robert Siodmak
My Name Is Julia Ross (Trágico álibi), 1945, Joseph H. Lewis
Borgen, TV Series (2010–2013), Adam Price
Niagara (Torrentes de paixões), 1953, Henry Hathaway
The trial of the Chicago (Os 7 de Chicago) , 2020, Aaron Sorkin
The Little Foxes (Pérfida), 1941, William Wyler
Storm Center (No despertar da tormenta), (1956), Daniel Taradash
The westerner (O galante aventureiro), 1940, Wllian Wyler
Watch on the Rhine (Hora de tormenta),1943, Herman Shumlin e Hal Mohr
Sudden Fear (Precipícos d’alma), 1952, David Miller
The River's Edge (Matar para viver), 1957, Allan Dwan
The naked city (Cidade nua), 1948, Jules Dassin
 

26/09/20

Too late for tears (Lágrimas Tardias), 1949, Byron Haskin

Lágrimas tardias no iutubi  

A femme fatale é um dos icônicos personagens dos clássicos filmes policiais em estilo noir (fotografia em sombras, tramas misteriosas, detetives durões, mulheres destruidoras em roteiros recheados de crimes e reviravoltas). Jane Palmer (Lizabeth Scott) não é nem de longe a mais citada ou famosa, mas é sem dúvida, a mais cruel e sórdida dos filmes produzidos naqueles áureos anos. “Lágrimas Tardias” (Too Late For Tears) foi produzido em 1949 pelo diretor Byron Haskin. Na trama, um casal (Arthur Kennedy e Lizabeth Scott) tem literalmente uma mala que caiu em seu carro e encontram uma bolada para a época: 60.000 dólares. O esposo honesto quer devolver o dinheiro, mas Jane lentamente vai lhe mostrando que ela não vai deixar que o dinheiro lhe escape das mãos. Nada é uma barreira para ela, nenhuma vida importa, pois a loira não tem um coração, e sim um cofre dentro do peito. E ela quer rechear com dólares. E o bandido malvado da história (Dan Duryea) é fichinha para esta femme fatale que deve ter inspirado muitas vilãs de novelas. A frase dita por Duryea no filme, a resume: “Sabe de uma coisa, tigresa? Não mude nunca. Acho que não gostaria de você, se você tivesse coração”...

27/09/2020

The Servant (O criado), 1963, Joseph Losey


 Losey vira pelo avesso a sociedade inglesa "O Criado", de 1963, é possivelmente a obra máxima de Joseph Losey (1909-84) e mostra por que muitos críticos o definem como o mais europeu dos cineastas americanos. Trata-se aqui da narrativa, baseada em romance de Robin Maugham roteirizado por Harold Pinter, de uma relação de classe social virada pelo avesso.

Tony (James Fox), um ocioso playboy de família aristocrata, contrata o elegante e refinado mordomo Hugo Barrett (Dirk Bogarde) para cuidar de tudo em seu apartamento. Em pouco tempo o criado passa a ocupar tanto espaço na organização da vida do rapaz que acaba por entrar em atrito com a namorada deste, Susan (Wendy Craig), que sai derrotada.

A situação se complica quando Barrett convence o patrão a contratar como doméstica sua suposta irmã Vera (Sarah Miles). Logo veremos que de irmã ela não tem nada.Não convém antecipar mais nada. Basta dizer, que ao movimentar sutilmente esses personagens em seu tabuleiro, Losey empreende ao mesmo tempo uma radiografia da degradação da aristocracia inglesa e uma fábula moral sobre o poder nas relações interpessoais.

Não são apenas o tema e a ambientação que conferem o caráter "europeu" a essa obra, mas também e sobretudo o seu estilo. Em lugar da montagem clássica, picotada, baseada no mecanismo do campo-contracampo, que caracteriza o cinemão americano, Losey opta pelos longos planos-seqüências e pela profundidade de campo que permite ao olhar do espectador passear pelo quadro e descobrir o que lhe interessa.Já a primeira seqüência é reveladora dessa opção de linguagem. Ao longo de vários minutos, sem cortes, a câmera, instalada numa grua, mostra uma estação de trem londrina e o seu entorno, vai baixando lentamente até enquadrar um homem de terno, que caminha pela rua até o seu destino. Esse homem é Hugo Barrett, o criado do título.

Sutileza

Dentro do apartamento de seu futuro patrão, o percurso de Barrett, que encontra a porta entreaberta, é mostrado em "câmera subjetiva" (vemos o que Barrett vê), até que ele encontra/encontramos o jovem numa cadeira de espreguiçar, provavelmente de ressaca. Está traçado o quadro de vulnerabilidade e decadência em que o arguto criado vai instalar seu reino. Até então não se pronunciou uma única palavra.

É essa narrativa essencialmente cinematográfica, construída pela riqueza dos enquadramentos e pela sutileza dos movimentos de câmera, que Losey conduzirá com firmeza até o final, num crescendo de tensão e surpresas. Junte-se a isso um elenco de primeira e o resultado é um deleite garantido. Pena que o DVD praticamente não tenha extras. JOSÉ GERALDO COUTO, 24/12/2006

28/09/2020

CANDELARIA (2017), Jhonny Hendrix  

Onde assistir: Netfix

Candelária

Candelaria, Candela, Cande, nome e apelidos da protagonista do filme, interpretada pela grande atriz cubana Veronica Lynn, nascida em 1931. Simbólica associação com a candela, vela em espanhol, que “ilumina” grande parte das sequências internas do filme, cenário da casa de Candelaria e de seu marido Victor Hugo, interpretado pelo também grande ator cubano Alden Knight, nascido em 1936. A menção à data de nascimento dos personagens os insere no grupo dos idosos acima de oitenta anos.

Após o colapso da União Soviética, Cuba entrou em uma grave crise econômica que ficou conhecida como “Período especial em tempo de paz”. A União Soviética consumia 85% das exportações de Cuba e fornecia petróleo a preços subsidiados. A crise econômica é protagonista da trama. A narrativa se desenvolve a partir e por causa da extrema privação vivida pelo povo cubano, que não tinha alimentos, energia, meios de transporte e produtos básicos de consumo.

Candelaria é introduzida na cena em um dos seus locais de trabalho, um bar ou casa de shows, onde estão ensaiando os músicos que a acompanham como cantora. Uma artista, uma cantora, uma personagem teatral e alegre. A rica música cubana dá o tom no início do filme. Seu marido Victor Hugo também é introduzido em seu local de trabalho tipicamente cubano, uma fábrica de charutos artesanais. A câmera acompanha o seu caminhar arrastado de octogenário até a saída da fábrica. Victor Hugo consegue um reforço para a subsistência do casal, vendendo alguns charutos que consegue roubar da fábrica, no mercado negro.

O tema da pequena contravenção compõe todos os personagens. Todos lutando para conseguir comida ou produtos de subsistência.

Grande parte da narrativa se passa no cenário da casa de Candelaria e Victor Hugo. O melhor retrato da penúria da ilha de Cuba naquele período. Paredes mofadas e descascadas, mobiliário desgastado e a lamparina improvisada com uma vela dentro de um vidro. A casa dos protagonistas nos remete à antológica cena do “Buena Vista Social Club”, de Wim Wenders, quando visita a casa de Ibrahim Ferrer e sua esposa. Enquanto Candelaria e Victor Hugo compartilham uma frugal refeição, o rádio ligado reproduz os discursos de Fidel Castro anunciando que Cuba não vai abandonar os princípios do socialismo, em troca da anulação do bloqueio econômico dos Estados Unidos.

Fazem parte da casa, 5 pintinhos acabados de sair do ovo, que Candelaria trata como animaizinhos de estimação e Victor Hugo e seu amigo Manuel, visitante na casa e coadjuvante da trama, veem como futura refeição. Manuel está construindo uma embarcação para fugir para a Flórida. É atravessador de mercadorias roubadas. Vende os charutos de Victor Hugo para o grande receptador da ilha, chamado de O Carpinteiro.

Candelaria trabalha também na lavanderia de um hotel. Encontra uma bolsa com uma câmera filmadora entre os lençóis sujos e leva para casa. Vai ser interrogada pelo gerente do hotel, como suspeita de ter roubado a câmera. Inicia-se então o filme dentro do filme: o casal se diverte gravando as suas rotinas domésticas.

A grande beleza do filme é revelada nas filmagens do casal. Momentos de amor, ternura, cumplicidade e sexo entre um casal de idosos. Cenas de intimidade belas e desconcertantes. E com magistrais interpretações dos atores protagonistas.

Em uma das cenas de intimidade gravadas pela câmera, Candelaria faz um autoexame das mamas diante do espelho. Um câncer foi diagnosticado e uma médica recomenda o tratamento com cirurgia e quimioterapia.

Em uma sequência em que Victor Hugo e algumas crianças jogam beisebol em uma praça, a câmera é roubada. Desesperado, ele vai atrás do Carpinteiro, o único personagem não cubano, que é o receptador das mercadorias roubadas de Havana. Nos domínios do Carpinteiro, uma surpresa lhe espera.

O filme tem poucas externas, talvez porque como foi filmado em 2017, Havana já está muito diferente da cidade devastada do Período Especial. Em uma das poucas e belas externas, Victor Hugo passeia de bicicleta pelas ruas de Havana, recitando sobre a morte. Candelaria também fala sobre a morte. Em um comovente diálogo com Victor Hugo, ela diz que não vai se submeter ao tratamento. E acrescenta um tom político à sua decisão: “…nesta ilha podemos morrer de fome a qualquer momento…Cuba está ameaçada de morte todos os dias.” Fechando o filme, o casal dança ao som do bolero “Te busco”, interpretado por Celia Cruz.

O jovem diretor colombiano, Jhonny Hendrix Hinestroza, disse que “todas as ideias que sempre quis contar áudio-visualmente surgiram de alguma experiência vivida”. Segundo ele, a história do filme, à qual acrescentou ficção, foi ouvida em Havana. O filme foi lançado em Veneza, em 2017, no festival Venice Days, e arrebatou o prêmio do festival, entre muitos outros prêmios.

30/09/2020

Estate violente (Verão violento), 1959, Valerio Zurlini

Numa cena forte de Verão Violento/Estate Violenta, de 1959, Eleonora Rossi Drago discute com a mãe, interpretada pela mesma atriz que faria a mãe de Monica Vitti em O Eclipse, de Michelangelo Antonioni, de 1962. Lilla Brignone é intransigente. Reprova o comportamento da filha. Eleonora retruca. Exige respeito, diz que é uma senhora. “Então comporte-se como uma senhora!”, brada Lilla. Porque Eleonora perdeu todo o pudor. Com o marido no front, está iniciando um affair com o garoto. Na época, o jovem Jean-Louis Trintignant devia ser um dos atores mais invejados do planeta. Brigitte Bardot em E Deus Criou a Mulher, de Roger Vadim, no alvorecer da nouvelle vague, a Rossi-Drago no Valerio Zurlini. Ele teve nos braços algumas das mulheres mais desejadas do mundo. Não as pin-ups, as starlettes. Mulheres, de verdade. Logo em seguida veio a Anouk Aimée de Um Homem, Uma Mulher, de Claude Lelouch, Palma de Ouro em Cannes, ao som do chabadá-badá romântico de Pierre Barouh. Embora jovem, e franzino, aparentemente inexperiente, Trintignant passa uma imagem de virilidade. Teve um caso rumoroso com BB. Sua dança de corpo colado com a Rossi-Drago fazia jus ao título da música, Temptation.

