segunda-feira, 29 de junho de 2020

Covid nas aldeias brasileiras

NAS ALDEIAS, MEMÓRIAS QUE A COVID LEVA EMBORA

Estudo mostra que, entre indígenas, contaminação é 84% acima da média nacional; principais vítimas são idosos, guardiões da história de seus povos

FABIO PONTES, Piaui, 26/06/2020




Intervenção de Carvall sobre foto de Sérgio Vale/Governo do Acre/2015


Ainda era março quando os puyanawas passaram a corrente na porteira da estrada de terra batida que dá acesso às suas aldeias, no município de Mâncio Lima, extremo Oeste do Acre. O ato, no dia 25 de março, foi registrado em vídeo e espalhado nas redes sociais para que todos soubessem: a partir daquele momento estava proibida a entrada de não moradores no território puyanawa. Foi a medida encontrada pelas lideranças para proteger a comunidade contra a pandemia de Covid-19,  àquela altura muito longe da realidade dos povos indígenas da Amazônia. Muitos, talvez, nem acreditassem que o vírus surgido do outro lado do mundo pudesse chegar a locais tão distantes e remotos quanto suas aldeias.

Três meses depois, o coronavírus não só chegou às terras indígenas do Brasil como representa séria ameaça à sobrevivência dessas populações, já bastante fragilizadas nos últimos anos – em especial após a eleição de Jair Bolsonaro – com discursos e práticas que colocam em risco a segurança de seus territórios. Os Puyanawa veem suas terras ameaçadas pelo projeto de extensão da rodovia BR-364 entre o Brasil e o Peru, defendida por políticos locais e cujo traçado corta a Terra Indígena Poyanawa. (O nome da terra é escrito com O por um erro de registro quando de sua criação, em 2001.)

Como mata principalmente idosos, a Covid-19 acaba levando consigo personagens históricos das aldeias, os mais velhos, que servem de memória para seus povos. Em culturas sem tradição escrita, são eles os guardiões da história. Mário Cordeiro de Lima, o Mário Puyanawa, de 77 anos, era um deles, patriarca de um povo que por muito pouco não foi extinto após o contato com o homem branco a partir do início do século passado, quando imensas áreas da Floresta Amazônica foram transformadas em seringais para a exploração do látex. Mário Puyanawa sobreviveu àqueles tempos de doenças trazidas pelos brancos e escravização dos índios para trabalhar nos seringais. Na velhice, não resistiu à Covid, depois de lutar contra a doença por quinze dias. Foi para a UTI e de lá recebeu alta para a enfermaria. O quadro se agravou, e ele voltou para o tratamento intensivo. Acabou morrendo em 20 de junho no Hospital do Juruá, em Cruzeiro do Sul.

Estudo feito pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) em parceria com a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) aponta que, entre as comunidades indígenas da Amazônia, a taxa de contaminação pelo coronavírus por 100 mil habitantes é 84% acima da média nacional; a mortalidade é 150%. A taxa de letalidade, calculada levando em conta o número de infectados pelo de óbitos, é de 6,8% entre os indígenas amazônidas; no Brasil ela é de 5%, e de 4,5% no Norte.

Os dados analisados são referentes aos casos registrados entre 19 de março e 14 de junho. Para os povos indígenas, outro problema é a contabilidade nos registros oficiais de testados positivos e de óbitos. Se entre a população em geral há uma elevada subnotificação, entre os indígenas ela é ainda maior. Os dados oficiais do governo brasileiro são registrados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), subordinada ao Ministério da Saúde, e consideram apenas casos detectados dentro das aldeias.  Desde 2004 o atendimento médico nas aldeias é de responsabilidade da Sesai, que administra os 34 distritos sanitários especiais indígenas, os Dseis, 25 deles na Amazônia Legal.

Indígenas que moram nas cidades ficam de fora das estatísticas de saúde da Sesai. Mas pelo menos 20% dos índios da Amazônia moram em centros urbanos, afirma o estudo do Ipam/Coiab com base nos dados do Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que àquela época apontava uma população indígena de 817 mil pessoas no país; destes, 315 mil moravam nas cidades.

Na Amazônia, o estudo do Ipam em parceria com a Coiab registrou, de 19 de março a 14 de junho, 3.662 indígenas infectados com Covid-19 e 249 mortes. Os dados da Sesai notificam 2.219 casos e 86 mortes. “Para uma avaliação do real nível de contaminação por Covid-19 entre os indígenas da Amazônia, nós utilizamos os dados disponibilizados pela Sesai e Coiab, excluindo-se a possibilidade de dupla contagem”, diz o estudo do Ipam.  “Para garantir que não haja dupla contagem em relação aos casos reportados pela Sesai, as informações divulgadas pela Coiab passam por uma checagem interna que compara os dados dos boletins emitidos pela Sesai com as informações repassadas pelas lideranças.”  Os dados da Coiab são levantados por lideranças em pontos focais espalhados por toda a região, que apuram as informações junto às aldeias e hospitais locais.

“Este estudo mostra o impacto na Amazônia e também serve de instrumento para direcionar medidas eficientes para o indígena, independentemente se está na cidade ou no território. Indígena é indígena em qualquer lugar. Esta subnotificação atrapalha nossas ações. O governo usa maquiagem, não fala a realidade pela qual o Brasil está passando”, diz Nara Baré, liderança de Manaus e coordenadora-geral da Coiab.

Durante a epidemia de Covid-19, o Amazonas chamou a atenção do Brasil pelo colapso de seu sistema de saúde superlotado com pessoas infectadas. Entre os povos indígenas, o mais atingido foi o Kokama, na região do Alto Solimões, na tríplice fronteira com o Peru e a Colômbia. Como a maior parte dos infectados e mortos morava em Tabatinga, os casos não eram registrados pelo Dsei Alto Solimões. “Apesar de a gente ter tido no Amazonas, aqui em Manaus, a primeira ala exclusiva para indígenas num hospital, isso se deu apenas depois de termos perdido muitas vidas e após a reivindicação de três mulheres na visita do anterior ministro da Saúde [Nelson Teich]. Não era preciso perder vidas para ter direito ao que é nosso”, afirmou Nara Baré à piauí. Levantamento feito pela Transparência Brasil mostrou que a Fundação Nacional do Índio (Funai) aplicou menos da metade (39%) dos 13 milhões de reais que deveriam ser usados nas ações de proteção aos povos indígenas contra os efeitos da pandemia do novo coronavírus.

Ninawa Huni Kuin nasceu na aldeia Mãe Haduá Biri, na Terra Indígena Katukina/Kaxinawá, no município de Feijó, no Acre. Hoje mora em Rio Branco, a capital, e está se recuperando da Covid-19. Foi infectado quando se recuperava de uma cirurgia. “Não tive boa experiência com a Covid-19. Debilitou bastante. São reações bem ruins no corpo, tem momento em que a gente pensa em desesperar. Graças a Deus em primeiro lugar, e depois às nossas medicinas, tomei muito chá caseiro, banho com medicina [natural] e também fiz o tratamento ambulatorial, e melhorei”, conta Ninawa.

Os Huni Kuin – também chamados de Kaxinawá – são 60% dos cerca de 23 mil indígenas do Acre. Muitos trocaram as aldeias pelas cidades para terminar os estudos ou trabalhar. Como foi infectado na capital, o teste positivo de Ninawa não foi para os registros da Sesai, mas da Secretaria Estadual de Saúde, que não faz distinção entre quem é ou não indígena em seu boletim epidemiológico. E assim ocorre em todos os nove estados da Amazônia Legal.  

A Coiab criou uma espécie de força-tarefa composta por lideranças e profissionais de saúde indígena para fazer seu próprio levantamento. Em todo o país, os dados da Sesai apontavam (até o dia 25 de junho) 5.093 casos confirmados de Covid-19 entre indígenas aldeados, com 129 mortes. O balanço da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) tem outro resultado: 7.208 infectados e 332 óbitos, com 110 diferentes etnias afetadas.

Amâncio Ikô Munduruku, de 59 anos, era professor na aldeia Praia do Mangue, na reserva indígena de mesmo nome, no município de Itaituba, Sudoeste do Pará.  A aldeia está localizada bem próxima à sede urbana do município, a dez minutos de viagem de barco pelo Rio Tapajós ou pela estrada.  Até então vista como vantagem, por causa do acesso aos serviços da cidade, a vizinhança com o centro urbano agora se revela perigosa por causa do coronavírus. Na região Norte, o Pará é o estado com o maior número de casos e mortes pela Covid-19.

Após sentir os primeiros sintomas da doença, Amâncio procurou a unidade de saúde referência em Itaituba. O teste deu positivo, e ele iniciou o tratamento. Estava no grupo de risco por ter pneumonia. À medida que os dias passavam, seu quadro clínico se agravava, necessitando de tratamento intensivo. Assim como a maioria das cidades do interior da Amazônia, Itaituba não conta com hospital de média e alta complexidade. A solução foi transferir o professor para a Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) em um hospital de Belém, onde ele acabou morrendo. Segundo Karo Munduruku, liderança da aldeia Praia do Mangue, doze pessoas de seu povo já morreram vítimas da Covid-19, a maioria idosos. Entre eles, Arcelino Dace Munduruku, nascido em 1942 e um dos personagens mais importantes de seu povo, uma espécie de memória viva do povo Munduruku. “A gente nunca imaginou que ia passar por isso. Quando alguns estudiosos, algumas lideranças nossas, diziam que com isso poderia ocorrer, até um genocídio em vários povos indígenas, eu nunca pensei que pudesse acontecer, e acontecer justamente na aldeia onde a gente mora. Algo que começou lá do outro lado do mundo chegou à nossa aldeia. O nosso povo está assustado”, diz Karo Munduruku. De acordo com ele, até dentro das aldeias as pessoas fazem uso de máscaras e seguem as medidas de distanciamento social. A principal preocupação é proteger os mais idosos.

Os Munduruku também são alvo de ações que favorecem o contágio do coronavírus nas aldeias: a invasão das terras indígenas por garimpeiros, madeireiros e grileiros de terras públicas. De acordo com o estudo do Ipam/Coiab, a invasão das terras indígenas é um dos principais vetores externos para a chegada do coronavírus nestas comunidades. O relatório afirma que as duas terras indígenas mais ameaçadas pelo garimpo são a Yanomami e a Raposa Serra do Sol, que abrangem áreas do norte do Amazonas e Roraima. No levantamento da Coiab, os Dseis responsáveis pelos dois territórios (Yanomami e Leste de Roraima) estão entre os que apresentam a maior quantidade de infectados e mortes. 

“Os achados em relação à exposição das populações indígenas a veículos de contaminação externa por meio dos indicadores de desmatamento, presença de garimpo e grilagem, além de registros de Cadastro Ambiental Rural (CAR) dentro de TIs, indicam que todos os DSEIs amazônicos sofrem algum grau de ameaça”, conclui a pesquisa. Entre os dez Dseis com mais casos da Covid-19 está o do Alto Rio Purus, responsável pela saúde indígena em aldeias do Leste do Acre, uma parte do Sul do Amazonas e o Noroeste de Rondônia. Entre os povos atendidos estão os Huni Kuin, os Madijá (Kulina) e os Jaminawa, todos moradores da Terra Indígena Alto Rio Purus, localizada já na fronteira com o Peru. São mais de 4 mil pessoas espalhadas por 46 aldeias.

Destas três etnias, a mais vulnerável é a Madijá, e um dos fatores de risco para essa população é a baixa imunidade causada por uma dieta alimentar pobre em nutrientes. Entre os madijás foram registradas duas mortes de bebês, uma por Covid e outra desnutrição agravada por eventual contaminação pelo coronavírus. A primeira criança morreu em um hospital de Rio Branco. A mãe foi colocada em quarentena na Casa de Saúde Indígena (Casai) antes de regressar para a aldeia. Os Madijá mantêm pouco contato com os não indígenas, o que reduz a capacidade de seus organismos produzirem anticorpos contra a “civilização”. Como a maior parte deles também não fala português, tem mais dificuldades para se informar sobre a pandemia.

O Acre registra mais de 12 mil infectados pelo coronavírus e 335 mortes. O estado tem uma população indígena estimada em 23 mil pessoas. São quinze diferentes povos, além dos isolados e não identificados e um de recente contato. Dois distritos sanitários são responsáveis pela assistência médica: o Dsei Alto Rio Purus e o Dsei Alto Rio Juruá, que concentra o maior número de indígenas, incluindo os de recente contato.    

