quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

O Brasil de Bolsonaro é campeão da Libertadores

Algo sinistro está relacionado à decisão entre Palmeiras e Santos e ao momento atual do Brasil

Dois times brasileiros jogarão a final da Copa Libertadores da América no Maracanã.

O Palmeiras, maior campeão em torneios nacionais, busca seu segundo triunfo na Libertadores, e o Santos, bicampeão mundial com Pelé, tenta o tetracampeonato da principal competição continental. Seus torcedores têm motivos para comemorar, com goleadas na semifinal contra os argentinos River Plate e Boca Juniors.

Algo sinistro, entretanto, está relacionado a essa decisão e ao momento atual do Brasil, com o presidente Jair Bolsonaro impondo sua destrutiva agenda em Brasília. Como parte de sua propaganda, o político apareceu com a camisa de dezenas de clubes brasileiros e é aliado de Rodolfo Landim, presidente do Flamengo, time mais popular do país.

No entanto, Bolsonaro é torcedor do Palmeiras. Até seu nome homenageia o ex-jogador Jair Rosa Pinto. Campeão brasileiro em 2018, o Palmeiras deixou Bolsonaro erguer o troféu e posar na foto oficial do time. Isso ocorreu pouco depois de ser eleito presidente aquele deputado com 28 anos de carreira, insignificante no Congresso Nacional, dedicado à defesa da ditadura militar e da matança e tortura que ela empreendeu.

Quase 58 milhões de brasileiros consideraram razoável votar em alguém que disse na campanha que a esquerda deveria ser enviada para local de execução de presos políticos do regime militar, ser fuzilada, ir para a cadeia ou para o exílio.

O Brasil teve ainda o azar de a pandemia assolar o mundo com Bolsonaro como presidente. Ele a trata como “gripezinha” sem gravidade e incentiva que a população não use máscara, não altere sua rotina, não faça isolamento social, utilize medicamentos sem eficácia comprovada e não se vacine. O país já teve mais de 210 mil mortes atribuídas ao coronavírus, fora as vítimas que não fizeram exame.
Um dos principais jogadores do Palmeiras, Felipe Melo, que sempre manifesta apoio a Bolsonaro na internet, participou com ele de eventos oficiais. Ambos sem máscara, com aglomeração de pessoas. Chamou quem o criticou de “torcedor ferrenho do vírus, que gosta de um mimimi do caramba” (“mimimi” é um termo pejorativo utilizado para desautorizar críticas a posições preconceituosas e politicamente incorretas).

Em ato contra o isolamento social em São Paulo, um grupo de palmeirenses publicou fotos com os dizeres “Deus, pátria, família e amigos. Odiamos gambá”. A mensagem remete ao lema “Deus, pátria e família” do integralismo, movimento fascista brasileiro forte na década de 1930, que vem se rearticulando. “Gambá” é um apelido pejorativo do Corinthians, rival do Palmeiras cuja torcida se manifestou contra o bolsonarismo. Torcedores do Palmeiras insatisfeitos com a associação do clube com o presidente lançaram o “Manifesto de palmeirenses que apoiam a democracia e a ciência e que repudiam a mentira e a intolerância”. 

Quem assistiu à goleada do Santos contra o Boca Juniors viu o treinador Cuca festejar os gols vestindo camiseta com a imagem de Nossa Senhora. Sua devoção não o impediu de ser preso por estuprar uma adolescente quando ainda era jogador, no Grêmio (ler matéria abaixo). Ele e três colegas de equipe, Henrique, Fernando e Eduardo, em excursão do time na Europa em 1987, ficaram detidos na Suíça por 28 dias sob acusação de estuprar Sandra Pfaffli, de 13 anos, no hotel em que se hospedavam. Puderam voltar ao Brasil devido a grande lobby da diplomacia brasileira e da Fifa.

Foram condenados em 1989: não encontraram evidências de violência física nos exames de corpo de delito, mas ela era menor de 16 anos. Jamais foram extraditados ou cumpriram pena. Na época, as antropólogas Carmen Rial e Miriam Pillar Grossi discutiram em artigo no jornal feminista Mulherio a complacência da imprensa de Porto Alegre e da população. Os colunistas culpavam a menina e tratavam a atitude dos estupradores como mera travessura.

