Um diário de cinemeiro
Vampyr (O Vampiro) 1932, Carl Th. Dreyer
A Fonte da Donzela 1960, Ingmar Bergman
Um homem com sua câmera 1929, Dziga Vertov
L'âge d'or (A idade do ouro) 1930, Luis Buñuel
No Tempo das Diligências 1939, John Ford
Gaslight (A meia Luz) 1940, Thorold Dickinson
A morte espera no 32 1954, Richard Quine
A voz suprema do blues (Ma Rainey’s botton) 2020, George C. Wolfe
Fogueira de paixão (Possessed) 1947, Curtis Bernhardt
Tight spot (Ratos humanos) 1955, Phil Karlson
Kagi (Alucinação sensual) 1959, Kon Ichikawa
Ervas flutuantes 1959, Yasujirô Ozu
The Search (Perdidos na tormenta) 1948, Fred Zinnemann
Isso é um enterro, é uma Ressurreição, This is not a burial, it’s a resurrection 2019, Lemohang Jeremiah Mosese
Ervas flutuantes, Ozu, 1959
Vampyr (O Vampiro) 1932, A Fonte da Donzela 1960, Um homem com sua câmera 1929, L'âge d'or (A idade do ouro) 1930, No Tempo das Diligências 1939, Gaslight (A meia Luz) 1940, A morte espera no 32 1954, A voz suprema do blues (Ma Rainey’s botton) 2020, Fogueira de paixão (Possessed) 1947, Tight spot (Ratos humanos) 1955, Kagi (Alucinação sensual) 1959, Ervas flutuantes 1959, The Search (Perdidos na tormenta) 1948, This is not a burial, it’s a resurrection 2019
30/11/2020
Vampyr (O Vampiro), 1932, Carl Th. Dreyer
O vampiro no iutubi
O dinamarquês Carl Theodor Dreyer tinha alcançado bastante destaque com o seu nono filme, O Martírio de Joana D’Arc (1928) e, no ano seguinte, começou a preparar o seu próximo projeto junto ao estúdio francês ao qual estava ligado. Diante de divergências sobre o tema a ganhar as telas, Dreyer abandonou o investimento da companhia e resolveu buscar ele mesmo o financiamento, tendo já feito algumas alterações de concepção na forma do futuro filme. De repente, o diretor entendia que precisava entrar na linha dos talkies (os filmes falados), já que e o uso dessa nova tecnologia (disseminada a partir de 1927) deixava as películas mais atrativas para o público.
Durante sua viagem ao Reino Unido, a fim de estudar a tecnologia dos filmes falados, Dreyer se encontrou com o escritor dinamarquês Christen Jul, com quem se aliou para escrever um enredo de “mistério e coisas sobrenaturais“. Empolgado pelos “filmes de monstros da Universal” (principalmente O Corcunda de Notre Dame, O Fantasma da Ópera, O Homem Que Ri e Drácula), Dreyer queria dar uma visão diferente para este tipo de cenário medonho, trazendo algo mais exigente em seus conceitos e menos ligado ao puro choque visual. Daí veio a inspiração na coletânea de contos In a Glass Darkly (1872), de Sheridan Le Fanu, com destaque para os contos Carmilla (uma história de vampira com um subtexto lésbico) e The Room in the Dragon Volant.
Co-produzido pelo Barão Nicolas de Gunzburg (que adotou o nome Julian West para não ter mais problemas com a família, que não aprovava sua carreira de ator), em troca do papel principal — algo que não foi um sacrifício para Dreyer aceitar, visto que ele preferia trabalhar com não-atores — O Vampiro começou a ser filmado em 1930 e teve seus trabalhos de filmagem estendidos até o ano seguinte. Parte disso veio das dificuldades de locações e reunião dos não-atores, visto que a obra inteirinha foi registrada em locações. Uma das histórias mais interessantes sobre a produção é que o próprio castelo utilizado como “ponto de encontro” entre os personagens humanos, a vampira e as almas, serviu também de estadia para a equipe de produção do filme. Imaginem só.
