segunda-feira, 19 de maio de 2014

Formação profissional em engenharia

                    Introdução

    A atribuição profissional em engenharia é vinculada a conteúdos programáticos desenvolvidos no decorrer do curso de graduação. Objetivamos discutir estas atribuições noutro nível. No nível das competências e habilidades que estão nas Diretrizes Curriculares nacionais dos cursos de graduação no Brasil, que deveriam estar nos Projetos Pedagógicos destes cursos e constam da caracterização do perfil de formação padrão dos egressos na Resolução 1010 do CONFEA.
    Para isto faremos uma reflexão sobre a formação em engenharia no contexto da teoria – prática e o conhecimento estrutura. A seguir trataremos das competências e habilidades no âmbito das Diretrizes Curriculares e nas formulações dadas pelos cursos.
    Será que estas competências estão visíveis nos Projetos Pedagógicos? Como estão impregnadas no dia a dia da vida escolar do estudante e da estudante de engenharia? Quais as responsabilidades do CONFEA na averiguação destas atribuições?
    No popular, a ideia é pegar no pé da escola e do CONFEA sobre esta questão, pois será uma oportunidade de discutirmos a melhoria da qualificação profissional de engenharia no Brasil.
     
     
    Um resumo do texto em forma de mapa (IHMC Cmap tools)
    
     
                Teoria - prática e o conhecimento estrutura

    "Experiência não é o que se fez, mas o que se faz com aquilo que se fez". Esta frase de Aldous Huxley nos dá o caminho para entender a relação teoria-prática. Agimos sobre os objetos e interagimos com eles e com as pessoas. A ação que leva ao êxito não é suficiente para produzir conhecimento. A ação que constrói conhecimento é aquela que se apropria dessa primeira ação que levou ao êxito (Becker, 2005). Esta segunda ação é a compreensão (teoria) da primeira ação (prática). Teoria não antecede a prática ou vice-versa. Teoria e prática têm uma relação dialética operando entre o todo e o específico, entre tese e a antítese, a interpenetração dos contrários e a negação da negação.
    Um exemplo: como aprendemos sobre o objeto transformador? Em aula desenhamos o transformador e explicamos os princípios físicos de funcionamento. O desenho é uma representação e portando conversamos baseados num símbolo. Em laboratório nos deparamos com o objeto concreto transformador. A experiência mostra o dispositivo operando e comprovando o analisado em aula. Houve aprendizagem? Não. Até aqui as ações não foram suficientes para a compreensão do objeto apesar do êxito nos passos anteriores. O estudante aprende quando passa para o segundo estágio da reflexão (ou abstração) sobre os acontecimentos. A relação de espiras versus relação de tensão entre primário e secundário, a corrente de magnetização e as perdas no núcleo serão compreendidas e apreendidas neste estágio. O todo e o específico serão parcialmente aprendidos. Porque parcialmente? Porque o conhecimento sobre o transformador será completado com o projeto, a construção e os testes de laboratório. Observe que há uma interdependência entre estes três estágios da aprendizagem: a aula, o experimento e o projeto. Como vimos a teoria e a prática estão inseparavelmente correlacionadas.
    Os currículos atuais de engenharia têm a predominância excessiva dos conteúdos. Não fazem referência ao processo de assimilação destes conteúdos. É a face conteudista do ensino tradicional presente na maioria dos projetos pedagógicos em engenharia. "O ideal da educação não é aprender ao máximo, maximizar os resultados, mas é antes de tudo aprender a aprender, é aprender a se desenvolver e aprender a continuar a se desenvolver depois da escola" . Deveríamos nos preocupar mais com o conhecimento-estrutura, isto é, o conhecimento construído que funciona como condição de assimilação de qualquer conteúdo. O objetivo não é estocar conteúdos que estão nos livros, mas a construção de estruturas cognitivas que visem o aumento da capacidade de aprendizagem. Neste contexto os conteúdos terão função instrumental e deixarão de ser um fim em si mesmo.
    Um colega professor visitou uma empresa de telecomunicações e procurou saber dos gerentes a atuação dos egressos de graduação de sua escola. Responderam que eram bons profissionais. Tinham boa formação nos conhecimentos específicos de telecomunicações e sabiam de computação, mas eram deficientes num quesito. Quando frente a um problema novo, inédito, mostravam-se inseguros e tinham dificuldades em enfrentá-lo. Os profissionais tinham bom conhecimento - conteúdo e deficientes quanto ao conhecimento - estrutura. Bons operadores, mas deficientes criadores de coisas.
     
    Diretrizes curriculares e estado atual do ensino em engenharia no Brasil
     
    A resolução CNE 11, de 11 de março de 2002 institui as Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de graduação em engenharia no Brasil (CNE, 2002)). A formulação destas diretrizes teve a participação das escolas de engenharia e do CONFEA. Esta resolução diz nos Artigos 3º, 4º e 5º o seguinte:
    Art. 3º O Curso de Graduação em Engenharia tem como perfil do formando egresso/profissional o engenheiro, com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, capacitado a absorver e desenvolver novas tecnologias, estimulando a sua atuação crítica e criativa na identificação e resolução de problemas, considerando seus aspectos políticos, econômicos, sociais, ambientais e culturais, com visão ética e humanística, em atendimento às demandas da sociedade.
     
