domingo, 5 de dezembro de 2021

SOS Yanomamis

 Yanomamis revivem ameaça de extermínio com garimpo e omissão governamental

 Indígenas enfrentam crise de saúde que lembra cenário de guerra nos anos 1980, apesar de decisões recentes do STF

 
Fotografia da série ‘Genocídio do Yanomami: Morte do Brasil’, de 1989, de Claudia Andujar Galeria Vermelho/Divulgação

Adriana Athila: Doutora em antropologia cultural pela UFRJ, tem pós-doutorado pela Fiocruz e é pesquisadora da Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à Covid-19

Carlo Zacquini:Trabalha como missionário entre os yanomamis desde 1968 e fundou, com Claudia Andujar e Bruce Albert, a Comissão para a Criação do Parque Indígena Yanomami em 1978. Atualmente, coordena o acervo do Centro de Documentação Indígena em Boa Vista

[RESUMO] No final da década de 1980, o povo yanomami teve seu território invadido por garimpeiros, o que causou epidemias, desnutrição infantil e a morte de pelo menos 15% da sua população. O extermínio volta a rondar a terra indígena, que sofre com a explosão da mineração ilegal e enfrenta uma grave crise sanitária, apesar de decisões recentes do STF que obrigam o governo federal a retirar invasores e adotar medidas de saúde pública.

"Nunca houve na história do infortúnio dos índios brasileiros um genocídio com as características que cercam o fim do povo yanomami", escreveu o saudoso senador da República Severo Gomes no artigo intitulado "Paapiú — campo de extermínio", publicado em junho de 1989 na Folha.
O Paapiú — uma das regiões do território yanomami que compreende parte do Amazonas e de Roraima — estava invadido por mais de 20 mil garimpeiros. Uma epidemia de malária e de outras doenças, junto com a grave desnutrição, causaram um colapso e a morte de pelo menos 15% da população yanomami entre 1987 e 1989. Dois anos antes, escreve o senador, praticamente não havia garimpeiros ali, onde vivem hoje mais de 28 mil indígenas yanomami e ye’kwana em 375 comunidades.

 
Imagem do 'Genocídio Yanomani:morte do Brasil' de Cláudia Adujar - Galeria

Junto com o afluxo notável de garimpeiros, houve a retirada de todos os trabalhadores da saúde, antropólogos e pesquisadores que atuavam junto aos yanomamis na área. Um estado de exceção se instalou: de direitos e de comunicação. A ação do Estado respondia também a interesses regionais, ambos responsáveis pelo vulto de investimentos financeiros, humanos e políticos necessários ao desempenho de uma atividade, desde aqueles tempos, tão danosa quanto ilegal em áreas ocupadas por indígenas.

Como garimpar, e com maquinário, sem esse apoio —em um território acidentado, com rios, serras, florestas densas e platôs, alguns apenas acessíveis por aeronaves? Na época, prossegue o então senador de São Paulo pelo PMDB, "as autoridades foram alertadas para o que já sabiam: a necessidade de sua retirada [dos garimpeiros] da área indígena, no estrito cumprimento da lei e da Constituição". Porém, "nada foi feito", completa. Ao contrário, as autoridades "assistiram impassíveis ao afluxo de dezenas de milhares de garimpeiros, como se esse desastre fizesse parte de um secreto plano do governo", conclui Severo.

 
Acampamento de garimpo próximo aos indios isolados - Leão Serva

As mortes eram acompanhadas da degradação da terra-floresta yanomami, a "urihi", como a chamam. Caça e pesca foram afugentadas e, junto com a água e as pessoas, contaminadas por mercúrio. Helicópteros e aviões cruzavam o espaço aéreo sob as cabeças dos indígenas. Centenas de pistas clandestinas anunciavam a velocidade do morticínio, logo ali, bem ao lado das grandes casas comunais. Em algumas comunidades, os yanomamis foram reduzidos à metade. "Era uma coisa de guerra", e iam "contar morto", diz uma médica sobre o episódio conhecido como invasão garimpeira.