Em isolamento voluntário desde março, os Ashaninka são um dos poucos povos do Acre que ainda não têm registro de Covid-19. O distanciamento vem sendo seguido à risca; a ordem das lideranças é para ninguém sair e ninguém entrar. Como eles contam com uma produção de alimentos em sistema agroflorestal, além de fartura em caça e pesca, não há a necessidade de ir até a cidade comprar alimentos. Os Ashaninka moram na Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, em Marechal Thaumaturgo, município isolado do Acre de 18.867 habitantes, acessível só por via aérea ou fluvial. Esse isolamento geográfico não impediu a cidade –  administrada por um prefeito de origem Ashaninka – de ver o coronavírus chegar através dos portos. Hoje a cidade tem 156 casos confirmados da doença.

Isso levou os Ashaninka a reforçarem o autoisolamento nas aldeias do Rio Amônia.  “Fechamos nosso território para não circular gente, nem saindo nem entrando, para que essa doença não chegue à nossa comunidade. Esse é o melhor caminho, é o isolamento. Estamos tentando levar uma vida normal e trabalhando para proteger o território”, afirmou Francisco Piyãko, liderança dos Ashaninka. “A gente poderia estar enfrentando só o coronavírus, e que todos estivessem unidos em torno dessa questão, mas a gente precisa lidar com as outras ameaças”, diz ele.

Também em isolamento há mais de cem dias, os Yawanawa construíram uma cerca no Rio Gregório para impedir o vai e vém de embarcações. A medida foi adotada pelas lideranças das duas últimas aldeias subindo o rio: a Sagrada e a Nova Esperança. Aquelas que não adotaram esse lockdown da floresta já tiveram casos positivos da Covid-19. A Terra Indígena do Rio Gregório fica localizada no município de Tarauacá. “A gente tem tomado todos os cuidados, seguido todas as orientações. Conversado com nossos fornecedores [de alimentos] para entregar tudo higienizado. Vai só uma pessoa buscar e quando chega higieniza de novo. Estou aqui há mais de cem dias sem sair da aldeia”, disse o cacique da aldeia Sagrada Biraci Yawanawa, o Bira, em entrevista à piauí por mensagem de voz do WhatsApp das cabeceiras do Rio Gregório.

Procurada, a Secretaria Especial de Saúde Indígena informou que não há subnotificação de contaminados e de mortes de indígenas por Covid-19 no Brasil, pelo fato de os casos ocorridos entre aqueles que moram nas cidades serem registrados pelas Secretarias Municipais e Estaduais de Saúde. Segundo a Sesai, mesmo antes de a Organização Mundial da Saúde declarar situação de pandemia, seus técnicos elaboraram documentos para orientar povos indígenas, gestores e colaboradores sobre medidas de prevenção e de atendimento. O órgão do Ministério da Saúde informou que cada um dos 34 distritos sanitários tem seu plano de contingência, levando em consideração as “diferentes situações de enfrentamento da Covid-19, respeitando as características de cada povo e suas necessidades específicas”. “Uma das principais orientações das Equipes de Saúde Indígena é justamente para que os indígenas permaneçam em suas aldeias e não recebam visitas externas”, diz nota enviada à reportagem, que também destaca a compra de equipamentos de proteção individual para os profissionais dos Dseis.

A piauí também procurou a Funai para falar sobre quais medidas adota para garantir a proteção das terras indígenas, coibindo a invasão por garimpeiros e madeireiros. O órgão disse que reforçou as ações de monitoramento e vigilância territorial, “por meio de suas unidades descentralizadas, e em parceria junto a órgãos governamentais, ambientais e de segurança pública competentes”.  Com isso, completa, é possível articular operações de fiscalização e seguranças dos territórios tradicionais. “A Funai realiza operações em parceria com outros órgãos de segurança e fiscalização ambiental, como os Batalhões de Polícia Militar Ambiental, IBAMA e ICMBio, com a finalidade de identificar caçadores, pescadores e outros exploradores. Outra ação realizada é a fixação de placas indicativas do perímetro das Terras Indígenas em pontos estratégicos e necessários.” Outra medida foi suspender todas as autorizações para a entrada de não indígenas em terras indígenas. 

Quanto à aplicação de recursos para reduzir os impactos da Covid-19 sobre a população indígena, a Funai diz já investiu 22,7 milhões de reais em medidas de combate ao novo coronavírus entre as comunidades de todo o país.  Afirmou que trabalha pela permanência dos indígenas dentro das aldeias para evitar o contágio e que já distribuiu 44 mil cestas básicas e 30 mil kits de higiene, e mais 126 mil cestas ainda serão entregues.

FABIO PONTES (siga @fabiospontes no Twitter)
Jornalista acriano, cobre questões amazônicas. Colabora com vários veículos brasileiros.

Filmes a levar na mala

Ruy Castro , 20/06/2020

Se alguém perguntasse um dia ao pesquisador Saulo Pereira de Mello que filmes ele levaria para uma ilha deserta, a resposta seria: “Só um. ‘Limite’ (1931), de Mario Peixoto”. E mostraria sob a cama as 12 latas da única cópia do filme, que guardava com sua vida --- se o nitrato pegasse fogo, os dois iriam embora. Saulo foi levado em abril pela Covid, aos 87 anos, mas não sem realizar seu sonho de restaurar o filme, que, por causa dele, está hoje em DVD. Eu não levaria “Limite”, mas, graças aos DVDs, não me faltaria escolha. E sem repetir diretor.

Comigo iriam “O Gabinete do Dr. Caligari” (1919), de Robert Wiene. “A Última Gargalhada” (1924), de F.W. Murnau. “A Caixa de Pandora” (1929), de G.W. Pabst. “O Anjo Azul” (1930), de Josef Von Sternberg. “A Nós, a Liberdade” (1931), de René Clair. “A Grande Ilusão” (1937), de Jean Renoir. “O Demônio da Algéria” (1937), de Julien Duvivier. “Olimpíadas” (1938), de Leni Riefenstahl.

O Boulevard do Crime” (1945), de Marcel Carné. “Roma, Cidade Aberta” (1945), de Roberto Rossellini. “A Bela e a Fera” (1947), de Jean Cocteau. “O Terceiro Homem” (1949), de Carol Reed. “Os Esquecidos” (1950), de Buñuel. “Rashomon” (1950), de Kurosawa. “Milagre em Milão” (1950), de Vittorio de Sica. "Belíssima" (1951), de Luchino Visconti. “Mônica e o Desejo” (1952), de Bergman. “Madame de...” (1953), de Max Ophüls. “O Salário do Medo” (1953), de H-G. Clouzot. “Grisbi, Ouro Maldito” (1953), de Jacques Becker. “Rififi” (1955), de Jules Dassin. “E Deus Criou a Mulher” (1956), de Roger Vadim. “Meu Tio” (1958), de Jacques Tati.

A Tortura do Medo” (1960), de Michael Powell. “Os 1.000 Olhos do Dr. Mabuse” (1960), de Fritz Lang. “A Doce Vida” (1960), de Fellini. “Acossado” (1959), de Godard. “Divórcio à Italiana” (1962), de Pietro Germi. “Aquele Que Sabe Viver” (1962), de Dino Risi. “Os Guarda-Chuvas do Amor” (1963), de Jacques Démy.

Epa, fim do espaço. E faltou Hollywood!

Hollywood na ilha 

Ruy Castro  27/06/2020

Há dias, sugeri alguns filmes a se levar para uma ilha deserta e me esqueci dos americanos! Imagine ficar sem “A Marca do Zorro” (1920), de Fred Niblo. “O Homem-Mosca” (1923), de Harold Lloyd. “O Ladrão de Bagdá” (1924), de Raoul Walsh. “Sete Oportunidades” (1925), de Buster Keaton. “O Monstro do Circo” (1927), de Tod Browning.

Luzes da Cidade” (1931), de Charles Chaplin. “Inimigo Público” (1931), de William Wellman. “Uma Hora Contigo” (1932), de Ernst Lubitsch. “A Múmia” (1932), de Karl Freund. “Cavadoras de Ouro” (1933), de Mervin LeRoy. “King Kong” (1933), de Ernest B. Shoedsack e Meriam C. Cooper. “Primavera” (1937), de Robert Z. Leonard. “As Mulheres” (1939), de George Cukor. “A Mulher Faz o Homem” (1939), de Frank Capra.

Jejum de Amor” (1940), de Howard Hawks. “Contrastes Humanos” (1942), de Preston Sturges. “Entre a Loura e a Morena” (1943), de Busby Berkeley. “Laura” (1944), de Otto Preminger. “A Mundana” (1948), de Billy Wilder. “A Malvada” (1950), de Joseph L. Mankiewicz. “Scaramouche” (1952), de George Sidney. “Assim Estava Escrito” (1952), de Vincente Minnelli. “Os Brutos Também Amam” (1953), de George Stevens. “A Princesa e o Plebeu” (1953), de William Wyler. “Depois do Vendaval” (1953), de John Ford. “Ama-me ou Esquece-me” (1954), de Charles Vidor. “Conspiração de Silêncio” (1955), de John Sturges.

O Mensageiro da Morte” (1955), de Charles Laughton. “Planeta Proibido” (1956), de Fred M. Wilcox. “O Grande Golpe” (1956), de Stanley Kubrick. “A Marca da Maldade” (1958), de Orson Welles. “Meias de Seda” (1958), de Rouben Mamoulian. “Quero Viver!” (1958), de Robert Wise. “Clamor do Sexo” (1961), de Elia Kazan. “Sob o Domínio do Mal” (1962), de John Frankenheimer. “Os Pássaros” (1963), de Hitchcock. E uns mil mais.

E “Cidadão Kane”, “Casablanca”, “Cantando na Chuva”, “Rastros de Ódio”, “Um Corpo que Cai”?

Estes iriam no coração.









sábado, 27 de junho de 2020

O debate selvagem: ensino presencial ou EaD

A discussão contemporânea: ensino presencial versus ensino a distância.

O Prof. Dermeval Saviani esteve numa live promovida pela Adufes Ssind em 29/05/2020 e discorreu sobre ensino presencial e ensino a distância (no interval de 28 a 50 minutos). Na sua brilhante explanação citou "Victor de l'Aveyron", o menino selvagem, de Jean Itard.

Do ponto de vista pedagógico Saviani explica a passagem do selvagem afeito às coisas materiais para, com a educação, às coisas imateriais. Mais tarde ele associa a dictomia entre o ensino a distância (coisas materiais) e o ensino presencial (coisas imateriais).

Não li o trabalho de Jean Itard, mas revi o filme "L'enfant sauvage", 1970, de François Truffaut. Sinopse do filme: Cantão de São Sernin, França, 1798. Três caçadores acham uma criança, com 11 ou 12 anos, que nunca teve contato com a civilização. Ele é apelidado de Selvagem de Aveyron, pois se alimenta de grãos e raízes, não anda como um bípede nem fala, lê ou escreve. O professor Jean Itard se interessa pelo menino, que é levado a Paris para determinar seu grau de inteligência e ver como se comporta. O estudioso começa a educá-lo. Todos pensam que irá fracassar, mas com amor e paciência aos poucos obtém resultados.

Segundo Yuri Correa Truffaut se espelha em Victor (o menino selvagem).  "Um jovem rejeitado que se torna rebelde quando obrigado a seguir padrões pré-estabelecidos? É fácil substituir Victor por François e Itard por André Bazin – pensador que o adotou na carreira e literalmente em certo momento. Truffaut interpretando a figura paterna é ainda mais curioso, uma vez que nessa posição assume as expectativas que tinha com a própria paternidade. Sem dúvidas, nível bastante pessoal."

A abordagem didático pedagógica do professor Itard é comportamentalista e consegue alguns resultados. Mas também o que fazer? Em 1798 ainda não existiam Paulo Freire, Vygotsky e Piaget. Em tempo: ainda hoje, 2020, no Brasil, existem muitos docentes adeptos e adeptas do comportamentalismo ou behaviorismo nos Ensino Básico e Superior.