A tentação era incontornável em Verão Violento. O casal entregava-se à sua paixão proibida. Para quem era jovem na época, aquilo era um choque. Na produção estandartizada de Hollywood, predominava o moralismo. As camas eram separadas e, para poder usar a palavra 'sêmen' num drama de tribunal, num caso de estupro – Anatomia de Um Crime –, Otto Preminger teve de comprar uma briga com a censura. As coisas iriam mudar – já estavam mudando na Europa, com Ingmar Bergman, a nouvelle vague, os italianos. E havia o quadro histórico em Verão Violento. Não era só o desejo – era o ano.

O filme passa-se em 1943, e aquele ainda era um ano tabu na consciência dos italianos. A queda do fascismo confrontava a Itália com sua memória traumática – a guerra, e o embate civil entre forças antagônicas, os órfãos de Benito Mussolini e os integrantes da resistência, os comunistas e os democrata-cristãos que dominariam a vida política italiana pelos anos e décadas seguintes, até o recrudescimento do fascismo nos anos 1970, que inspirou o último Pier-Paolo Pasolini – Salò, os 120 Dias de Sodoma.

Sempre houve um culto a Zurlini. No Brasil, o oficiante foi Carlos Reichenbach, na França, Jean Gili, na Itália, Alberto Cattini (ou terá sido Sergio Toffetti?). Zurlini amava Guerra e Paz, era tolstoiniano de carteirinha. Acreditava que uma história privada, como a dos amantes de Verão Violento, só ganha amplitude num quadro histórico que aumenta mais as dificuldades dos protagonistas. Foi assim de novo em A Garota com a Valise, Dois Destinos – a pungente história de dois irmãos de temperamentos e formações diversas durante a guerra, com brilhante uso da cor –, em Le Soldatesse, Sentado à Sua Direita, A Primeira Noite de Tranquilidade e O Deserto dos Tártaros. Zurlini ambientou Verão Violento na própria cidade à beira do mar Adriático em que o Duce, em pessoa, passava as férias, Riccione.

Roberta e Carlo, a Rossi-Drago e Trintignant, dançam de corpo colado, alheios ao mundo e ao fundo o céu é iluminado pelo clarão das bombas dos aliados, que avançam para derrotar (momentaneamente?) o fascismo. Roberta perde a razão, deixa de se comportar como uma senhora porque descobre o próprio corpo, cede às suas exigências. E Carlo, dizia Zurlini, que se projetou no personagem –“Só não tive a ventura de ter uma Rossi-Drago na minha vida” –, é um rapaz estranho, um pouco idiota porque, no fundo, como filho da burguesia, é produto de uma educação (fascista) que queria uma juventude estúpida, que não pensasse nem questionasse, uma juventude pouco inteligente.

Verão Violento surgiu no bojo de um movimento que, no fim dos anos 1950, confrontou os italianos com o próprio passado. Roberto Rossellini ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1959 com De Crápula a Herói/Il Generale della Rovere, magnificamente interpretado por Vittorio de Sica. Florestano Vancini venceu, no ano seguinte, o prêmio da melhor primeira obra, também em Veneza, por A Noite do Massacre/La Lunga Notte del 43, que se passa no mesmo ano emblemático de Verão Violento, evocando os levantes populares que se seguiram, em Ferrara, à morte de 11 resistentes pelas brigadas fascistas da República de Salò. Vancini, vale destacar, integra a equipe do Zurlini. O roteiro teve participação da viscontiana Suso Cecci D'Amico e o diretor sempre admitiu sua dívida com dois grandes autores, Michelangelo Antonioni e Luchino Visconti, o primeiro pelo olhar ético e estético, o segundo pelo foco histórico.

Eleonora Rossi-Drago já era considerada uma atriz importante – de Antonioni, Luigi Comencini, Pietro Germi, Giuseppe De Santis, etc. Pelo Zurlini, foi melhor atriz em Mar del Plata e recebeu o Nastro D'Argento, também como melhor atriz, na Itália. Do elenco também participa a jovem Jacqueline Sassard, outra das mulheres mais belas da época. Antes de Verão Violento, Zurlini escrevera um roteiro que pretendia realizar com ela, mas quem dirigiu Guendalina foi Alberto Lattuada. Consta que Zurlini era apaixonado por Jacqueline, que teve uma breve e importante carreira, filmando com Vancini (Enquanto Durou o Nosso Amor), Joseph Losey (Estranho Acidente) e Claude Chabrol (As Corças). Jacqueline Sassard abandonou o cinema ao se casar com Gianni Lancia, que foi um destacado engenheiro de carros de corridas nos anos 1950. A curiosidade é que o casal viveu alguns anos no Brasil.

Luiz Carlos Merten , O Estado de S. Paulo

02 de outubro de 2020

Kiss Me, Stupid (Beije me, idiota), 1964, Billy Wilder

Beije me, idiota no iutube 

Beije me, idiota

Um cantor, Dino (Dean Martin), após findar sua temporada em Las Vegas pega a estrada para participar de um especial de TV. Porém no meio da viagem tem de mudar sua rota, pois houve um acidente e a rodovia está bloqueada. Desta forma terá de passar por Climax, Nevada, uma pequena cidade. Em Climax mora Orville J. Spooner (Ray Walston), um professor de piano clássico que é muito ciumento com sua mulher, Zelda (Felicia Farr). Como está difícil viver dando aulas de piano, ele e Barney (Cliff Osmond), um frentista que trabalha próximo, estão tentando escrever uma canção que seja aceita por algum grande cantor. A dupla já fez 62 canções, mas até agora nada. Já em Climax, Dino vai encher o tanque e é reconhecido por Barney, que acha que esta pode ser a grande chance dele e de Orville. Barney sugere que precisam fazer Dino se interessar por alguma canção deles, mas isto precisa ser feito sutilmente, o que faz Dino achar Orville estranho. Vendo que Dino estava louco para ir embora, Barney alega que não verificou o óleo e então sabota o carro, desconectando a passagem de gasolina. Assim logo Dino volta rebocado e, para retê-lo o máximo de tempo possível, Barney diz que é um defeito sério e que a peça terá de ser encomendada. Barney diz também que talvez dê um jeito, mas o carro só ficaria pronto no dia seguinte. Os dois alegam que o hotel é péssimo, assim Dino concorda em passar uma noite na casa de Orville, que o instala no quarto de costura de Zelda. Ao chegar em casa Zelda diz que viu Dino e confessa que sempre foi louca por ele. Mais uma vez Orville é dominado pelo ciúme e quer Dino fora da sua casa. Barney diz a Orville que ele só tem de provocar uma briga, assim ela por uma noite irá para a casa da mãe dela, com Dino sendo apresentado à "esposa" de Orville, que será na verdade Polly (Kim Novak), uma prostituta que trabalha no Umbigo, um bar com péssima reputação.

05/10/20

Ride in the Whirlwind (Vingança do pistoleiro), 1966, Monte Hellman

Três caubóis (Jack Nicholson, Cameron Mitchell, Rupert Crosse) cavalgam para suas casas, cortando o indomável solo do velho oeste, quando encontram uma cabana onde está o bando liderado por Blind Dick (Harry Dean Stanton), e decidem acampar por ali. Um grupo de vigilantes chefiados por um xerife aparece e começa a trocar tiros com os foras-da-lei. Confundidos com os bandidos, os três lutam para fugir dos homens da lei que não ouvem suas explicações. Após uma terrível perseguição, dois deles são mortos. Tem início a cruel e impiedosa história de como se forma um fora-da-lei, um homem que se transforma em um assassino frio para se defender da morte e se vingar.

07/10/2020

People Will Talk (Dizem que é pecado), 1951, Joseph L. Mankiewicz

Certa manhã, o bitolado Professor Rodney Elwell questiona a governanta Sarah Pickett sobre o Dr. Noah Praetorius, um de seus colegas professores numa conceituada Escola de Medicina. Elwell tem ciúmes de Praetorius, cujos pontos de vista não ortodoxos e visão humanista o tornam popular entre pacientes e alunos, e se mostra satisfeito com as informações que Sarah fornece sobre a permanência dele em sua cidade rural anos antes. Sarah também revela informações sobre o misterioso companheiro de Praetorius, um homem alto, discreto, chamado Shunderson.

Certo dia, quando Elwell se acha ocupado, Praetorius o substitui em sua classe de anatomia, onde uma jovem adorável, Deborah Higgins, desmaia durante a aula. Em seguida, Praetorius vai para sua clínica, onde repreende uma enfermeira negligente, dizendo-lhe que os pacientes são pessoas doentes, não presos. A última paciente do dia é Deborah, e os testes indicam que ela se acha grávida. Deborah se mostra desolada e confidencia a Praetorius que não é casada e que está grávida de um namorado que foi morto em serviço militar no ultramar. Praetorius a aconselha a procurar a ajuda de seu pai, e apesar de Deborah afirmar que ele é um homem compreensivo, ela insiste que não pode sobrecarregá-lo com o seu erro... 

Escrito e dirigido pelo cineasta Joseph L. Mankiewicz, “Dizem que é Pecado” é um ótimo filme norte-americano produzido pela Twentieth Century Fox Film Corporation em 1951. Sua trama, baseada numa peça de Curt Goetz, é muito bem construída, com diálogos de um nível altíssimo que procuram mostrar a importância da amizade, da lealdade.

Depois de ganhar os Oscars de melhor direção e melhor roteiro nos dois anos anteriores, respectivamente com os filmes “Quem é o Infiel?”, de 1949, e “A Malvada”, de 1950, Mankiewicz nos brinda com mais este belo filme, que chegou a ser indicado ao prêmio de melhor roteiro do Grêmio dos Roteiristas da América. Embora sem a pretensão de ser uma obra inesquecível e arrebatadora, fica claro seu cuidado com os detalhes.

Finalmente, o elenco é outro quesito que merece ser destacado, com Cary Grant num papel feito sob medida para ele, ao lado de Jeanne Crain, igualmente perfeita. No elenco de apoio, todos os coadjuvantes se saem muito bem, com destaque para Hume Cronyn no papel do Professor Rodney Elwell. (75 anos de cinema)

09/10/2020

O monstro de Londres (The sleeping tiger), 1954, Joseph Losey

O monstro de Londres no iutubi 

Psiquiatra decide experimentar uma nova técnica com seu paciente (Dirk Bogarde) e o convida para morar junto a si, em seu lar. Mesmo ciente do risco corrido, o médico ignora todas as recomendações policiais, colocando em risco a vida de sua própria esposa. Ele não imagina o quão perigoso seu novo inquilino verdadeiramente é, muito menos que sua mulher pode estar infeliz ao ponto de se deixar envolver por uma nova sedução.

