segunda-feira, 18 de março de 2019

Ana Paula e a vida na senzala


Separados por 24 anos e 9.500 km, mãe e filho se reúnem em SP após tragédia
Adotado por suíços, Kilian Imwinkelried acha Ana Paula Archangelo em foto da Folha após incêndio

Marlene Bergamo
Folha de São Paulo, 17/03/2019

No primeiro dia de maio de 2018, centenas de famíliasperderam o teto quando o edifício Wilton Paes de Almeida, no centro de São Paulo, desabou após um incêndio derreter sua estrutura.
Uma delas era a de Ana Paula Archangelo dos Santos, que vivia num cômodo com quatro dos sete filhos, o marido, dois netos órfãos e uma nora, pelo qual pagava R$ 200 mensais. Com outros sobreviventes, passou a acampar perto dos escombros, no largo da Igreja Nossa Senhora dos Homens Pretos.
A Folha registrou o drama, e Ana Paula, então uma das líderes do acampamento, apareceu em uma reportagem.
Seis meses depois, em novembro de 2018, uma mensagem em inglês chegou em uma rede social, por causa da foto. "Hello and a very good morning Marlene! Sei que você não me conhece, mas vou explicar", dizia o texto. A mulher retratada na reportagem, explicou o remetente, poderia ser sua mãe.

 

"Tenho 24 anos e estou tentando descobrir meu passado. Comecei a pesquisar online e encontrei uma reportagem na Folha de S.Paulo", escreveu.
Kilian Imwinkelried foi adotado em São Paulo por um casal suíço logo após o nascimento. "Em meus documentos, o nome da minha mãe biológica é Ana Paula Archangelo dos Santos. Ela tem hoje 48 anos. São os mesmos nome e idade citados na reportagem. Na foto que você tirou, vejo muita semelhança comigo!"
E pergunta: "Sabe algo sobre ela? Meu nome de nascimento é Vitor Leonardo Archangelo dos Santos. Espero a resposta. Ficaria muito feliz".
Respondi que o acampamento já não existia, mas que lideranças do Movimento dos Sem Teto do Centro poderiam dar alguma pista. "Vou tentar encontrar sua mãe", escrevi.
Com a ajuda das lideranças, Ana foi localizada na "feira do rolo", a aglomeração que se forma diariamente perto dos escombros do edifício onde vendedores e compradores negociam coisas usadas. Ali ela vende café, bolo, lanche e cigarro avulso para sustentar toda a família.

 

Ana não se lembra bem da cronologia da sua vida. "Ai, menina, são tantos filhos, é tanto problema". Confirmou que um deles foi para adoção, mas duvidava que fosse o mesmo menino. "Como pode? Só vejo isso na TV."
Ao ver a foto do rapaz que hoje vive na Suíça, porém, a descrença se desfez em choro. "Ele é igual a meu filho Gabriel. Tem o mesmo sorriso do meu outro filho, William, que mataram aqui. Ô meu Deus, por que que eu fiz isso?"
Ana descobriu aos 23 anos que esperava o terceiro filho. A economia brasileira ia mal, a inflação beirava 40% e o desemprego era uma ameaça. Ela fora expulsa da casa da mãe e ficara sem trabalho até conseguir emprego na casa de uma família. A patroa, ao saber da gravidez, avisou: "Você não vai poder ficar aqui com essa criança". Ganhando 50 cruzeiros por mês (o equivalente a R$ 930 hoje), dormia na casa e era pau pra toda obra.

https://www.youtube.com/watch?time_continue=168&v=2KtAC-OfiBo

"Eram três empregadas, copeira, faxineira, e eu, que fazia tudo." Era ela quem cuidava das crianças. "Dava banho, comida, levava pra escola, botava pra dormir."