L'enfant sauvage tem aspectos comuns com o filme seminal O milagre de Anne Sullivan (The Miracle Worker), 1962, de Arthur Penn. A incansável tarefa de Anne Sullivan (Anne Bancroft), uma professora, ao tentar fazer com que Helen Keller (Patty Duke), uma garota surdo - cega, se adapte e entenda (pelo menos em parte) as coisas que a cercam. Para isto entra em confronto com os pais da menina, que sempre sentiram pena da filha e a mimaram, sem nunca terem lhe ensinado algo nem lhe tratado como qualquer criança.

Para Dermeval Saviani um vídeo, um livro ou um documentário complementam a aprendizagem, mas sozinhos não são suficientes ao processo educacional de formação.

A transposição de coisas materiais para coisas imateriais é realizada através de vínculos presenciais. E os vínculos não são apenas entre educador e educando, como diria Paulo Freire, são vínculos também entre estudantes.

O que seria de Victor e Helen Keller sem estes vínculos?

domingo, 21 de junho de 2020

O ensino remoto, a pandemia, a alienação e o produtivismo

Acertando o foco: com a pandemia Covid-19 o sistema de Ensino Básico e Superior do Brasil se viu no dilema "precisamos fazer alguma coisa" com o ensino. O que fazer com os e as estudantes?

O ensino básico já embarcou no remendo excludente. As Secretarias de Educação dos Estados estão na miscelânea de ensino remoto, tele aula, Ead e outras precaridades "pedagógicas" a serviço da péssima qualidade de ensino. Tudo sob o viés da privatização e obscurantismo. Só para saber, pergunte, hoje, para os alunos e alunas do Ensino Básico se estão gostando do que estão fazendo no ensino remoto, tele aula ou Ead?

"A maior parte dos secretários, especialmente os estaduais, nunca trabalharam em escolas públicas, nunca leram um clássico da Pedagogia. Os secretários municipais são razoavelmente melhores. A verdade é que governadores e prefeitos, salvo raras exceções, escolhem pessoas incompetentes para gerir a área. Evita o que eles acham que é um problema: gestores que querem pagar bons salários e dotar as escolas de condições pedagógicas para o processo de ensino-aprendizado. Competência pedagógica é um perigo para o projeto de descaso com a educação."(Daniel Cara)

Os bárbaros que estão a fim da invadir o Ensino Básico já embarcaram no semi privatizado Ensino Superior.  Entre 2008 e 2018, as matrículas de cursos de graduação a distância aumentaram 182,5%, enquanto na modalidade presencial o crescimento foi apenas de 25,9% nesse mesmo período. Metade dos cursos de licenciaturas no Brasil são na modalidade EaD. (Inep/MEC)

Feito este prólogo vamos ao foco.

O "precisamos fazer alguma coisa" que ouvi recentemente de alguns colegas da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) em tempos de pandemia (no Brasil 1.603.055 casos de contágio e 64.867 óbitos em 06/07/2020 - Johns Hopkins University (JHU)) tem o nó górdio no ensino remoto.
O que fazer? Qual a alternativa para o ensino neste tempo de pandemia?

Não pretendo desatar o nó górdio, mas lembrei de duas referências: a) sobre alienação em "Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844" de Karl Marx e b) o filme "Tempos modernos" do Charles Chaplin. Explico.

Sobre a alienação

Voltando no tempo. Em 1998 ocorreu uma greve nacional das Instituições de Ensino Superior (IFES). Foram 51 IFES e 104 dias de greve, de 31/03 a 13/07/1998. Na época não me lembro de docentes preocupados com o "precisamos fazer alguma coisa" com o ensino.
A pauta da greve: além de reajuste salarial (48,65%), a retirada do Programa de Incentivo à Docência GED (Gratificação de Estímulo à Docência) como adicionais de remuneração aos docentes.
A GED correspondia à contabilização produtivista de artigos, livros etc na carreira docente. Era a mercantilização no trabalho universitário. Fomos derrotados neste quesito. Mas devido à forte repercussão da greve, posteriormente a GED foi eliminada pelo MEC.

Conseguimos derrotar a GED na carreira docente, mas mercantilização do trabalho docente continuou. Estávamos no ambiente da universidade operacional.

Marilena Chauí identifica três momentos que levaram a essa transformação, culminando na universidade operacional, no Brasil. O primeiro deles, nos anos 1970, deu-se quando, a partir de mudanças curriculares, surge a chamada universidade funcional, voltada para a formação rápida de mão de obra qualificada para o mercado. Nos anos 1980, tem-se a universidade de resultados, pouco interessada em docência e voltada para pesquisas, adotando o modelo do mercado afim de determinar sua qualidade e quantidade. Em meados dos anos 1990, é quando surge, finalmente, a universidade operacional, voltada para si mesma como estrutura de gestão e de arbitragem de contratos. (Marilena Chaui)

E hoje continuamos assim. Uma universidade submissa à vontade de outrem (heteronomia), com a ausência de autonomia e voltada ao seu próprio umbigo sem saber onde seu umbigo se encontra. (Chaui)

E onde está a alienação?

Em 1992 quando eu participava da direção nacional do Andes Sindicato Nacional  um colega da direção (Silvio Allen) dizia que somos um sindicato diferente, pois nos preocupávamos com o resultado do nosso trabalho. É por isso que, ainda hoje, o sindicato, para além do salário, carreira e condições de trabalhos, pauta a universidade e mais justiça social com menos desigualdades.

Não é o que acontece com a universidade que se preocupa com seu próprio umbigo.
O Lattes é a contabilização do nada? Sim, mas em termos. É correto quando se diz respeito às contribuições realmente inéditas para ciência, arte e cultura. O Lattes contabiliza "produtos" que servirão para um ranking a ser considerado para financiamento de novos projetos, bolsas de pesquisa, viagens a congresso etc. É a lógica do financiamento vinculado à "avaliação".

O trabalho feito e contabilizado servirá para outrem definir a vida de quem o produziu. Assim o produto se descola do produtor. Há uma despossessão. O produto do trabalho representa um valor. E este valor corresponde a uma moeda de troca: a inclusão no famigerado ranking. Aí está a alienação.

"A alienação em relação ao produto do trabalho. Este é o estranhamento em não se reconhecer num produto que tem dentro de si a essência do trabalhador. É a pobreza gerada ao trabalhador enquanto, ao mesmo tempo, se gera a riqueza do capitalista. Quando o produto está feito, só resta ao trabalhador exigir um salário no fim do mês. Este tipo de alienação é aquela que o programador passa após terminar uma rotina para um dado sistema administrativo de uma empresa. Após modificar aquele software, realizar transformações para adaptá-lo ao cotidiano da empresa que o adquiriu, ele não pode reivindicar o produto do trabalho como algo dele. A modificação foi um serviço garantido pelo contrato entre empresa contratante e empresa contratada (e entre empregador e empregado)." (Vinicius Siqueira: O que é alienação em Marx?)

Sobre "Tempos modernos" de Chaplin

Automação e Taylorismo uma combinação explosiva. É parte do tema do belo filme de Chaplin. Porque me lembrei deste filme? Porque lembrei do Fordismo científico.

Em meu trabalho por três anos como Editora Geral da revista Psicologia em Estudo, foi comum o recebimento de mensagens de autores angustiados em saber sobre a tramitação de seus artigos, pois sua aprovação ou não punha em risco a conclusão de sua pós-graduação (mestrado ou doutorado). Professores pesquisadores de séria produção científica também escreviam, preocupados com isso devido às pressões impostas pelos programas de pós-graduação a que estavam vinculados, pois tinham que atestar uma boa quantidade de artigos produzidos em um determinado triênio, sob pena de serem deles sumariamente desvinculados, a despeito da solidez de suas pesquisas e da qualidade de suas aulas ou orientações - estas últimas, fundamentais para a formação de profissionais e pesquisadores compromissados eticamente com a ciência. (Silvana Calvo Tulesk)

Epílogo

O "precisamos fazer alguma coisa" é pertinente, mas não como alternativa binária ao ensino precarizado e aligeirado. Estudantes têm condições da telemática de conviver com esta alternativa? Docentes estão preparados para trabalhar nestas condições? Vamos repetir a experiência do que está ocorrendo no Ensino Básico? O fingir que ensina e o fingir que aprende?

Os professores e professoras estão em atividades nesta pandemia. Além dos afazeres domésticos estão realizando atividades possíveis na pesquisa, na extensão e nas atividades administrativas. E em relevantes trabalhos assistenciais circunscritos ao âmbito da pandemia. Aí sim temos um mínimo de qualidade e competência nos serviços que prestamos à sociedade. Serviços não alienados.


"Privatizaram sua vida, seu trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar. É da empresa privada o seu passo em frente, seu pão e seu salário. E agora não contente querem privatizar o conhecimento, a sabedoria, o pensamento, que só à humanidade pertence. (Bertolt Brecht)


NB: outra referência consultada sobre alienação
Tumolo, Paulo Sergio - UFSC, Trabalho, alienação e estranhamento: visitando novamente os "Manuscrtos" de Marx, Anped / GT Trabalho e Educação nº 09

sábado, 20 de junho de 2020

O que é alienação em Marx?

Marx não vê no trabalho uma expressão qualquer da vida. Para Marx, o trabalho tem uma localização especial, até mesmo privilegiada, por ser a exteriorização do ser.

Por Vinicius Siqueira

A discussão acerca de o que é alienação pode ser extensa e caminhar por territórios completamente opostos. Dentre todas as formas de discuti-la, tentarei me focar unicamente no conceito de alienação em Marx nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844.

Trabalho como aquilo que é fundamental para o sujeito

Marx não vê no trabalho uma expressão qualquer da vida. Para Marx, o trabalho tem uma localização especial, até mesmo privilegiada, por ser a exteriorização do ser. Por ser a objetificação da essência humana, por ser o processo de colocar pra fora a mais pura humanidade, o esforço material da transformação do mundo e satisfação das necessidades.

Segundo o autor, uma das coisas que nos separa do restante dos animais é a capacidade de modificarmos o ambiente de  acordo com nossos projetos (e modificar nossos projetos de acordo com a realidade material), assim, utilizando/fabricando/produzindo nossas próprias ferramentas de produção.

Construir uma ferramenta de produção não é uma coisa qualquer. Se trata de construir um objeto mediador que ajudará na atividade de manipulação e transformação da natureza. A ferramenta é aquilo que auxilia o processo de transformação da realidade, é quase como uma reação à impossibilidade de realizar um projeto com os objetos que a natureza “crua” fornece.

Isso significa que construir as próprias ferramentas é exercer uma dominação impossível a qualquer outro animal: claro que outros animais também se utilizam de ferramentas, mas, para Marx, não na mesma atividade que a humana. Os outros animais não concebem um projeto, realizam a aplicação deste projeto de modificação da natureza e, após a primeira tentativa, num processo dialético, realizam a modificação do próprio projeto, após verificar se as condições materiais possibilitam ou não a sua feitura.

Para Marx, o papel de determinante social da estrutura econômica não é aleatório, mas é o resultado dela ser a esfera em que sujeitos fazem suas vidas. Tomando como base esta importância fundamental da estrutura econômica e da dinâmica do trabalho enquanto exteriorização da essência ativa de quem trabalha, Marx realiza sua análise daquilo que chama de alienação.

O que é alienação em Marx?

A alienação é um processo de exteriorização de uma essência humana e do não-reconhecimento desta atividade enquanto tal.

No fim do processo de trabalho, o produto feito se transforma em algo estranho, independente do ser que o produziu. Este estranhamento, esta “diferença de natureza” entre produtor e produto pode ser considerado a cereja do bolo para a concepção da alienação.

Pierre Clastres, em seu Sociedade Contra o Estado, já deixa a possibilidade de uma “origem da alienação do trabalho” na criação do Estado e na obrigação de se trabalhar compulsivamente para a satisfação das classes dominantes, não trabalhadoras, que o Estado proporciona o privilégio da dominação.
Marx retrata a alienação
1) em relação ao produto do trabalho,
2) no processo de produção,
3) em relação à existência do indivíduo enquanto membro do gênero humano e
4) em relação aos outros indivíduos.

1) A alienação em relação ao produto do trabalho. Este é o estranhamento em não se reconhecer num produto que tem dentro de si a essência do trabalhador. É a pobreza gerada ao trabalhador enquanto, ao mesmo tempo, se gera a riqueza do capitalista.