10/10/2020

Goodbye Again (Mais uma vez, adeus), 1961, Anatole Litvak

Mais uma vez, adeus

Paula Tessier (Ingrid Bergman) e Roger Demarest (Yves Montand) são um casal que já passou os 40 anos, e insistem em não casar, pois acreditam que uma relação deve ser livre de amarras institucionais. Só que, se Paula lamenta as repetidas ausências dele, Roger aproveita essa liberdade para um sem número de escapadelas com mulheres mais jovens. Quem se apercebe disso é o jovem Philip (Anthony Perkins), enamorado de Paula, e decidido a fazê-la perceber que ninguém no mundo se dedicaria tanto a ela quanto ele pode. A início incomodada, quando Paula percebe que Roger a trai, vai sentir que a atenção do jovem é tudo o que ela precisa.

Filmando inteiramente em França (excepto um breve plano em Londres), depois de “Anastásia” (Anastasia, 1956), Anatole Litvak voltava a encontrar Ingrid Bergman, agora para um melodrama romântico a preto e branco semi-independente, e distribuído pela United Artists, numa adaptação do romance “Aimez-vous Brahms” da conhecida autora francesa Françoise Sagan.

Paula Tessier (Ingrid Bergman) é uma bem-sucedida decoradora de interiores de Paris, numa relação de cinco anos com o empresário Roger Demarest (Yves Montand), que ambos se orgulham de ser uma relação livre, sem as amarras das convenções sociais. Só que, sem que Paula saiba, Roger é um inveterado conquistador, que precisa de ter mulheres diferentes todas as semanas, pelo que os planos comuns são muitas vezes adiados à última da hora. É isso que vai perceber Philip Van der Besh (Anthony Perkins), o jovem e irresponsável filho de uma das clientes ricas de Paula (Jessie Royce Landis). Imediatamente apaixonado por Paula, Philip passa a segui-la por todo o lado, intrusivamente tentando que ela se interesse por ele. Quando Paula, finalmente, tem uma prova das traições de Roger, depois de mais uma vez ser abandonada para ele ir passar o fim-de-semana fora com uma amante, Paula cede à atenção de Philip, e os dois iniciam uma relação. Só que, aos poucos, Paula vai-se sentindo mais desajustada. É, por um lado, a irresponsabilidade de Philip, que desiste do trabalho para ficar em casa à espera de Paula, e, por outro, a diferença de idades, apontada entre dentes por todos os que vêem o casal. Com Roger cada vez mais farto das suas amantes que não lhe dão a profundidade sentimental que tinha com Paula, o casal vai-se reaproximar, e Roger, não querendo correr os riscos anteriores, pede Paula em casamento. O casamento ocorre e tudo parece ter terminado em bem, mas as novas alterações de planos de última hora que deixam Paula sozinha fazem-na perceber que Roger em nada mudou.

Quase que pegando na premissa de “Indiscreto” (Indiscreet, 1958), de Stanley Donen, “Mais uma Vez, Adeus” volta à ideia de uma mulher independente e solteira a entrar numa fase da vida em o casamento parece ter ficado para trás, e precisa de saber o que quer de facto para si. Só que, desta vez, em vez da comédia romântica de enganos inocentes ultrapassados, e final feliz esperado, temos um filme amargo, onde a resolução só aparentemente é a desejada – convencional sim, mas longe de ser uma felicidade sincera, afinal, como tantas vezes a vida nos ensina.

O filme faz-se da dinâmica entre três personalidades (não esquecendo o papel divertidamente proeminente de Jessie Royce Landis, mas sem consequências de peso para a trama). A primeira é Paula, a personagem de Ingrid Bergman, romântica, sofisticada e moderna, e já com 40 anos. Aceita uma relação sem amarras, mas lamenta ter de ficar sozinha, sabendo no seu íntimo que está a ser trocada por outras. O segundo é Roger, a personagem de Yves Montand, conquistador por natureza (numa interpretação bastante oca de quem se limita a ser francês para ter o mundo feminino a seus pés), gosta de Paula, mas gosta ainda mais do prazer da conquista, e tem sempre os olhos na próxima presa, à qual chama sempre Maisie, para não ter que memorizar nomes, numa total objectificação das suas parceiras. Por fim, Philip, a personagem de Anthony Perkins (então acabado de chegar ao estrelato pelas mãos de Hitchcock), é um jovem rico mimado, advogado porque a mãe quer, mas não se dando ao trabalho de aparecer no escritório muitas vezes, passando a perseguir Paula como uma criança teimosa, mas mostrando uma estranha acutilância para os estados de espírito dela, como se, na sua jovem idade, partilhasse já as agruras de uma longa solidão interior.

A história joga-se depois nas ruas e restaurantes de Paris (note-se como tantos dos planos – à entrada e saída de carros – parecem cartões de visita da cidade), e no guarda-roupa de Ingrid Bergman (novamente de Christian Dior – e note-se aqui quantas vezes Paula chega a casa para conversar dos seus vestidos com a empregada, ou quantas vezes estes são notados pelos seus pretendentes, numa tentativa descarada de fazer o público reparar nas obras de Dior), que de festa em festa, restaurante em restaurante ou local de trabalho em local de trabalho, é sempre perseguida por Philip, o qual chega a ser irritante por tantas intromissões fora de propósito (hoje isso seria caso de polícia). Mas, fazendo juz ao provérbio «água mole em pedra dura…», Paula e Philip estabelecem uma relação, e inicia-se aí a segunda parte do filme, aquela que faz dele um verdadeiro melodrama. Paula, solucionado o seu drama de constantes abandonos, e encontrando um homem que a venera e só tem olhos para ela, sente-se mal. Em paralelo, Roger, livre para viver quantas aventuras quiser, sente-se ainda pior. Quanto a Philip, conquistado mais um dos brinquedos (ele que foi habituado a ter sempre o que quis – era mais fácil à sua mãe dar-lhe tudo que dizer não), perde qualquer projecto ou ambição, passando a desgostar Paula.

A resolução – a reconciliação entre Paula e Roger – é do mais agri-doce que se viu até então em dramas românticos, e a felicidade da reconciliação e do tão almejado casamento conduzem apenas a lágrimas choradas em silêncio. Como diria Giuseppe Tomasi di Lampedusa na sua obra “Il Gattopardo” referindo-se à política: «Às vezes é preciso que algo mude, para que tudo fique na mesma». É essa a lição que Paula e Roger nos dão, mudando o seu estado civil, de acordo com o que deles se esperava, para que a relação possa ter uma razão de continuar, ainda que, de facto, tudo fosse ficar na mesma.

Elogiado pela elegância dos actores, cenografia e banda sonora – com a música de Brahms em destaque –, “Mais uma Vez, Adeus” foi bem recebido na Europa, mas mais friamente nos Estados Unidos. Percebia-se que, mesmo continuando a mostrar o seu bom gosto e elegância nos filmes em que participava, a estrela de Bergman desvanecia-se já, em termos de grande público. Com estreia em Cannes, o filme mereceu uma nomeação à Palma de Ouro, enquanto Perkins era consagrado com o prémio de Melhor Actor.

11/10/2020

Dishonored Lady (Mulher caluniada), 1947, Robert Stevenson


Mulher caluniada no iutubi 

Madeleine Damien é editora de moda de uma elegante revista de Manhattan durante o dia e uma animada festeira à noite. Infelizmente, as pressões de seu trabalho, incluindo prostrar-se diante de um grande anunciante, e sua má sorte com os homens estão levando-a ao colapso. Ela procura a ajuda de um psiquiatra e, sob suas ordens, abandona o emprego e muda-se para um apartamento menor com uma nova identidade. Ela se interessa por pintura e por um vizinho bonito. Ele logo descobre sobre seu passado quando um ex-pretendente a implica em um assassinato.


12/10/2020

Time Without Pity (A sombra da forca), 1957, Joseph Losey

Um jovem foi condenado à morte por assassinato; 24 horas antes da execução o pai tenta em vão inocenta-lo, e suicida-se simulando um crime, para desmascarar o verdadeiro assassino.

Ao contrário da crítica do Evening Standard, que dizia: “O documento social não é perfeito, mas o thriller é de primeira qualidade”, pode-se pensar que o suspense da investigação é muito menos absorvente que os personagens encontrados pelo pai, sobretudo um escritor alcoólatra, uma velha drogada cercada de pêndulas, o próprio filho prisioneiro que o chama de bêbado, mau pai, mentiroso, e principalmente o verdadeiro culpado, um rico fabricante de automóveis, vivendo num escritório que domina uma pista de provas... Muito mais que um processo contra o carrasco, este filme estranho é um processo contra a cidade, movido ao mesmo tempo por Ben Barzman e Losey. (Georges Sadoul, Dicionário de filmes, p. 370, LPM, 1993)

13/10/2020

Secret Ceremony (Cerimônia secreta) 1968, Joseph Losey

O filme mais sufocante de Losey, que encontrou uma espécie de ponto de equilíbrio, em sua direção, entre personagens que gostariam de compensar suas próprias frustações “ajudando-se” uns aos outros, e só conseguem se entredilacerar, de um lado, e o cenário – uma velha casa povoada por obcecantes objetos-lembranças, com os quais cada um gostaria de inventar uma outra vida para si – que aqui assume seu peso de “ator”, de outro. Elizabeth Taylor, prostituta em busca de uma família; Mia Farrow, jovem nervosa, de boa família, que quer ser mãe; Robert Mitchum, inquietante mestre de cerimônia, são os admiráveis intérpretes desse jogo solene de morte. (Georges Sadoul, Dicionário de filmes, p. 83, LPM, 1993)

14/10/2020

A Doll's House (A casa das bonecas), 1973, Joseph Losey

Sobre a peça de Ibsen  Casa das bonecas

Quando a projeção começa, não sabemos que estamos na Noruega do século XIX se não soubermos ao que vamos. Mas sabemos que é Inverno e faz frio. Abre tudo a branco, a imagem parece pictórica e fixa mas logo percebemos os sons ambiente, uma sineta, e logo a imagem se põe em movimento. O travelling lateral sobre a paisagem nevada descobre silhuetas deslizantes no gelo, cavalos que a atravessam puxando trenós ou carruagens, a casinha de madeira de grandes vidraças de que a imagem se aproxima em zoom. Os vultos e a casa ganham cor, ou assim parece. A figura de um homem que será uma personagem decisiva marca presença à esquerda do enquadramento. A música já invadiu a banda sonora. No segundo plano, entramos a deslizar com as duas mulheres, jovens e sorridentes que aterram nos degraus da casa de madeira, “É como se voássemos!” São Jane Fonda e Delphine Seyrig, Nora e Kristine. Não tardaremos a descobri-lo na cena interior na casa de chá em que tomam chocolate quente e se despedem entre sorrisos e abraços, a câmara rodopiante com a rodopiante Nora, mais pausada com a mais pausada Kristine. São duas despedidas, em começo de filme: a das duas amigas, à beira do casamento de Nora com Torvald; depois da partida alvoraçada desta, com a entrada em cena da personagem de Edward Fox no mesmo cenário, a de Kristine e Krogstad, por conveniência de Kristine que não pode casar-se por amor, como Nora, escolhendo a conveniência. O prólogo vai estender-se às sequências seguintes, com Nora casada e mãe, a mesma vivacidade galante mas já um segredo, que a leva a maquinar uma viagem a Itália a bem da saúde do marido no santo desconhecimento deste que, ao invés e com a ajuda de um médico amigo da família, crê estar a conceder a satisfação de um capricho à ligeiramente estouvada mulher. Anos mais tarde, em véspera de Natal, Nora é mãe de três filhos, continua jovialmente irrequieta. Torvald vai iniciar um trabalho no banco local onde Krogstad, advogado de formação como ele, é um modesto funcionário. Kristine está de regresso à pequena cidade. A acção vai concentrar-se na precipitação dos acontecimentos que enredam as quatro personagens, e ainda a do observador platonicamente enamorado por Nora, o Dr. Rank interpretado por Trevor Howard que no final, em estado etílico, acabará por verbalizar o papel de mascote da casa do marido que ela desempenha, contribuindo para a consciência que dita o desfecho favorecido pela actuação de Kristine. Será depois do baile de máscaras e da tarantela de Nora... (Cinemateca)

15/10/2020

Notorious (Interludio), 1946, Alfred Hitchcock

Interludio no iutubi  

Por Cristiane Martins

A habilidade do diretor britânico Alfred Hitchcock de incorporar espionagem e romance a sua estética cinematográfica é apresentada ao leitor em detalhes no nono volume da Coleção Folha Grandes Diretores no Cinema, que chega às bancas em 23/9.