Ana não conseguia decidir o que fazer. Precisava mandar dinheiro aos pais, que criavam seus filhos mais velhos. Não podia perder o emprego e não tinha pra onde ir. "Ia ficar onde com a criança? Ninguém fica com empregada grávida."
Do outro lado do planeta, em Fiesch, povoado nos Alpes suíços, a enfermeira Yvonne tentava ser mãe. Tinha 29 anos e nenhuma barreira física, mas o filho demorava.
Ela e o marido, Franz Imwinkelried, decidiram pela adoção após conhecer a Braskind, ONG que orientava e habilitava casais dispostos à adoção internacional no Brasil.
Ana ainda achava que poderia manter o filho após a patroa lhe dar berço e roupas pro bebê. "Ele ia ficar dentro do meu quartinho, trocado, mamado, eu dava carinho e voltava pra trabalhar. Quando fosse a hora do meu sossego eu ficava com ele." Não foi o que aconteceu. "O marido dela não deixou."
Ana procurou a Assistência Social. "Pensei que iam me ajudar a achar um lugar pra ficar com ele, mas só perguntaram se eu queria dar o bebê." A essa altura ela não via outra saída.
"Eu não queria fazer isso, mas ele era pequenininho, não ia saber o que estava acontecendo, e alguém ia cuidar bem dele. Eu tinha que pensar nos outros dois filhos também."
No Hospital Infantil Menino Jesus, nasceu Vitor Leonardo Archangelo dos Santos, prematuro de oito meses.
"Eles tiraram ele de dentro de mim, enrolaram em um pano, colocaram a pulseirinha com o meu nome e levaram. Nem amamentar cinco minutinhos deixaram. Disseram que, se eu não ia ficar com a criança, era melhor assim."
Quando o patrão perguntou do bebê, ela disse que sua família tinha levado embora.
Yvonne e Franz receberam o menino na casa do juiz Antônio Augusto Guimarães de Souza, que havia deferido a adoção. "Foi nessa sala, ao lado desse piano", aponta Souza.
Naquela época, a maioria dos casais brasileiros não aceitava um menino que não fosse branco. "Se eles [Yvonne e Franz] não tivessem adotado, ele teria crescido num abrigo."
Com três semanas, Vitor Leonardo Archangelo dos Santos foi levado do Brasil e chamado de Kilian Imwinkelried. Ana não soube mais dele.
Vinte e quatro anos depois, na Suíça, Kilian Imwinkelried se recuperava de uma crise depressiva, e o desejo de buscar suas raízes se intensificava.
"Eu vivo em um país onde as pessoas são calmas, discretas, pontuais. O tempo todo eu sabia que havia coisas que eu tinha herdado do Brasil. Amo música brasileira, amo dançar, cantar, e isso é uma coisa que os brasileiros têm no sangue", afirma. Yvonne fala do filho com carinho: "Ele sempre foi nosso sunny boy [garoto ensolarado]".
Ao completarem 30 anos de casamento, Yvonne e Franz decidiram celebrar no Brasil com os dois filhos, Kilian e Bruno, 23, ambos nascidos aqui. Era a chance de os meninos conhecerem sua origem.
Ao saber da ideia dos pais, Kilian resolveu iniciar uma investigação. Deu procuração a Antônio Augusto, que se tornou advogado após se aposentar da carreira de juiz, para que acessasse seu processo de adoção no Brasil. Enquanto isso, volta e meia escrevia o nome "Ana Paula Archangelo dos Santos" nos buscadores da internet.
Foi assim que, em 22 de novembro de 2018, ele encontrou a reportagem da Folha que contava o drama das famílias sobreviventes do incêndio do Wilton Paes. Quando viu Ana Paula na reportagem, Kilian achou que havia encontrado sua mãe biológica. "Não foi por causa do nome ou da idade. Vendo a foto mais de perto, eu me vi nela. Seu nariz, a boca, as mãos. Eu fiquei surpreso e em choque."
Demoraria até 4 de fevereiro deste ano para que os dois se encontrassem em uma esquina do Largo do Paissandu, até então um cenário de tragédias na vida de Ana. Ali seu filho mais velho, William, foi assassinado em um Dia das Mães. Ali ela acampara entre escombros. Mas ali foi feita a foto para a reportagem pela qual o filho a reconheceu.
Enquanto espera, na porta de um hotel, Kilian fuma. Yvonne se aproxima, mas o filho está calado, nervoso.
Eles aguardam o carro que o levará ao centro para encontrar Ana. Em outro carro, os pais vão buscar o advogado Antônio, que virou amigo da família.
Já no veículo, Bruno, seu irmão mais novo, comenta: "Quer dizer que você vai encontrar a sua mãe?". Kilian olha pela janela. "Não sei o que vai acontecer, mas meu coração está 'bum-bum-bum'."
A minutos dali, Ana espera em pé, na calçada do outro lado da Igreja dos Homens Pretos. Três dos filhos estão com ela —Stéfani, Gabriel, Tati. As lágrimas escorrem. Tati reclama. "Já vai chorar, mãe?"
Ana ergue a cabeça e respira fundo. "Ele deve vir de lá... Não? É do outro lado?". De repente fixa o olhar e sorri. "Eu já vi ele, ó, tá vindo. Ai meu Deus, eu não vou aguentar!"


