sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

SALTEADORES DA TESSÁLIA

Machado de Assis (1893, novembro)

Tudo isto cansa, tudo isto exaure. Este sol é o mesmo sol, debaixo do qual, segundo uma palavra antiga, nada existe que seja novo. A lua não é outra lua. O céu azul ou embruscado, as estrelas e as nuvens, o galo da madrugada, é tudo a mesma coisa. Lá vai um para a banca da advocacia, outro para o gabinete médico, este vende, aquele compra, aquele outro empresta, enquanto a chuva cai ou não cai, e o vento sopre ou não; mas sempre o mesmo vento e a mesma chuva. Tudo isto cansa, tudo isto exaure.

Tal era a reflexão que eu fazia comigo, quando me trouxeram os jornais. Que me diriam eles que não fosse velho? A guerra é velha, quase tão velha como a paz. Os próprios diários são decrépitos. A primeira crônica do mundo é justamente a que conta a primeira semana dele, dia por dia até o sétimo em que o Senhor descansou. O cronista bíblico omite a causa do descanso divino; podemos supor que não foi outra senão o sentimento da caducidade da obra.

Repito, que me trariam os diários? As mesmas notícias locais e estrangeiras, os furtos do Rio e de Londres, as damas da Bahia e de Constantinopla, um incêndio em Olinda, uma tempestade em Chicago, as cebolas do Egito, os juízes de Berlim, a paz de Varsóvia, os Mistérios de Paris, a Lua de Londres, o Carnaval de Veneza... Abri-os sem curiosidade, li-os sem interesse, deixando que os olhos caíssem pelas colunas abaixo, ao peso do próprio fastio. Mas os diabos estacaram de repente, leram, releram e mal puderam crer no que liam. Julgai por vós mesmos.

Antes de ir adiante, é preciso saber a idéia que faço de um legislador, e a que faço de um salteador. Provavelmente, é a vossa. O legislador é o homem deputado pelo povo para votar os seus impostos e leis. É um cidadão ordeiro, ora implacável e violento, ora tolerante e brando, membro de uma câmara que redige, discute e vota as regras do governo, os deveres do cidadão, as penas do crime. O salteador é o contrário. O ofício deste é justamente infringir as leis que o outro decreta. Inimigo delas, contrário à sociedade e à humanidade, tem por gosto, prática e religião tirar a bolsa aos homens, e, se for preciso, a vida. Foge naturalmente aos tribunais, e, por antecipação, aos agentes de polícia. A sua arma é uma espingarda; para que lhe serviriam penas, a não serem de ouro? Uma espingarda, um punhal, olho vivo, pé leve, e mato, eis tudo o que ele pede ao céu. O mais é com ele.

Dadas estas noções elementares, imaginai com que alvoroço li esta notícia de uma de nossas folhas: "Na Grécia foi preso o deputado Talis, e expediu-se ordem de prisão contra outros deputados, por fazerem parte de uma quadrilha de salteadores, que infesta a província de Tessália". Dou-vos dez minutos de incredulidade para o caso de não haverdes lido a notícia; e, se vos acomodais da monotonia da vida, podeis clamar contra semelhante acumulação. Chamai bárbara à moderna Grécia, chamai-lhe opereta, pouco importa. Eu chamo-lhe sublime.

Sim, essa mistura de discurso e carabina, esse apoiar o ministério com um voto de confiança às duas horas da tarde, e ir espreitá-lo às cinco, à beira da estrada, para tirar-lhe os restos do subsídio, não é comum, nem rara, é única. As instituições parlamentares não apresentam em parte nenhuma esta variante. Ao contrário, quaisquer que sejam as modificações de clima, de raça ou de costumes, o regímen das câmaras difere pouco, e, ainda que difira muito, não irá ao ponto de pôr na mesma curul Catão e Caco. Há alguma coisa nova debaixo do sol.

Durante meia hora fiquei como fora de mim. A situação é, na verdade, aristofanesca. Só a mão do grande cômico podia inventar e cumprir tão extraordinária facécia. A folha que dá a notícia não conta nada da provável confusão de linguagem que há de haver nos dois ofícios. Quando algum daqueles deputados tivesse de falar na Câmara, em vez de pedir a palavra, podia muito bem pedir a bolsa ou a vida. Vice-versa, agredindo um viajante, pedir-lhe-ia dois minutos de atenção. E nada ficaria, em absoluto, fora do seu lugar; com dois minutos de atenção se tira o relógio a um homem, e mais de um na Câmara preferiria entregar a bolsa a ouvir um discurso.

Mas, por todos os deuses do Olimpo! não há gosto perfeito na terra. No melhor da alegria, acudiu-me à lembrança o livro de Edmond About, onde me pareceu que havia alguma coisa semelhante à notícia. Corri a ele; achei a cena dos maniotas, que ameaçavam brandamente um dos amigos do autor, se lhes não desse uma pequena quantia. O chefe do grupo era empregado subalterno da administração local. About chega, ameaça por sua vez os homens, e, para assustá-los, cita o nome de um deputado para quem levava carta de recomendação. "Fulano! exclamou o chefe da quadrilha, rindo; conheço muito, é dos nossos."

Assim, pois, nem isto é novo! Já existia há quarenta anos! A novidade está no mandado de prisão, se é a primeira vez que ele se expede, ou se até agora os homens faziam um dos dois ofícios discretamente. Fiquei triste. Eis aí, tornamos à velha divisão de classes, que a terra de Homero podia destruir pela forma audaz de Talis. Aí volta a monotonia das funções separadas, isto é, uma restrição à liberdade das profissões. A própria poesia perde com isto; ninguém ignora que o salteador, na arte, é um caráter generoso e nobre. Talis, se é assim que se lhe escreve o nome, pode ser que tivesse ganho um par de sapatos a tiro de espingarda; mas estou certo que proporia na Câmara uma pensão à viúva da vítima. São duas operações diversas, e a diversidade é o próprio espírito grego. Adeus, minha ilusão de um instante! Tudo continua a ser velho; nihil sub sole novum.

Eu pediria o perdão de Talis, se pudesse ser ouvido. Condenem os demais, se querem, mas deixem um, Talis ou outro qualquer, um funcionário duplo, que tire ao parlamento grego o aspecto de uma instituição aborrecida. Que a Hélade deite os ministérios abaixo, se lhe apraz, mas não atire às águas do Eurotas um elemento de aventura e de poesia. Acabou com o turco, acabe com este modernismo, que é outro turco, diferente do primeiro em não ser silencioso. Não esqueça que Byron, um dos seus grandes amigos, deixou o parlamento britânico para fugir à discussão da resposta à fala do trono. E repare que não há, entre os seus poemas, nenhum que se chame O presidente do conselho, mas há um que se chama O Corsário.

Machado de Assis, Obra Completa, Volume 2, Editôra José Aguilar, 1962, p. 645


sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Sexo sem culpa

Cena 1

Joy: Não quero transar do mesmo jeito de sempre. Eu me recuso! 
Alan: Se transássemos do mesmo jeito de sempre, estaríamos, pelo menos, transando.
Joy: Por que não tentar algo diferente? Porque? Por que não vê isso como uma
oportunidade para tentar...
Alan: Ficarei feliz em tentar algo novo. Só não quero tentar algo idiota e completamente ridículo!

Cena 2

Alan: Joy, eu sinto muito, mas eu e Claire transamos. Eu sinto muito. Sinto muito, muito mesmo
Joy: Alan, bati uma pra um homem da minha hidroterapia.
Alan: O quê? Puta merda. Quando?
Joy: Hoje à tarde.
Alan: Mas como? Quem? Quem poderia...
Joy: Está nervoso e com raiva, e eu posso entender isso, mas será que podemos ao menos tentar...tentar reconhecer que nós dois temos culpa?
Alan: Certo. Está bem. Sinto muito.
Joy: Deve sentir mesmo. Trepou com a colega, drogado. Deve sentir muito.

Cena 3

Joy: Não gosto de transar com você. Acho que nos últimos...recentemente, nos últimos, não sei, dois, três, quatros anos...Não tenho curtido nossa vida sexual. Acho que paramos de nos divertir. Acho que, de alguma forma, nos tornamos extremamente chatos na cama. Não quero reinventar a roda toda vez que for transar. Mas, sabe, às vezes, eu quero fazer algo diferente, ou já quis fazer algo diferente.
Alan: Não sei se entendo onde quer chegar.
Joy: Quer transar com Claire de novo? Sim ou não? A única forma de isso acabar bem é se você responder honestamente.
Alan: Merda. Sim. Claro que eu transaria.
Joy: Eu veria Marvin de novo? O nome dele é Marvin.
Joy: Então por que não fazemos isso?