A mãe de Fernando, um dos quatro, argumentava que seu filho não tinha culpa, pois não era homossexual e “a garota é que foi lá tirar a roupa na frente deles”. Ex-jogador do Santos, o atacante Robinho foi condenado a nove anos de prisão pela Justiça italiana por “violência sexual em grupo”. Ele e amigos embriagaram uma albanesa para que ela não recusasse o ato sexual. Em gravação telefônica interceptada, Robinho ria e dizia que não se importava porque a mulher estava bêbada e nem sabia o que estava acontecendo. Em outubro de 2020, a diretoria do Santos achou boa a ideia de trazer de volta o ídolo condenado por estupro coletivo. O contrato foi suspenso por exigência de todos os patrocinadores do clube.

A cultura do estupro relativiza a gravidade da violência sexual contra a mulher, atribui a ela a culpa por ser violentada e coloca homens como tendo necessidades naturais e compreensíveis, de modo que são elas, objetos para seu prazer, que deveriam evitar tais situações.

A misoginia não se restringe aos assédios sexuais. Bruno, ex-goleiro de Flamengo e Atlético Mineiro, foi condenado a 22 anos de prisão por seqüestrar, matar e ocultar o cadáver (supostamente esquartejado) da ex-amante Eliza Samudio, que exigia dele o reconhecimento da paternidade do filho. Quatro clubes já contrataram o jogador feminicida depois da condenação: Montes Claros, Boa Esporte, Poços de Caldas e Rio Branco. Nunca faltaram interessados em seus autógrafos, e outros clubes também tentaram sua contratação, como Operário, Tupi e Fluminense de Feira.

O Brasil que odeia o feminismo, zomba das vítimas de estupro e apoia a hierarquização sexista da sociedade elegeu Bolsonaro. O então deputado, em palestra no clube Hebraica no Rio de Janeiro em 2017, brincou dizendo sobre seus filhos: “Foram quatro homens. Na quinta, dei uma fraquejada e veio uma mulher”.

Imagine como alguém que se refere assim à própria filha se comporta com outras mulheres. Não precisa imaginar: seguidas vezes disse publicamente à deputada Maria do Rosário, do PT, defensora dos direitos humanos, que não a estuprava porque ela “não merecia”, por ser “muito feia”. Em 2015, foi condenado a pagar indenização a ela e a divulgar um protocolar pedido de desculpas. Nada mais. Pôde, assim, concluir o mandato parlamentar e depois se eleger presidente da República.

No momento mais brutal da ditadura militar, na vigência do Ato Institucional nº 5, a seleção brasileira foi tricampeã mundial em 1970. O triunfo foi usado para propaganda, e Pelé serviu em missões oficiais com passaporte diplomático como divulgador do governo do general Médici.

Agora, Palmeiras e Santos decidem a Copa Libertadores, disputada nas fases decisivas durante a pandemia e sem torcedores nas arquibancadas. A imprensa brasileira comemora o grande feito esportivo, enquanto Bolsonaro se mantém popular a despeito de promover a destruição da economia, das instituições e dos direitos sociais.

O slogan de 1970 já pode ser gritado pelas bocas não cobertas por máscaras: “Pra frente, Brasil!”

www.latinoamerica21.com, uma mídia pluralista comprometida com a disseminação de informações críticas e verdadeiras sobre a América Latina


Guilherme Simões Reis
Professor da Escola de Ciência Política da Unirio, doutor em Ciência Política pelo Iesp-Uerj e coordenador do Centro de Análise de Instituições, Políticas e Reflexões da América, da África e da Ásia (Caipora)

20 de janeiro de 2021

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Antes de Robinho, jogadores do Grêmio condenados por abuso de menor viraram heróis
Antropóloga compara caso atual ao de 4 jogadores presos em 1987 na Suíça, entre eles o hoje técnico Cuca

Paulo Passos, FSP, 31.out.2020
Editor de Newsletter

[RESUMO] Antropóloga analisa em entrevista o que mudou em três décadas na postura da sociedade e da imprensa em relação a denúncias de abuso sexual. Em 1987, quatro jogadores do Grêmio presos na Suíça em caso envolvendo vítima de 13 anos foram recebidos como heróis na volta ao Brasil e defendidos por jornalistas que menosprezaram a acusação. Neste ano, pressões de comentaristas, torcedores e patrocinadores levaram à suspensão do contrato entre Robinho, condenado em primeira instância na Itália por estupro coletivo, e Santos.