Quando o produto está feito, só resta ao trabalhador exigir um salário no fim do mês. Este tipo de alienação é aquela que o programador passa após terminar uma rotina para um dado sistema administrativo de uma empresa. Após modificar aquele software, realizar transformações para adaptá-lo ao cotidiano da empresa que o adquiriu, ele não pode reivindicar o produto do trabalho como algo dele. A modificação foi um serviço garantido pelo contrato entre empresa contratante e empresa contratada (e entre empregador e empregado).

O exemplo clássico é o da linha de produção, em que o trabalhador não se reconhece no produto final e nem mesmo sabe seu destino. O produto final é do empregador e ele deverá realizar sua venda ou qualquer outra coisa, afinal, é seu e só seu – em suma, o produto final não é ontologicamente de ninguém, é um ser independente, um objeto estranho à “natureza” de qualquer indivíduo que trabalhou nele.

2) A alienação no processo de produção. Esta alienação é o que Marx chama de “alienação ativa” ou “atividade de alienação”. É a constatação básica de que se o trabalhador está alienado em relação ao produto de seu trabalho, então é necessário verificar que isto não aconteceu do nada, mas estava presente no próprio processo produtivo.

É aqui que percebemos que o trabalho é sofrimento e não realização. O trabalho é forçado, se trabalha para sobreviver e nunca se trabalha somente o necessário. Pior ainda é constatar que o guia do trabalho não é a necessidade, mas sim os interesses daqueles que exercem poder sobre os trabalhadores.

Neste estágio, o trabalhador só se satisfaz em suas atividades animais, como comer, dormir, beber e transar, mas é completamente insatisfeito (e até mesmo nega) sua atividade propriamente humana. O trabalho próprio é estranho ao indivíduo, que só trabalha por coerção, só trabalha para alguém/por alguém. O trabalho assim exteriorizado é um trabalho de mortificação, de sacrifício.

O cotidiano é uma prova desta alienação, já que o trabalho é sempre considerado como o fardo para a sobrevivência. Uma tentativa de fazer do trabalho algo bom é constantemente praticada: tentam colocar palestras motivacionais, um ambiente saudável, incentivam que os indivíduos sigam sua “vocação” e etc e etc, entretanto, mesmo para aqueles que “amam” seu trabalho, ele ainda é feito sob a perspectiva meramente econômica do capitalismo.

Se trata de uma perspectiva mortificante, pois gostar do trabalho é um acidente feliz, não uma propriedade do trabalho. É necessário realizar uma atividade determinada que seja de seu prazer, mas a atividade em si (e genérica) não causa prazer nenhum. Então se procura um emprego bom para compensar a merda que é ter que trabalhar.

3) Alienação do sujeito enquanto pertencente ao gênero humano. Aqui Marx salta para a própria característica do humano enquanto ser genérico. Enquanto animal multifacetado com inúmeras potencialidades e capacidades. Quando ele está separado de sua essência, de sua ligação com a comunidade, de seu trabalho, ele se individualiza. Não é mais membro de sua espécie, é só um indivíduo solitário.

O trabalho enquanto fator individualizante não é criticado unicamente por, em sua configuração atual, ser um impulsionador da individualização, mas sim por fazer dessa individualização uma transformação do sujeito multifacetado em um sujeito unilateral e único. O trabalhador só vale sua vida enquanto trabalhador, não enquanto humano e não é nunca parte de um gênero, de uma espécie, mas é Um, único, específico, não detém a humanidade (uma ligação abstrata entre aqueles do mesmo gênero), só detém sua individualidade.

É necessário cuidar da existência do trabalhador que, por sua vez, precisa cuidar de sua própria existência. Se ele não é parte do produto feito e se o produto feito não é uma necessidade da comunidade local ou da sociedade, então por que se preocupar com isso? De fato não faz sentido. A única preocupação estrutural é a da própria sobrevivência e ela só acontece com a diminuição do sujeito em um trabalhador.

Uma das provas de como este tipo de alienação está enraizado nas atividades de nossa sociedade é o aumento significativo da legitimidade da nova ideologia hedonista e consumista pós-moderna. Segundo as coordenadas culturais desta ideologia, cada indivíduo precisa estar apto e livre para buscar sua felicidade individual, que é reconhecida como o fim último e sentido da vida.

Este último parágrafo é um gancho para a quarta forma de alienação.

4) Alienação em relação aos outros homens (sic). Se trata da consequência óbvia da individualização e unilateralização da vida. Quando não se reconhece em seu aspecto mais fundamental, que é o trabalho, e quando ele não é reconhecido como parte essencial da vida humana e do ser humano enquanto gênero/espécie, então não só a própria vida é uma objetificação nociva, mas toda e qualquer vida já não tem seu significado.

Ser alienado enquanto parte da espécie humana, como no terceiro tópico foi explicado, implica em se alienar também dos outros. É neste momento que um mendigo na rua é um ninguém ou um “pobre coitado”. É isso que possibilita avaliar outros de nossa espécie como “recursos humanos”.

A importância da teoria da alienação

A teoria da alienação mostra o vazio do sujeito alienado, mostra a descaracterização da própria humanidade, da essência do sujeito. A sujeito se vê como acidente, não como determinante.

Sujeito alienado é aquele que não consegue perceber a possibilidade de uma mudança. O sujeito que não se reconhece no produto de seu trabalho, que não se satisfaz na sua atividade de trabalho, que não se reconhece enquanto membro de um gênero e que não reconhece a alteridade é um sujeito impotente. É a reprodução perfeita das estruturas vigentes em uma sociedade pautada pelo trabalho e em que a estrutura econômica assume papel determinante.

Este sujeito destituído de tudo que lhe é próprio não está apto para assumir a responsabilidade de guiar a sociedade junto com seus companheiros.

A alienação, antes de ser uma coisa do capitalismo, é algo que existe como pressuposto da propriedade privada. Ou melhor, o nascimento da propriedade privada como algo separado do sujeito que a produz existe juntamente com a alienação do trabalho.

Afinal, o rei só é rei por haver súditos. É necessário reconhecer que o produto de seu trabalho não é seu para interpretá-lo como uma propriedade de outro, como algo independente. Isso não é possível em sociedades em que o trabalho existe como satisfação das necessidades da comunidade e não como fim último da vida humana ou como expiação dos crimes de Adão e Eva. Somente com o reconhecimento da separação do produto do trabalho e do trabalhador que a propriedade privada pode tomar forma da maneira como experimentamos atualmente.

Ronaldo Bastos sobre o tema

Vinicius Siqueira
Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudo do fascismo, suas origens e as interpretações marxistas sobre o fenômeno.
Autor dos e-books:
    Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;
    Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
    Foucault e a Arqueologia;
    Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Filmes - Parte 6

Diário de um cinemeiro

A verdade (La verité) 1960, Henri-Georges Clouzot
Les amants, 1958, Louis Malle
Faccia a faccia (Quando os brutos se defrontam), 1967, Sergio Sollima
A livraria, 2017, Isabel Coixet
The Sin of Harold Diddlebock (1947) (Trapalhadas do Haroldo), Preston Sturges
Mulheres da noite, 1948, Kenji Mozogushi
O pássaro pintado (The painted Bird), 2019, Václav Marhoul
Mônika e o desejo (Sommaren med Monika), 1953, Igmar Bergman
A jornada (Proxima), 2019, Alice Winocour
Amarga esperança (They Live by Night), 1948, Nicholas Ray
Cinzas que queimam (On Dangerous Ground), 1951, Nicholas Ray
No silencio da noite (In a lonely place), 1950, Nicholas Ray
Hipotermia (Sip si 32 dou), 1996, Jeong-il Choi, Ki-bong Du
Radioctive, 2019, Marjane Satrapi, Noruega
A imperatriz vermelha (The Scarlet Empress), 1934, Josef von Sternberg
À queima-roupa (Point blanck), 1967, John Boorman
Amar foi minha ruína (Leave Her to Heaven), 1945, John M. Stah
Apocalypse Now, 1979, Francis Ford Coppola
Night and the City (Sombras do mal), 1950, Jules Dassin
Lillian, 2019, Andreas Horvath, Áustria
Hanyo (A Empregada), 2010, de Sang-soo Im
Honyo, a empregada (Hanyo), 1960, Ki-young Kim
Nagaya shinshiroku (Discurso de um proprietário), 1947, Yasujirô Ozu
A loja da esquina (The shop around the corner), 1940, Ernst Lubitsch
Cidadão Kane, 1941, Orson Welles
Shirley, 2020, Josephine Decker
Solaris (Solyaris), 1972, Andrei Tarkovsky
Curva do destino (Detour), 1945, Edgar G. Ulmer
Aquele que sabe viver (Il sorpasso), 1962, Dino Risi


03/05/2020
A verdade (La verité) 1960, Henri-Georges Clouzot



Dominique Marceau (Brigitte Bardot) está sendo julgada pelo assassinato de Gilbert Tellier (Sami Frey). Os advogados disputam para explicar porque a linda e instável menina matou o talentoso recém-formado do conservatório. São ouvidos os depoimentos dos conhecidos de Gilbert, antigos amantes de Dominique e sua irmã Annie (Marie-José Nat), a estudante de violino que era noiva dele. Suas evidências acabam sendo mais acreditáveis do que as justificativas eloquentes e convincentes dos advogados.

A verdade

Em uma prisão feminina supervisionada por freiras, a jovem Dominique Marceau (Brigitte Bardot) é apresentada sobre o reflexo de um vidro quebrado. Acusada de matar seu amante, ela é levada ao tribunal, onde seu caráter é posto em julgamento.
Em uma das diversas cenas em que a acusação tenta comprovar a promiscuidade da ré, a novela de Simone de Beauvoir, Os mandarins, é usada como evidência. Marceau é acusada de ter levado à escola o livro, que possui cenas sexuais bastante detalhadas. A referência é uma piscadela à autora francesa, que escreveu sobre Bardot como um símbolo da rebeldia aos papéis submissos impostos às mulheres.
Diferentemente dos demais filmes de Clouzot até então, este roteiro não é uma adaptação. O longa foi escrito especialmente para Bardot a pedido do produtor Raoul Lévy. Os créditos de roteiro incluem seis autores: Clouzot, seu irmão, Jérôme Géronimi, sua esposa, Véra Clouzot, além de Simone Drieu, Michèle Perrein e a escritora Christiane Rochefort. Esta, conhecida por seus textos feministas, escreveu o romance O repouso do guerreiro (Le repos du guerrier), adaptado para o cinema e também protagonizado por Bardot.
Conhecido por usar a violência para extrair as atuações desejadas do elenco, Clouzot é descrito nas memórias de Bardot (Initiales B.B: Mémoires, 1996) como um gnomo repulsivo, “um ser negativo, em conflito perpétuo consigo mesmo”. No entanto, a atriz o considera seu filme favorito, aquele que consagrou sua carreira.
A verdade foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e venceu o Globo de Ouro, na mesma categoria.


05/5/2020
Les amants, 1958, Louis Malle

Jeanne Tournier (Jeanne Moreau), 30 anos, é a esposa de um diretor de jornal de Dijon, Henri Tournier (Alain Cuny). Entediada, ela começa a fazer visitas frequentes a Maggy (Judith Magre), uma amiga de infância que agora vive em Paris, onde conhece o playboy Raoul (José Luis de Vilallonga). Ao suspeitar que o marido a trai com a secretária, Jeanne intensifica as visitas e deixa a filha pequena cada vez mais aos cuidados de uma babá. Henry desconfia e a manda convidar para um jantar Maggy e Raoul, de quem ela já se tornara amante com o apoio da amiga. No dia do encontro, o carro quebra e Jeanne pede auxílio a Bernard (Jean-Marc Bory), um arqueólogo que vinha pela estrada. Ele a leva até a casa, onde o marido insiste para que fique para jantar também. Durante a refeição, Jeanne se irrita tanto com o marido como com o amante ao mesmo tempo que se sente atraída por Bernard que mostra desprezo pela vida frívola parisiense e pela provinciana de Dijon. E os dois começam uma nova relação.
Les amants, Os Amantes, é um filme francês de 1958, do gênero drama, dirigido por Louis Malle. Quando lançado, o filme causou muita polêmica entre setores conservadores da sociedade e a fúria da Igreja Católica em todo mundo. A obra de Malle teve problemas para ser exibido em vários países, dentre os quais a França, os Estados Unidos e o Brasil. Jeanne Moreau, que estrelara Ascensor para o Cadafalso, do mesmo diretor, novamente foi a musa desta ousada obra de Malle. A atuação da estrela do cinema francês escandalizou seu país. Apesar de lançado em 1958, o filme só chegou ao Brasil na década de 1960, sendo alvo de processo criminal da Confederação de Famílias Cristãs, que conseguiu proibir o filme. A censura mobilizou a imprensa, levando o crítico Paulo Emílio Salles Gomes a escrever vários artigos para desprestigiar a atitude da confederação.