Os diretores de fotografia Louis Née (ainda no começo da carreira: este foi o seu quarto trabalho) e Rudolph Maté (que tinha mais tempo em atividade, mas seus trabalhos realmente relevantes até ali haviam sido ao lado do próprio Dreyer, em Michael e O Martírio de Joana D’Arc) conseguiram um feito impressionante ao mostrar o lado espiritual e talvez moral que o roteiro de Dreyer e Jul sugeriam, colocando na tela a inspiração visual delineada pelo diretor naquele momento, a atmosfera das obras do pintor Francisco Goya.
O bom uso das locações, a ideia de utilizar câmera em movimento em um tempo em que isso não era algo comum, o bom uso de planos mais longos e um pequeno ensaio de plano-sequência (importante lembrar que a versão que conhecemos de O Vampiro não é a original, pois parte de seus negativos se perderam), o foco difuso e sobreposição para fazer com que as “almas” dos personagens andassem pelos cenários, a inserção das sombras e destaque de pontos macabros do ambiente para sugerir o medo — sem contar o grande empurrão da música de Wolfgang Zeller — fazem de O Vampiro uma criativa e impressionante realização de terror nos anos 1930, colocando-o em um patamar bem diferente do gênero naquele momento.
O trabalho imagético, no entanto, não tira dela a confusão que existe no desenvolvimento. As mudanças de ponto de vista, misturando sem mais nem menos alucinações e cenas da realidade, atrapalham a história tanto quanto a passagem pouco orgânica entre os blocos ou a apresentação de personagens como Der Schlossherr (Maurice Schutz), que aparece como uma “assombração real” no quarto de Alan Gray, ainda no início do filme. Isso não é explicado ou trabalhado de maneira coerente, embora o papel dele e do jovem sejam plenamente entendíveis no decorrer da fita.
Apesar dos problemas de montagem e roteiro, O Vampiro constrói com sucesso uma das versões que temos sobre o arquétipo dessas criaturas das trevas. A forma aqui fala mais alto que o texto, é verdade, mas talvez seja por isso que o filme recebeu um grande destaque através dos anos, porque mesmo com uma história enrolada e pouco fluída, a obra se beneficia pela boa atmosfera e por excelentes escolhas visuais, fazendo do medo algo mais sério e poderoso do que apenas o susto fácil que tomaria conta do gênero terror no futuro. Este é o que podemos chamar de “terror raiz” no sentido mais íntimo do termo.
13/12/2020
A Fonte da Donzela (Jungfrukällan ), 1960, Ingmar Bergman
iutube
Crítica | A Fonte da Donzela
Por Luiz Santiago
São raros os filmes sobre a Idade Média europeia — aqui, a Suécia do
século XIII — que retratam, com tamanho cuidado e excelente resultado de
pesquisa história, esta sociedade. Especialista em maquetes, o diretor de arte
P.A. Lundgren (O Sétimo Selo e O Rosto) criou exatamente a estrutura de um
feudo simples europeu, um grande casarão da madeira dentro de uma propriedade
de terra protegida por um senhor feudal e seus servos. Ao contrário do que diz
o imaginário popular, os castelos de pedra não eram “a regra” para os feudos
europeus e só com as inovações que ocorreram ao longo do século XII é que eles
se tornaram mais populares, seguindo os passos de outras construções de pedra
que já tinham uma popularidade um pouco maior. As igrejas.
Em uma entrevista retratada no livro O Cinema Segundo Bergman, o
diretor diz algo curioso sobre sua inspiração estética e até de abordagem
simbólica para este filme, cujo roteiro foi escrito por Ulla Isaksson (amiga de
Bergman que também escreveu No Limiar da Vida) e baseado em uma das “vinte e
sete” versões da folclórica balada medieval As Meninas de Töre em Vänge. Disse
o diretor:
"A Fonte da Donzela é um acidente de caminho. É um belo filme,
mas de uma beleza que agrada aos turistas e é uma miserável imitação de
Kurosawa. Nessa época eu só admirava o cinema japonês e era quase um pouco
samurai!"