Em agosto de 1987, ler os textos de opinião nos jornais de Porto Alegre sobre o principal assunto da cobertura esportiva intrigava e chocava as antropólogas Carmen Rial e Miriam Pillar Grossi.
Os jogadores do Grêmio Henrique Etges, Fernando Castoldi, Eduardo Hamester e Alexi Stival, o Cuca, foram denunciados e presos por um mês na Suíça, acusados de abuso sexual de uma jovem de 13 anos.
Nos relatos na imprensa após a prisão dos quatro em Berna, colunistas dos dois maiores jornais do Rio Grande do Sul, Zero Hora e Correio do Povo, escreviam que os atletas haviam sido enjaulados por uma “travessura” ou um “deslize”.

Diante dessas manifestações, as antropólogas resolveram ir a campo —no caso, ao Aeroporto Salgado Filho, na capital gaúcha, no dia em que os atletas desembarcaram no Brasil, após terem sido liberados para voltar ao país. “Queríamos saber como seriam recebidos aqueles jogadores. O que mais me surpreendeu foi a presença das mulheres, o que elas falavam”, conta Carmen Rial, jornalista e antropóloga, doutora pela Universidade Paris V.

A mãe de Fernando, um dos acusados, tinha uma explicação para o caso. “Meu filho não é homossexual. Ele não é culpado de nada, a garota é que foi lá tirar a roupa na frente deles”, disse.
Rial e Grossi resolveram registrar o que viram e escreveram uma reportagem para o Mulherio, jornal feminista publicado nos anos 1980. “Saiu a matéria naquela publicação restrita, de público nichado. Não houve maior repercussão”, diz Grossi.

Mais de três décadas depois, em 2020, o texto viralizou em postagens no Facebook e em grupos de WhatsApp. Foi republicado em blogs e no site da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), onde as duas pesquisadoras dão aula.

O tema voltou à tona com a contratação de Robinho pelo Santos. O jogador foi condenado em primeira instância na Itália por violência sexual coletiva. Após a pressão de torcedores, patrocinadores e da divulgação pelo Globoesporte.com de trechos do processo, o contrato foi desfeito.
“O mais significativo nessa história, relendo o texto, é a mudança na imprensa. Não vou dizer no país, mas a imprensa mudou completamente”, diz Rial. Em entrevista à Folha, ela faz uma comparação entre os dois casos.

TRECHOS DE COLUNAS DE OPINIÃO NA IMPRENSA GAÚCHA:

"Os jogadores do Grêmio não assimilaram a mudança do fuso horário. Levaram um choque de costumes… Agora é só torcer – no que acredito – que a justiça suíça faça justiça. Isto é, que ela encare o fato como realmente foi uma travessura irresponsável e de total imprevidência dos seus autores quanto a sua ilicitude e consequências”.
Paulo Santana, Zero Hora, 08/08/1987

Não faltou sequer um teste de escolha múltipla: “Pense e responda: a) Uma garota que está sendo estuprada não grita? b) se grita ninguém ouve, mesmo estando num hotel? c)havendo violência, a vítima não reage a ponto de ferir-se?”
Wianey Carlet, Correio do Povo, 08/1987.

Violência? Claro que não. Ficou mais do que claro, pelo menos para mim, que não houve violência no ap.204 do hotel Metrópole. Pode-se questionar, isto sim, o bom gosto dos envolvidos… Mas cores e sabores não se discute, resta dar as boas vindas aos nossos doces devassos”.
Wianey Carlet, Correio do Povo, 29/08/1987

O fato ocorrido no hotel de Berna é normal em quase todas as excursões, fora ou dentro do país… Se os jogadores tivessem furtado, praticado desordem séria ou outra atitude demasiadamente desabonatória, eu aconselharia sua eliminação do clube. Mas um deslize de ordem sexual em que, visivelmente, colaborou para a consumação da conduta, no mínimo, quase conivente da chamada vítima, não deve servir de amparo a uma decisão drástica"
Paulo Santana, Zero Hora, 29/9/1987

* Paulo Santana e Wianey Carlet morreram em 2017

O campo de pesquisa da antropóloga migrou do aeroporto, onde os gremistas eram saudados como heróis, para um espaço virtual, a área destinada para comentários nas reportagens publicadas sobre Robinho na internet. “Ali havia muito machismo, se repetia o que era dito lá atrás [nos anos 1980], com argumentos que culpam a vítima, dando o benefício da dúvida”, afirma.
O caso dos jogadores gremistas foi julgado na Suíça em 1989, dois anos depois da denúncia. Eles foram condenados por sexo com menor de idade, mas como estavam no Brasil não cumpriram a pena.