07/05/2020
Faccia a faccia (Quando os brutos se defrontam), 1967, Sergio Sollima

Volonté é o professor universitário tuberculoso e desenganado que muda-se para o Velho Oeste. As circunstâncias fazem com que ele se torne amigo de um perigoso pistoleiro, sentindo-se atraído pela vida do fora-da-lei. Mas é com ele que ele aprende a força da brutalidade e os percalços da violência, testando seus próprios limites físicos e intelectuais.

08/05/2020
A livraria, 2017, Isabel Coixet


A livraria: sobre livro e solidões
Carlos Boyero

No começo sinto preguiça para embarcar em A Livraria, o último filme de Isabel Coixet, já que, com exceção do lindo Cosas que Nunca te Dije, meu desencontro com seu cinema tem sido permanente. A frase que encabeça seu cartaz de divulgação (“Entre livros, ninguém pode se sentir sozinho”) é alentadora, mas também discutível. Mallarmé começa assim um poema: “A carne é triste, sim, e eu li todos os livros.” Conclusão desoladora e verdadeira em alguns casos trágicos. Existiram e existirão sensíveis devoradores de poesia e literatura que acabam se lançando ao vazio, puderam mais a solidão e a falta de saída que a inestimável ajuda e o prazer que os livros proporcionam. O primeiro encontro com esse cobiçado livro sempre será presidido pela magia, como descreve maravilhosamente ítalo Calvino no início de Se Um Viajante Numa Noite de Inverno. Este filme fala dessas sensações. E faz isso com linguagem, nuances, tom e capacidade de sugerir que me comovem e que em um par de sequências modelares protagonizadas pela dedicada livreira e um homem que blindou seu ancestral isolamento e sua sobrevivência graças às páginas impressas (nessa época nenhum amante dos livros poderiam nem iria querer imaginar essa coisa tão antinatural e gélida do e-book) conseguem fazer meus olhos se umedecerem....

!0/05/2020
The Sin of Harold Diddlebock (1947) (Trapalhadas do Haroldo), Preston Sturges


Trapalhadas do Haroldo No Youtube

Um diálogo do filme:
Por que um banqueiro ia querer comprar um circo? Para deduzir impostos?
Não acho que eles paguem impostos. Pelo menos não estão no topo da lista.
Sim, nos obrigam a pagar por eles. Odeio os banqueiros.
Talvez sintam pena dos animais.
Os banqueiros?
Precisamos encontrar um argumento. Precisamos de carne.

O pecado de Harold Diddlebock (quarta-feira louca) [tradução livre]

A improvável combinação de Howard Hughes, Preston Sturges e Harold Lloyd produziu este filme muito engraçado e muito raramente exibido, que nunca foi realmente lançado em 1947 fora de algumas cidades, mas que inspirou James Agee a escrever: “Alguns anos atrás Harold Lloyd voltou a desempenhar o papel principal (e interpretá-lo lindamente) em The Sin of Harold Diddlebock, de Preston Sturges, mas essa imagem excepcional - que foi aberta, brilhantemente, com o rolo final de The Freshman - de Lloyd ainda não foi divulgada em geral. ” A revisão comercial original da Variety dá uma boa noção das qualidades do filme:
“O filme segue habilmente das filmagens de Freshman até o novo produto, mostrando Raymond Walburn, um ex-aluno entusiasmado, agora chefe de uma agência de publicidade de primeira linha, prometendo a Lloyd um emprego por ter vencido o jogo. Lloyd assume o cargo após a formatura, mas é preso imediatamente no nicho de um contador menor, onde permanece esquecido por 22 anos. Walburn finalmente se lembra dele por tempo suficiente para demiti-lo - e é aí que a diversão começa. Lloyd, no fundo da lixeira, esbarra em uma pista de corridas que o convence a tomar seu primeiro drinque. Com muita carga, ele aposta uma aposta de 15-1 em várias centenas de G's, gasta seu dinheiro comprando um táxi hansom e um circo falido e depois acorda e descobre que está sem dinheiro. De alguma maneira idiota, ele vende o circo com um lucro puro e vence o sétimo de uma série de irmãs que ele está namorando ao longo dos 22 anos.
“Encorajado por um excelente diálogo da caneta de Sturges, Lloyd lida com seu papel da maneira engraçada de sempre. Uma sequência, na qual ele se pendura de uma coleira de 80 andares acima da calçada, com a outra extremidade da coleira amarrada a um leão nervoso, é destaque. O rei dos animais é utilizado para várias outras sequências engraçadas. O resto do elenco, sob a direção capaz de Sturges, o apóia com habilidade. Vallee, Kennedy, Arline Judge, Franklin Pangborn e Lionel Stander, todos rostos familiares, são excelentes em papéis comparativamente pequenos. O veterinário Jimmy Conlin, como seu tout sidekick, deixa sua melhor impressão em pix. Walburn também se sai bem, e uma profunda reverência se deve ao trabalho de estréia de Frances Ramsden como a sétima irmã a quem Lloyd finalmente vence.”


11/05/2020
Mulheres da noite, 1948, Kenji Mozogushi


A obra de Mizoguchi evidencia a virtude do sofrimento

Na mesma medida em que Akira Kurosawa (1910 – 1998) foi considerado o mais “ocidental” dos cineastas japoneses, o diretor Kenji Mizoguchi (1898 – 1956) ficou conhecido no Japão e no mundo como um dos mais “japoneses” realizadores de seu país. Isso por conta do estilo particular de direção que desenvolveu ao longo de sua carreira, em especial a utilização da técnica de plano–sequência – frequentemente comparada aos “emakimono” (as pinturas em rolo) da arte clássica nipônica – e pelo retrato que produziu do Japão feudal, do Japão moderno e também do Japão fantástico e sobrenatural em seus filmes. (Pedro Tinem, Grandes Diretores de Cinema, Coleção Folha de São Paulo)


14/05/2020

O pássaro pintado (The painted Bird), 2019, Václav Marhoul


O pássaro pintado, o retrato bruto do Holocausto que faz o público fugir da sala

O filme "O pássaro pintado" de Czech Václav Marhoul, um retrato cruel e sombrio do Holocausto através do sofrimento de uma criança, está causando impacto no Festival de Veneza, embora nem todos os espectadores possam suportar as cenas brutais de espancamento, violações e torturas que abundam na fita.
Baseado em um romance de 1965 de Jerzy Kosiński - uma história inspirada nas memórias dos sobreviventes do Holocausto - e ambientado em uma área rural da Europa no final da Segunda Guerra Mundial, este filme em preto e branco de quase três horas conta a história de um garoto judeu sem nome deixado por seus pais aos cuidados de uma velha durante a guerra.
Quando a mulher morre, a criança começa a vagar de cidade em cidade em busca de refúgio, mas encontra personagens malévolos e é vítima e testemunha de espancamentos e abusos , testemunhando como um adolescente tira os olhos e os alimenta para alimentá-los um gato, ou como uma mulher é espancada nos órgãos genitais, entre outras cenas de crueldade, incesto, estupro, mutilação e assassinato.
"Caminhada selvagem e quente de três horas pelo inferno"
O filme ganhou elogios de vários críticos e perturbou o público por sua extrema crueldade em sua primeira exibição. Uma dúzia de espectadores incapazes de resistir ao horror exibido na tela se amontoou para deixar o cinema, apenas para descobrir que a saída estava fechada, diz Xan Brooks, crítico do The Guardian , que descreve como um homem "caiu" totalmente na escada, em seu esforço para escapar da sala, enquanto uma mulher" bem vestida "ficou" tão frenética "ao sair que bateu em um estranho no assento ao lado.
O próprio crítico descreve o filme como "uma caminhada selvagem e quente de três horas no inferno". "Posso dizer, sem hesitar, que este é um trabalho monumental e que estou muito feliz por tê-lo visto. Também posso dizer que espero nunca cruzar seu caminho novamente ", enfatiza.
Deborah Young, do The Hollywood Reporter , também elogia a fita, enquanto a chama de "um golpe emocional no estômago por três horas".
O próprio Marhoul defendeu a crueldade de sua adaptação e insistiu que "apenas no escuro podemos ver a luz". Ele também traçou um paralelo entre atitudes em relação às crianças migrantes que fogem das guerras na Síria, Líbia e Afeganistão e a rejeição e abuso sofridos por seu herói, alertando os jornalistas em declarações de que "os maus tempos estão chegando à Europa".

O Pássaro Pintado, Um retrato da barbárie humana
por Sarah Lyra

19/05/2020

Mônica e o desejo (Sommaren med Monika), 1953, Igmar Bergman


Em tempo:  foto define o filme. A partir desta cena Mônica rompe com o marido e abandona ele e o filho. Me lembrou "Casa da bonecas" de Ibsen

Mônica e o Desejo
Por Luiz Santiago

Após sua passagem pela estética e temática neorrealista nos anos 1940, Ingmar Bergman caminhou pelo realismo e pelas emoções de suas personagens durante a década seguinte, um exercício que chegaria a um estágio laureado no final da década de 1950. Mônica e o Desejo (1953), é um dos filmes desta “segunda fase” do cineasta, um momento em que podemos identificar de obras excelentes a experiências apenas aceitáveis, categoria na qual o presente filme se enquadra. Embora idolatrado por uma legião de cinéfilos, Mônica e o Desejo não se exalta tanto em meio a filmografia de Bergman.
Baseado na obra de Per Anders Fogelström, Mônica e o Desejo é um filme sobre as diferentes fases da vida de uma jovem romântica que sofre de liberdade crônica. Seu encontro com Harry, o idílico retiro para uma ilha, a vida no barco, a chegada de uma bebê e as regras de um matrimônio no início da vida adulta são os ingredientes que formam a obra, ajustados em cerca de três atos bem distintos: o encontro, o amor (ou o verão) e o casamento. Em cada uma dessas partes, presenciamos o crescimento dos protagonistas como pessoas e amantes, para depois vermos as suas primeiras grandes decepções e caminhos distintos traçados, com destaque para a irresponsabilidade, potente libido e vontade de ser livre de Mônica (Harriet Andersson)...

21/05/2020
A jornada (Proxima), 2019, Alice Winocour



O dia a dia de esforço e superação da astronauta francesa Sarah, uma mãe solteira que se prepara para uma missão espacial. Ela luta para equilibrar o tempo que passa com sua filha pequena e o intenso treinamento para a viagem.

Um belo filme e uma bela homenagem ás astronautas mães.


23/05/2020

Amarga esperança (They Live by Night), 1948



Amarga Esperança
Luiz Zanin Oricchio

Chama a atenção que François Truffaut, em seu ensaio sobre Johnny Guitar (no livro Os Filmes da Minha Vida), diga que o melhor filme de Nicholas Ray ainda é Amarga Esperança, sua estreia na direção de longas. Surpreende, porque o próprio Truffaut diria, em entrevistas, que Johnny Guitar era um dos filmes que mais o haviam impressionado na vida, além de ser tido, de maneira mais ou menos unânime, como a obra-prima de Nick Ray (1911-1979). O que só aumenta o interesse por este Amarga Esperança, tido também como precursor de Terra de Ninguém, Bonnie & Clyde e outros Road movies sobre casais em fuga.
Em termos de assunto, é bem verdade, ele se parece mesmo com esses filmes. Fala de um amor bandido entre um jovem assaltante, Bowie (Farley Granger) e uma garota (Cathy O’Donnell). A história é baseada no romance Thieves like Us, de Edward Anderson. Bowie foge da cadeia com dois comparsas mais velhos e assaltam um banco. Ele conhece uma garota, se apaixonam e fogem. Querem sumir do mapa, mas os dois comparsas têm outros planos para Bowie. A história segue a lógica implacável desse gênero, daquela espécie de armadilha difícil de escapar mesmo quando se é jovem, bem disposto e motivado por uma nova paixão...