Para os cineastas e críticos Claude Chabrol e Eric Rohmer, "Interlúdio" é uma mistura de concretude extrema e esquematismo. É capaz de triturar "demoradamente a massa maleável, e rica em recursos infinitos, de seus intérpretes" e trazer, por outro lado, roteiro e decupagem com a "simplicidade de um teorema".

O longa de 1946, ambientado no Rio de Janeiro por causa da política de boa vizinhança dos EUA à época, envolve um grupo de exilados nazistas, agentes secretos americanos e uma mulher dúbia como as personagens femininas de Hitchcock.

Alicia (Ingrid Bergman), filha de um traidor americano condenado à prisão por ter colaborado com o regime de Hitler, é levada a cooperar com o trabalho de espionagem americano indo para o Rio. Lá, ela, que viria a ser infiltrada em um grupo de nazistas no Brasil, e o agente secreto americano Devlin (Cary Grant) acabam se apaixonando.

O filme apresenta a famosa cena de beijo entre Cary Grant e Ingrid Bergman, em que o casal transgride com sagacidade a regra de duração de beijos na tela (três segundos).

A ideia surgiu a Hitchcock, morto em 1980 aos 81 anos, anos antes, quando viu do trem uma garota que não deixou de segurar o braço do amado mesmo enquanto ele urinava. "O romance não deve ser interrompido", disse, em entrevista citada no livro que acompanha o DVD do nono volume da Coleção Folha.

O diretor, cuja obra é tema de exposição até 21 de outubro no MIS (Museu da Imagem e do Som) em São Paulo, assinou mais de 40 filmes, entre eles "Psicose", de 1961 e "Os Pássaros", de 1963. Era conhecido pelas suas obsessões, como loiras, assassinato, romances idealizados e o humor a partir do terror.

Por Ritter Fan 21 de março de 2020

Interlúdio é o segundo filme de Alfred Hitchcock em que Cary Grant e Ingrid Bergman participaram (o primeiro de Grant foi Suspeita e o de Bergman foi o imediatamente anterior Quando Fala o Coração), mas essa foi a primeira vez que os dois dividiram a tela, formando uma das mais belas duplas que já sagrou a Sétima Arte. Ambos viriam a atuar em filmes de Hitchcock novamente (Cary Grant mais duas vezes e Ingrid Bergman mais uma vez) e ambos viriam a dividir a tela novamente em Indiscreta (1958), de Stanley Donen, mas é em Interlúdio que os dois produzem uma química tão perfeita que é difícil até de prestar atenção na trama do filme.

E a razão para tamanha perfeição em um casal na tela grande é devido tanto a Hitchcock quanto aos dois. O diretor teve que lutar para manter Cary Grant no filme, pois David O. Selznick queria Joseph Cotton, ator com contrato com sua produtora e que, claro, seria mais barato. Selznick fez de tudo para ganhar essa batalha, mas a insistência de Hitchcock acabou prevalecendo. Com isso, Grant teve a chance de, mais uma vez, fazer um papel sério, saindo de suas então costumeiras comédias.

Ingrid Bergman, diz a lenda, ficou absolutamente encantada por Grant e também por Hitchcock, sendo uma das pouquíssimas atrizes que o diretor passou a ouvir, para surpresa geral de todos os envolvidos na produção. Dessa forma, uma espécie de química natural entre Bergman e Grant passou a existir desde o primeiro dia de filmagens, com a bênção de Hitchcock, que parecia muito à vontade com os dois atores, especialmente – e compreensivelmente – com a estonteante beleza de Bergman.

Além disso, em uma das cenas mais conhecidas de Interlúdio, Hitchcock usou de toda sua criatividade para literalmente burlar o ridículo Código de Produção que existia à época e que só permitia “beijos na boca” de, no máximo, três segundos. Em uma altamente erótica cena com Grant e Bergman, o cineasta dirigiu os dois de maneira que, a cada três segundos de beijo, um brevíssimo intervalo existisse entre eles, o que estendeu o “beija beija” por impressionantes dois minutos e meio (essa cena acontece no apartamento de Bergman, no Rio de Janeiro, quando o personagem de Grant faz uma ligação para seu chefe, para quem estiver interessado). Poucas duplas conseguiriam o efeito que conseguem em Interlúdio e Grant e Bergman fazem tudo tão naturalmente que é impossível não se deixar envolver...

15/10/2020

Friendly Persuasion (Sublime tentação), 1956, William Wyler 

Sublime tentação no iutubi 

A Allied Artists era um pequeno estúdio (sucessor da Monogram), especializado nos anos 50 em faroestes B, aventuras do jovem Bomba (Johnny Sheffield) e comédias com Os Anjos da Cara Suja. Pois foi a Allied Artists que acabou realizando um dos mais disputados projetos de Hollywood que era levar à tela o livro “Friendly Persuasion”, de autoria da escritora Jessamyn West. Lançado em 1945 e obtendo de imediato enorme sucesso, os direitos sobre o filme acabaram nas mãos de William Wyler que inicialmente pensou em Bing Crosby para interpretar o chefe da família Quaker do Sul de Indiana. Crosby não se interessou e Wyler foi atrás de Gary Cooper que, afirmando sempre ter outros compromissos, fugiu o quanto pode da proposta, até que em 1956 Cooper finalmente aceitou o trabalho, com a condição de ter Ingrid Bergman como sua esposa no filme.

Devido a seus compromissos com as filmagens de “Anastácia, a Rainha Esquecida”, a atriz sueca teve que recusar, sendo então sucessivamente convidadas Katharine Hepburn, Jane Wyman, Viven Leigh, Eleanor Parker e Maureen O’Hara. Como não houve acerto com nenhuma delas Dorothy McGuire foi contratada para desgosto de Gary Cooper que não considerava Dorothy uma atriz à altura de seu prestígio de ator para ser sua leading-lady. Superprodução para os econômicos padrões da Allied Artists, “Friendly Persuasion” (“Sublime Tentação” no Brasil) foi indicado para o Oscar em seis categorias, obtendo razoável sucesso e é para muitos um dos mais belos filmes da década de 50. E muito se discute, até hoje, se “Sublime Tentação” pode ou não ser considerado um western. (westerncinemania)

16/10/2020

Waiting for the barbarians, 2019, Ciro Guerra

Alegoria sobre sistemas autoritários e predatórios, “Waiting for the barbarians” (À espera dos barbaros), de Ciro Guerra, fez sua estreia ontem na competição do 76º Festival de Veneza para uma plateia ansiosa por um candidato inquestionável ao Leão de Ouro,  que será anunciado hoje. O filme marca a estreia do diretor colombiano, conhecido pelos premiados “O abraço da serpente” (2015) e “Pássaros de verão” (2019), numa produção em língua inglesa, e tem no elenco nomes como Mark Rylance, Johnny Depp e Robert Pattinson. Nas sessões para a imprensa, no entanto, não foi recebido com o entusiasmo esperado.

Adaptação de romance do escritor sul-africano J.M. Coetzee, “Waiting for the barbarians” é ambientado em uma fortaleza de um império sem nome, localização geográfica ou temporal específicos. O assentamento, no deserto, é administrado por um magistrado (Rylance, de “A ponte dos espiões”, de Steven Spielberg) de espírito conciliador, que consegue manter uma relação pacífica com os nativos da região. Isso até a chegada do coronel Joll (Depp), enviado para cuidar da segurança do posto avançado na fronteira, que vê a população local como “bárbaros”.

A conduta do militar, que acredita na tortura como método eficaz para se chegar à verdade, entra em choque com a postura do magistrado, que vive cercado de livros e demonstra interesse pela cultura local. 

“Por mais chocante e distante que a realidade descrita no filme possa parecer, ela soa relevante para os dias de hoje” Johnny Depp 

— Por mais chocante e distante que a realidade descrita no filme possa parecer, ela soa relevante para os dias de hoje — disse Depp, que reforça a aparência ameaçadora de seu personagem, sempre de uniforme e capa pretos, lembrando trajes nazistas, com um óculos escuros de formato incomum. — Eles conferem uma hostilidade extra, parecem perigosos, e o fato de Joll nunca tirá-los só aumenta essa sensação. A ideia é manter o magistrado o mais desconfortável possível.  

“Como cidadão de um país de passado imperialista, é fácil entender que fazemos parte de uma cultura bárbara”. Mark Rylance 

Rylance, por seu lado, não precisou de artifícios externos para entender a situação de seu personagem.

— Como cidadão de um país de passado imperialista, é fácil entender que fazemos parte de uma cultura bárbara — afirmou o ator britânico. — A princípio, o magistrado tenta ignorar a tortura introduzida em seu posto pelo militar, e então ela chega à sua porta na forma de uma jovem nativa que ficou cega e aleijada por causa dos seus métodos, e tenta salvá-la. Mas a atitude do magistrado é apenas uma forma de reafirmação de seu poder; ela é a vítima. Na verdade, Johnny e eu interpretamos os dois lados de uma mesma moeda.

Ciro disse que, durante o processo de adaptação, o filme tornou-se “cada vez menos alegórico e mais ligado ao presente”. Ao GLOBO, o diretor contou que já haviam lhe oferecido projetos em inglês antes, mas nenhum deles lhe falara ao coração.

— Não aparecia nada em que eu acreditasse e sentisse necessidade de fazer. Aí surgiu a ideia de trabalhar sobre o livro do Coetzee, que acho uma obra-prima. É uma história que lida com muitos temas de meus filmes anteriores — disse o cineasta, que concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro com “O abraço da serpente”, sobre um cientista em busca de uma planta medicinal na floresta amazônica.