Estas cenas são da série (imperdível) Wanderlust, 2018 da Netflix

https://www.imdb.com/title/tt7608238/

Escrita para o teatro pelo dramaturgo-prodígio britânico Nick Payne quando ele tinha 26 anos, em 2010, a peça trata de um casal de meia idade, com três filhos, e entediado com sua vida sexual. Um acidente banal os faz repensar a situação.
Decididos a redescobrir o desejo, a terapeuta conjugal Joy (Toni Colette) e o professor Alan (Steven Mackintosh) decidem pelo sexo sem culpa. E a sair com outras pessoas e manter relacionamentos paralelos. Tudo transparente e sem traumas sobre infidelidade e traição.

https://www.youtube.com/watch?time_continue=46&v=3OCSo5kdnc4

Ver erodir o cotidiano matrimonial de Joy e Alan (que Mackintosh calibra com força suficiente para não ser engolido por Collette, sem, contudo, tentar competir) no primeiro episódio é uma experiência, na melhor das hipóteses, excruciante. São diálogos tão crus e carregados de neuroses e medos que é difícil não ser tocado por aquela rotina moribunda e imediatamente simpatizar com a ideia escapista da salvação, torcendo para que a relação sobreviva. (Luciana Coelho)

Joy e Alan são casados há 20 anos e têm duas filhas e um filho adolescentes. Dos três quando informados sobre a nova vida da mãe e pai reagem de forma diferente. E quem fica mais revoltado? O filho. Freud explica.

O casal viveu por um tempo o sexo sem culpa. Joy com Marvin (Willian Ash) depois Lawrence (Paul Kaye) etc. Allan com Claire (Zawe Ashton) com direito a paixão mútua.

Durou até Alan sair de casa, morar com Claire por um tempo (ele um cara muito chato com mania obsessiva de organização). Joy insaciável e frequentemente em terapia com sua supervisora Angela (Sophie Okonedo, brilhante como sempre).


Resumo da ópera

Alan volta para casa. Para a “sagrada família”. Joy parou, por enquanto, de inventar mulheres para si.

A cena final é de uma crueza estonteante. Joy acorda nua, vai para a janela, e a câmera no rosto de Joy. Ela olha para Alan dormindo na cama do casal. Primeiro sorriso amarelo e depois termina com esta expressão.

O traço do gesto (Arnaldo Antunes)



domingo, 16 de dezembro de 2018

Yawanawás

SEBASTIÃO SALGADO NA AMAZÔNIA
Um olho na tradição da floresta, outro conectado ao mundo, a comunidade yawanawá, do Acre, vive seu renascimento cultural e é referência em empreendedorismo –após ter sido dizimada e perseguida nos anos 1970

O povo ressuscitou, cresceu e ganhou a aldeia global

Leão Serva

TARAUACÁ (AC)

O índio yawanawá Miró, também conhecido como Viná, 
e seu adereço de cabeça adornado com bico de gavião-real

Na contramão do que se costuma ouvir sobre índios brasileiros, os yawanawás, habitantes da Terra Indígena Rio Gregório, no Acre, são hoje um exemplo de exuberância cultural e populacional.
Reduzidos a 120 indivíduos no auge da ditadura militar, no início da década de 1970, esquecidos de suas tradições e sofrendo com um altíssimo índice de alcoolismo e uma grave desagregação social, eles estavam virtualmente extintos.
Agora, meio século após a quase extinção, os yawanawás já estão reacostumados aos seus mais antigos rituais, falam a língua ancestral e, além disso, se conectam ao mundo contemporâneo usando smartphones e computadores por meio de uma antena de wi-fi instalada na aldeia.

A população atual, de cerca de 1.200 pessoas, é dez vezes a registrada nos anos 1970.

Um dos maiores sinais de sua degradação cultural era o desaparecimento da língua. Eles eram pressionados a não usá-la diante de não índios, principalmente por dois agentes externos que controlavam de forma férrea a região em que moram. Em primeiro lugar, os donos dos seringais, que dominaram as florestas do Acre desde o final do século 19. Eles empregavam os indígenas em condições de escravidão e não queriam que a língua pudesse revelar a existência de índios capazes de reivindicar a propriedade da terra.
Em segundo lugar, a missão evangélica que havia imposto ali o culto cristão e cujos religiosos atacavam os ritos indígenas tradicionais e os classificavam como demoníacos.
“Nossa língua foi proibida, só os velhos a conheciam, as crianças só aprendiam o português. Nossas crenças e tradições eram consideradas diabólicas pelos missionários, e muitos de nós acreditávamos nisso. Passamos a viver como escravos no trabalho e na cultura”, conta o cacique Biraci Yawanawá, o Bira, de 54 anos. A guinada começou nos anos 1980.
O cacique explica que no início dos anos 1990, quando vivia em Rio Branco, a capital do estado, foi chamado pelos líderes mais velhos para assumir a liderança do grupo.
Para voltar à aldeia e liderar a comunidade, Bira impôs condições que, aceitas, resultaram numa espécie de revolução cultural.
Ele expulsou a missão religiosa dali, restabeleceu o ensino da língua tradicional e passou a incentivar o estudo dos antigos mitos e histórias pelo grupo, como forma de religar as novas gerações aos conhecimentos e memórias dos ancestrais.

Vovó Alzira, da aldeia Mutum
As mudanças incluíram o local da aldeia: para melhor controlar o acesso à reserva, demarcada em 1987, Bira comandou o deslocamento da comunidade principal para uma colina às margens do Gregório, de onde se pode ver quem sobe ou desce o rio. Nascia a Nova Esperança.
Após mais de um quarto de século, os yawanawás são referência da força cultural que índios, quando controlam suas terras, podem conquistar ao combinar cultura tradicional e empreendedorismo.

Com terra demarcada, vento passa a soprar a favor da comunidade

No início dos anos 1970, quando a ditadura militar pregava a ocupação da Amazônia sob o slogan “Uma terra sem gente para gente sem terra”, os yawanawás, gente que habitava aquela terra, estavam quase extintos.
Eles mal resistiram a cerca de um século do ciclo da borracha, que resultou no domínio de seu território por seringais e fazendas, na submissão ao trabalho escravo e em uma epidemia de consumo de álcool. Apenas os mais velhos falavam o idioma yawanawá. A língua só era usada em ambiente doméstico.

Kanamashi, filha de Toata, da aldeia Amparo
Conforme a memória dos índios, o contato com os brancos ocorreu no auge do ciclo da borracha, entre o final do século 19 e o início do 20. O líder indígena à época era Antônio Luís, morador de uma comunidade que ficava onde hoje o cacique Bira quer implantar uma outra, que se chamará Aldeia Sagrada.
Segundo Bira, os donos do seringal Kashinawá decidiram instalar sua sede no rio Gregório, na margem oposta à da aldeia de Antônio Luís. A empresa ficou ali até a demarcação da terra indígena, nos anos 1980. O destino passou a soprar a favor dos yawanawás desde que suas terras foram reconhecidas, em 1982, e os seringalistas foram desapropriados pelo governo federal.
O atual momento positivo não é apenas um dado de sorte: os índios tiveram uma visão de futuro, se prepararam para ser globais.
Grande parte desse movimento é atribuída à liderança de Raimundo Tuinkuru (1929-2010), filho de Antônio Luís, que conduziu os yawanawás durante a ditadura militar e o processo de recuperação cultural, a partir dos anos 1980.
Sogro do cacique Biraci, pai das pajés Hushahu e Putani (mulher de Biraci) e do líder Joaquim Tashka, Tuinkuru foi o responsável por enviar jovens à capital do Acre e ao exterior para que aprendessem a lidar com a cultura contemporânea.
Em 1982, Biraci foi morar em Rio Branco, de onde voltou dez anos depois como líder da Nova Esperança. Mais tarde, Joaquim foi estudar por cinco anos em Santa Bárbara, na Califórnia, Estados Unidos. Ao retornar, ele assumiu a liderança da aldeia Mutum.
Biraci conta que ao voltar da capital, em 1992, 99% de seus familiares eram protestantes. “As famílias não falavam mais nossa língua, os pastores tratavam nossos ritos tradicionais como diabólicos. Em um momento, com 18 anos, chamei os pastores da missão e disse: ‘Vocês têm 24 horas para sair daqui’”.
Ele exigiu também que todas as bíblias cristãs fossem queimadas e proibiu álcool nas aldeias. Depois, foram implantadas escolas com aulas na língua yawanawá para as crianças da comunidade.
“Chegamos ao fundo do poço em 1982. Comparado àquele momento, vivemos um renascimento cultural e espiritual”, diz Joaquim Tashka, líder da aldeia Mutum. “A população cresceu e 50% das pessoas falam a língua, o que é um salto grande. Hoje nos relacionamos com o mundo, sempre de olho em nossa tradição.”

 Pakayuvá, da aldeia Nova Esperança 

A partir de um primeiro festival, em 1982, os índios passaram a promover grandes encontros para a celebração de sua cultura, que reúnem hoje centenas de turistas. Além do prestígio, esse turismo cultural representa sólida fonte de receitas.
Em 2001, os líderes da comunidade fizeram um plano estratégico para as décadas seguintes.
“Foi uma grande reflexão sobre o que seria o nosso futuro e, neste momento, 18 anos depois, vemos que realizamos 80% do que sonhamos. Agora, estamos organizando o Plano de Vida Yawanawá, que vai projetar o futuro: como vamos fazer bom uso de nosso território? Como vamos usar as novas economias para não destruir o patrimônio? Nosso desafio agora é pensar como queremos avançar ainda mais para o futuro.”
Os planos incluem a criação de uma Universidade dos Saberes Tradicionais Yawanawá, com projeto do designer paulista Marcelo Rosenbaum, apaixonado pela cultura local, a ser desenvolvido na área da antiga comunidade Aldeia Sagrada.