A senhora escreveu um texto há 33 anos em que relatou a repercussão de uma denúncia de estupro que tinha como suspeitos jogadores do Grêmio. Qual foi a reação ao caso na época? Nosso texto foi publicado num jornal que não tinha uma circulação muito ampla. Algumas colegas feministas comentaram, mas não muitas. As feministas também não eram muito ligadas em futebol. Não houve uma repercussão [do texto] na época. Era outro momento, sem internet.

A senhora reproduz no texto comentários de colunistas de jornais. Eles, nos relatos destacados pela senhora, defendem os atletas, minimizam a acusação e fazem piadas e ironias sobre o caso. Esses exemplos citados eram minoria ou formavam o discurso dominante na época? Destacamos alguns, mas era algo dominante. Não me lembro de nenhuma voz contrária ao discurso machista. Lembro-me de alguns silêncios, de comentaristas que não concordavam, mas tampouco se opunham abertamente. Os que falavam eram comentaristas muito conhecidos e respeitados. Após ler essas opiniões foi que pensamos em ir para o aeroporto no dia da chegada dos jogadores.
Observamos no aeroporto que essa visão machista era consenso. O senso comum era o de que o estupro havia sido uma travessura, algo menor. Isso nos comentários mais amenos. Os mais fortes diziam que os jogadores afirmaram a honra do homem gaúcho. Então, o que a imprensa fez ali foi refletir e criar imaginários.


Como foi a experiência de ir ao aeroporto? Foi um pouco antropológico. Queríamos saber como seriam recebidos aqueles jogadores. O que mais me surpreendeu foi a presença das mulheres, o que elas falavam. Tem um antropólogo francês, o Pierre Bourdieu, que define algo chamado de violência simbólica. Quando as vítimas são cúmplices da própria violência que sofrem. Ali estava bem claro um caso de violência simbólica.
Elas, mulheres, estavam apoiando aquilo que os homens diziam, sem se darem conta de que o estupro é uma violência muito disseminada. Dados de hoje apontam que há um estupro a cada oito minutos no Brasil. Isso é subnotificado. O estupro é uma violência perigosa para as vítimas. Ela envergonha a família, coloca a vítima numa condição de culpada.

A senhora conhecia os jornalistas citados no seu texto? Eu tinha trabalhado naquele ambiente. Eu conheci aquelas pessoas, trabalhei com elas. Eram colegas, alguns simpáticos, afáveis. Mas eles estavam imersos naquela cultura machista. Era tudo natural. Como vocês viram o caso do Robinho tantos anos depois e com repercussão tão distinta? Primeiro, há semelhanças na acusação, que é de um estupro coletivo. Em estupros coletivos, o que a gente percebe é que esses jogadores estão mantendo uma relação sexual entre eles. O corpo da mulher é um simples objeto que permite uma troca sexual.
É preciso entender esse mundo dos atletas que passam por uma relação de homossociabilidade. Eles têm horror que se faça uma relação entre isso e homossexualidade. Diz mais respeito à convivência. Eles convivem muito entre homens e têm essa história dos “parças”, de fazerem muitas coisas juntos. As mulheres aparecem e há muitas orgias.

O que acho que está por trás do estupro coletivo é mostrar para o outro que você é homem. E, segundo, ter uma proximidade que se torna sexual. Eles não transam entre si. Eles usam o corpo da mulher para, de alguma maneira, transarem entre si. É isso que explica um pouco esses estupros coletivos e essa desconsideração com as mulheres.

O que une os dois casos é que eles envolvem jogadores. Em ambos, os acusados não negam o ato sexual. O que negam é que ele tenha ocorrido sem o consentimento. É preciso ter cuidado para não generalizar o jogador de futebol. Eu entrevistei mais de cem atletas para pesquisas, dei a volta ao mundo e falei com vários brasileiros na Europa, e digo que isso não é um comportamento comum. A maioria deles não estupraria uma mulher. A maioria vai mais a igrejas pentecostais do que a boates.
Como comparar a cobertura da imprensa nos dois casos? Olha, posso dizer que fiquei muito satisfeita com a mudança no perfil do jornalismo esportivo atual. Em geral, gostei do que li e ouvi. Estive atenta e vi manifestações fortes. O que mostra que esse feminismo que estava numa bolha, num jornalzinho paulista de nicho na década de 1980, hoje está presente na imprensa. Não vou falar na sociedade como um todo, porque ao ler os comentários das matérias você se depara com uma realidade extremamente machista.