Premiado em festivais internacionais, “Pássaros de verão” chegou a ser indicado pela Colômbia para concorrer ao Oscar deste ano, mas não ficou entre os finalistas da categoria. Ciro diz que as conquistas recentes do cinema colombiano são fruto da política de incentivos do governo no setor: 

— Assim como em outros países da América Latina, o atividade cinematográfica na Colômbia é muito recente. Temos uma indústria jovem. Até algumas décadas atrás, os filmes colombianos eram feitos por cineastas destemidos, de que trabalham de forma muito pessoal. Não havia um ambienta para uma indústria. Cerca de 15 anos atrás, o governo começou a apoiar o cinema, e a situação tem melhorado aos poucos, abrindo oportunidades para novos talentos — observou Ciro. — Temos muitas histórias para contar, e por muito tempo não tivemos como fazer isso. É maravilhoso poder fazer parte desse novo capítulo da história do cinema do meu país.

Carlos Helí de Almeida, especial para O GLOBO

17/10/2020 

Skammen (Vergonha), 1968 Igmar Bergman

Vergonha no iutubi 

Vergonha. por Luiz Santiago 

Ingmar Bergman escreveu o roteiro de Vergonha (que em fase inicial de concepção chegou a ser chamado de A Guerra e também Os Sonhos da Vergonha) na primavera de 1967. O conflito no Vietnã há pouco tinha entrado na fase de “Guerra Total”, promovida pelo presidente americano Lyndon Johnson, mas o diretor afirmou que as notícias ainda não tinham o ar de “espetáculo de horror” que ganharia na imprensa e na opinião pública a partir de do segundo semestre de 1968 e, especialmente, após 1969. Mas o mais interessante aqui é a afirmação de Bergman de que Vergonha não era, em essência, um filme político. Sua intenção aqui era outra. Mostrar algumas pessoas afetadas e profundamente transformadas pela guerra...

Ingmar Bergman se arrisca em drama de tom político

CÁSSIO STARLING CARLOS

A fama justa de cineasta da alma que acompanha a obra de Ingmar Bergman por vezes impede a compreensão de outras facetas não menos impressionantes de seus filmes. A política, por exemplo, parece estranha ao universo entre quatro paredes em que se desenrolam os dramas bergmanianos. Quando ela entra em cena, no entanto, como em "Vergonha", o grande diretor sueco a transforma num motor incontrolável da tragédia humana.

Realizado em 1968, em plena Guerra do Vietnã, "Vergonha" adota um tom parabólico, na medida em que o conflito que põe em cena não se refere a um fato histórico determinado. Em vez de buscar as raízes de uma barbárie (como fará depois em "O Ovo da Serpente"), Bergman mostra a destruição como forma pura, sem demandar nossa adesão emocional a um partido ou outro.

Um casal de músicos, Jan (Max von Sydow) e Eva (Liv Ullmann), vive sob um conflito do qual o filme não nos oferece as "razões", retirado numa ilha. Na primeira parte, o filme acompanha a progressão de uma experiência idílica (a vida pacífica em meio à natureza) até passar, de modo abrupto, para a ruptura dessa ordem.

Numa segunda parte, Eva e Jan serão lançados numa sucessão de agressões, que envolvem fugas, medos, suspeitas e acusações. Bergman não se interessa em denunciar culpas ou vilanizar agressores. Ele prefere descrever o estado de guerra como aquele em que a primeira coisa que os indivíduos perdem é o direito de escolha. Tanto que na terceira parte, quando a guerra parece ter se concluído, reencontramos Eva e Jan sobrevivendo como autômatos, vivendo sob o domínio do medo, sem mais nem a barreira da própria casa como proteção contra quem vem de fora.

Numa tentativa final de fuga, terminam por ficar presos numa rede intransponível de morte, uma das imagens de pesadelo mais impactantes da obra de Bergman. Diante dela, resta aos personagens cobrir seus rostos, um gesto involuntário que expressa não apenas vergonha, mas, sobretudo, horror.


18/10/2020

Marie Kroyer, 2012, Bille August

A pintora Marie Kroyer vive um casamento infeliz com o famoso pintor dinamarquês P.S. Kroyer, no final do século XIX. Ele divide-se entre as funções de artista, mãe e esposa, e ainda é obrigada a conviver com uma doença mental do marido. Com o tempo, ela se sente cada vez mais sozinha e angustiada. Decide, então, fugir da rotina e sair de férias. No período, conhece o compositor sueco Hugo Alfvén, por quem se apaixona loucamente.

19/10/2020

Pocketful of Miracles (Dama por um dia), 1961, Frank Capra



Dama por um dia no iutubi 

Por Rubens Ewald Filho

Último filme do grande Frank Capra (1897-1991), que refez um de seus sucessos ("Dama por um Dia/ Lady for a Day", 1933), onde contava a mesma história, mas era prejudicado por uma atriz antipática (May Robson) no papel central.

Capra não se deu bem com o co-produtor Glenn Ford (que exigiu entre outras coisas aumentar o papel de sua namorada Hope Lange e também impôs Bette Davis, sua antiga parceira em outros filmes, mas ela parece mais avó de Ann do que sua mãe). Ficou tão aborrecido que por isso se aposentou.

O fato é que sua fita não tem o mesmo padrão de seus clássicos. Tem uma boa história (inspirada no escritor Damon Runyon, famoso pelos tipos pitorescos de Nova York que descrevia), excelente elenco (ele lança a muito jovem sueca e futura estrela Ann-Margret, que chega até a cantar uma canção mas erra no galã que é um canastrão que depois sumiu). É quase uma fábula bem humorada sobre Apple Annie e sua turma. Mas não é tudo que se podia esperar.

Ainda assim teve indicações ao Oscar para Figurinos (Edith Head), Canção (a imemorável música tema "Pocketful of Miracles", de Cahn e Van Heusen) e Ator Coadjuvante (Peter Falk). Elenco de apoio reúne grandes figuras do passado ou atores característicos, entre eles a ex-estrela do cinema mudo Betty Bronson (mulher do prefeito), Jack Elam, Snub Pollard, Ellen Corby (Waltons).

20/10/2020

Silêncio das trevas (The spiral starcase), 1946, Robert Siodmak 



Silêncio das trevas no iutubi 

Por RAFAEL LIMA

O som do grito (especialmente o feminino) é um dos signos mais reconhecíveis das produções de terror; não sendo coincidências, portanto, que atrizes que constroem a sua carreira em torno do gênero fiquem conhecidas como Scream Queens. Por isso, a ideia central de Silêncio Nas Trevas, thriller de terror gótico da RKO, onde uma jovem muda é perseguida por um assassino em série, sendo incapaz de gritar por ajuda devido à sua condição, já causa interesse por essa subversão de uma protagonista do gênero privada de um de seus principais signos.

A trama acompanha Helen Capel (Dorothy McGuire), uma jovem que perdeu a voz devido a um trauma de infância, e que trabalha para a rica família Warren, como cuidadora da matriarca, a viúva Warren (Ethel Barrymore). Quando mulheres que sofrem de algum tipo de deficiência ou “deformidade” passam a ser vítimas de um misterioso Serial Killer, o Doutor Parry (Kent Smith) passa a temer que Helen (por quem está apaixonado) possa se tornar a próxima vítima. Inicialmente, a moça acredita estar segura no casarão dos Warren, mas o assassino pode estar mais próximo do que ela imagina...

21/10/2020

My Name Is Julia Ross (Trágico álibi), 1945, Joseph H. Lewis

Trágico álibi no iutubi 

Julia Ross é uma jovem sozinha no mundo em procura de um emprego. Ela é contratada pela velha Sra. Hughes para trabalhar como secretária. Dois dias depois, desperta em uma casa desconhecida, vestindo roupas diferentes e com uma nova identidade. Agora, dizem-lhe que ela é a nora de Sra. Hughes e que sofreu um colapso nervoso.

22/10/2020

Borgen, TV Series (2010–2013), Adam Price 

Há algo de formidável no reino da Dinamarca. É a primeira-ministra Birgitte Nyborg, protagonista da telessérie Borgen, que a Netflix exibe há semanas para uma audiência fascinada pelas intrigas da corte e, principalmente, pela personalidade da primeira-ministra e sua bela e esplêndida intérprete, Sidse Babett Knudsen. Borgen, castelo em dinamarquês, é o apelido do Palácio Christianborg, onde se concentra o poder político do país, a Praça dos Três Poderes de Copenhague. A Dinamarca já teve uma primeira-ministra de verdade: a social-democrata Helle Thorning-Schmidt, que liderou o parlamento entre 2010 e 2015, e aposentou-se em 2016. Birgitte Nyborg não foi inspirada nela. A primeira temporada da série já estava sendo vista quando Thorning-Schmidt assumiu o poder.

Pelo carisma e pela competência, Birgitte tem mais a ver com Jacinda Ardern, a primeira-ministra da Nova Zelândia, cuja exitosa reação à pandemia da covid-19 deixou humilhados todos os marmanjos alfas da política mundial, a começar pelos infectados e inoperantes ogros da Casa Branca e do Palácio do Planalto.

Quando a série tem início, Birgitte acaba de se eleger PM pelos Moderados. Ao final da terceira temporada, estará à frente dos Novos Democratas e seus liberais de centro-esquerda. Os nomes e programas dos partidos da série e os do parlamento real só eventualmente se tangenciam. Ekspress, o inescrupuloso tabloide da série, inspirou-se no centenário Ekstra Bladet, tradicionalmente de centro-esquerda.

É preciso ter intimidade com a política interna da Dinamarca para notar as semelhanças e diferenças entre os parlamentares e as posições ideológicas dos partidos reais e imaginários, o que não é o meu caso nem o da imensa maioria dos assinantes da Netflix que, não obstante, transformou Borgen num fenômeno mundial, com admiradores os mais inesperados. O escritor Stephen King talvez seja o mais entusiasmado da claque.

A comentarista Jane Merrick, do jornal britânico The Independent, deu-se à pachorra de fazer um balanço dos acontecimentos políticos da Dinamarca que tiveram eco na segunda temporada da série. Pesquisa curiosa, mas sem a menor importância para a fruição plena do que acontece na Borgen liderada por Birgitte Nyborg, não por Helle Thorning-Schmidt.

Para evitar spoilers, abstenho-me de descer a detalhes sobre a trama e realçar alguns lances meio previsíveis do roteiro e uma escorregadela envolvendo um interlúdio sexual, felizmente de curta duração e menor repercussão dramática. O roteiro, diga-se, é quase sempre primoroso, com diálogos inteligentes, mas sem aquela esperteza postiça de que só personagens de cinema (ou teatro) parecem ser dotados. 

Com epígrafes de figurões que vão de Churchill a Lincoln, Maquiavel, passando pelo patrício Kierkegaard, à maneira da série Criminal Minds, Borgen é um drama político da mesma linhagem de The West Wing (Nos Bastidores do Poder) e House of Cards. Se semelhanças houver entre eles (as aberturas de Borgen e House of Cards, por exemplo, são um tanto parecidas, até no estilo da música que a ambas embala), que se reconheça a originalidade da série dinamarquesa, produzida quatro anos antes da americana.