 
Kilian, do outro lado da rua, respira: "Here we go!", vamos lá. E inicia a travessia que vai levá-lo de encontro à realidade que poderia ter sido a sua.
Os dois se abraçam. Ele sorri, emocionado. Ana chora muito e pede "me perdoa, meu filho, me perdoa". O filho não entende bem, mas tenta acalmá-la em português com sotaque: "Todo bem, todo bem".
Ana segura sua mão e o leva até Tati, Gabriel e Stéfani. Os irmãos nunca souberam que ele existia e estão surpresos. "Essa é a Stéfani." O abraço se prolonga e Kilian desaba. Chorando muito, encosta a cabeça no ombro da adolescente de 16 anos. "My little sister."
Tati se aproxima, Kilian pergunta, confundindo-a com uma amiga da família. "Are you a friend of them?".
Ela responde: "Não, eu falo português." Alguém conta que ela também é sua irmã. Gabriel chega sorrindo e entrega o filho bebê para o irmão suíço segurar.
A roda abre e chega David, um amigo que ajudará na tradução. Kilian fala em alemão: "Tenho tantas perguntas".
O próximo abraço de Ana é em Yvonne, ainda aos prantos: "Muito obrigada por tomar conta do meu filho."
Yvonne retribui também com sotaque. "Monto obregada." Faz um carinho tímido em seu braço, tentando consolá-la.
Ana chama David: "Ajuda? Eu quero falar uma coisa pra ela." Yvonne escuta: "Eu nunca vou querer tirar ele de você. Ele é teu filho. Vocês são a família dele". Yvonne e Franz respondem: "Nós somos muito felizes por sermos os pais dele. Nós o amamos muito".
Uma semana depois, Ana e os filhos fizeram um almoço para Kilian e sua família suíça na casa de Gabriel na Brasilândia, zona norte de São Paulo.
Serviram maionese de batata, arroz, churrasco, farofa, cerveja, uma garrafa de uísque e caipirinha. De sobremesa, pudim e bolo prestígio.
O casal suíço contribuiu bancando os ingredientes e levou duas garrafas de vinho branco. Uma nem foi aberta, a caipirinha venceu a disputa.
A festa estava lotada de crianças. Kilian e os irmãos cantaram, dançaram, fumaram narguile e tiraram selfies.
Num dado momento, Ana levou Kilian ao mercadinho da esquina, na viela esburacada. Ela mostrava o lugar: "Aqui, ó, é a comunidade". Por onde passava Ana apresentava: "Esse é meu filho, ele mora na Suíça".
No boteco alguém ofereceu a Kilian um copo cheio de cachaça. Depois de beber tudo num trago só e de sentir o efeito da bebida, ele sacudiu a cabeça e gritou: "Brésil!". Ana soltou uma gargalhada: "Nossa, ele virou tudo! Hahaha!"
No dia seguinte, Kilian voltou à Suiça, onde estuda economia e trabalha em uma seguradora. Ele sonha em ser cantor profissional.
A vida de Ana segue como sempre foi. No dia da viagem de Kilian, ela foi despejada da casa em que vivia por não poder pagar o aluguel de R$ 600. Na feira, a repressão policial aumentou e ela quase não consegue trabalhar. Sua renda não chega a R$ 10 por dia.
Para conseguir "pelo menos pro café da manhã" dos filhos menores, Kauã e Wesley, e dos netos órfãos ela às vezes cata latinhas.
Kilian está ensaiando um musical e, ainda neste ano, diz que vai voltar ao Brasil. Todos os dias, pelo WhatsApp, ele dá bom dia à mãe e aos irmãos, em português.



 

 

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