YAWANAWÁ SIGNIFICA POVO DA QUEIXADA, ALUSÃO AO TEMIDO PORCO SELVAGEM

Olhando o mapa da Amazônia, se o observador traçar uma reta entre o rio Guaporé, no sul de Rondônia, e Tabatinga, no estado do Amazonas –onde o rio Solimões adentra o território brasileiro, na tríplice fronteira com a Colômbia e o Peru, no extremo oeste–, vai encontrar ao longo dessa linha diagonal de quase 1.500 quilômetros uma grande lista de povos de um mesmo tronco linguístico, chamado pano.

 Com rosto pintado de jenipapo, a menina Naun, filha de Matsini, da aldeia Mutum

O tronco pano é comum em áreas do Amazonas, do Acre e de Rondônia – e também no Peru e na Bolívia.
Segundo os arqueólogos, data de quase dois milênios desde que os primeiros índios desse grupo migraram do rio Guaporé, em Rondônia, para o norte, chegando até os Andes e as margens do Solimões.
Como seus vizinhos ashaninkas, povos de língua pano devem ter mantido intercâmbio intenso com o império inca, o que explica referências, nas histórias dos yawanawás, a heróis denominados ”Inka” e a um tempo longínquo “em que viviam sob domínio do ”Inka”. Tais referências aparecem nas memórias de outras etnias de seu tronco linguístico, como a kashinawá e a marubo.
Esse corredor do tronco pano teve origem, provavelmente, no lugar em que hoje está o estado de Rondônia, de onde um ou alguns povos de língua similar começaram a migrar em direção ao norte, há pouco menos de 2.000 anos.
Eles se espalharam em torno dos rios Javari, Juruá e Purus, sendo que alguns grupos entraram na região do Ucaialy, no Peru, até as encostas dos Andes, como explica Philippe Erikson em “História dos Índios no Brasil” (1998).
Estudos arqueológicos mostram que esses índios foram os senhores dessa vasta planície úmida até em torno do século 9 d.C., quando um ou mais grupos de língua arawak (como os ashaninkas), vindos do norte e do oeste, conquistaram territórios entre o grupo pano, separando uns dos outros.
É provável que, quando foi rompida a unidade dos povos, se tenha iniciado a formação de dialetos e o desenvolvimento de línguas diferentes. Mesmo assim, há uma homogeneidade linguística.
Na língua pano, há duas palavras para “povo” ou “gente”: ”nawá” e ”bo”.
Por isso, as diversas etnias são geralmente conhecidas por esses dois sufixos em seus nomes: yawanawá, yaminawá e kaxinawá, por exemplo, ou marubo, korubo, shipibo, conibo.
Há até um mesmo nome, com terminação diferente, para dois grupos que moram em áreas distantes, os brasileiros kaxinawás, do Acre, e os cashibos, do Peru.
Os nomes pelos quais são conhecidos os povos do grupo pano são em geral aqueles que outros grupos lhes deram, frequentemente pejorativos.
É comum os índios não gostarem dos termos pelos quais são oficialmente conhecidos. ”Kaxi”, por exemplo, quer dizer “vampiro”. Os kaxinawás (“povo do vampiro”), recentemente, adotaram outro nome oficial: huni-kuin, que quer dizer “homens verdadeiros”, expressão usada por muitos povos do tronco pano para autodefinição. Yawanawá quer dizer “povo da queixada”, referência ao porco selvagem. Diferentemente de outros grupos, esses indígenas têm orgulho dessa designação: a queixada é um dos animais mais temidos da floresta por andar em bandos coesos e assim vencer seus predadores.
Segundo a enciclopédia digital “Povos Indígenas no Brasil”, do Instituto Socioambiental, os grupos pano designados como nawásformam um subgrupo dessa família por terem línguas e culturas muito próximas e por terem sido vizinhos durante um longo tempo.
Quem anda pela rua na cidade acriana de Cruzeiro do Sul, referência urbana para muitos índios do Acre e do oeste do estado do Amazonas, testemunha com facilidade conversas fluentes entre kaxinawás e marubos ou, com alguma dificuldade, com yawanawás.
Os idiomas são parecidos, o que torna um falante de língua pano o tradutor preferencial para os contatos com vários outros: os kaxinawás conversam com os marubos, que falam com os matsés, que se entendem com os matis, que compreendem os korubos…

 Maria Clara, da aldeia Mutum 
Contra o processo de redução populacional sofrido ao longo do século 20, os yawanawás incorporaram muitos indivíduos de outras etnias do grupo pano, como araras, shanenawás, rununawás, yaminawás e katukina-panos.
Diferentemente de outros grupos linguísticos, como o tupi, que inclui etnias muito dispersas e diferentes, as do grupo pano cultivam proximidade e intercâmbio cultural. Pessoas de diferentes grupos étnicos podem conversar entre si.
O cacique Bira conta, por exemplo, que os yawanawás têm recebido dos grupos de índios xipibos e konibos, do Peru, muitas informações sobre tradições agrícolas e espécies vegetais que haviam sido esquecidas por seu povo durante os anos de processo de quase extinção.

Gavião está no mito de origem dos índios do grupo pano

Segundo o mito narrado pelo cacique Biraci Nixiwaká Yawanawá, os povos panos nasceram das penas de um gavião-real. “De seu ninho no alto de uma sumaúma, o gavião saía a caçar para alimentar os filhotes. Quando faltaram presas na floresta, passou a capturar crianças índias. Um dia, um caboclo da aldeia construiu uma escada para chegar até o ninho. Ao alcançá-lo, matou a ave e tirou suas penas, guardando-as em um cesto. Desceu e foi para sua casa. À noite, ouviu um rebuliço. Abriu o cesto, não viu nada, só as penas. Isso se repetiu por vários dias, até que em uma manhã começaram a sair do cesto crianças pulando de alegria. Cada uma dizia seu nome: Shawãdawa, Yawanawá, Kaxinawá, Xaranawá, Duwanawá, Poyanawá etc. Eram os povos da língua pano.”

Projeto de Aldeia Sagrada mistura passado e futuro

Os yawanawás da comunidade Nova Esperança acalentam o plano de criação da Aldeia Sagrada, a ser erguida no local onde viviam seus antepassados até a implantação de um seringal onde, por décadas, os índios foram obrigados a trabalhar. O projeto é uma viagem ao passado e ao futuro; a pretensão é erguer no local construções inspiradas no estilo indígena tradicional, mas com recursos da arquitetura contemporânea. O responsável é o designer paulista Marcelo Rosenbaum, que pretende criar uma espécie de Minha Casa Minha Vida rural, com adaptação das regras do projeto estatal de habitação popular para as condições específicas da floresta e uso de materiais da região.

 Miró, um dos especialistas em artes plumárias, 
prepara cocar que será usado pelos líderes durante rituais na aldeia

Líderes ligam aldeia ao mundo contemporâneo

Joaquim Tashka Yawanawá é um exemplo da inserção dos yawanawás na globalização. O líder da comunidade Mutum é uma espécie de embaixador de seu povo desde que foi escolhido pelos líderes mais velhos para estudar nos Estados Unidos e adquirir conhecimento sobre o ambiente internacional.
“Nós temos que ter um novo diálogo no século 21, conversar ao mesmo tempo com o contemporâneo e o tradicional. É preciso falar a língua dos negócios do mundo atual, e o idioma não pode ser um empecilho”, diz. Neste ano, ele esteve no festival de cinema Sundance (EUA), onde apresentou o documentário ”Awavena” –sobre a xamã Hushahu–, no Fórum Econômico de Davos (Suíça) e em outros eventos internacionais. “Viajo o mundo todo, mas sempre conectado com meu povo. Isso atrai pessoas, que vêm contribuir, o que ajuda os yawanawás”.

https://www.youtube.com/watch?time_continue=412&v=mzDJukmAv6Q

Foi o empreendedorismo dos índios que os levou a criar há quase três décadas uma parceria com a empresa norte-americana de cosméticos Aveda, para quem vendem urucum (semente que produz uma tinta vermelha). Plantam açaí com financiamento agrícola do governo do Acre, para vender a clientes regionais.
Seus trabalhos com miçangas são cobiçados nas lojas de artesanato indígena no Brasil e no exterior.

 O cacique Biraci Yawanawá, na maloca 
cerimonial da futura Aldeia Sagrada, usa cocar feito com penas do gavião-real 
Os índios também realizam festivais anuais nas comunidades de Nova Esperança e Mutum, quando turistas de todo o mundo vêm à Terra Indígena Rio Gregório para celebrar os rituais religiosos dos yawanawás. Nos últimos anos, passaram a promover também viagens específicas para outras comunidades. As pessoas que não querem participar dos rituais procuram outras comunidades –são sete à beira do rio–, como a Sete Estrelas, dos índios katukina-panos, onde são realizadas atividades com plantas medicinais.
Casais que não conseguem ter filhos costumam procurar essa comunidade. Quem quer acompanhar uma caçada de dois dias na floresta vai para a aldeia Amparo, enquanto Matrinxã se tornou referência para a comida tradicional dos yawanawás.
Essa especialização das comunidades é orientada por um projeto estratégico de aproveitamento das potencialidades “econômicas, culturais e espirituais” da terra indígena que o líder chama de Plano de Vida Yawanawá, uma espécie de Plano Diretor Estratégico.
O cacique Biraci conta que está em implantação um programa de produção intensiva de alimentos da floresta. Na previsão dele, os yawanawás chegarão a 2025 com 100 mil pés de açaí, além de pés de cacau, café, cupuaçu e banana. “Selecionamos 58 espécies de plantas que queremos ter conosco, para garantir nossa alimentação”, diz.