Coalizões partidárias frágeis, troca-trocas entre legendas, idealismo vs. Realpolitik, conspirações, conflitos entre trabalho e vida doméstica, responsabilidade profissional e vida afetiva, chantagens políticas, decepções amorosas, crises conjugais, desajustes familiares, pressões corporativas – a luta pelo poder perpassa ou é perpassada por todos esses percalços. Na pauta parlamentar, as grandes questões que agitavam a Europa no final da primeira década do século: a manutenção das conquistas social-democratas, o fortalecimento do sistema de saúde, as crises do meio ambiente, o problema da imigração.

Birgitte é o oposto de Francis Underwood, o Ubu-Presidente magnificamente encarnado por Kevin Spacey em House of Cards. Destemida e determinada, o maior capital político da PM é sua retidão ética. Apesar das aparências, não é uma supermulher, mas suas fraquezas, notadamente as afetivas, só reforçam a empatia da personagem. E que olhar – alternadamente frio, como o de um exímio jogador de pôquer, e caloroso – tem Sidse Babett Knudsen!

O elenco é um dos pontos altos da série. Suas mulheres excedem, o que não surpreende num drama de manifesta índole feminista, que procura evitar os estereótipos sexistas. A tesuda Birgitte Hjort Sorensen, intérprete de Katrine Fonsmark, jornalista ambiciosa, workaholic, valente e exposta à venalidade da imprensa sensacionalista, jamais sucumbe à sombra da prima-dona da história. Sua voz impõe uma autoridade que poucas vezes tenho visto, ou melhor, ouvido na tela, nos últimos tempos. 

Produção da DR, televisão pública dinamarquesa, é mais uma mostra da pujança artística do audiovisual escandinavo que, dessa vez, não precisou contar com uma adaptação hollywoodiana (como ocorreu com The Killing e The Bridge) para se impor no mercado, inclusive nos Estados Unidos, onde é grande a resistência a filmes legendados.

 A NBC comprou os direitos de adaptação de Borgen em 2011, mas sentou em cima. Uma versão americana da série não fez e não faria a menor falta no streaming nosso de cada dia. Que nos venha a quarta temporada, já em preparo, dizem, com Birgitte às voltas com a neodireita fascista, a pandemia, as fake news e demais flagelos da atualidade, o que pode ou não incluir no pacote o ogro da Casa Branca. 

Sérgio Augusto, O Estado de S.Paulo, 10 de outubro de 2020

23/10/2020

Niagara (Torrentes de paixões), 1953, Henry Hathaway

Não é um bom filme, mas atraentemente vistoso e perverso – o único a explorar o lado mal e desagradável da perversidade fofa e infantil de Marilyn Monroe. Este filme foi feito pouco antes de ela conquistar Hollywood com Os homens preferem as louras, e sua vagabunda amoral e destrutiva – carnal em excesso – talvez ilustre o baixo conceito que Hollywood tinha por ela. A lascívia de Marilyn, com seus lábios úmidos, é o suficiente para segurar a primeira metade deste melodrama de assassinato, mas na segunda parte só há reviravoltas na trama, centrada nas cataratas de Niágara. (Pauline Kael, 1001 noites no cinema, p. 472, Companhia das Letras, 1994)

24/10/2020

The trial of the Chicago (Os 7 de Chicago) , 2020, Aaron Sorkin

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Um bom filme na telinha: “Os 7 de Chicago”

Fernando Morais

Vi esses dias um bom filme na Netflix: “Os 7 de Chicago”, sobre os sete ativistas anti-guerra do Vietnã acusados pelo governo dos EUA de “conspiração e incitação à revolta”. Os crimes teriam ocorrido durante a convenção do Partido Democrata em Chicago, em 1968, e os réus eram Abbie Hoffman (vivido magistralmente por Sacha Baron Cohen no filme), Jerry Rubin, David Dellinger, Tom Hayden, Rennie Davis, John Froines e Lee Weiner. Eles eram conhecidos originalmente como “Os 8 de Chicago”. O oitavo era o único afrodescendente do grupo, o Pantera Negra Bobby Seale, que conseguiu, sem defensor, livrar-se da acusação. Tom Hayden continuou sua carreira de ativista, condição em que foi deputado estadual pela Califórnia durante sucessivos mandatos. Casado com a atriz e também ativista Jane Fonda de 1973 a 1990, Hayden faleceu há quatro anos.

O filme teve um sabor especial para mim, pois o destino me aproximaria, quase cinquenta anos depois, de dois personagens importantes dessa história: o então jovem advogado Leonardo “Lanny” Weinglass, do corpo de defesa dos sete, e Ramsey Clark, Procurador-Geral dos Estados Unidos que Lindon Johnson herdara dos Kennedy. Ambos me ajudaram muito durante o trabalho de campo para o livro “Os últimos soldados da Guerra Fria”. Weinglass (à direita, na foto em Havana, ao lado do dirigente cubano Ricardo Alarcón) foi advogado pro bono dos cubanos presos nos EUA e faleceu há alguns anos. Ainda ativo aos 92 anos, Ramsey Clark (com quem apareço na outra foto) era presença constante nos atos realizados em Washington pela libertação dos cubanos. Imagino que ele e Bobby Seale, hoje com 83 anos, sejam os únicos sobreviventes dos envolvidos no caso dos Sete de Chicago.

Os 7 de Chicago, destacando as injustiças

Por Barbara Demerov 

Aaron Sorkin, premiado roteirista que já se arriscou no posto de diretor (estreando com A Grande Jogada), novamente trabalha dobrado em Os 7 de Chicago. Sorkin escreve e dirige este drama ambientado no ano de 1969, que acompanha todo o julgamento do grupo formado por Abbie Hoffman, Jerry Rubin, David Dellinger, Tom Hayden, Rennie Davis, John Froines e Lee Weiner. Eles foram julgados e condenados por terem organizado protestos durante a Convenção do Partido Democrata em 1968; o evento se iniciou de forma pacífica, mas, com o choque da polícia, acabou sendo marcado por violência e revolta.Estas duas palavras permeiam toda a narrativa -- conduzida com uma boa parcela do didatismo já esperado dentro da obra de Sorkin. As cenas iniciais, um tanto apressadas em apresentar todos os personagens, ditam uma falsa impressão de que poderá haver o mesmo dinamismo visto no filme estrelado por Jessica Chastain em 2018. Contudo, isso não acontece, sendo apenas um vislumbre introdutório de que o espectador teria de se concentrar a todo o momento para captar as informações baseadas em fatos históricos.

Assim que o filme se desloca para dentro do tribunal, o ritmo se aquieta e, entre algumas idas e vindas no tempo, o cenário principal é aquele que privilegia, de forma equilibrada, as injustiças praticamente ininterruptas do juiz Julius (Frank Langella) e a força de seus atores principais. Em especial, Sacha Baron-Cohen como Abbie e Eddie Redmayne como Tom, cujos personagens até ingressam em discussões sobre as diferenças de visão dentro da própria causa, mas acabam acatando à mensagem central que o roteiro nunca deixa escapar. 

Drama impacta pela temática e possui boas atuações - especialmente de Sacha Baron Cohen

O fato de os personagens dentro do grupo não ganharem tanto tempo em tela fora os momentos em que estão reunidos no julgamento tira um pouco do aprofundamento necessário, individualmente falando. Fora Cohen (o ator de maior destaque) e Redmayne, os demais são apresentados apenas com o que é decorrente do protesto, e não necessariamente de como eles chegaram até ali. São figuras reais, todas elas, e suas missões sociais estão claras; mas, ainda assim, o grupo está limitado à precisão temporal contida no roteiro.

Mas não é como se a mensagem de Os 7 de Chicago não tenha força suficiente. A temática do filme possui uma potência tão atual que assusta -- e Sorkin sabe disso. Seu roteiro visa total atenção aos detalhes no julgamento, que possui desdobramentos tão racistas quanto dissonantes dentro da própria Constituição. O espectador sabe que os julgados não causaram o tumulto com a polícia -- com a prova oral feita por Ramsey Clark, em breve participação de Michael Keaton -- e, mais apavorante ainda, que Bobby Seale (co-fundador do Partido dos Panteras Negras) possui zero relação com os sete homens. Ainda assim, o personagem interpretado Yahya Abdul-Mateen II se mantém presente como réu por praticamente metade da narrativa.

Apesar de ainda trazer a sensação de que Aaron Sorkin desempenha melhor seu papel enquanto roteirista, Os 7 de Chicago expõe seu domínio como diretor por conta de seu elenco. Especialmente quando observamos o trabalho de Mark Rylance e de Joseph Gordon-Levitt como os advogados do caso, é possível ver que, apesar de quebras contrastantes de ritmo, o filme funciona porque aproveita o ambiente intimidador do tribunal para gerar atrito e comoção em medidas iguais. Mantendo-se apenas naquele local e explorando as mazelas do governo através de civis, o diretor encontra seu tom e a representação de questões lamentavelmente atemporais.

25/10/2020

The Little Foxes (Pérfida), 1941, William Wyler

Adaptação de uma peça de teatro de Lillian Hellman, que também escreveu o roteiro, “Pérfida” é um magnífico filme realizado pelo grande cineasta William Wyler na época de ouro do cinema hollywoodiano. O filme marca a terceira e última colaboração entre o cineasta e a grande atriz Bette Davis, maior destaque no que tange ao quesito atuação. Com roteiro e diálogos inteligentes, à medida que o filme avança, o espectador se sente cada vez mais fascinado por ele.

No início do século XX, Regina Giddens oferece um jantar para homenagear William Marshall, um rico industrial de Chicago que está pensando em construir um moinho de algodão em sua pequena cidade. Reunidos na mesa, além dela e do convidado, encontram-se sua doce e jovem filha Alexandra, seus gananciosos irmãos Ben e Oscar, bem como a esposa e o filho de Oscar, Birdie e Leo. Quando a bondosa Birdie começa a tagarelar, Oscar cruelmente a acusa de procurar viver um passado glorioso da família dela, marcado por uma grande plantação e uma enorme fortuna.

Depois de uma noite ouvindo as intenções de Ben e Oscar, William concorda em entrar no negócio com eles, convida Regina a visitá-lo em Chicago e se despede. Quando ela, de repente, declara que planeja se mudar para Chicago com Alexandra, seus irmãos, sem a menor cerimônia, a lembram que, primeiro ela precisa convencer seu marido ausente, Horace, dono do Banco Planters Trust Co., a investir seu dinheiro no moinho de algodão.