    Art. 4º A formação do engenheiro tem por objetivo dotar o profissional dos conhecimentos requeridos para o exercício das seguintes competências e habilidades gerais:
    I - aplicar conhecimentos matemáticos, científicos, tecnológicos e instrumentais à engenharia; II - projetar e conduzir experimentos e interpretar resultados; III - conceber, projetar e analisar sistemas, produtos e processos; IV - planejar, supervisionar, elaborar e coordenar projetos e serviços de engenharia; V - identificar, formular e resolver problemas de engenharia; VI - desenvolver e/ou utilizar novas ferramentas e técnicas; VI - supervisionar a operação e a manutenção de sistemas; VII - avaliar criticamente a operação e a manutenção de sistemas; VIII - comunicar-se eficientemente nas formas escrita, oral e gráfica; IX - atuar em equipes multidisciplinares; X - compreender e aplicar a ética e responsabilidade profissionais; XI - avaliar o impacto das atividades da engenharia no contexto social e ambiental; XII - avaliar a viabilidade econômica de projetos de engenharia; XIII - assumir a postura de permanente busca de atualização profissional.
     
    Art. 5º Cada curso de Engenharia deve possuir um projeto pedagógico que demonstre claramente como o conjunto das atividades previstas garantirá o perfil desejado de seu egresso e o desenvolvimento das competências e habilidades esperadas. Ênfase deve ser dada à necessidade de se reduzir o tempo em sala de aula, favorecendo o trabalho individual e em grupo dos estudantes.
     
    Competência é um conjunto de conhecimentos. Implica na mobilização dos conhecimentos e esquemas cognitivos necessários para desenvolver respostas inéditas, criativas, eficazes para problemas novos. Habilidades correspondem ao saber fazer relacionado à prática do trabalho mental. Exemplos de habilidades: identificar variáveis, compreender fenômenos, relacionar informações, sintetizar, correlacionar. As habilidades devem ser desenvolvidas na busca das competências que correspondem ao conjunto de habilidades harmonicamente desenvolvidas e que caracterizam uma função/profissão: ser arquiteto, ser professor de história, ser advogado, ser engenheiro.
     
    As competências e habilidades discriminadas no Artigo 4º das Diretrizes Curriculares sinalizam uma formação em engenharia para além dos conteúdos e dão margem à aquisição do que denominamos conhecimento estrutura.
     
    O nó górdio está na execução deste Artigo.
     
    Uma pergunta pertinente: como um curso de engenharia deve conceber um projeto pedagógico que demonstre claramente como o conjunto das atividades previstas garantirá o perfil desejado de seu egresso e o desenvolvimento das competências e habilidades esperadas?
     
    Uma resposta possível: na abordagem pedagógica adotada pelo curso. Vejo com dificuldades a implementação das competências e habilidades requeridas pelas Diretrizes Curriculares no interior de uma abordagem tradicional e/ou comportamentalista. Considero estas as duas abordagens predominantes no ensino de engenharia no Brasil.
     
    A abordagem tradicional privilegia a transmissão de conhecimento sendo o professor o polo transmissor e o estudante o polo receptor. Parte da premissa de que a inteligência ou qualquer outro nome dado à atividade mental seja uma faculdade de acumular e armazenar informações. A ênfase é dada às situações de sala de aula, onde os alunos são "instruídos" e "ensinados" pelo professor (Mizukami, 1986).
    Na abordagem comportamental ensinar consiste num arranjo e planejamento de contingências de reforço (realimentação) sob as quais o estudante aprende e é de responsabilidade do professor assegurar a aquisição do comportamento. Os comportamentos desejados para os alunos serão instalados e mantidos por condicionantes e reforçadores tais como: elogios, notas, prêmios, reconhecimentos do mestre e dos colegas, prestígios etc.
    Passei boa parte de minha vida profissional como educador no ambiente de ensino tradicional. E nele inserido. Nos últimos dez anos tenho feito uma crítica desta abordagem pedagógica e procurado alternativas metodológicas em que a postura do professor dê maior autonomia ao estudante no processo de aprendizagem. Alternativas em que o professor tenha mais o papel de orientador (e não irradiador de conhecimento) e o aluno o de pesquisador.
     