Comentário youtube

24/05/2020

Cinzas que queimam (On Dangerous Ground), 1951, Nicholas Ray



“CINZAS QUE QUEIMAM”, DOIS FILMES EM UM, Celso Sabadin

É inevitável uma sensação de estranhamento ao final de “Cinzas que Queimam”. Aliás, duas. A primeira é pensar quais seriam estas tais cinzas do título em português, que sequer aparecem no filme, quanto mais queimam… Mas isso é detalhe. O estranhamento maior vem do roteiro, escrito a partir do livro “Mad With Much Heart” de Gerald Butler, sobre Jim (Robert Ryan), um policial estressado que após cometer vários atos de violência injustificada e desproporcional é enviado pelo seu superior para investigar um caso no interior.
É como se fossem dois filmes com pouca, quase nenhuma relação entre ambos. Há uma primeira parte, totalmente noturna, mostrando o cotidiano de Jim, seus colegas de polícia, seu destempero, sua frustração por ter sido um esportista de sucesso e não ter seguido carreira, e principalmente sua solidão. Mesmo este prelúdio, que não é pequeno, é fragmentado, intercalando chamados policiais não resolvidos, personagens que entram e saem da trama sem a necessidade imediata de uma função dramatúrgica, conflitos entre os próprios colegas. Quando a ação do filme é transposta para o interior, é como se começasse um novo filme, uma espécie de novo capítulo de um suposto seriado interpretado pelo mesmo protagonista. O noturno, o noir que permeia toda a primeira parte agora se desenrola dentro da personagem Mary (Ida Lupino). Muda o cenário, muda o plot, novos tipos tomam o espaço que não será retomado pelo que foi visto na primeira parte...


25/05/2020

No silencio da noite (In a lonely place), 1950, Nicholas Ray



No Silêncio da Noite
Gabriel Carvalho

Eu nasci quando ela me beijou. Eu morri quando ela me deixou. Eu vivi por algumas semanas enquanto ela me amou.”
Dada a sua suspeita acerca de seu namorado ter ou não assassinado a jovem Mildred Atkinson (Martha Stewart), Laurel (Gloria Grahame) confessa para sua amiga Sylvia (Jeff Donnell) os seus temores, tendo, porém, a intenção que, ditos, eles fossem descartados como absurdos. “Eu vim aqui porque queria dizer essas coisas em voz alta e ser motivo de riso, mas você não está rindo “, conclui a personagem na conversa. Somente nos seus sonhos, quando, já na cena seguinte, revive essas suas preocupações enquanto dorme, que a mulher pode gargalhar e, portanto, mergulhar em um amor incontestável, no campo do eterno e da mentira, que não é questionado pela realidade, essa, por sua vez, cheia de obstáculos, no campo da efemeridade. Ora, como não ser passageiro um relacionamento nascido diante de um assassinato, que é catapultado pelo encontro de dois estranhos em uma delegacia para responderem perguntas da polícia, sem que o princípio seja romântico, mas, pelo contrário, macabro? Ao mesmo tempo, como também não ser verdadeiro, embora complexo e contraditório, o amor entre Laurel Gray e Dix Steele (Humphrey Bogart), dado o belo texto que os atores interpretam, em vista de um jogo de seduções e declarações, por mais que, derradeiramente, esse relacionamento esteja destinado a um fim...


25/05/2020
Hipotermia (Sip si 32 dou), 1996, Jeong-il Choi, Ki-bong Du



Beyond Hypothermia é um filme de 1996, filme de ação de Hong Kong, dirigido por Patrick Leung, coproduzido por Johnnie To, e estrelado por Jacklyn Wu e Sean Lau.
Woo Chin Lin interpreta uma sucessora brilhantemente habilidosa, Shu Li Fan, que durante a maior parte do filme não tem nome. Ela também não tem família ou amigos, e por razões não totalmente claras, tem uma temperatura corporal inferior à média. Ela foi resgatada quando criança do Camboja devastada pela guerra, e criada por Mei (Shirley Wong), que é viúva de um assassino. Mei ensina à criança a única coisa que ela sabe que a conecta ao mundo: matar. As vítimas de Shu Li Fan são tão misteriosas para ela quanto ela é para si mesma. No entanto, durante um de seus golpes, ela faz um inimigo jurado de um assassino coreano (Han Sang Woo.) Há um pequeno raio de esperança em sua vida sombria, e esse é o início de um caso de amor com um simples e doce vendedor de macarrão Long Shek (ator de Hong Kong Lau Ching Wan.)

26/05/2020
Radioctive, 2019, Marjane Satrapi, Noruega



Única pessoa a vencer o Prêmio Nobel em dois campos diferentes - física e química - Marie Curie é um dos grandes nomes da história da ciência. A cientista, porém, foi retratada poucas vezes no cinema, sendo interpretada por Greer Garson, em 1943, e por Isabelle Huppert, em 1997. Apesar de ter sua importância reconhecida, sua figura não era simpática como a de Albert Einstein, por exemplo, para que ela figurasse no imaginário popular. Radioactive, baseado na HQ de Lauren Redniss, muda essa perspectiva, dando à vida de Marie e de seu marido, Pierre Curie, a embalagem necessária para ser assimilada por uma nova geração.
Marjane Satrapi, criadora e co-diretora de Persépolis, faz sua estreia no comando de um longa-metragem live-action, mas sem deixar de lado a sua experiência com as artes gráficas. Anthony Dod Mantle, diretor de fotografia conhecido por filmes como 127 Horas, Dredd e Quem Quer ser um Milionário?, adiciona outra camada ao apelo visual do filme, distanciando Radioactive da estética tradicional das cinebiografias.
O roteiro de Jack Thorne (Extraordinário), por outro lado, segue a cartilha. Cada cena, cada diálogo, trabalha em torno da ideia do que o filme precisa representar: Marie Curie era uma cientista genial desacreditada apenas por seu gênero, com um temperamento difícil, que amava profundamente seu parceiro e marido, era irônica, desinibida, destemida e ávida defensora do conhecimento. O que dá vida a todos esses conceitos sobre Marie Curie é Rosamund Pike. Para cada fala afetada, ela adiciona personalidade, tornando crível e carismática a sua interpretação. A química com Sam Riley, que encarna Pierre Curie, também contribui para que o romance seja cativante, ainda que claramente idealizado.
A estrutura do roteiro, que parte dos momentos finais da cientista, mantém a essência de uma HQ, entrecortando a narrativa com as consequências do trabalho dos Curie. Da teoria da radioatividade veio a radioterapia contra o câncer, mas também a bomba atômica e o acidente em Chernobyl. São momentos que trazem o conceito de uma descoberta científica feita em 1898 para termos palpáveis para o público geral, o que reforça o toque pop que Radioactive dá para a história de Marie Curie.
Da relação com a filha, a também vencedora do Nobel Irène (Anya Taylor-Joy), o filme estende o legado da cientista, expondo seu caráter quase didático: um mundo com mais mulheres cientistas se faz de exemplo. Ver as duas, mãe e filha, indo aos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial com máquinas de Raio-X para evitar amputações desnecessárias, equivale a Mulher-Maravilha saindo das trincheiras para cruzar a Terra de Ninguém. Aqui, Marie Curie é a heroína e conhecer a sua história é um prazer, como a aventura de um gibi. A maior preocupação, parece, não é revelar a mulher por trás do mito, mas reforçá-lo. Já era hora.

29/05/2020
A imperatriz vermelha (The Scarlet Empress), 1934, Josef von Sternberg



A jovem princesa Sophia da Alemanha é levada para a Rússia para se casar com o grão-duque Pedro, filho da imperatriz. A imperatriz dominadora espera melhorar a linha de sangue real. Sophia não gosta do marido, mas gosta da Rússia e gosta muito de soldados russos. Ela obedientemente produz um filho – de paternidade questionável, mas ninguém parece se importar com isso. Depois que a velha imperatriz morre, Sophia cria um golpe de estado com a ajuda dos militares, acaba com Pedro e se torna Catarina, a Grande.

A Imperatriz Vermelha (1934)
Zeca Seabra

Até 1929, Marlene Dietrich era uma atriz desconhecida que cantava em cabarés, na decadente Berlim, quando Joseph Von Steinberg a encontrou. A identificação foi imediata e Marlene tornou-se uma espécie de alter ego do diretor que a convidou para o papel principal no clássico “O Anjo Azul” em 1930. Após o estrondoso sucesso e a ameaça nazista rondando a Europa, Steinberg raptou a exuberante Marlene para Hollywood onde assinaram um acordo para rodar uma série de filmes juntos. “A Imperatriz Vermelha” de 1934 faz parte deste pacote.
“A Imperatriz Vermelha” (The Scarlett Empress no original) compactua com a tendência expressionista que o cinema alemão flertava. Com cenários lúgubres e uma exuberante fotografia prateada, o filme tem uma visão ora cômica, ora grotesca sobre a vida de Caratina II da Rússia. Baseado nos diários escritos pela própria, o filme faz um painel burlesco sobre a chegada da, então, Princesa Sophia (que mudaria de nome para Catarina) no podre reino soviético e acompanha sua transformação numa tzarina destemida e onipotente. Com um subtexto politicamente incorreto (afinal a princesa tem relações amorosas com toda a guarda russa) fica impossível levar esta produção a sério. Mas temos Marlene Dietrich em estado bruto, inaugurando o sentido da palavra “vamp” de forma inflamada e faustosa.
Na verdade, a única razão de “A Imperatriz Vermelha” existir é a presença de Marlene que dá a impressão de estar se divertindo muito mais que o espectador. Seus olhares languidos e lascivos são dignos de um notável carisma que a fez se tornar uma das maiores estrelas do Olimpo hollywoodiano. Steinberg usa e abusa de primeiríssimos planos e closes com soft focus (técnica de desfocagem para dar um ar divino) para assim exaltar a exuberância de sua musa que exalava sensualidade sem dizer uma única palavra, evidenciando o perfeito entrosamento entre o diretor e a atriz...

30/05/2020
À queima-roupa (Point blanck), 1967, John Boorman


O cinema é fabuloso ao conceber imagens que impulsionam sentimentos e significados mas que, ao mesmo tempo, lhe escapam, lhe alargam. Um filme pode nos ajudar a representar — mas, para além, ajuda a extrapolar nosso próprio mundo. É da introdução de um thriller clássico — À Queima-Roupa (1967), de John Boorman — que retiro a imagem de uma sensação que parece se alastrar por todos nós hoje. Na introdução, vemos um homem (o sisudo Lee Marvin), nitidamente combalido, sozinho e cambaleante pela prisão de Alcatraz.
Por entre essas imagens surgem suas memórias, que explicam desordenadamente como ele foi parar ali, abandonado para morrer. Em poucos minutos aprendemos que ele foi traído em um roubo por seu melhor amigo e por sua esposa. Até aqui, um típico caso de vingança-a-caminho; mas é justamente na ida-e-vinda por episódios que construíram seu cruel destino, no caos subjetivo e simultâneo das memórias, que o sentimento de desolação se estabelece. Que o homem vai agir e se vingar, pressupõe-se. Mas a montagem surpreende ao enriquecer a trama e embaralhar nossa percepção, desimportando uma mera cronologia dos fatos — atendo-se aos pontos-chave dessa vingança, mas também deixando-os um tanto borrados, amorfos. Confecciona-se uma nuvem com essas lembranças: uma teia que justapõe as tramoias e que culmina com a ousadia maior do protagonista – escapar, à nado, de Alcatraz. Um ato de desespero, um gesto a por sua vida em risco. Mas que vida se havia se tornado essa, afinal
Em pouco menos de 10 minutos de filme se apresentam: a farsa que o envolveu; seu luto por um mundo que já não há; sua desgraça e recuperação, isolado, antes de retornar; o movimento derradeiro de viver — e transformar sua perda em algo (que ele mesmo não controla). Atravessar o vazio de forma implacável é vingar-se, mas, acima disso, aceitar que não há retorno para o mundo em que vivia- definitivamente. (Caio de Freitas Paes)

31/05/2020
Amar foi minha ruína (Leave Her to Heaven), 1945, John M. Stahl


O filme que inaugurou o Cine Barretos (em Barretos) no dia 17 de dezembro de 1946 foi "Amar foi minha ruína" (Leave Her to Heaven), 1945, dirigido por John M. Stahl. Stahl foi o rei dos melodramas em roliudi nas décadas de 1930 e 40. Nas décadas seguintes Douglas Sirk foi seu sucessor. E do que trata "Amar foi minha ruína"? Basicamente o ciúme. Nas palavras da mãe de Ellen (Gene Tierney) "o problema dela é amar demais. É ser impulsiva, egoísta, intratável e possessiva. Um ciúme doentio." Pauline Kael (1919-2001) uma crítica porreta de cinema definiu o filme como "um melodrama gótico psicológico, tão absurdamente exagerado e cara de pau que se torna uma diversão irresistível." Sérgio Augusto, no livro "Vai começar a sessão", Objetiva, 2019, dedica um capítulo à John M. Stahl. Depois desta leitura revi o filme.