Ciente de que os irmãos dela precisam de Horace para concluir o negócio, a voraz Regina insiste em uma fatia maior da empresa. Maliciosamente, Oscar retruca que o marido dela, doente, não deve estar pensando em abandonar o seu refúgio num quarto de hospital em Baltimore. Ben oferece, então, à irmã, uma quota de 40 por cento, a ser retirada da parte devida a Oscar. Este, relutantemente, concorda com a ideia desde que seu indolente filho, Leo, se case com Alexandra como parte do negócio... (75anosdecinema)

Bette Davis

Lillian Hellman (tradução livre) 

Durante a década de 1930, estava na moda fazer parte do movimento político radical em Hollywood. Lillian Hellman dedicou-se à causa junto com outros escritores e atores em seu zelo pela reforma. Sua independência a diferenciava de todas, menos algumas mulheres do dia, e deu a ela uma vantagem que quebrou as regras. Nascida em Nova Orleans em 1905, mas criada em Nova York após os cinco anos de idade, ela estudou na Columbia. Casou-se com Arthur Kober em 1925, fez alguns trabalhos na publicação e escreveu para o Herald Tribune. Quando seu marido, também escritor, conseguiu um emprego na Paramount, eles se mudaram para a Califórnia. Foi lá que ela conheceu Dashiell Hammett e, posteriormente, divorciou-se de Kober. O relacionamento deles durou, de uma forma ou de outra, por 30 anos. Seu primeiro trabalho importante foi a peça "A Hora das Crianças", que foi baseada em um verdadeiro incidente na Escócia. Esta foi uma peça incrivelmente bem sucedida, e deu a Lillian uma posição definitiva na comunidade literária. Seu próximo empreendimento, uma peça chamada "Days To Come", foi um fracasso total, então ela foi para a Europa. Lá, ela participou da Guerra Civil Espanhola e viajou com Ernest Hemingway.

Quando voltou aos Estados Unidos, ela escreveu "As Pequenas Raposas", que estreou em 1939 e foi um sucesso financeiro para ela. Ela também seguiu Dorothy Parker e outros escritores altamente estimados para Hollywood, onde ela foi bem compensada por seus esforços de roteiro. Embora possa ter sido divertido e ousado fazer parte de um grupo político radical nos anos 30, com os anos 40 veio o Comitê de Atividades Não-Americanas. Ela foi forçada a testemunhar em audiências do governo, e havia a ameaça de listas negras e problemas fiscais. Ela permaneceu uma força visível e tornou-se quase um ícone em seus últimos anos. Apesar de uma variedade de problemas de saúde, incluindo ser praticamente cega, ela viajou, deu palestras e promoveu suas crenças políticas. Ela tinha 79 anos quando morreu em 1984, e ainda assim ainda está muito conosco. Já se passaram mais de 60 anos desde que estreou originalmente, mas "The Little Foxes", juntamente com outras obras, ainda está sendo produzido em todos os níveis do teatro. Que escritor poderia pedir mais alguma coisa? 

Posicionou-se publicamente como a maior libertária civil e defensora da liberdade de expressão, mas quando atacada na mídia impressa ou em massa ela revidaria, levando alguns de seus oponentes a acusá-la de ter um duplo padrão. Joan Mellen, em "Duas Vidas Inventadas: Hellman e Hammett", conta como o livro de memórias de Hellman de 1976 "Scoundrel Time", em que ela excorou os liberais anticomunistas por direcionar suas energias contra comunistas em vez de contra fascistas e capitalistas, exasperando aqueles que sabiam a verdade quando viam o livro como cheio de falsidades e evasões, como também fizeram com seu livro de memórias anterior, "Pentimento". 

De acordo com Mellen, Hellman pressionou sua editora, Little Brown, a cancelar seu contrato com Diana Trilling, que havia escrito uma coleção de ensaios defendendo a si mesma e seu marido Lionel Trilling contra as acusações de Hellman. Hellman havia exigido que o livro de Trilling fosse censurado, e quando ela recusou, Little Brown cancelou o contrato de Trilling (o livro mais tarde foi publicado por Harcourt). Mellen afirma que a credibilidade entre "pessoas não partidárias e justas" foi destruída por seu ataque legal contra Mary McCarthy, que havia denunciado Hellman como um mentiroso. McCarthy declarou publicamente: "Acho que cada palavra que ela escreve é falsa, incluindo 'e' e 'mas'" no The Dick Cavett Show (1968). Uma Hellman enfurecida processou McCarthy e a Corporação por difamação, mas o processo saiu pela culatra. McCarthy produziu evidências das inverdades de Hellman, incluindo o whopper de que ela não sabia nada sobre os "julgamentos de show" de Moscou em que o líder soviético Joseph Stalin tinha expurgado o Partido Comunista Soviético da velha guarda bolcheviques, que foram então liquidados. 

Hellman havia assinado petições aplaudindo o veredicto de culpado e encorajando os esquerdistas a não cooperar com o comitê de John Dewey que buscava estabelecer a verdade por trás dos "julgamentos de show" de Stalin. Ela também se opôs à entrada de Leon Trotsky, inimigo de Stalin, nos EUA como refugiado político. 

A evidência mais condenável que McCarthy apareceu revelou que o capítulo de seu livro de memórias "Pentimento", no qual ela alegou ter bravamente contrabandeado dinheiro para uma ativista antifascista na Alemanha nazista, não só era uma mentira, mas foi um roubo total: ela havia roubado outra história de mulheres (o capítulo havia dado base para o filme de Fred Zinnemann, Júlia (1977), no qual, como Elia Kazan apontou , Hellman - uma mulher notoriamente caseira - teve a satisfação de ser interpretada pela bela Jane Fonda). Hellman havia fabricado este capítulo de sua vida se apropriando da história de Muriel Gardner (que mais tarde escreveu seu próprio relato em "Code Name Mary"). 

Wolf Schwabacher, que era advogado de ambas as mulheres, contou a história de Hellman Gardner. Hellman foi informado pelo advogado que cuidava de seu caso que ela teria que produzir provas da verdadeira Julia para que o caso prosseguisse (depois que "Pentimento" foi publicado, Gardner notou a semelhança entre sua história e o capítulo "Julia" e enviou uma carta para Hellman. Notando que eles tinham o mesmo advogado, ela perguntou se eles tinham amigos em comum.

Hellman nunca respondeu à sua carta). Presa por sua própria invenção, Hellman até pensou em pedir a Gardner para testemunhar que ela não era Julia. A reputação de Hellman foi ainda mais manchada quando Martha Gellhorn, ex-mulher de Ernest Hemingway que havia sido repórter durante a Guerra Civil Espanhola, também acusou Hellman de ser um mentirosa e fantasiosa. Hellman começou a fabricar novas mentiras para justificar o velho, e muitos observadores simpáticos sentiram que a mulher - agora em seus anos 80 - não conseguia mais lembrar o que era real e o que não era. O caso de difamação contra McCarthy foi encerrado após a morte de Hellman.

Sua companheira de longa data Dashiell Hammett era um membro ativo do Partido Comunista dos EUA, e é por isso que ela originalmente ficou sob o escrutínio da comunidade de inteligência dos EUA em 1938. O FBI continuou a realizar vigilância contra ela durante os anos de guerra, mas intensificou seu alvo após seu apoio ao candidato presidencial liberal de 1948, Henry Wallace, e ao Partido Progressista. Um relatório de 1948 do Quartel-General, Segundo Grupo de Segurança do Exército (que realizou coleta secreta de informações no nordeste dos EUA), a acusou-a de ser uma "aderente comunista". 

O diretor do FBI J. Edgar Hoover exigiu mais informações sobre ela, e o FBI começou um relógio em seu apartamento em Manhattan (NY) e em sua casa em Pleasantville, no condado de Westchester, Nova York. Hellmann mantinha um quarto para Hammett em ambas as casas, e outros famosos esquerdistas e progressistas políticos, como Norman Mailer e Arthur Miller, frequentemente a visitavam em ambos os lugares. Ela ainda estava sob vigilância do governo no final de 1970 por suas atividades contra a Guerra do Vietnã.

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Lillian Hellman (Nova Orleans, 20 de junho de 1905 — Tisbury, Massachusetts, 30 de junho de 1984)

Minha própria afeição pela raça negra talvez tenha botado poucos dias após meu nascimento, ao me colocarem nos braços de minha ama-de-leite, Sofrônia, mulher extraordinária que permaneceu conosco durante muitos anos. Foi ele quem me ensinou a amar os negros pobres e, quando teve certeza dos meus sentimentos, tornou-se severa e disse que não bastava chorar pelos negros, pos "que tal a miséria dos brancos pobres?" Era uma mulher ranziza que me deixou a raiva por herança, uma dádiva incômoda, perigosa e frequentemente útil. Lillian Hellman (1905 - 1984)

Do livro "Scoundrel time (A caça às bruxas)", p. 28, Francisco Alves Editora, 1976

26/10/2020

Storm Center (No despertar da tormenta), (1956), Daniel Taradash 

Storm Center - um ataque contra o anticomunismo

Um filme americano que se destacou claramente contra o McCarthyism foi o Storm Center (1956), que se concentrou em uma pequena cidade na América onde uma bibliotecária Alicia Hull, interpretada por Bette Davis, foi demitida por ter um livro chamado "O Sonho Comunista" nas prateleiras da biblioteca. O conselho local queria que o livro fosse removido e que futuras decisões sobre material questionável fossem apresentadas a eles. Ela disse ao conselho:

Havia um livro em nossa biblioteca por muitos anos. Ainda está lá. Isso me deixava enjoado toda vez que eu verificava, Mein Kampf. Talvez corremos o risco de espalhar o hitlerismo, mas não funcionou assim. As pessoas lêem. Isso os deixou indignados. Talvez tenha ajudado a derrotar Hitler? Você não vê mantendo-o na biblioteca nós atacamos o sonho comunista? Dizemos aos comunistas: "Não temos medo de vocês." Não temos medo do que você tem a dizer. Diga-me, eles guardariam um livro em uma biblioteca russa louvando a democracia?

O conselho exigiu que o livro fosse removido e ela se recusou a retirar um livro porque "tem ideias que não gostamos". Um conselheiro politicamente ambicioso então disse a ela que Hull tinha sido ligado a várias organizações da frente comunista, como a "Mobilização da Paz Americana" e o "Comitê da Voz da Liberdade" durante a guerra. Hull negou que ela era comunista e ela havia renunciado a formar as organizações quando descobriu que eram fachadas.

O conselho a demitiu, bem como disse à imprensa que ela tinha ex-filiações comunistas. A comunidade começou a encolher dela, assim como a comunidade de Hollywood se afastou daqueles que falavam para o Hollywood 10 e seus apoiadores. O vereador que vazou a informação se preparou para usá-la como plataforma para novas batalhas políticas pela frente. O vereador era uma representação daqueles políticos que usavam suas investigações para promover suas carreiras políticas. Hull foi uma das vítimas cujas simpatias liberais estavam agora fora de sintonia com a sabedoria política convencional.

O filme também retratava a família tradicional americana em uma luz menos que atraente. Um homem era anti-intelectual hediondo, ele se ressentia até mesmo do gosto de sua esposa pela música e pelo gosto de seu filho pela leitura. Em sua defesa do garotinho que gostava de ler livros, o filme pode ter reagido à representação da família americana em Meu Filho John. Provocado pelo ódio de seu pai por "pinkos", o filho no Centro da Tempestade incendiou a biblioteca. A mensagem do filme era que acabar com um conjunto de ideias – até mesmo ideias repulsivas – era um pequeno passo para o fascismo queimando livros. O filme foi uma declaração extraordinariamente ousada para o seu tempo.