Uma ampla articulação de lideranças, como Davi Yanomami, organizações indigenistas e indígenas (a União das Nações Indígenas tinha cunho nacional) conseguiu a intervenção de uma comissão da APC (Ação pela Cidadania) em 1989.
Composta de profissionais de diversas áreas, organizações profissionais e da sociedade civil e representantes sensibilizados do governo, entre os quais o senador, a comitiva constatou a situação de genocídio em curso. Como se dizia, tratava-se de uma das maiores populações nativas das Américas, com alguns grupos em completo isolamento, como acontece ainda hoje. As imagens obtidas pela APC geraram comoção internacional e sensibilizaram líderes políticos de grandes nações do globo. O Brasil viu-se em um grande embaraço diplomático às vésperas da Conferência Mundial do Clima que sediou em 1992.

A situação emergencial e a mobilização impulsionaram a criação do Distrito Sanitário Yanomami em 1991, inaugurando o reconhecimento formal da obrigação do Estado em fornecer atenção à saúde àquele povo. Seu desenho se confunde com a Terra Yanomami, interditada em paralelo à criação do distrito e demarcada no ano seguinte. Foi uma década de conquistas. Inspirados na experiência yanomami, outros distritos sanitários indígenas foram oficiosamente se erigindo pelo país até a criação formal do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, articulado ao SUS (SasiSUS), em 1999.

Formado por 34 distritos sanitários especiais indígenas e com a obrigação de se articular a serviços de saúde municipais e estaduais, o SasiSus deveria garantir atenção integral aos indígenas no território nacional, individual e coletivamente. Na década de 1980, setores militares desenvolvimentistas contrários ao reconhecimento do território yanomami alegavam que os indígenas criariam um país naquela região estratégica de fronteira. A profecia quase se cumpriu três décadas mais tarde, mas por outros atores.

O garimpo e a mineração mecanizada ilegais hoje formam uma nação com leis próprias dentro da terra indígena: vilas são construídas dentro de um território homologado e de usufruto exclusivo dos indígenas; circula-se livremente a pé, de moto ou bicicletas; acessa-se a internet e degradam-se e desviam-se os cursos de rios, com apoio de potentes forças político-econômicas. Sem elas, nada disso aconteceria, ao menos com tal magnitude. O "campo de extermínio" retornou com força aos yanomamis. Já em 2020, quase 50% dos casos de malária em terras indígenas do país aconteceram ali. Perseguições e disparos de armas de fogo nas aldeias se multiplicam e aumenta a quantidade de crianças que adoecem e morrem.

As causas declaradas das mortes vão de afogamento em meio a brincadeiras com "carotes" de gasolina à desnutrição, passando por malária e Covid-19. Com dados vedados à consulta pública, como poderemos saber? Possivelmente, será uma junção de tudo isso, que o garimpo ilegal causa ou intensifica. Os corpos emagrecidos, atrofiados e com ventres inflados das crianças repetem o terror das imagens que rodaram o mundo nos anos 1980.

De acordo com dados de um documento recente do Ministério Público Federal, o Distrito Sanitário Yanomami tem a maior taxa de mortalidade infantil entre todos os distritos do país. Em 2021, o número de mortes foi o maior desde 2010, superando a situação da África subsaariana. Em algumas regiões, cerca de 80% das crianças apresentavam graus de desnutrição grave e aguda.

Nem tudo, porém, se repete nessa tragédia. Marcos constitucionais e tratados internacionais reconhecem os direitos de indígenas ao usufruto exclusivo das terras que ocupam imemorialmente e aos seus modos de vida. A situação crítica encontra também um movimento indígena de vulto, que intensifica suas redes de atuação. Organizações indígenas nacionais e regionais são hoje capazes de buscar providências judiciais no país e no exterior, junto aos Ministérios Públicos estaduais, ao STF (Supremo Tribunal Federal) e ao TPI (Tribunal Penal Internacional).

Um marco desse movimento é a ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) 709, impetrada pela Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e seis partidos (PSB, PSOL, PC do B, Rede Sustentabilidade, PT e PDT) no STF, que provocou uma medida cautelar do ministro Luís Roberto Barroso, obrigando o Estado a assumir seus deveres constitucionais em relação aos indígenas no contexto da pandemia, como a garantia de segurança alimentar e acesso à água potável. Barroso também determinou a adoção de medidas preventivas e de vigilância epidemiológica contra a disseminação do coronavírus e o atendimento eficaz, da atenção primária à especializada, de indígenas — tanto os que se encontram em terras homologadas e não homologadas quanto aqueles que estão em trânsito ou vivem em áreas urbanas, com acesso comprometido ao SUS.