ÁREAS DE CONSERVAÇÃO NO ENTORNO PROTEGEM A RESERVA DOS YAWANAWÁS

A Terra Indígena Rio Gregório é habitada por índios das etnias yawanawá e katukina-pano. Na beira do rio, localizam-se sete comunidades, entre as quais Mutum e Nova Esperança, as maiores.
Identificada pela Funai em 1983, a área foi homologada e registrada como Patrimônio da União em 1991, com uma área de pouco mais de 90 mil hectares. Depois de 15 anos, os índios reivindicaram uma área adicional, que foi demarcada por iniciativa do governo estadual e declarada como parte integrante da terra indígena em 2007, dobrando a extensão original para os atuais 187 mil hectares. Uma área de 50 mil hectares está em processo de homologação para ser incorporada à terra indígena.

 O pajé Tatá Txanu Natasheni, morto em 2016, aos 104 anos
 
Segundo Biraci Yawanawá, um conjunto de áreas de conservação e de outras terras criou uma proteção para a reserva dos yawanawás: “Nossa terra é privilegiada, estamos quase totalmente cercados por diversas unidades de conservação”.
Ele se refere ao quase anel formado pela Reserva Extrativista Riozinho da Liberdade (a oeste), e às terras indígenas Praia do Carapanã e do Igarapé Primavera (a leste).
A saúde também não desperta maiores preocupações: equipes de atendimento da Sesai (Secretaria de Saúde Indígena) visitam as aldeias a cada 90 dias, e os yawanawás não têm dado trabalho a eles: entre 2017 e o primeiro trimestre de 2018, por exemplo, houve só um caso comprovado de malária, e nenhum de dengue, males comuns em outras áreas da Amazônia.
Os habitantes da Terra Indígena Rio Gregório são registrados como moradores do município de Tarauacá, cuja sede fica a cerca de 200 km dali. Com isso, a cidade é sua referência para relações com o Estado nacional: 70% dos eleitores votam naquela cidade, por exemplo.
Ali também buscam tratamentos de saúde mais sofisticados, fazem documentos e recebem aposentadoria ou Bolsa Família. Mas o deslocamento é um limitador. Só pelo rio, pode-se levar oito horas em canoas com motor (voadeiras); por terra, são vários dias de caminhada. Devido a essa dificuldade, há relatos de que beneficiários do Bolsa Família desistiram do programa, e a abstenção eleitoral também costuma ser alta.

RIO GREGÓRIO ERA MAIS CAUDALOSO E CHEIO DE ‘BICHOS GRANDES’

Embora a Terra Indígena Rio Gregório pertença ao município de Tarauacá, as milhares de pessoas que visitam o local anualmente desembarcam em Cruzeiro do Sul, cidade que tem um aeroporto maior e recebe voos de Brasília.
Como em outros destinos amazônicos, os aviões costumam chegar no início da madrugada. O viajante deve dormir pelo menos uma noite na cidade, o que, na época dos festivais yawanawás, deixa os hotéis lotados, com turistas do mundo todo.

 O rio Gregório visto a partir do promontório 
onde fica a aldeia Nova Esperança 
No dia seguinte, a viagem segue por cerca de quatro horas pela rodovia BR-364, que liga Cruzeiro do Sul a Rio Branco. Na ponte sobre o rio Gregório, de um pequeno ancoradouro, saem as voadeiras com destino à reserva. A viagem leva de cinco a oito horas, dependendo do motor e das condições do rio, geralmente cheio de tocos e galhos de árvores.
O rio Gregório é um afluente do Juruá. No passado, era caudaloso. O cacique Biraci conta que, há 50 anos, barcos de 30 toneladas subiam o rio. Seu pai dizia que um homem podia ficar de pé no porão do barco. “No rio, tinha bicho grande, tartaruga, jacaré-açu, sucuri. Hoje, todos desapareceram, o rio assoreou.”
O Gregório cruza terras novas, em cujas margens não há estruturas de pedra. Em consequência, como ocorre também no Madeira, em Rondônia, as margens cedem à força das águas, que comem os barrancos e fazem o curso do rio mudar de tempos em tempos.
Em frente à comunidade Nova Esperança, o traçado do leito mudou recentemente; no último período de cheias, o rio “cortou caminho” por uma mata e, em vez de uma curva, ficou com um traçado mais reto.

Apresentador Ratinho, da TV, doa terra aos índios

O apresentador de TV Carlos Massa, o Ratinho, é acionista de uma empresa que tem 200 mil hectares no município de Tarauacá. Cerca de 10% superior à da Terra Indígena Rio Gregório, a propriedade é vizinha à área dos yawanawás, que reivindicam parte dessas terras. Em 2005, quando a empresa apresentou um projeto de exploração de madeira, veio à tona a participação de Ratinho no negócio. Desde então, a propriedade vinha sendo alvo de disputa entre a empresa e os índios. O apresentador acabou doando aos índios, em 2009, a área por eles reivindicada (cerca de 50 mil hectares). A empresa considerou que assim criaria uma “zona de silêncio” entre as comunidades indígenas e a atividade madeireira, explica o cacique Bira.

 Janete, da aldeia Escondido, que usa pulseira 
com desenhos geométricos feitos com miçangas e segura jijus pescados no rio

Primeiras pajés mulheres resgatam banhos curativos

Duas mulheres fazem a fama dos yawanawás entre outros indígenas do mundo: as irmãs Putani e Hushahu. Elas são as primeiras, na história de seu povo, a se tornarem pajés.
Tradicionalmente, só os homens eram iniciados no conhecimento profundo das tradições religiosas. No começo dos anos 2000, restavam apenas três pajés entre os yawanawás, todos já idosos: Raimundo Tuinkuru e os irmãos Yawa Runi e Tatá Txanu Natasheni.
Foi nessa época que as duas filhas de Tuinkuru o procuraram para dizer que queriam receber a formação de pajé. O pai imediatamente recusou, por uma questão de gênero. Não havia a memória de mulheres pajés entre seu povo.

 Marizete, ao centro, com sua nora Alice, 
à esq., e sua filha Maria Adelaide, da Aldeia Nova Esperança 
Depois de um tempo, as duas voltaram a insistir na ideia. Como argumento, elas diziam que nenhum homem havia sido iniciado e que todos os conhecimentos dos xamãs poderiam ser perdidos.
Putani conta que seu pai, então, preferiu que outro pajé decidisse. Tatá foi consultado e concluiu que não havia problemas.
“Mas, para provar que mulheres poderiam resistir às agruras da iniciação, os nossos sacrifícios deveriam ser ainda maiores”, continua Putani. “Meu pai disse ao Tatá: faça com elas o dobro do que faria com homens, para que ninguém duvide de que são corajosas.”
E assim, em 2004, as duas mulheres iniciaram a formação, que começa com um longo jejum. Por vários dias a pessoa só se alimenta com a batata de uma planta chamada mucá, considerada sagrada.
Quem está fazendo a iniciação para se tornar pajé fica acampado na floresta, longe da comunidade. Só pode ter a companhia de quem está preparando sua dieta.
Putani e Hushahu escolheram isolar-se no local onde seus antepassados viviam no tempo do contato com os primeiros seringueiros. É o lugar denominado Aldeia Sagrada. “Neste lugar está enterrado meu avô. Ele disse que, se a gente precisasse de sua ajuda, bastaria pedir”, conta.
Passados quase 15 anos daquela iniciação, o lugar agora está sendo preparado para receber uma nova comunidade. Os yawanawás vão voltar a ocupar o lugar de onde saíram no passado. À época, o local era uma área isolada na floresta.
“Nosso processo de conhecimento e cura é baseado em sonhos. Você sonha com as doenças que vai ter; o pajé sonha com as doenças que terá de curar nos outros. Por isso você precisa ficar isolado, ouvindo o silêncio. Não pode ouvir zoada. A ideia é que você ouça os passos das pessoas, o tom de sua voz. Tudo isso é revelador de como está a saúde delas, desde que você saiba ouvir os detalhes”, explica Raimunda Putani, seu nome completo.
A dieta evita carnes de animais associados a características consideradas inadequadas para um líder espiritual. “A anta é um bicho pesado. Por isso, quem está no mucá não pode comer sua carne, ela deixa a pessoa pesada. Já o macaco capelão é um bicho que canta, fará bem ao pajé. O jabuti, normalmente muito desejado, anda muito devagar, e sua carne deixa os pensamentos lentos. Já peixes e aves são rápidos”, explica Putani. Assim os alimentos são divididos entre os que podem ou não ser consumidos durante os vários meses de formação.