Fortemente marcado por Rashomon (1950) e com muitas cenas que
visualmente nos remetem a concepções estéticas de Akira Kurosawa em Os Sete
Samurais (o trabalho com as paisagens e integração da natureza ao cotidiano do
homem), Trono Manchado de Sangue (a primeira sequência na floresta, antes dos
pastores de cabras, especialmente na cena da cabana do “bruxo”) e A Fortaleza
Escondida (com a personagem feminina em uma jornada por um território hostil,
embora muitas vezes ela não queira aceitar isso), A Fonte da Donzela é uma
belíssima junção de referências assumidas do Mestre sueco a um Mestre do cinema
japonês, mas tudo isso dentro de uma construção própria ao seu estilo, fazendo
da canção folclórica um austero estudo sobre o estupro, o mal, a morte, o
arrependimento e a relação do indivíduo com Deus ou com os Deuses, já que temos
aqui uma passagem clara e historicamente acurada do paganismo para o
cristianismo no norte da Europa.
Ingeri (Gunnel Lindblom) é uma jovem virgem que deve levar as velas à
igreja para acendê-las em honra à Virgem Maria. Em sua trajetória, ela encontra
três irmãos, pastores de cabras (animal-símbolo da substância primordial não
manifestada; símbolo da ama-de-leite e da iniciadora, tanto no sentido físico
quando no sentido místico), dois adultos e uma criança, com quem conversa e
decide repartir o alimento que sua mãe Märeta (Birgitta Valberg) lhe deu para a
viagem. Os adultos acabam estuprando Karin e um deles, aquele que tem a língua
cortada, mata a garota com uma paulada na cabeça. No ato seguinte, a profecia
do “bruxo” dita a Ingeri (a excelente Gunnel Lindblom), de que “três homens
mortos caminham para o Norte” irá se cumprir. Os irmãos chegam ao feudo de Töre
(Max von Sydow, em uma brilhante interpretação). Uma discussão sobre justiça
divina ou cumprimento da vontade dos Deuses é colocada no texto de maneira
bastante natural, obedecendo ao sincretismo religioso presente e recebendo um
ato de vingança que não poderia ser mais adequado ao período. E todo o ato
também carrega um significado poético imenso, a começar pela luta de Töre com
uma árvore.
Notem que a trilha sonora de A Fonte da Donzela (composta por Erik
Nordgren, o mesmo de Juventude, Sorrisos de Uma Noite de Amor e Morangos
Silvestres) é bastante rara e não tem um único padrão. Ela vai do uso de um
pequeno instrumento pastoral até peças de baladas da Alta Idade Média e da
Idade Média Central, com espaço para a música sacra no fim. Esta economia e o
bom uso da música no filme destaca grandiosamente a ambientação criada por uma
mixagem de som bem feita, trabalhando cada ruído no momento certo: o coaxar de
um sapo, o canto dos pássaros, o riacho correndo, o vento nas folhas, o
crepitar do fogo. Esse trabalho com o som e a forte presença do silêncio é que
torna a luta de Töre com uma árvore ainda em sua juventude um ato simbólico
extremamente doloroso, além de ser mais um indício de sincretismo, a purificação
do corpo do pai que perdeu a filha, através dos galhos arrancados de uma árvore
jovem, para um ato que ele ainda iria cometer. Não há oração ou pedido de
perdão a Deus. O foco do pai atormentado neste momento é outro.
A direção de Bergman equilibra momentos e cenas detalhes com cenas de
contexto do espaço e criação de suspense, principalmente no segundo ato. O
filme carrega ingredientes de mitologia nórdica, cristianismo e violências de
diversos tipos, todos fotografados com precioso uso de luz natural por Sven
Nykvist, que entrou no projeto após grandes desentendimentos entre Bergman e
Gunnar Fischer, seu fotógrafo por 12 anos, de Porto a O Olho do Diabo. Bergman
faz questão de trabalhar a dualidade do comportamento entre as pessoas e como o
Universo responde a isso. Ingeri, uma pagã bastarda, que está gerando um
bastardo, tem bastante raiva e inveja de Karin por ser virgem e poder casar-se.
Indicando que também foi estuprada, Ingeri representa a persona primal da
mulher guiada por Odin, abrindo o filme soprando para que o fogo acenda. Então
vemos uma labareda aparecer na tela, tendo uma bela nuance de luz suave de
Nykvist aplicada ao momento.