Indígenas também mereceram prioridade na vacinação contra a Covid-19, apesar da renitência da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde) em atender ou vacinar aqueles que estivessem fora de terras indígenas reconhecidas ou se articular com municípios e estados para que isso acontecesse, conforme sua competência. Não obstante, há muitas deficiências no processo de imunização. Pesquisas registram a ausência de diálogo e de campanhas específicas para povos com memórias ancestrais ou recentes de extermínio por epidemias —algumas intencionalmente provocadas por nós, os "brancos".

Ao lado das muito difundidas e pouco combatidas fake news, isso possivelmente intensificou a desconfiança de indígenas diante da vacina e daqueles que a aplicavam, por ser proveniente de um governo que tem cronicamente se dedicado a desconfigurar seus direitos territoriais. Após 11 meses do início da vacinação, cerca de 70% dos yanomamis maiores de 18 anos receberam duas doses. A cobertura populacional é lenta, heterogênea e deficitária, como acontece também com outros povos e distritos, especialmente na região Norte.

Outra medida presente na decisão de Barroso, referendada por unanimidade pelo plenário do STF, é a retirada de invasores da Terra Indígena Yanomami, especialmente violada durante a pandemia. Recentemente, o ministro determinou que o governo federal preste esclarecimentos sobre a situação atual da população yanomami. A medida foi tomada dias depois da exibição de uma reportagem no Fantástico, da TV Globo, que mostrava casos de desnutrição e morte de crianças e a ausência de atendimento médico.

Na resposta ao STF, o governo federal afirmou que planeja distribuir cestas básicas para 1.020 famílias, das mais de 14 mil que hoje vivem na Terra Indígena Yanomami. Pouco mais de 20% da população tem sistema de abastecimento de água, a maior parte poços, e, no total, houve a distribuição de 40 filtros de barro. 

Como acontece às soluções de saneamento, ações pontuais e pouco significativas permitem a continuidade do garimpo e da mineração mecanizada ilegais. A histórica omissão interessada do Estado permite, estimula e promete subterfúgios jurídicos para a permanência das atividades. Soma-se a isso a intensificação das promessas do governo federal e de poderes regionais desde 2019 e a explosão na invasão de territórios indígenas por garimpeiros  desde o início da pandemia.

Há, portanto, reincidência em juntar o estímulo estrutural ao garimpo (para enfrentar a atividade, seria preciso não apenas retirar garimpeiros e o maquinário de terras indígenas, mas coibir a alta hierarquia que financia e se beneficia de sua existência) a um atendimento de saúde previamente ineficiente e omisso. Durante a pandemia, período de intensificação inédita da ameaça à saúde de povos indígenas, as ações foram pontuais, por meio de missões salvacionistas e da distribuição de insumos médicos, a maior parte inadequada —como milhares de comprimidos para dor de cabeça.

Um conjunto de notas técnicas, produzidas pelos consultores do grupo de saúde indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, boa parte delas respondendo a intimações do STF, detalha a situação crítica dos yanomamis e os impactos sanitários brutais do garimpo na terra indígena: não há impedimentos efetivos à mineração, atendimento permanente de saúde, participação comunitária e acompanhamento das reduzidas ações. Concluímos com as palavras do senador Severo Gomes, hoje infelizmente aplicáveis a diversos povos indígenas do país: "A contrapartida de deixar como está será a solução final do problema dos yanomamis: o extermínio".

Este texto foi escrito conjuntamente com nota da ABA (Associação Brasileira de Antropologia) e da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) que defende a retirada de garimpeiros da Terra Indígena Yanomami e a implantação de um plano emergencial consistente pelo governo federal. O livro recém-lançado "Políticas Antes da Política de Saúde Indígena" (Editora Fiocruz) reúne capítulos de pesquisadores que analisam a construção da política de saúde voltada para povos indígenas no Brasil, com ênfase no protagonismo de indígenas e suas organizações.


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