23/10/2020

The westerner (O galante aventureiro), 1940, Wllian Wyler

Crítica | O Galante Aventureiro (1940) 

Por Luiz Santiago 

O lendário juiz Roy Bean, ‘a única lei a Oeste de Pecos‘é o personagem principal de O Galante Aventureiro, condição que já no início dos preparos do filme assustou Gary Cooper, que via aí dois impasses. Primeiro, o roteiro deixava claro a grande importância de Roy Bean e o lugar menor que Cole Harden, personagem que o ator deveria interpretar (o “galante aventureiro” do título brasileiro), teria. O segundo é que Bean seria interpretado por Walter Brennan, ator que estava em alta na época, havendo recebido dois Oscars, um por Meu Filho é Meu Rival (1937) e outro por Romance do Sul (1938), e que ainda receberia outro, por seu papel em O Galante Aventureiro. Sem querer competir com o prestígio pessoal e a importância do personagem de Brennan, Cooper rejeitou seu papel. Duas vezes.

Acontece que a grande insistência do produtor Samuel Goldwyn e algumas profundas mudanças no roteiro – todas executadas no sentido de dar maior importância ao personagem de Cooper – acabaram por convencer o ator, que embarcou nessa aventura ambientada no Texas e que coloca frente a frente os agricultores e os vaqueiros em uma ferrenha luta por terra e por justiça, uma interessante visão de uma ranch story.

O franco-alemão William Wyler já tinha um importante, sólido e reconhecido trabalho no cinema quando dirigiu O Galante, mas o western não era o seu gênero cativo e ele também não tinha intenção em trabalhar com a ação acima de tudo, elemento característico do gênero nesse início de reformulação interna em sua 2ª idade do ouro. O resultado desse encontro de estilo dramático com a ação típica dos westerns (ao menos nesse momento de sua história) é bem mais interessante do que aquele apresentado pelo alemão Fritz Lang em A Volta de Frank James, mas ainda assim parece estranho ao público, especialmente porque o roteiro traz uma estrutura episódica e o diretor, talvez por querer convidar à reflexão em detrimento da ação quase pura (um contraste proposital com o marcante No Tempo das Diligências, feito no ano anterior?), tenha filmado justamente esse modelo.

O primeiro bloco do filme é marcado pela apresentação quase jocosa dos personagens – a comédia se destaca, a despeito do início impactante – e o segundo bloco é marcado pelo drama dos colonos e a discussão sobre justiça, nesse ponto, muito mais séria do que aquela sugerida no enforcamento inicial. O elenco se destaca em alto estilo e Gary Cooper faz uma inesquecível dupla com Walter Brennan, principalmente quando atentamos para a obsessão do ‘juiz’ e dos homens da cidade pela persona de Lily Langtry. Todavia, o contraste entre os dois pontos é tal que há um desconcerto do público e, mesmo que possamos assumir que ambas as partes são bem dirigidas e se fecham satisfatoriamente, essa dualidade dramática não é totalmente benéfica para a obra.

O foco episódio, porém, tem seu lado positivo. Se isolarmos a sufocante sequência do incêndio no rancho ou a ótima dinâmica que Wyler usa para filmar o embate quase amigável entre Cole e Bean no teatro, onde o fetiche feminino do ‘juiz’ iria se apresentar, teremos aí momentos não só de técnica exemplar (principalmente na cena do incêndio), como também de boa exploração do drama no contexto do filme e na vida do personagem em questão. O encontro entre Roy Bean e Lily Langtry é, por si só, emotivo e lamentável, uma forma interessantíssima de o diretor colocar numa pequena sequência toda a carga moral e psicológica construída pouco a pouco no decorrer da fita.

O Galante Aventureiro transita entre o charme xavequeiro de Gary Cooper, cuja personagem leva todos na lábia e o olhar dualista de homens simples, marcados pela guerra e com uma noção bastante primitiva de sociedade e justiça, mesmo para seu contexto histórico e concepção diegética. O agrupamento entre esses dois extremos gera um filme deveras interessante mas com uma cadência rítmica – falha do roteiro e da montagem – que acaba por diminuir o seu valor final.

27/20/2020

Watch on the Rhine (Hora de tormenta),1943, Herman Shumlin e Hal Mohr

Roteiro: Dashiell Hammett e Lillian Hellman

Em Horas de Tormenta, em 1940, após 17 anos na Europa, um engenheiro antifascista alemão chamado Kurt Muller com sua esposa americana, Sara e seus três filhos voltam para os EUA. Nos Estados Unidos, Kurt se envolvieu com a resistência clandestina contra o nazismo, mas acaba chamando a atenção do conde romeno Teck de Brancovis, que descobre seus segredos... (criticaretro)

28/20/2020

Sudden Fear (Precipícos d’alma), 1952, David Miller

Precipícos d’alma no iutubi  

Precipícios d’Alma (Sudden Fear, EUA, 1952). Direção: David Miller. Rot. Adaptado: Lenore J. Coffee & Robert Smith, a partir do romance de Edna Sherry. Fotografia: Charles Lang. Música: Elmer Bernstein. Montagem: Leon Barsha. Dir. de arte: Boris Leven. Cenografia: Edward G.Boyle. figurinos: Howard Greer & Sheila O’Brien. Com: Joan Crawford, Jack Palance, Gloria Grahame, Bruce Benneett, Virginia Huston, Mike Connors. 

A dramaturga Myra Hudson (Crawford) implica com o ator Lester Blaine (Palance), convencendo o produtor e o diretor a demiti-lo. No trem que a leva a San Francisco, Lester inesperadamente surge galante e afetuoso. Uma amizade nasce entre ambos, que logo se transforma em paixão por parte de Myra, que se casa com ele. Quando dita seu testamento, no entanto, Myra ao escutá-lo novamente, observa que o ditafone havia gravado uma conversa entre Lester e sua inescrupulosa amante Irene Neves (Grahame), planejando sua morte. A partir de então, a própria Myra decide tramar uma situação em que virará a ordem do jogo, matando Lester. Porém nem tudo sai como planejado. 

Ao contrário de vários filmes da primeira metade dos anos 1950 (Lágrimas Amargas, Crepúsculo dos Deuses, A Malvada, Nasce uma Estrela) não se trata aqui de se tirar exatamente partido do universo do teatro, e por correspondência, do próprio cinema, em sua trama. Ela poderia facilmente ocorrer com qualquer outro profissional. Pode-se, no máximo, apontar que se tira partido da noção de representação dentro da representação, em um jogo de espelhamentos que não vai muito além do que poderia em mãos um pouco mais talentosas (Mankiewicz, Wilder), no momento em que Myra se encontra consciente de todo o jogo armado por um Lester cujo rosto anguloso e propício ao cinismo de Palance soa como máscara ideal e também passa a interpretar. 

O exagero barroco do título brasileiro bem se adéqua a interpretação tipicamente over de Crawford enquanto a mancomunada dupla vivida por Palance-Greerson soa quase tão amoral em sua desfaçatez quanto a que será vivida em O Criado (1963), de Losey. Crawford, fortemente envolvida nessa produção da qual foi produtora executiva, também auxiliou anonimamente no roteiro. (magiadoreal)

29/10/2020

The River's Edge (Matar para viver), 1957, Allan Dwan 

Matar para viver no iutubi  

Baseado no livro "The Highest Mountain" do escritor Harold Jacob Smith, e adaptado para o cinema pelo próprio escritor em parceria com o roteirista James Leicester, “Matar para Viver” é um melodrama passado no velho oeste americano, numa região bem próxima à fronteira com o México.

Realizado pelo cineasta Allan Dwan, o filme mantém um bom ritmo ao longo de sua primeira metade, passando então a se mostrar cada vez mais lento. Por outro lado, a atmosfera dramática com toques de suspense segue até o final. A fotografia de Harold Lipstein é muito boa, conseguindo explorar bastante as paisagens desérticas e montanhosas.

No elenco, o trio principal, formado pelos atores Ray Milland, Anthony Quinn e Debra Paget, apresenta ótimas atuações. O final é de certa forma interessante na medida em que o vilão é punido com a morte ao ser atropelado por um caminhão e não pelas mãos do herói.

Ben Cameron luta para ganhar a vida em seu pequeno rancho, enquanto sua sexy esposa, Meg, tem dificuldades para se ajustar às condições da vida rural. Descontente, ela lhe pede para que volte à sua antiga profissão como um guia de caça, a fim de ganhar mais dinheiro. Quando ela ameaça deixá-lo, ele a lembra que a única razão pela qual lhe foi concedida liberdade condicional, foi o fato dele ter se casado com ela.

No meio da discussão, Nardo Denning, parceiro de Meg no crime, que escapou de uma sentença de prisão atraiçoando-a, bate à porta do rancho. Ben, desconhecendo a antiga parceria de Meg com o vilão, depois de recusar seu pedido para guiá-lo através da fronteira, numa viagem de caça, pede-lhe para que leve a esposa até a cidade e para fora de sua vida. Depois que os dois partem, o rancheiro encontra um retrato de Nardo entre os pertences de Meg. Na ida para a cidade, Meg pergunta a Nardo por que ele não foi ao seu encontro, como planejado, deixando-a para trás para ser presa. O criminoso se defende, alegando que ficara gravemente ferido em um acidente de carro enquanto dirigia para encontrá-la.

Depois de fazerem o check-in no hotel local, Nardo e Meg relembram suas vidas de crime, juntos, em San Francisco, e ele revela que sua maleta contém um milhão de dólares em dinheiro. Quando lhe pede para acompanhá-lo em sua fuga através da fronteira, Meg confidencia que o ama e não a Ben, mas que ainda sente remorso por deixá-lo, por ter sido o homem que a salvou da prisão, insistindo na necessidade de vê-lo pessoalmente. Por sua vez, amargando a rejeição de Meg, Ben vai à cidade para vender seu rancho e, uma vez lá, descobre que ela acabara de sair com um homem em um carro esportivo. No caminho de volta ao rancho, Nardo é parado por um policial de fronteira, que insiste em inspecionar o porta-malas de seu carro. Enquanto o oficial faz a inspeção, ele acelera o carro em marcha ré, atropelando-o... (75anosdecinema)

30/10/2020

The naked city (Cidade nua), 1948, Jules Dassin

Cidade nua no iutubi 

Investigação de um crime por um inspetor irlandês serve de pretexto para descobrir os bairros pobres e a cidade de Nova Iorque. “Para a realização, um carro dentro do qual se escondera uma câmera circulou durante várias semanas pela grande cidade. A câmera assim oculta era utilizada por Dassin na esperança de pegar ao vivo o homem da rua, no ambiente autêntico de uma rua agitada. Quando os passageiros descobriam a câmera, ele interrompia a tomada.” (Folheto do filme). Um dos êxitos de Dassin, que no entanto rejeitou o filme, remontado sem o seu consentimento. (Georges Sadoul, Dicionário de filmes, p. 91, LPM, 1993)