TRECHOS DE COMENTÁRIOS NA TV SOBRE O CASO ROBINHO:


"Não é apedrejamento do Robinho, é apedrejamento da moral da sociedade brasileira. Não pode se inverter os valores. O Robinho está condenado na Itália por violência sexual. Ele recorreu, mas neste momento é condenado. O Santos contrata um jogador que é condenado por estupro. Acho que a sociedade não tem que aceitar sacanagem como qualquer coisa normal. Eu não aceito."
Casagrande, TV Globo, 16/10/2020

"Sou pai de uma menina e não imagino o que eu faria se alguém encostasse um dedo na minha filha. Mas acho que todo mundo merece o benefício da dúvida. A gente não tem todas as informações, então vamos esperar. Quem tem que julgar é a Justiça"
Caio Ribeiro, TV Globo, 16/10/2020

O público não mudou tanto assim? Eu passei dois dias respondendo comentários nas matérias na internet sobre o caso. Era o meu papel, eu avaliava. Os comentários machistas repetiam muito o que era dito lá atrás [nos anos 1980], com argumentos que culpam a vítima, dando o benefício da dúvida.
Algo mais chamou atenção da senhora nos comentários na mídia? Entre os comentários atuais, você ouve também o que o Caio Ribeiro diz. Quando tenta fazer uma defesa da mulher, ele cita que é pai de uma menina, e que se fosse sua filha não sabe o que faria. É uma defesa, mas uma defesa que revela internalização de um machismo. Mesmo que seja revestido em palavras doces.
Mudou a forma de ser machista? Nos anos 1980 esse machismo era explícito. Depois, teve uma fase em que isso ficou mais escondido. Nos últimos anos, com as redes sociais, as pessoas que seguiam machistas, porém sem espaço de voz, ganham um espaço, têm um lugar para se posicionarem e deixar isso exposto.

O Robinho afirmou que “infelizmente existem feministas” ao se referir aos grupos de torcedoras que fizeram pressão contra a sua contratação pelo Santos e que “tem mulheres que não são mulheres às vezes”, em referência à vítima. Mostra que um conceito tão antigo ainda está forte. A mulher tem que ser a Amélia. Se não for, talvez não seja mulher, heterossexual. Outro fato relevante das falas do Robinho é que ele cita o Bolsonaro.

Carmen Rial
Jornalista e antropóloga, doutora pela Universidade Paris V. É professora titular do Departamento de Antropologia da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e presidente do Conselho Mundial de Associações Antropológicas.


LEIA VERSÃO EDITADA DO TEXTO PUBLICADO NO JORNAL MULHERIO
VEJA A EDIÇÃO ORIGINAL DA REPORTAGEM AQUI

Os estupradores que viraram heróis

Miriam Grossi e Carmem Rial

Uma pequena multidão de quinhentos torcedores, repórteres tomava o saguão do aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, ás 18h do dia 29 de agosto, quando taxiava na pista o avião da Varig que trazia de Zurique os quatro jogadores acusados de estupro de uma menina de 13 anos.
As bandeiras e camisetas do Grêmio e do Internacional curiosamente unidas e as crianças erguidas nos ombros de seus pais davam um clima de festa ao desembarque dos quatro jogadores: Henrique Etges, Fernando Castoldi, Eduardo Hamester e Alexi Stival, o Cuca. Atônitos e surpresos pela recepção, eles desculpavam-se e se diziam arrependidos pelo que tinham feito, visivelmente demonstrando não estarem compreendendo o que se passava. Só depois é que se deram conta que os gritos de “puta, puta” eram dirigidos à menina Sandra Pfäffli e que a opinião pública gaúcha não estava ali para condená-los ou esperando desculpas: eles eram os heróis, tinham conseguido, imagine, provar à Suíça e ao mundo que ainda existem machos, pelo menos no Rio Grande do Sul.

O tom nas entrevistas foi mudando, as perguntas habilmente dirigidas pelos repórteres ofereciam espaço para declarações sobre a solidão, as dificuldades de comunicação com o carcereiro e os outros detentos e contra a terrível comida servida nas prisões de Berna – onde faltava a totêmica carne dos gaúchos. Enfim, pequenos detalhes que ajudavam a confirmar para o público o que os comentaristas esportivos já vinham dizendo há quase um mês. Do estupro, nenhuma palavra. Como heróis, os quatro firmaram um pacto de silêncio para evitar prejudicar um ou outro dos companheiros.