Sua oposição a Karin e mesmo a Märeta se dá não apenas pela religião,
mas pela posição de luz e sombra com que são mostradas ao longo do filme, assim
como duplos de subversão e disciplina; inocência e cinismo; castidade e luxúria
e o mais interessante, os dois símbolos naturais que acompanham as jovens: fogo
(ligado a Ingeri, na abertura) e água (ligado a Karin, no encerramento). O
espectador talvez não se dê conta, mas são esses elementos ajudam a criar o
sentimento à flor da pele que passamos ter após a chegada dos irmãos ao feudo
de Töre, um personagem majestoso que termina o longa em lancinante dor e de
joelhos, prometendo uma igreja de pedra a Deus. A atrocidade crua da cena de
estupro muda a visão do espaço e a função de cada personagem, para os quais
diversos tipos de culpa são auto-aplicados, sentimento cuja redenção selvagem
acontece na luta de Töre com os pastores.
Um ato de violência em um mudo em transformação, coberto por fé e mais
violência. O roteiro adiciona uma crise existencial ao protagonista, ao que
muitos poderiam chamar de “anacrônica” em relação ao momento, mas que cumpre
ali uma função perfeitamente compreensível, a de um pai que lamenta a morte da
filha após ser estuprada. Onde estava Deus neste momento? Seria o Odin de
Ingeri, que por inveja, amaldiçoara Karin, mais forte que a divindade cristã à
qual Töre e sua família aprendeu a adorar? Mas a sensação de abandono é
imediatamente coberta por uma resignação do personagem de Max von Sydow,
alquebrado, necessitando de algo que pudesse dar a ele a segurança de que, em
algum lugar, alguém estava olhando para aquela situação.
A seu modo e em sua ira, ele já fizera a justiça contra os criminosos.
Mas sua filha continuava morta. E seu estupro e subsequente morte não eram
coisas que seriam simplesmente esquecidas. Todavia, diante de um ato de fé e
uma promessa em meio a dor, um milagre acontece. Qualquer que fosse o objetivo
dessa nova divindade em permitir uma inocente passar por tudo aquilo, a
sensação de proteção e acalanto dos pais é conseguida por algo que, para
sempre, lembraria a filha. As chamas, anteriormente, já haviam servido para
purificar o corpo no exercício da vingança. Mas deixou profundas marcas. Já
água que jorrou de onde estava a cabeça da donzela veio para limpar o espírito.
Então havia mesmo um Deus. E a morte de Karin, de repente — em meio a todo o
terror que a envolveu — se torna algo muito maior para aqueles carentes de
consolo.
15/12/2020
Um homem com sua câmera (Chelovek s
kino-apparatom), 1929, Dziga Vertov
O Homem da Câmera no iutubi
Um Homem com Uma Câmera
Por Luiz Santiago
Teorizar
sobre o gênero documentário não é algo tão simples quanto pode parecer à
primeira vista. A rigor, temos na memória a imagem de que o documentário é um
registro da verdade, uma fonte de informações críticas sobre alguém ou alguma
coisa. Nele, temos uma versão impessoal e distanciada dos fatos, o que nos
permite construir, livres de indícios alheios, a nossa própria visão e opinião
a respeito do que vimos, certo? Errado.
De todos os
gêneros, o documentário é certamente o mais perigoso, porque carrega a bandeira
da “verdade” consigo – a não ser que seja um mockumentary,
que por concepção, já é uma forma de zombar da realidade -. Esse perigo do
“filme revelador” ainda ilude muito espectador ingênuo ou que desconhece certos
princípios básicos do cinema, como a produção e a montagem, duas coisas que
influenciam sobremaneira em qualquer obra cinematográfica.
Mesmo que a
concepção de um documentário não passasse pelo crivo particular do diretor e
equipe técnica – afirmação questionável já que as escolhas dos entrevistados,
dos arquivos a serem utilizados e dos locais de filmagem simbolizam um filtro
de informações, portanto, é uma escolha, e como tal, algo particular -, a
montagem por si só corromperia a ideia de verdade pura, porque construiria uma
versão do fato, com direito a simbolismos, metáforas, efeitos dramáticos, ou
simplesmente, a escolha do que entraria ou não para o corte final.