    De um modo geral nossos alunos pensam a aprendizagem como o estudar a teoria e fazer aplicações ou exercícios. Por outro lado tem-se uma intensa convivência cooperativa com os colegas. O ensino tradicional, em que o professor é o centro do processo, desconsidera formas de pensar baseadas na interação e na autonomia. Por que não utilizar de estratégias pedagógicas que aproveitem o modo natural de aprender centrado numa visão sistêmica e não fragmentada do conhecimento e façam dos estudantes os autores da produção deste conhecimento? Por que não utilizar estratégias em que a aprendizagem passaria a ser vista como um processo onde teoria e prática não se dissociam? (Cardoso, 2007)
    Algumas experiências pedagógicas inovadoras têm sido realizadas em alguns cursos de engenharia. Cito duas: a aprendizagem baseada em problemas e a metodologia de projetos. No departamento de Engenharia Elétrica da UFES, na área de telecomunicações, temos algumas experiências com a metodologia de projetos. Notadamente em eletromagnetismo.
    O projeto como metodologia, vista a partir de uma visão construtivista é centrada na cooperação, no interesse e na autonomia e se constitui num processo de integração e construção do conhecimento. Questões como projeto, planejamento, resolução de problemas reais de engenharia, comunicação, atuação em grupo, a síntese e a integração de conhecimentos formam um esboço de competências e habilidades fundamentais na discussão do novo perfil que desejamos para o profissional em engenharia. O projeto para aprender opera como uma iniciação ao projeto de engenharia visto nos períodos finais do curso.

    Na Tabela 1 abaixo apresentamos as visões diferenciadas de como as competências e habilidades são vistas na abordagem tradicional e na visão da metodologia de projetos.
     
     
     
    Tabela 1: As competências e habilidades das Diretrizes Curriculares
    nas abordagens por projetos e na abordagem tradicional
     
    As experiências pedagógicas citadas ainda são iniciativas isoladas de algumas disciplinas ou grupos de docentes. Não são ações do curso explicitadas no projeto pedagógico e implementadas no decorrer dos semestres letivos.
    Vale, finalmente, destacar o papel do estágio curricular e a formação humanista na formação em engenharia.
    O estágio é visto pela escola brasileira de engenharia como uma disciplina e não como uma complementação fundamental na formação. Deveria estar a serviço de aquisições importantes no âmbito do gerenciamento de projetos, das relações sociais no trabalho, da atuação em equipe, da viabilidade econômica dos projetos e os impactos das atividades de engenharia no contexto social e ambiental. Tenho consciência que isto será viável através de uma coordenação eficiente gerenciada pela escola e pela empresa.
    Quanto à formação humanística convém ressaltar que a inteligência, no sentido amplo, além das competências compreende o entendimento do meio em que estamos inseridos. E a partir daí ter uma visão crítica deste meio. De forma geral nossos alunos não leem jornal, não leem livros que não os livros técnicos e não participam de atividades sociais que não as baladas e festas. É muito pouco para a capacitação profissional em engenharia. Em conversas com estudantes e colegas da área de humanidades é comum se referirem aos engenheiros como pessoas que sabem fazer contas e que pensam nos limites das questões objetivas. Será que é esta a imagem que desejamos para a inteligência em engenharia?
     
    Colegas de trabalho na universidade se espantam com o fato de que nossos alunos e alunas não sabem escrever. A gramática está distante. Aprende-se a escrever lendo e escrevendo. A pergunta é: quando são solicitados a escrever durante 5 anos de curso? Nas provas escritas e nos relatórios de laboratório. Serão suficientes?
     
              A resolução 1010/2005 CONFEA
     
      A resolução 1010 do CONFEA diz que cada curso oferecido pela escola deve possuir um perfil profissional de conclusão próprio, com diferentes competências e habilidades determinadas em função das especificidades de cada região ou escola. E explicita nos anexos da resolução, sobre o cadastramento institucional:
      Informações dos cursos: Caracterização do perfil de formação padrão dos egressos de cada um dos cursos relacionados, com indicação das competências, habilidades e atitudes pretendidas.
      Projeto político pedagógico do curso: Caracterizando a estrutura curricular, mediante módulos, disciplinas e atividades, cargas horárias, bem como ementário, conteúdo programático e bibliografia básica, que devem levar ao perfil de formação desejado.
      Uma constatação relevante, no momento, é que nem a escola e nem o CONFEA explicitam o como identificar e implementar as competências e habilidades requeridas. E o mais delicado: como medir estes requisitos.
      Uma proposta de ação relevante atualmente: continuar a parceria escola / CONFEA criando espaços de discussão e formulando propostas que viabilizem estratégias de implantação das competências e habilidades nos cursos de engenharia. O CONFEA tem a experiência da prática profissional. A escola tem a experiência de formação profissional.

      Referências

      Becker, Fernando, "Um divisor de águas" Revista Viver: mente&cérebro, Coleção Mémória da Pedagogia, Segundo Duetto, 2005

      CNE, Resolução CNE/CES 11/2002. Diário Oficial da União, Brasília, 09/04/2002. Seção 1, p. 32.

      Mizukami, Maria da Graça, "Ensino: abordagens do processo", EPU, 1986

      Cardoso, P. Edson, "Projetos de aprendizagem mediados por ambientes virtuais no ensino de engenharia elétrica", Tese de doutoramento, PPGEE, UFES, 2007
       
       
     
 
 
 
 
 

 

 

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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