01/06/2020
Apocalypse Now, 1979, Francis Ford Coppola




Redux and Final Cut versions, Francis Ford Coppola, Cinematography by  Vittorio Storaro

"Meu filme não é um filme. Meu filme não é sobre o Vietnã.
Ele "é" o Vietnã. É como foi, uma loucura. E nós o fizemos do modo como os americanos estavam no Vietnã. Estávamos na selva. Éramos muitos. Tínhamos acesso a muito dinheiro, muito equipamento, e pouco a pouco, ficamos loucos."
É o depoimento de Copola no Festival de Cannes de 1979 e está no documentário "Hearts of Darkness: A Filmmaker's Apocalypse",1991. É menos um filme sobre a guerra do Vietnã do que sobre a psicose dos estadunidenses (Pascal Bonitzer)

A primeira vez que vi o filme foi no Cine Roxy, Copacabana, Rio. Era um cinemão de 1600 lugares. Lotado. E a maioria jovem. Nos créditos finais ninguém se levantou. Queriam ouvir, até o fim a música "The End" dos Doors.
Apocalypse Now é um baita clássico do cinema

Hearts of Darkness: A Filmmaker's Apocalypse,1991
Fax Bahr, George Hickenlooper, Eleanor Coppola

Apocalypse Now: The Doors, The End {1979}


05/06/2020

Night and the City (Sombras do mal), 1950, Jules Dassin



A luta livre no cinema
Diretor dos míticos "Rififi" (1955) e ""Nunca aos domingos" (1960), Jules Dassin (1911-2008) dirige Richard Widmark (1914-2008) em trama sobre lutas ilegais. Adotado pelos franceses, onde fez carreira após uma série de rejeições em Hollywood, Dassin rodou na Inglaterra a história de um gigolô e explorador da fé alheia, Harry Fabian (Widmark), que se reinventa como empresário de luta livre. Mas, em meio a um universo de apostas, Fabian terá sua vida posta em risco. Com base em romance de Gerald Kersh, O longa tem na fotografia de Mutz Greenbaum uma das mais exuberantes arquiteturas visuais do cinema dos anos 1950. O livro de Kersh foi refilmado em 1992, por Irwin Winler, com Robert De Niro e Jessica Lange.

06/06/2020
Lillian, 2019, Andreas Horvath, Áustria

'Lillian': Film Review | Cannes 2019 (tradução livre)


Em algum momento no inverno de 1926 ou na primavera de 1927, Lillian Alling partiu para cruzar os EUA e o Canadá a pé. Ela era uma emigrante, provavelmente russa, que não falava inglês e não tinha dinheiro. Embora pouco se saiba sobre sua jornada épica de Nova York ao Alasca, ela inspirou livros, uma ópera e agora o longa-metragem de Andreas Horvath, Lillian. O fotógrafo e diretor austríaco, que ganhou grandes prêmios por docs como This Ain't No Heartland (2004) e Earth's Golden Playground (2013), combina seu conhecimento sobre o Meio-Oeste americano e o Yukon em um filme de estrada enigmático — nunca foi um termo mais descritivo — que é ao mesmo tempo um retrato do espírito feminino e da determinação e uma reflexão sobre a solidão no coração da América hoje.
Sua lillian moderna é interpretada com verdadeira coragem pela novata Patrycja Planik, que poucas palavras durante todo o filme. É um papel que testaria a coragem de atrizes muito mais experientes, mas Planik lida com o desafio com uma espécie de ingenuidade teimosa que é intrigante de se assistir. Alguns espectadores podem perder a conversa e as reações emocionais que normalmente fazem parte e parcela de filmes de resistência. O rosto estoico de Planik reflete pouca ou nenhuma emoção durante seus testes, e Horvath parece completamente imperturbável sobre as questões que sua presença levanta - Quem é ela? O que ela quer? Nem o filme fornece respostas. Ele simplesmente reconta sua extenuante jornada por estradas solitárias e desertas e através de vistas de beleza de tirar o fôlego.
O que não é tão bonito é a desolação sombria dos EUA pontilhada com a fábrica de fumantes ocasionais, cidades pequenas empobrecidas, a paródia de um rodeio. Conhecemos Lillian, uma garota de 30 anos com maçãs do rosto altas e características clássicas, no escritório de Nova York de um produtor pornô. Imagens de mulheres brincando em monitores atrás dele. O visto da garota expirou e ela não tem número de impostos ou seguro, então ele não pode contratá-la. "Volte para a Rússia, é a terra das oportunidades."
Ela o leva literalmente e no próximo tiro ela já está andando. Ela invade uma casa de fim de semana na floresta e encontra um pote de bolas de queijo e um mapa dos EUA. Naquela noite, ela planeja sua rota...



07/06/2020
Hanyo (A Empregada), 2010, de Sang-soo Im


O filme coreano Hanyo (A Empregada), 2010, de Sang-soo Im é um predecessor do também coreano O Parasita, 2019, de Bong Joon Ho. Claro, na opinião deste que vos fala. Em comum a guerra de classes e o cinismo (a esposa burguesa, cruel e vingativa lê o Segundo Sexo de Simone de Beauvoir). O destaque: a atriz Yuh-Jung Youn (a Byung-sik do filme, a empregada chefe). É o alter ego de que escreveu a estória. Filmes que Yuh-Jung Youn já fez: Canola (2016) e A Dama de Baco (2016) dentre muitos.

08/06/2020
Honyo, a empregada (Hanyo), 1960, Ki-young Kim



Professor de piano casado, pai de dois filhos, rígido e moralista sucumbe aos encantos da recém-contratada empregada doméstica. O relacionamento do chefe da casa com a instável jovem acaba se transformando num drama que afeta toda a família, com terríveis consequências para todos.

Hanyo, A Empregada (Hanyo, 1960), de Kim Ki-Young

Considerado um dos grandes filmes feitos na Coréia do Sul, Hanyo, A Empregada tem alguns momentos de comédia involuntária, atenuados pela a atmosfera convincente de terror psicológico conseguida pelo diretor Kim Ki-Young. De fato, podemos dizer que tal atmosfera, construída sobretudo por uma mise en scène precisa, impede que o filme beire o patético, com direito a lição de moral no final.
Hanyo foi realizado dentro da chamada segunda Era de Ouro do cinema coreano, entre 1956 e 1969 (a primeira havia sido entre 1926 e 1933), um período que sucedeu a Guerra da Coréia, que por sua vez havia sucedido o longo domínio japonês de quase toda a primeira metade do século (influenciando o cinema do país).
Desde a primeira cena, que mostra um casal comentando um artigo no jornal sobre um homem que trai a esposa com a empregada doméstica, percebemos estar diante de algo incomum. O marido argumenta que é algo natural, pois a empregada é a primeira pessoa que um homem cumprimenta ao chegar em casa, a pessoa mais próxima de seus afazeres imediatos, enfim, a maior companheira do homem. Algo que, obviamente, vai deixar sua esposa deveras irritada. A cena se encerra com duas crianças brincando de ‘cama de gato”, aquele velho jogo de barbantes em que um pega o emaranhado das mãos do outro criando um emaranhado diferente, enquanto vemos os créditos iniciais (o jogo já foi motivo de abertura de novela das oito na Globo).
A alegoria aí é bem clara, com duas ramificações possíveis. Na vida doméstica, o que inclui sentimentos em relação à sua companheira e noções de monogamia e lealdade, há dilemas morais, relativos à natureza do homem e às suas obrigações perante a sociedade, que podem provocar desfechos infelizes, e até trágicos, caso não sejam respeitados (podem levar à felicidade suprema também, mas não é isso que interessa ao filme). Na literatura, no teatro e no cinema temos inúmeros exemplos de como a fraqueza moral (ou uma manca imoralidade) pode causar estragos. Além disso, uma pequena atitude pode provocar um emaranhado de situações que desabam em outras, ainda piores, como mostra muito bem o díptico de Alain Renais, Smoking/No Smoking (1994). Se o professor de piano não tivesse sido tão rigoroso ao levar a carta da aluna apaixonada para a supervisora da fábrica onde dá aulas de música, causando a suspensão e a vergonha da pobre jovem, ele não teria que passar pelas provações e capitulações que vemos no filme. Tais capitulações são tão ridículas que ficamos logo desconfiados de que tudo não passa de um pesadelo.
A câmera de Kim Ki-Young movimenta-se pela casa como um fantasma, captando intimidades e ciúmes por trás de portas de vidro e pingos de chuva. A interpretação dos atores sugere que são todos marionetes, a serviço de uma ideia que só descobriremos ao final, quando se completa o ciclo do absurdo a que o diretor nos submete. Esse final explica o porquê de acompanharmos tanta idiotia dos personagens, mas não redime o filme de ser um arremedo de moralismo constrangedor. Sobra assim sua mise en scène eficaz, mas não o suficiente para encobrir esse desfecho com sabor de óleo de rícino (aquilo que fortalece a moral de uma criança).
Não pude ver muitos filmes coreanos dessa época. A julgar por este Hanyo, e levando em consideração que trata-se de um dos três filmes mais celebrados de um período farto em melodramas primários, posso suspeitar que a Coréia só teve um cinema bom de verdade cerca de vinte anos depois, quando Im Kwon-taek,  um cineasta já quase veterano, começou a fazer grandes filmes.
Hanyo teve uma refilmagem com inúmeras diferenças e muito superior em 2010, assinada por Im Sang-Soo, com a ótima Do-Yeong Jeon no papel principal (que é muito mais atriz e muito mais sensual que a Lee Eun Shim do filme original).

Sérgio Alpendre

09/06/2020
Nagaya shinshiroku (Discurso de um proprietário), 1947, Yasujirô Ozu



Discurso de um Proprietário
Ritter Fan

O primeiro filme de Yasujiro Ozu produzido após a Segunda Guerra Mundial é, também, uma de suas mais simples obras. Novamente com um roteiro em co-autoria com Tadao Ikeda, a curtíssima fita aborda singelamente a reação de proprietários de algumas casas empobrecidas nos arredores de Tóquio depois da chegada de um menino abandonado por seu pai.
Trazido da rua por Thasiro (Chishū Ryū em uma ponta), o calado jovem (Hōhi Aoki) passa a morar na casa de Tane (Chōko Iida), uma viúva de meia-idade cuja primeira, segunda e terceira reações são de fugir desesperadamente desse ônus, tratando o menino como um empecilho à sua vida pacata e monótona, com suas relações sociais reduzidas a seus vizinhos e a uma geisha que a visita de tempos em tempos. A simplicidade da narrativa se dá estruturalmente amarrada ao tipo de história que Ozu e Ikeda procuram contar e que segue uma cartilha básica de aproximação entre a mulher azeda e o garoto silencioso. O espectador mais cínico de hoje em dia (categorização em que me incluo, que fique claro) será capaz de perceber exatamente como o roteiro será desenvolvido desde os primeiro segundos em que Kōhei é largado na casa de Tane como uma trouxa de roupa suja.
No entanto, essa característica da obra de forma alguma lhe retira suas qualidades. Ozu demonstra sua maestria usual em lidar com o comum, com o banal, com o cotidiano e aborda magistralmente a vida daquele grupo de pessoas despossuídas tendo que lidar com racionamento, com a destruição ao redor e, claro, com a sombra da derrota ao fundo, algo que Ozu simboliza pela devastação que mostra nas imediações do conjunto de casas, na sujeira das ruas e, de maneira jocosa, na forma brilhante com que o tatame em que Kōhei dorme – e onde faz xixi duas vezes – lembra a bandeira americana.
Suas tomadas externas em plano geral, algo razoavelmente raro em sua carreira até esse ponto, são outros momentos de destaque, notadamente as sequências em que Tane primeiro sai para procurar o pai do garoto e, depois, o procura desesperadamente quando ele foge. Mantendo sua câmera parada característica o mais junto ao solo possível, Ozu lida com o vazio e com a melancolia do pós-guerra de maneira discreta, mantendo esses aspectos sempre como pano de fundo, jamais trazendo-os para a frente e extraindo de Chōko Iida uma excelente atuação que é como se fosse a materialização audiovisual do derretimento de um coração de pedra...