 Maria, da Aldeia Nova Esperança 
Uma vez iniciada, Putani queria escolher um caminho próprio para desenvolver, uma técnica sua. Ela se lembrou da organização Conselho Internacional das Treze Avós Nativas, formada em torno de mulheres que são referência em culturas tradicionais. Pensou em consultá-las. “Vi um documentário sobre as Treze Avós, mas elas estavam no Canadá, e eu não poderia ir ao seu encontro. Um dia tive uma visão que me aconselhou a construir um trabalho próprio. Escolhi então duas técnicas antigas dos yawanawás que não estavam mais sendo usadas: o banho de argila e o banho de ervas. ‘Faz essa cura e leva para a Aldeia Sagrada’, me disse a visão. Por isso estamos voltando para cá.”
Desde então, ela diz fazer rituais usando essas técnicas: “É a cultura tradicional que vivemos. Porque, se você vive como seus ancestrais, a cultura nunca acaba”, diz.
Putani tinha 27 anos quando completou a formação de pajé, em 2005. Em 2006, ganhou o Prêmio Bertha Luz, concedido pelo Senado a mulheres que se destacam na luta por direitos femininos.
A história de sua irmã, Kátia Hushahu, é contada no documentário imersivo ”Awavena”, produzido em realidade virtual pela diretora australiana Lynette Wallworth. O filme estreou neste ano no festival Sundance e foi apresentado também no Fórum Econômico de Davos.
As pajés preencheram realmente o vazio que temiam: seu pai morreu em 2010, com 80 anos; Tatá morreu em dezembro de 2016, com 104 anos, e o também pajé Yawa Runi morreu em março deste ano, aos 106.

Etnia adota casamento entre primos cruzados

O sistema de parentesco adotado pelos yawanawás é chamado dravidiano, com casamentos entre primos cruzados: a pessoa se casa com os filhos da irmã do pai ou do irmão da mãe. Há casos de poligamia, cada vez mais raros, geralmente com um marido e uma ou mais irmãs (chamado sororato). O hábito determina que, após o casamento, o marido se mude para perto da casa da família da mulher (costume chamado de uxorilocalidade).

Bebês ganham nome escolhido pelo pai

Ao nascer, os bebês recebem um nome dado pelo pai e, às vezes, um outro, escolhido pela mãe. Ambos buscam repetir nomes de tios e tias da criança em homenagem aos parentes, por vezes já mortos. Assim, os nomes se repetem alternadamente a cada duas gerações. Hoje, os índios são registrados com um nome em português e, geralmente, os documentos oficiais incluem também o nome da etnia como se fosse o sobrenome.

Mito yawanawá explica a interdição do incesto

Os mitos servem para traduzir as grandes coisas -como a criação do mundo– e também as pequenas. O cacique Bira conta um cheio de moralidade para explicar que dois irmãos jamais podem namorar. “Um dia, uma menina reclamou à mãe que todas as noites alguém ia a sua cama no escuro para bulir e brincar com ela. A mãe recomendou à filha fazer uma tintura de jenipapo e passar no rosto todo para marcar o buliçoso. Então, no dia seguinte, o irmão da menina desapareceu. Quando o encontraram, ele estava pintado de jenipapo. Foi condenado à morte e teve a cabeça cortada. A cabeça rolou e correu em direção à mãe. Ali, no chão, a cabeça do índio pediu água. A mãe disse que não poderia ajudá-lo. O índio jurou então uma vingança: iria morar na Lua e, a partir daquele dia, a primeira relação de toda menina deveria ser com ele. As mulheres sangrariam sempre após essa primeira relação. Esse seria o sinal de que elas podiam namorar a partir daquele momento.”

Quem flerta com mulher grávida recebe castigo

Um rapaz aparece na casa do cacique Biraci reclamando de um terçol. Bira pergunta a ele: “O que você andou fazendo?”. Em seguida se volta aos demais e explica: “Quando um homem paquera uma mulher grávida, fica com terçol”.

 Keyá aplica a chamada ‘vacina’ do sapo em Marcílio

Festa e ayahuasca atraem turistas de todo o mundo

“Você já tomou a medicina?” A pergunta é repetida pelo jovem yawanawá, enquanto distribui a beberagem entre dezenas de pessoas que participam de um ritual de ayahuasca.
Diante da mesa lotada de jarras com a infusão e copinhos para pequenas doses, o rapaz, com um cocar de penas de gavião-real, se posiciona como um padre diante do altar.
O público se senta em bancos que formam um círculo em torno de um grande espaço aberto onde há uma fogueira no meio, o terreiro. Nesse templo, a nave é um vasto céu de anil, em uma noite em que a lua cheia ilumina a aldeia Nova Esperança.
A todos os que respondem “não” , o jovem diz: “Fique sempre tranquilo”, e em seguida entrega um pequeno copo parcialmente cheio.
Chamada “uni” pelos yawanawás e “Daime” em cultos religiosos não indígenas, a poção ritual que das matas do Acre se espalhou pelo planeta pode provocar poderosos enjoos. Por isso, recomenda-se que neófitos provem com cautela e não tenham medo da viagem. “Tudo que vem passa”, explica o líder Bira.

 Keyá (esq.), da aldeia Mutum, e Miró 
retiram secreção da rã-kambô, que é usada como remédio
 
Muitos grupos reivindicam a paternidade da bebida, feita da mistura do cipó mariri (ou caapi) com as folhas da planta chacrona. Ela é consumida por ao menos 72 grupos indígenas da Amazônia, mas não erra quem apontar os yawanawás como seus usuários tradicionais de maior visibilidade mundial.
Estudos revelaram a presença de ayahuasca em panelas encontradas em sítios arqueológicos de 5.000 anos. O nome revela seu uso por habitantes do antigo império inca, já que se trata de uma palavra quéchua, a língua dos incas: ”aya” significa espírito e ”huasca” quer dizer cipó.
Os yawanawás recebem anualmente milhares de turistas para festivais que celebram sua cultura e seus rituais, com ingressos entre US$ 2.000 (R$ 7.800) e US$ 5.000 (R$ 19.500), dependendo do tempo de estadia. Quando promovem festas, os hotéis de Cruzeiro do Sul ficam lotados, como os voos que ligam seu aeroporto aos grandes hubs internacionais do país.
Nesses festivais, pode-se encontrar gente de todos os cantos do planeta nos galpões construídos pelos índios para abrigar até 700 pessoas.

CANTORIA, INCENSO E FOGO AMPLIFICAM EFEITO INEBRIANTE DA BEBIDA

A cerimônia começa depois do jantar, em que se recomenda uma refeição leve. Por volta de 21h, as pessoas já estão sentadas no círculo em torno da fogueira. Quando o jovem de cocar se coloca à frente da mesa, logo se forma diante dele uma fila de cerca de 30 pessoas. Há mais índios do que convidados naquele encontro fora de temporada, no centro da aldeia Nova Esperança.
O primeiro efeito da ayahuasca é um certo enjoo. Algumas pessoas descrevem fortes ânsias de vômito logo após beber o “remédio”. Em seguida, é descrita uma sensação de alívio, em que a alma é tomada por visões. É a “miração”, termo do português popular que acabou consagrado pelos rituais religiosos associados ao Daime.
Tecnicamente, é uma alucinação, estado alterado da mente. A droga atua em centros ligados à visão. Durante essas visões, alguns dizem encontrar ancestrais, outros, que antecipam cenas de seu futuro. Há quem faça previsão de doenças e quem relate entender um conflito no futuro. Cada um tem sua própria miração.
A alteração da percepção fascina muitos e assusta outros. Não poucos sentem medo. É preciso ter calma para resistir às horas de “viagem”, que às vezes viram “bad trips”.
Logo depois que toda a fila toma a “medicina” começam os cantos, longos e repetitivos. Forma-se uma roda de dança no meio do espaço em que se desenvolve o ritual, do tamanho de uma quadra de vôlei.
As músicas, em ritmo repetitivo, funcionam como mantras. A harmonia, com apenas dois acordes, lembra a de outros hinos religiosos. O coro canta sempre em uníssono, reforçando a simplicidade.