Alguns dias antes, tinham desembarcado neste mesmo aeroporto Valdo e Tafarrel, os dois jogadores gaúchos titulares da seleção brasileira campeã nos jogos Pan-Americanos. Nenhum torcedor os esperava. As medalhas de ouro que traziam nas mãos não comoveram, pois eram simplesmente uma vitória no campo esportivo, já a dos quatro acusados de estupro sim, tinha valor: era uma vitória da honra gaúcha, da hombridade, é claro, também da crônica esportiva que conseguiu em um mês transformar os quatro acusados de crime em vitimas de um “juiz nazista” e o estupro de uma menina de 13 anos por três dos jogadores em uma “travessura” inconsequente.
[...]

Se o Jornal Nacional da rede Globo tratava do fato com alguma objetividade, a imprensa do Rio Grande do Sul, liderada pelo cronista/torcedor Paulo Santana, começava a sua campanha a favor dos acusados, numa total distorção dos fatos, primeiro tratou-se de alterar a idade de Sandra: como 13 anos soa muito violento, ela passou a ter “14 incompletos” e depois “14 anos”. Como ainda assim teria sido difícil de se aceitar um estupro de uma menina por 4 jogadores, os cronistas trataram de ir esclarecendo aos leitores de Zero Hora e Correio do Povo, telespectadores e ouvintes da radio e TV Gaúcha que “meninas de 14 na Suíça já transam com os namorados e tomam pílulas” e “são verdadeiras mulheres capazes de seduzirem qualquer um”.

34 anos depois, Cuca fala de caso de violência sexual e diz ser inocente

 Marília Ruiz, 02/03/2021

"Eu preciso dar um basta nisso. Claro que essa história me incomoda demais. Não posso virar bandido depois de 34 anos", assim o técnico Cuca respondeu ao pedido desta colunista para falar do caso que ficou conhecido como o "escândalo de Berna". Pela primeira vez (e última), Cuca falou abertamente e com exclusividade sobre o caso acontecido em 1987. "Resolvi juntar minha mulher e minhas duas filhas para falar desse caso de 12400 dias atrás porque sou inocente", desabafou.

"Não fui julgado e culpado. Fui julgado à revelia, não estava mais no Grêmio quando houve esse julgamento com os outros rapazes. É uma coisa que eu tenho uma lembrança muito vaga, até porque não houve nada. Não houve estupro como falam, como dizem as coisas. Houve uma condenação por ter uma menor adentrado o quarto. Simplesmente isso. Não houve abuso sexual, [não houve] tentativa de abuso ou coisa assim"

O nome do técnico de 57 anos, recém-saído do Santos, voltou a ser ligado ao ocorrido durante excursão do Grêmio em julho de 1987. Na ocasião, Cuca, o ex-goleiro Eduardo, o ex-zagueiro Henrique e o ex-atacante Fernando foram detidos em hotel suíço sob a acusação de violência sexual contra pessoa vulnerável (uma adolescente de 13 anos). É relevante frisar que consta nos registros policiais e nos autos do processo que a vítima jamais identificou ou apontou Cuca como um dos seus agressores.
Os quatro ex-atletas ficaram cerca de um mês detidos na Suíça. Depois, por meio de intermediação diplomática, foram liberados e voltaram ao Brasil. Dois anos depois foram condenados à revelia. A condenação de Cuca, 15 meses de detenção, prescreveu antes de ser cumprida. 

Cuca contesta a condenação, refuta a ideia de que foi acusado de estupro, conta que nunca pôde se defender e lamenta a repercussão tardia de um fato do qual só tem más lembranças. Em conversa franca, mostrou seu incômodo com o tema:
"Topo falar com você, Marília. Qual o problema? Sou uma pessoa do bem, vivo numa família de mulheres, 90% da minha família são mulheres! Esse episódio de 1987 precisa ser explicado. Eu estava no Grêmio havia duas ou três semanas apenas, não conhecia ninguém. Eu jamais toquei numa mulher indevidamente ou inadequadamente. Sou um cara de cabeça e consciência tranquila. Tenho a consciência tranquila", afirmou o treinador.