10/06/2020
A loja da esquina (The shop around the corner), 1940, Ernst Lubitsch



A Loja da Esquina
Leonardo Campos

Nos primeiros instantes do drama A Loja da Esquina, dirigido por Ernst Lubitsch, tendo como direcionamento, o roteiro de Samson Raphaelson, baseado na peça homônima de Miklós Laszló, percebemos que estamos diante de uma produção sobre a solidão, sentimento que não possui período específico para se manifestar, mas atenua-se nos festejos natalinos, principalmente para aqueles que vivem sem as configurações de família apresentadas pelo cinema hollywoodiano clássico, geralmente com um grupo de pessoas a dividir a ceia natalina farta diante da troca de afetos e presentes.
Importante também é perceber a importância da compreensão do subtexto que permeia um filme clássico, conferido anos após a sua realização e estabelecimento no imaginário. A Loja da Esquina não faz referências apenas à solidão e melancolia de indivíduos isolados, mas também é uma alegoria da desesperança coletiva oriunda do pós-guerra (Primeira Guerra Mundial), Crise de 1929 e manifestações políticas e sociais que previam o estabelecimento dos conflitos bélicos da Segunda Grande Guerra Mundial. Lançado em 1940, a produção traz tudo isso embalado metaforicamente em seu arco dramático sobre linear, sem grandes surpresas e reviravoltas...


11/06/2020
Cidadão Kane, 1941, Orson Welles



Numa postagem que fiz ontem (9/6/2020) no Facebook compartilhei uma ótima reportagem da Piaui "Questões midiáticas: O QUE MOVE A CNN BRASIL de Fabio Victor" e escrevi uma fala "Na política, sempre nos bastidores, nunca no palco" do filme Cidadão Kane (1941).
Bem, revi o filme. Um clássico do cinema. E tem a ver com a cortante reportagem do Fabio Victor.
"A essência do filme está na narrativa, comparável a um grande romance moderno, e uma direção próxima do expressionismo" (Georges Sadoul).

É sempre bom rever um filme ótimo.

15/06/2020
Shirley, 2020, Josephine Decker



Shirley Jackson (Elisabeth Moss) é uma escritora de contos de suspense casada com Stanley Hyman (Michael Stuhlbarg), um renomado professor da Bennington College. Os dois decidem abrigar em sua casa um casal de jovens estudantes por um período. Shirley encontra nessa rotina peculiar a inspiração que precisava para sua mais nova obra.

16/06/2020
Solaris (Solyaris), 1972, Andrei Tarkovsky


Quando assisti "Solaris", Andrei Tarkovsky, 1972 (é obrigatório) inevitavelmente lembrei de "2001, uma odisséia no espaço", Stanley Kubrick, 1968.

Solaris versus 2001. Uma boa conversa

Filme “Solaris” de Tarkovsky é o anti-“2001” de Kubrick, por Wilson Ferreira
Por Wilson Ferreira -27/11/2017

Andrei Tarkovsky considerava “2001: Uma Odisseia no Espaço” de Kubrick um filme “estéril”. Por isso, “Solaris” (1972), produção do cineasta soviético, foi considerado pela crítica o filme “anti-2001”: se os EUA ganharam a corrida espacial colocando o primeiro homem na Lua, no cinema a URSS ganharia a Guerra Fria fílmica ao desconstruir o gênero ficção científica que legitimava a conquista do espaço. De certa forma, Solaris foi o primeiro filme PsicoGnóstico: há um planeta, uma estação espacial e astronautas. Mas tudo não passa de um álibi para discutir como o tema das viagens espaciais são um mito que esconde a verdadeira viagem: lá em cima, ao descobrirmos que estamos só em um Universo vazio e sem propósito, faremos uma viagem no interior do nosso próprio psiquismo. Um planeta com um misterioso oceano que prova aos cientistas de uma estação espacial de que não precisamos de outros mundos. Precisamos de espelhos.
Sabemos que o gênero ficção científica é uma invenção Ocidental. Com uma civilização baseada no progresso tecnológico, é natural que tenha inventado uma narrativa de ficção que especule o futuro relacionado com os impactos da Ciência e tecnologia. Pode pensar o futuro utilizando-se da Fantasia e do sobrenatural.
Mas a angústia existencial do século XX, com suas guerras e a possibilidade do holocausto nuclear varrer a espécie humana da face do planeta, fez crescer no gênero o tema das viagens espaciais, alienígenas, a existência de outros mundos mais sábios do que o nosso. Angustiado, o homem não quer sentir-se só no universo: deve haver outros mundos nessa e em outras dimensões. Aceitar a ideia de que estamos sós no cosmos faria tudo parecer sem sentido ou propósito.
Para além dos propósitos bélicos, a corrida espacial entre EUA e URSS durante a Guerra Fria acendeu ainda mais essa imaginação. E o ápice, além da chegada do Projeto Apollo na Lua, foi o filme 2001: Uma Odisseia no Espaço de Stanley Kubrick. Um filme-síntese desse sonho: somos filhos das estrelas desde tempos imemoriais e, através da tecnologia, chegaremos a uma lua de Júpiter e finalmente reencontraremos nossos criadores.
O diretor soviético Andrei Tarkovsky sempre considerou 2001 um filme “estéril” e unicamente centrado na tecnologia. A resposta foi o filme considerado o “Anti-2001”: Solaris (1972),  uma adaptação do livro homônimo do escritor polonês Stanislaw Lem.
Em muitos aspectos, para compreender o desafio de Solaris para a ficção científica e porque foi uma resposta a Kubrick, precisamos avançar um pouco na cinematografia de Tarkovsky e visitarmos Stalker, de 1979. Lá está uma linha de diálogo críptica que desconstrói toda a invenção Ocidental do gênero ficção científica:
NÃO HÁ TELEPATAS, NEM FANTASMAS, NEM DISCOS VOADORES… NADA DISSO EXISTE, A NÃO SER A LEI DO FERRO FUNDIDO. NÃO CONTE COM DISCOS VOADORES: SERIA MUITO EMPOLGANTE. NÃO EXISTE TRIÂNGULO DAS BERMUDAS. EXISTE APENAS O TRIÂNGULO A’, B’ E C’…
Ou ainda essa afirmação de Stanislaw Lem que a síntese do argumento desafiador de Solaris:
NÓS NÃO PRECISAMOS DE OUTROS MUNDOS. NÓS PRECISAMOS DE ESPELHOS. NÓS NÃO SABEMOS O QUE FAZER COM OUTROS MUNDOS. UM ÚNICO PLANETA, O NOSSO, NOS É SUFICIENTE; MAS NÓS NÃO CONSEGUIMOS ACEITAR ISSO DO JEITO QUE É.

O filme anti-2001

Lem nunca teve apreço pela ficção científica, para ele um gênero norte-americano “mal pensado, mal escrito, e mais preocupado em aventuras do que em ideias ou novas formas literárias”. Essa crítica radical de Stanislaw Lem ao centro da imaginação de um gênero que dava o appeal popular à hegemonia espacial norte-americana, ia ao encontro da guerra fria EUA e URSS no cinema: Solaris de Tarkovsky seria o anti-2001 de Kubrick.
Se os EUA ganharam a corrida espacial colocando o homem na Lua, a URSS ganharia a corrida no cinema desconstruindo toda a ideologia que animava a exploração espacial: iremos ao espaço apenas para descobrirmos que estamos sós – planetas, galáxias e estrelas são apenas espelhos dos nossos próprios sonhos, desejos, frustrações e pesadelos. Não existem outros mundos ou civilizações. Existe apenas o Universo que reflete de volta o nosso próprio inconsciente.
De certa forma, Solaris foi o primeiro filme PsicoGnóstico: há uma planeta, uma estação espacial e astronautas. Mas tudo não passa de um álibi para discutir como as viagens espaciais são um mito que esconde a verdadeira viagem: lá em cima, ao descobrirmos que estamos só em um Universo vazio e sem propósito, faremos uma viagem no interior do nosso próprio psiquismo.

O Filme

Solaris é longo e lento e com diálogos deliberadamente secos. As imagens e planos de câmera são belos e muitas vezes surpreendentes. Ao contrário de 2001, concentrado em planos descritivos e longos de naves espaciais, estações orbitais e no detalhamento técnico do interior da nave Discovery com a posterior duelo final entre a Inteligência Artificial e o homem, aqui em Solaris todos os cânones da ficção científica são apenas sugeridos.
Tarkovsky está interessado em planos fechados (close ups e planos médios), na humanidade dos astronautas e no duelo final, dessa vez, do homem com seu próprio inconsciente.
Solaris começa com uma longa conversação entre o psicólogo Kelvin (Donatas Banionis) e o cosmonauta Burton (Vladislav Dvorzhetsky) na casa de campo do pai de Kelvin. O leitor deverá prestar atenção nessa primeira sequência, pois ela voltará no final em um novo e surpreendente contexto. Burton narra os problemas que a estação espacial soviética está enfrentando em órbita do planeta chamado Solaris – um relato de morte e eventos inexplicáveis. Cientistas na estação tentam compreender os mistérios de um gigantesco oceano que ocupa toda a superfície do planeta. Um enigma tão complexo que até existe uma especialização dentro da Ciência: a “Solarística”. Sugerindo que a tripulação da estação está há muito tempo orbitando o planeta.

Kelvin embarca para a estação (como sempre, Tarkovsky apenas sugere essa viagem o que, no final, criará uma perturbadora ambiguidade) para encontrar um membro da tripulação morto  e outros dois cientistas profundamente perturbados pelos estranhos eventos que vêm ocorrendo.
Tarkovsky nos entrega logo o argumento principal de Solaris: quando o oceano do planeta foi investigado através de intensos bombardeios de raio X, em resposta o oceano também começou a sondar a mente dos cosmonautas, materializando como entidades vivas as memórias mais profundas dos tripulantes – pessoas vivas ou mortas, amadas ou odiadas.
Após ver o vídeo do relato cheio de informações e alertas de um cientista que havia se matado, Kelvin assustado se depara com uma duplicata da sua esposa que também se matou, Khari (Natalya Bondarchuck). Mas não é apenas uma manifestação física: está viva, consciente, porém com lacunas de memória.
Ela questiona Kelvin: quer saber porque se matou, conhecer mais sobre si mesma. Porém, acaba se desanimando ao perceber que jamais será quem aparenta ser. Até certo ponto, seu ser é limitado pelo quanto Kelvin sabe sobre Khari, já que o Oceano de Solaris não pode saber mais do Kelvin sabe.
Esse é o ponto central do argumento do filme de Tarkovsky: os cosmonautas tratam as entidades como estranhos seres alienígenas – eles as chamam de “hóspedes”. Tentam mata-las, mas sempre voltam em novas versões. Algo como o “retorno do reprimido” do dinamismo psíquico descrito por Freud.
Mas, no final, o Oceano parece ser aquilo que Stanislaw Lem nos advertiu: no espaço, encontraremos o espelho de nós mesmos. E a solidão: a verdade de que o Universo inteiro foi feito apenas para conter a solidão humana.

17/06/2020

Curva do destino (Detour), 1945, Edgar G. Ulmer



Taí um clássico que não admite discussões.

Curva do destino no youtube

18/06/2020
Aquele que sabe viver (Il sorpasso), 1962, Dino Risi.



Filme clássico de Dino Risi de 1962. E tem a mão de Ettore Scola no roteiro.