Bira, Tênpu (ajoelhado), Tchanu e João queimam o Sepá, 
resina de uma árvore usada para defumação ou benção, em ritual na Aldeia Sagrada 

A cantoria, a fogueira e o cheiro de incenso –que acendem em grandes tachos para expulsar os maus espíritos–, somados ao efeito da ayahuasca, resultam em um ambiente inebriante. É difícil avaliar o que provoca o estado alterado de consciência, tantos são os estímulos.
Depois de alguns minutos de cânticos, o jovem coordenador dos trabalhos se encaminha de volta à mesinha e serve nova rodada de ayahuasca. A adesão é quase total entre quem havia tomado uma primeira dose. Na terceira rodada, nem todos repetem. A adesão vai diminuindo. Depois das 23h ninguém mais busca a bebida e a mesinha é recolhida.
O efeito, no entanto, persiste. Muitas pessoas recebem passes do xamã(à época, fevereiro deste ano, Yawa Runi estava vivo), outras inalam rapé, e assim a comemoração vai até as 5h do dia seguinte.
Enquanto algumas pessoas dançam no centro do terreiro, o pajé cuida de outras, que se mantêm sentadas. Ele pergunta se há algo que as preocupa, um mal-estar, uma tristeza. Em seguida, faz orações e sopra sobre a pessoa a fumaça vinda da queima do incenso de breu branco, ou almecegueira, árvore aromática curativa. Os sopros são acompanhados de um som que se parece com ”ôsh”. O religioso percorre as costas, os ombros e a cabeça da pessoa. Ao terminar, passa ao próximo da fila, numa sequência demorada.
Entre os yawanawás, o consumo da ayahuasca é com frequência acompanhado da inalação de rapé. O pó cinza à base de tabaco é soprado pelo xamã para dentro do nariz da pessoa, que o recebe por meio de um instrumento em forma de “v”, de taquara, com cerca de 40 centímetros.
O pajé tem em sua mão um pequeno recipiente com rapé. Ele coloca um pouco do pó em uma ponta do canudo e direciona a outra para uma das narinas da pessoa; respira fundo e de repente dá um sopro muito forte. O que recebe o pó leva as mãos à narina, enquanto mantém os olhos cerrados.
O rapé irrita a mucosa do fundo das fossas nasais e ali é parcialmente absorvido; outro tanto desce para a boca, provocando um gosto amargo e o espessamento da saliva. O cuspe ganha uma cor acinzentada.
O rapé é a mistura de tabaco seco com cinzas da casca de ”txunu” (pau-pereira). Tudo é peneirado e pilado, resultando em um pó leve.
“A maior parte de nossa formação espiritual depende dos sonhos, por isso nós precisamos sonhar. O rapé abre o sonho, nos faz sonhar e lembrar”, explica o líder Biraci.
O efeito é um despertar, espécie de compensação para o torpor que a viagem da ayahuasca provoca. É como se a mente ganhasse clareza, e o corpo, energia extra para interagir.
Outra medicina pela qual os yawanawás são conhecidos é a “vacina do sapo” contra doenças físicas ou espirituais, como dizem. Na verdade é usada uma rã voadora, chamada ”kambô” (Phyllomedusa bicolor).
É feita uma leve incisão na pele, no braço ou na perna, com a ponta de uma vareta levada ao fogo. Em seguida, se inocula no local a secreção da pele da rã.
O veneno tem composição complexa, com alguns elementos semelhantes aos de um derivado do ópio, que reduz a dor, e outros que dão taquicardia. A pessoa também vomita e tem forte sensação de calor.
Tradicionalmente, a vacina do sapo era usada para melhorar a performance do índio na caça. “O sapo traz sorte, alegria, deixa a pessoa mais atenta”, explica Bira. Usa-se também o veneno em caso de doenças, para purificação. “A pessoa vomita, põe todos os problemas para fora”, diz o líder yawanawá.

DAIME NÃO VICIA E AJUDA A TRATAR DEPENDÊNCIA QUÍMICA, DIZ MÉDICO

A ayahuasca é um alucinógeno que não causa dependência, segundo Dartiu Xavier, 63, chefe do serviço de dependência química da Unifesp.
O psiquiatra, que foi consultor do Ministério da Saúde e da Justiça, integrou a comissão que discutiu a liberação da droga para cultos, entre o fim dos anos 1990 e início dos 2000.
O grupo, que reunia técnicos e religiosos, concluiu que “o uso ritualístico, com fundamentação religiosa, não pode ser proibido”, como explica Xavier. “A comissão ajudou a sedimentar o conceito que em seguida foi adotado também nos EUA, quando a ayahuascachegou lá”, diz.
Para o especialista e pesquisador, a ayahuasca é um alucinógeno, do ponto de vista científico. “As pessoas têm usado a palavra ‘enteógeno’, mas ela só serve para tentar evitar o estigma associado à palavra ‘alucinógeno’”. Enteógeno é a tradução de um neologismo em inglês, derivado do grego, que remete à capacidade de induzir a pessoa à visão de deus.

 Keyá durante o ritual Sepá 
Para Xavier, o daime tem efeito semelhante ao da mescalina e do LSD. A mescalina, consumida nos EUA em ritos da Igreja Nativa Americana, é permitida nesse contexto: “Esse uso da mescalina é muito parecido com o da ayahuasca nos ritos do Daime”.
O departamento chefiado por Xavier na Unifesp foi, em parceria com a Universidade da Califórnia, o primeiro laboratório a estudar a ayahuasca. Chamou a atenção do professor e de seu departamento o fato de dependentes graves, como alcoólatras, relatarem o abandono do vício após a adoção de um rito religioso ligado ao daime.
Além de não causar dependência, o chá contribui, em muitos casos, para tratar a compulsão –“miraculosamente”, diz. “Não conseguimos concluir se isso se deve só ao efeito químico ou se é o rito, o fato de pertencer a uma comunidade acolhedora.”

FLORESTA É FARMÁCIA PARA TUDO

A futura Aldeia Sagrada, que deverá ser erguida no local onde aconteceu o primeiro contato entre yawanawás e seringueiros, é uma homenagem aos ancestrais ali enterrados e à floresta.
Além das moradias, está prevista a implantação de uma estrutura para cursos de cultura yawanawá. A construção vai seguir o estilo das malocas indígenas tradicionais, que eram compartilhadas por diversas famílias. “Nessas casas, todo mundo vive e come junto. Marido não bate em mulher, os filhos não passam fome”, diz o cacique Bira.
Em volta da futura aldeia, uma área de floresta com cerca de dez hectares foi usada para o cultivo de ervas medicinais usadas pela comunidade em ritos religiosos e de cura.
Bira conduz a reportagem a um passeio em que vai explicando os supostos poderes de cada uma daquelas espécies: “Você vê aquela planta com umas folhas grandes, que parecem uma bunda? Sabe quando você tem uma filha jovem, recém-casada, que não quer ficar em casa, que quando o marido sai para trabalhar ela também quer logo sair, ir ao vizinho e coisa e tal? Você pega uma folha grande daquelas, esquenta e faz ela sentar em cima. Logo ela acalma e fica mais caseira. O mesmo vale para o marido”.

 Filipe (dir.) sopra rapé em Zezinho, na aldeia Matrinxã
 
À medida que caminha, o líder aponta a vegetação e ensina: “Aqui não é bom que as mulheres caminhem, está cheio de plantas cujo cheiro faz com que elas queiram namorar. Então, uma mulher que sinta esse cheiro, não importa se é casada ou não, ela vai querer transar com uma pessoa”.
Uma outra erva medicinal ajuda a mulher a engravidar: “Um advogado amigo nosso, do Rio de Janeiro, estava casado havia 12 anos. Eles queriam ter filhos, mas não conseguiam. Ele veio aqui e pediu para tomar o nosso remédio. Agora acabou de nascer o filho deles”.
Tem remédio para tudo, segundo Bira: ervas para bebês que choram muito, viagra natural e planta que causa o efeito contrário, outra que faz bem para epilepsia.
“Agora, você vê a responsabilidade de quem lida com esses poderes: se uma pessoa ambiciosa tem acesso a isso, o que será que ela pode querer fazer? É preciso guardar com rigor as coisas, e só dar acesso restrito a elas, para que só pessoas responsáveis e preparadas possam conhecer e usar”, afirma.
Os antigos yawanawás eram polígamos, uma prática que vem reduzindo, porque os casamentos com várias mulheres atribuem ao marido a multiplicação das obrigações; é preciso ter condições de sustentar a casa, os filhos e a mulher; se quiser ter duas mulheres, deve dar igual a ambas. E assim sucessivamente.
Bira conta um chiste didático, a história de um pajé mais velho, com várias mulheres. Quando alguém dizia que uma de suas mulheres estava flertando com outro homem, ele respondia: “Que bom, tem alguém me ajudando a cuidar da casa”. Se a pessoa insinuava que a mulher poderia engravidar, ele dizia: “Mas o filho será meu também”. Para um líder tribal, quanto mais filhos, maior é poder de influência e a acumulação de riquezas.
A riqueza das florestas traz também benefícios indiretos. Um deles é o de atrair peixes quando o rio sobe, no inverno amazônico. Nesse momento, as águas ultrapassam as margens, chegam ao chão da floresta e “puxam” as frutas caídas, chamando os peixes.
Os yawanawás têm uma explicação para isso. “Quando chega a hora da água subir, o espírito de um peixe vai até as frutas, come algumas e derruba outras. Nesse momento, ele sinaliza para o rio que chegou a hora da água subir.”

Árvore gigantesca é a sagrada ligação entre o céu e o chão

Por atingir até 70 metros de altura, a sumaúma (Ceiba pentandra) é, para os índios, a ligação entre chão e céu. E casa dos animais mais poderosos de cada plano: da sucuri, grande serpente do chão, que se esconde sob suas raízes; da onça, que dorme entre raízes e galhos mais baixos; do gavião-real, que habita sua copa. A árvore também sequestra pessoas. Na história dos índios, pai e filho dormiram perto de uma sumaúma. Quando o pai acordou, o filho tinha sido levado para o alto e ele ouviu sua voz: “Pai, pode ir embora, porque não há como subir ou descer daqui”. Devido a essa sacralidade, a sumaúma não pode ser usada em rituais.