Cuca também gravou, ao lado de esposa e filhas, um depoimento sobre o caso com exclusividade para o blog. A íntegra, sem edição, está aqui neste post.

Topar falar sobre um tema espinhoso e indigesto é o que temos que fazer nesta semana de "festejos e homenagens" pelo Dia Internacional da Mulher. Não é mimimi. Não é a ditadura das pautas feministas na semana do Dia Internacional da Mulher que se aproxima. Mas o futebol e a editoria de esportes ainda são muito blindados. O futebol é ainda muito hostil para as mulheres. Acreditem em mim: muito!

A realidade de 2021 é já bem distante daquela de 1987, quando o caso do "escândalo de Berna" foi tratado como uma "festinha" por alguns jornalistas, quando a torcida e a imprensa festejaram a chegada dos jogadores do Grêmio, quando o mundo não estava preparado pela ler essa entrevista sobre esse assunto em um blog de uma mulher na editoria de Esportes. Evoluímos. A desconstrução do machismo de todos nós é uma longa jornada. Seguimos.


Cuca não disse a verdade 

Juca Kfouri, 02/03/2021

Na última segunda-feira (22/02/2021), no Posse de Bola, comentei que havia protestos de torcedoras do Atlético Mineiro diante da possível contratação de Cuca como treinador do clube.

Tudo por causa do caso acontecido na Suíça, em 1987, que resultou na condenação dele a 15 meses de prisão por ter participado de violência sexual contra menor num quarto de hotel em Berna, durante excursão do Grêmio. Falei no podcast que ele precisava pedir desculpas publicamente pelo episódio, única maneira, talvez, de atenuar os protestos, de resto cabíveis e justos.

Eis que hoje Cuca resolveu falar ao blog de Marília Ruiz e foi muito mal. Incapaz de olhar para a câmera, falseou a verdade e ainda fez a clássica cena de envolver a família na fotografia. AQUI

Um relato fiel aos fatos está aqui, no jornal gaúcho "terragente",  publicado meses depois do episódio:


Henrique, Fernando, Eduardo e Cuca

A "aventura" de Fernando, Henrique, Cuca e Eduardo começou às 15h do dia 30 de julho, quando a menina Sandra Pfäffli, acompanhada de seu namorado e de um amigo, bateu no quarto 204 do Hotel Metrópole, em Berna, onde se hospedava a delegação gremista, em busca de um souvenir do clube.
O que aconteceu no quarto a própria Sandra contou logo depois à policia suíça e ao Jornal Blick de Zurique: "…primeiro os quatro jogadores brasileiros expulsaram do apartamento os dois amigos que me acompanhavam e então os quatro avançaram sobre mim. Três me seguraram, enquanto o outro me violentava. Então veio um segundo brasileiro e me violentou também. Eu tenho medo de ficar grávida, eu não tomo anticoncepcionais".
Tão logo a queixa foi registrada na delegacia de polícia de Berna, os policiais foram até o hotel e prenderam Henrique e Eduardo e mais tarde Cuca e Fernando, os outros dois jogadores. Todos foram mantidos em celas individuais e em presídios diferentes à partir deste momento.
Os dirigentes do clube tentaram abafar o que, à primeira vista, parecia um fato altamente negativo. Só dois dias depois, quando o Grêmio teve de disputar uma partida sem contar com os quatro reservas, é que a noticia chegou ao Brasil. (…) E, como a situação dos presos não melhorava, o Grêmio enviou ao Cantão de Berna um advogado do clube, Luis Carlos Silveira Martins, que se juntou aos dois advogados suíços que tratavam do caso.(…) a versão do próprio advogado do Grêmio não abre espaço para qualquer atenuante: "… um dos jogadores manteve relação sexual completa, outro apenas sexo oral, enquanto um terceiro fez carícias e o quarto foi um 'voyeur' conivente: apenas olhou", declarou Silveira Martins ao jornal Zero Hora do dia 31 de agosto de 1987.

 Diferentemente do que tentou passar Cuca ao blog de Marília Ruiz, ele só foi condenado à revelia porque não compareceu ao julgamento com medo de ser preso —- e até 2004 não podia entrar na Suíça, quando a sentença prescreveu. Não foi extraditado porque o Brasil não extradita nacionais.

Em resumo: Cuca não teve coragem de pedir perdão e provavelmente seguirá sendo alvo de campanhas como as das bravas feministas torcedoras do Galo.



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