 Lainara, da Aldeia Nova Esperança, recebe pintura no rosto

Artesanato com miçanga importada faz sucesso

O artesanato dos índios yawanawás é marcado pela perfeição de seu acabamento. O fotógrafo Sebastião Salgado, que já visitou dezenas de culturas tribais em todos os cantos do planeta, destaca a beleza de sua arte plumária. Também os trabalhos com miçanga são referência entre os povos indígenas e têm destaque em lojas de grandes cidades brasileiras. As pequenas contas são muito usadas em peças de iluminação.
Outro elemento marcante, sempre explorado em artigos relacionados à moda e ao turismo, é a pintura corporal. Os índios produzem desenhos na pele usando urucum (vermelho) e jenipapo (preto); depois recobrem as pinturas com uma resina que as mantêm por mais tempo do que durariam apenas com a tintura natural.
Assim como a língua e a memória dos mitos e rituais, essas técnicas foram recuperadas ao longo das últimas décadas. Elas estavam restritas às pessoas mais velhas, que passaram a transmitir às novas gerações esses saberes tradicionais. Hoje, os cocares têm uso ritual e não fazem parte da vestimenta diária dos índios. Exatamente por isso são muito bem conservados.
Muitos adereços plumários dos líderes são feitos com penas de gavião-real, ave de rapina que, segundo a mitologia, deu origem a todos os índios de língua pano. Por isso as coroas de penas têm predominantemente as cores branca e cinza.

 Lainara, da Aldeia Nova Esperança
 
Já as pulseiras e os colares de miçangas são multicoloridos. Embora pareçam abstratos aos olhos de não índios, os desenhos geométricos representam animais.
Há muito tempo as miçangas industrializadas substituíram as sementes e os dentes de animais que eram usados como matéria-prima. Elas são importadas da República Tcheca, onde a produção das contas de vidro está concentrada na pequena cidade de Jablonec.
O líder Biraci Nixiwaká visitou Jablonec no ano passado para conhecer melhor o produtor de algo que se arraigou profundamente na cultura dos yawanawás e de outras etnias brasileiras: “Fiquei admirado. Eles me disseram que os povos indígenas respondem por 70% das vendas”. No Brasil, até mesmo grupos de pouco contato com não índios usam miçangas importadas.
Os yawanawás consomem muitos quilos de contas de vidro por ano. Em 2016, o consumo foi de uma tonelada, para atender à demanda de uma parceria com uma loja de decoração de São Paulo.
Falando da mudança das matérias-primas tradicionais para as contas industrializadas, Biraci ri e diz: “É um sinal dos tempos: as coisas estão aqui, ao nosso alcance. A gente não pode recusar a modernidade”.
Aos 80 anos, pianista João Donato tocou na aldeia com coral local
Nascido em Rio Branco, o pianista João Donato decidiu ir a seu estado natal em 2013, pouco antes de fazer 80 anos, e visitou a aldeia Nova Esperança. O episódio está na memória da tribo. Com um teclado, ele acompanhou um coral de crianças que cantavam histórias dos yawanawás. Em seguida, tocou composições suas. No ano seguinte, em agosto, convidou o músico Shaneihu Yawanawá para tocar no Rio de Janeiro, no show de comemoração de seu 80º aniversário.

Projeto ‘Amazônia’ documenta a floresta e seus habitantes tradicionais

A expedição do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado às terras dos yawanawás, no Acre, faz parte de um grande projeto de documentação da floresta amazônica e de seus habitantes tradicionais.
O resultado desse trabalho – “Amazônia”– deverá ser apresentado em livro e exposições no Brasil e no exterior a partir de 2021.
A Folha acompanha algumas dessas expedições desde o ano passado. Antes da atual edição, dedicada à comunidade dos yawanawás, foram publicados cadernos especiais sobre os índios korubos (17.dez.2017), os ashaninkas (20.mai.2018) e os suruwahas (2.set.2018).
Mineiro de Aimorés, 74 anos, o fotógrafo é conhecido no mundo por seus trabalhos de documentação construídos ao longo de anos, como “Trabalhadores”, ”Êxodos” e “Gênesis”, entre outros.
Economista de formação radicado na França durante a ditadura militar, Salgado começou a carreira nos anos 1970. Trabalhou em algumas grandes agências de imagens, como a prestigiosa Magnum, que foi fundada em 1947 por Robert Capa e Henri Cartier-Bresson. Desde os anos 1990, ele mantém sua própria agência, a Amazonas Images, que tem sede em Paris.
Reconhecido como um dos principais talentos da fotografia internacional, o brasileiro acumula prêmios no currículo desde a década de 1980 e tem obras suas em coleções e museus de todo o mundo.
Desde dezembro de 2017, Salgado ocupa uma cadeira na Academia Francesa de Belas Artes, maior reconhecimento do governo e da comunidade artística francesa a um criador que atue no país. É o primeiro brasileiro a ocupar essa posição no Institut de France, que reúne as cinco grandes academias francesas.

http://arte.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/sebastiao-salgado/yawanawa/o-povo-ressuscitou-cresceu-e-ganhou-a-aldeia-global/   16/12/2018


quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

O espelho, Machado de Assis

Esboço de uma nova teoria da alma humana


Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.

Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinquenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu um instante, e respondeu:
- Pensando bem, talvez o senhor tenha razão.

Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade das questões que se deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, - uma conjetura, ao menos.
- Nem conjetura, nem opinião, redarguiu ele; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...
- Duas?
- Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. 

Shylock, por exemplo. A alma exterior daquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer. "Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração". Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma...
- Não?
- Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, - na verdade, gentilíssima, - que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis...
- Perdão; essa senhora quem é?
- Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome; chama-se Legião... E assim outros mais casos. Eu mesmo tenho experimentado dessas trocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos...

Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia. A sala, até há pouco ruidosa de física e metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina, que conserta a ponta do charuto, recolhendo as memórias. Eis aqui como ele começou a narração:
- Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da Guarda Nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! tão contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que esses perderam. Suponho também que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da simples distinção. Lembra-me de alguns rapazes, que se davam comigo, e passaram a olhar-me de revés, durante algum tempo. Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por amigos... Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva do Capitão Peçanha, que morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e solitário, desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda. Fui, acompanhado de um pajem, que daí a dias tornou à vila, porque a tia Marcolina, apenas me pilhou no sítio, escreveu a minha mãe dizendo que não me soltava antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a província não havia outro que me pusesse o pé adiante. E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o "senhor alferes". Um cunhado dela, irmão do finado Peçanha, que ali morava, não me chamava de outra maneira. Era o "senhor alferes", não por gracejo, mas a sério, e à vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. Não imaginam. 

Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples... Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom...
- Espelho grande?
- Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho estava na sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve forças que a demovessem do propósito; respondia que não fazia falta, que era só por algumas semanas, e finalmente que o "senhor alferes" merecia muito mais. O certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou. Imaginam, creio eu?
- Não.
- O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade.

Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, não?
- Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes.
- Vai entender. Os fatos explicarão melhor os sentimentos: os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos fatos. Vamos ver como, ao tempo em que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa. As dores humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes. Ora, um dia recebeu a tia Marcolina uma notícia grave; uma de suas filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte. Adeus, sobrinho! adeus, alferes! Era mãe extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse com ela, e a mim que tomasse conta do sítio. Creio que, se não fosse a aflição, disporia o contrário; deixaria o cunhado e iria comigo. Mas o certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa. Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil. Os escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade doméstica interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes, de minuto a minuto; nhô alferes é muito bonito; nhô alferes há de ser coronel; nhô alferes há de casar com moça bonita, filha de general; um concerto de louvores e profecias, que me deixou extático. Ah ! pérfidos! mal podia eu suspeitar a intenção secreta dos malvados.
- Matá-lo?
- Antes assim fosse.
- Coisa pior?
- Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e assim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada.

Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo; ninguém, um molequinho que fosse. Galos e galinhas tão-somente, um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. Os mesmos cães foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhes que isto era melhor do que ter morrido? era pior. Não por medo; juro-lhes que não tinha medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não senti nada, durante as primeiras horas. Fiquei triste por causa do dano causado à tia Marcolina; fiquei também um pouco perplexo, não sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste notícia, ou ficar tomando conta da casa. Adotei o segundo alvitre, para não desamparar a casa, e porque, se a minha prima enferma estava mal, eu ia somente aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum;  finalmente, esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no outro, visto que tinha saído havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestígio dele; à tarde comecei a sentir a sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular. O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem em toda aquela semana. Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei este famoso estribilho: Never, for ever! - For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordei-me daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: - Never, for ever!- For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita, ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém, nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro,  ninguém em parte nenhuma... Riem-se?
- Sim, parece que tinha um pouco de medo.
- Oh! fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. Mas o característico daquela situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno: - o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. 

Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único - porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria algum sinal de regresso. Soeur Anne, soeur Anne, ne vois-tu rien venir? Nada, coisa nenhuma; tal qual como na lenda francesa. Nada mais do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para casa, nervoso, desesperado, estirava-me no canapé da sala. Tic-tac, tic-tac. Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. Em certa ocasião lembrei-me de escrever alguma coisa, um artigo político, um romance, uma ode; não escolhi nada definitivamente; sentei-me e tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para intercalar no estilo. Mas o estilo, como tia Marcolina, deixava-se estar. Soeur Anne, soeur Anne... Coisa nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel.
- Mas não comia?
- Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas raízes tostadas ao fogo, mas suportaria tudo alegremente, se não fora a terrível situação moral em que me achava. Recitava versos, discursos, trechos latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões, décimas, uma antologia em trinta volumes. As vezes fazia ginástica; outra dava beliscões nas pernas; mas o efeito era só uma sensação física de dor ou de cansaço, e mais nada. Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-tac...
- Na verdade, era de enlouquecer.
- Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária;  e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois.  Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. 

A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação. Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. - Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a vestir-me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com estrépito, afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma coisa. De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos... Continuei a vestir-me. Subitamente por uma inspiração inexplicável, por um impulso sem cálculo, lembrou-me... Se forem capazes de adivinhar qual foi a minha ideia...
- Diga.
- Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento... Não, não são capazes de adivinhar.
- Mas, diga, diga.
- Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. 

Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava,  gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os  sentir...
Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas.

FIM

ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro, pp. 345-352, Nova Aguilar 1994. v. II.  

Mônica

'Achei que eu nunca fosse dar certo', diz Mônica Martelli

POR MARINA CARUSO

Duas relações minhas acabaram causa desse pano de fundo da mulher forte, que ofusca.
Para os nossos filhos será natural a mulher ganhar mais que o homem, ter mais destaque. Com a nossa geração e a anterior não foi assim. meus pais eram apaixonados, mas se separaram depois que minha mãe se elegeu vereadora. Foi a primeira mulher no cargo em Macaé, na primeira eleição pós-ditadura, em 1982. Não tinha banheiro feminino na Câmara Municipal. Então ela, começou a levar um penico nas plenárias até conseguir que fizessem um banheiro para as mulheres.

Mônica Martelli no Saia Justa - GNT


Um metro e 80 de altura. Sucesso profissional depois dos 35 anos. Primeira filha aos 41. Mônica Martelli — inclua-se aí a barriga sarada aos 50 — é uma mulher fora dos padrões. “Filha do meio problemática”, ela jurava que nunca daria certo. Mas viu o destino mudar quando escutou os conselhos da mãe e, em 2005, transformou os textos que escrevia sobre a própria solterice num fenômeno de bilheteria.

Nascia “Os homens são de Marte... É pra lá que eu vou”, monólogo que, em poucos meses, trocou o pequenino Cândido Mendes por palcos maiores no Rio, em São Paulo e até em Lisboa.O sucesso foi tanto que, em 2014, Mônica e a irmã, a diretora Susana Garcia, criaram “Minha vida em Marte”, atualmente em cartaz no teatro Procópio Ferreira, na capital paulista. “Me mudei para a cidade em agosto e estou amando”, diz a fluminense de Macaé. A história chegará aos cinemas em duas semanas, bem no dia do Natal. E, assim como a primeira, tem todos os ingredientes para se transformar em blockbuster. “Tomara”, diz Mônica. “Ainda hoje sou muito insegura”.No dia 25, estreia “Minha vida em Marte”. Está ansiosa?

Tenho medo que o filme não seja um sucesso tão grande quanto foi o primeiro (“Os homens são de marte... ” levou 2 milhões de pessoas ao cinema). Mas um medo saudável. Quanto mais sinto, melhor trabalho. Passei um ano escrevendo e quatro meses ensaiando oito horas por dia com a minha irmã (Susana Garcia). Tudo que está no filme tem motivo. Sou CDF. Touro com ascendente em virgem.
A Susana dirigiu suas peças, seu filmes e a série do GNT. Como é essa parceria?
Sem ela, não existo. Susana é inteligentíssima. Entrou em segundo lugar na Medicina da Uerj e dava aulas de medicina fetal, mas, como é casada com o Herson Capri (ator), convivia com a turma do teatro. Fez assistência de direção pro Edwin Luisi, ganhou prêmios e virou uma baita diretora. Eu escrevo, ela dirige. Ela, é a caçula, e o meu irmão mais velho, matemático. Sou a filha do meio, problemática (risos).

Essa mania de tirar sarro de si mesma é a chave do seu sucesso. Foi sempre assim?

O começo foi dificílimo. Achei que eu nunca fosse dar certo. Me formei em jornalismo e fui fazer teatro na Cal. Vivia de bicos. Em 2001, um produtor da Angélica me ligou: “Mônica tenho uma participação para você”. Era para fazer a cobra, a cobra!. Só que entra figurinista e fala: “A cobra caiu, vai virar tartaruga”. E aí, amor, vejo um casco de tartaruga gigantesco. Quando vesti a cabeça, minha orelha virou e eu não conseguia desvirar porque a pata de espuma não me permitia. Olhei pro meu amigo que fazia o pinguim e disse: “Vamos repensar a carreira”.

Como deslanchou?

Fiz oficina de atores da Globo e fui contratada para o “Chico total”, do Chico Anysio. Ganhava 800 reais, mas me sentia o máximo. Aí fiz a novela “Por amor”. Era secretária e passei oito meses falando “Dr. Arnaldo, dona Branca na linha C”. Só. Depois, desemprego.

E aí?

Aí tive a ideia de montar uma dupla sertaneja: Tex & Ana, um fracasso retumbante. Abri o show do Fábio Jr. e só ouvia: “Saí daí, baranga!”. Fiquei ferrada. Tinha mais de 30, toda errada, escrevendo sobre minha solterice prolongada. Não sabia o que fazer com aquilo.Era insegura. Ainda hoje sou muito insegura.

Como venceu isso?

Um dia, minha mãe disse: “Pega um caixote, vai pra praça e fala seu texto”. Caiu minha ficha. Morava num quarto e sala na Gávea, com o Jerry, pai da minha filha Julia (de 9 anos). Nosso custo de vida era baixo, e ele me apoiou. Fiquei um ano e meio escrevendo. A família fez um livro de ouro e eu estreei no Candido Mendes. Uma semana depois, a Bárbara Heliodora fez uma crítica maravilhosa, e o teatro lotou.

Como alguém que é tão insegura faz tanto sucesso?

Isso faz a pessoa buscar o melhor e protege da arrogância. A insegurança não me paralisa. Outra coisa: só consigo escrever depois que a ferida está curada. A peça “Minha vida em Marte” saiu cinco anos depois do divórcio. Na hora da separação, era muita dor. Não só a dor do cara que saiu de casa, mas do projeto que ruiu.

Você está de namorado novo?

Sim, há dois meses, mas ele é megadiscreto. Trabalha no mercado financeiro. É carioca e mora em São Paulo. Está assustado comigo. Tô até querendo fazer terapia de casal, acredita? Depois de uma certa idade, a gente tem que usar todos os recursos para cuidar do que é bom: parceria, química, tesão… Falei pra ele: “Me meti numa fria e você também”. Eu sou roubada. Temos 50 anos e somos inteligentes, vamos ver no que dá.Tem medo de ofuscá-lo?
Duas relações minhas acabaram causa desse pano de fundo da mulher forte, que ofusca. Não quero ofuscar ninguém, quero que o outro tenha seu lugar, mas não admito que me travem. Não seria feliz só sendo esposa. A terapia pode ajudar o homem a entender que se ele deixar a mulher brilhar, vai tê-la pra sempre.

Será?

Para os nossos filhos será natural a mulher ganhar mais que o homem, ter mais destaque. Com a nossa geração e a anterior não foi assim. meus pais eram apaixonados, mas se separaram depois que minha mãe se elegeu vereadora. Foi a primeira mulher no cargo em Macaé, na primeira eleição pós-ditadura, em 1982. Não tinha banheiro feminino na Câmara Municipal. Então ela, começou a levar um penico nas plenárias até conseguir que fizessem um banheiro para as mulheres.

Seu nome de batismo é Mônica Garcia Assis. De onde vem o Martelli?

Da minha cabeça. Inventei. Chico Anysio me chamou: “Quem é Mônica Garcia?”. E eu disse: “Eu”. E ele: “Então você precisa trocar esse nome. ‘MoniCAGARcia’ lembra cagar”. Fui lá nos antepassados da família e achei alguns sobrenomes. Entre eles, Martelli.

A bagagem feminista da sua mãe a ajuda no “Saia justa”?O “Saia” é um marco na minha carreira. 

Entrei em contato com assuntos importantes. Me trouxe conteúdo, informação. Hoje, falo sobre tudo com mais segurança. Sou a Mônica ali, por isso estou no programa há seis anos. Quem faz personagem dura seis meses.

Em um dos programas, você disse que achava ter sido abusada na adolescência. O que houve?

Conforme fomos discutindo o conceito de assédio, fui tomando consciência de que perdi a virgindade num estupro. Eu tinha 15 anos, estava num luau, na praia e transei forçada.

O discurso do empoderamento feminino não te cansa?

Cansa porque está sendo falado à exaustão. Mas são séculos de desigualdade, temos que falar até cansar mesmo.

https://blogs.oglobo.globo.com/marina-caruso/post/achei-que-eu-nunca-fosse-dar-certo-diz-monica-martelli.html 12/12/2018