Partindo
desse princípio de que um documentário é uma construção/versão da verdade
(podendo haver muitas outras), entenderemos melhor o exercício de Dziga Vertov
em O Homem da Câmera,
ou, em outro título, Um Homem Com
uma Câmera. O diretor russo, teórico do cinema-verdade (kino-pravda), do cinema-olho (kino-glaz), ou do construtivismo
cinematográfico, versões de uma sétima arte longe das atrações ficcionais,
propôs, através de sua obra inicial, uma visão da realidade cotidiana feita sem
interpretação de papeis e fora do palco simbólico, como fazia Sergei
Eisenstein, segundo palavras do próprio diretor.
O que
geralmente se deixa passar é que, mesmo Vertov não fazendo mudanças estruturais
na realidade que filmava, ele fazia mudanças no modo como o público deveria
perceber essa realidade. Mas isso é algo ruim? Não! Isso é notável, porque nos
ajuda a entender que mesmo a mais bem intencionada proposta de
imagem-movimento-verdade é manipulada para dar um sentido específico ao
público, obedecendo aos princípios teóricos do realizador da obra.
Nesse
exercício de verdade construída na montagem e convite à percepção crítica,
Vertov faz um ciclo quase vicioso de imagens, compondo, desconstruindo e
recompondo imagens no decorrer do filme. Elementos que vimos nos minutos
iniciais voltam aos poucos a aparecer, especialmente ao final, complementando e
adicionando mais ingredientes à nossa ideia do que o autor intentava nos
mostrar.
Embora eu
goste muito do filme, enxergo como exagero certas escolhas do diretor e vejo
até uma contradição elementar em sua teoria, o que não a invalida, mas nos faz
questionar, por exemplo, a recusa da atração interna do filme proposta pelo
cineasta, quando a concepção externa de Um Homem com
uma Câmera, por exemplo, era, dentre outras coisas, atrativa.
Evidente que não é o tipo de “atração simbólica einsteiniana”, mas não deixa de
ser uma atração.
Um Homem com
uma Câmera é um filme pioneiro. Assim como todo documentário teórico, é uma
obra para pensar a concepção da verdade e o seu entendimento através de uma
produção imagética analítica, além de discutir teorias sobre manipulação do
real e reinterpretar as formas conhecidas de entender o mundo através do
cinema, uma proposta no mínimo curiosa e que até hoje levanta valiosas
discussões.
Um homem com uma câmera, de Dziga Vertov (1929)
Ally Colaço, 15 de abril de 2009
Jenny Granado, 17 de abril de 2009
17/12/2020
L'âge d'or (A idade do ouro), Luis Buñuel, 1930
Roteiro: Salvador Dali e Marques de Sade (não creditado)
L'âge d'or no iutubi
Principais sequencias: Documentário sobre os escorpiões . À beira do mar, bandidos maiorquinos totalmente exaustos. Colocação da primeira
pedra de Roma, perturbada pelos abraços de dois amentes. Dois policiais
arrastam para dentro da cidade o homem que se faz liberar. Grande recepção em
casa de um marquês a quem diversos incidentes não perturbam. O homem convidado
esbofeteia a marquesa, depois toma a sua filha. Ele leva ao suicídio um
ministro que lhe telefonou. A jovem o deixa para beijar o velho maestro que dá
um concerto no parque. Desespero do amente. Para concluir, o Duque de Blangis, herói
criminoso de Sade, aparece com as feições de Jesus Cristo.
Uma obra prima pela
violência, pureza, frenesi lírico e absoluta sinceridade. A produção,
financiada por um mecenas, o Visconde de Noailles foi concebida e realizada com
toda liberdade. A parte de Buñuel foi essencial num filme onde se encontram
quase todos os grandes temas de sua obra, e que inicialmente devia chamar-se Les
eaux glacées du calcul égoiste (as águas geladas do cálculo egoísta), expressão do Manifesto Comunista.
........
“Afogou os fervores
sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo
pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal
um simples valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, conquistadas com
tanto esforço, pela única e implacável liberdade de comércio. Em uma palavra,
em lugar da exploração velada por ilusões religiosas e políticas, a burguesia
colocou uma exploração aberta, cínica, direta e brutal.”
......
Referindo-se a Sade, Marx,
Freud, à ideologia surrealista, ele pretendia: “Enfraquecer a capacidade de resistência
de uma sociedade em putrefação, que tenta sobreviver utilizando os padres e os
policiais... A passagem do pessimismo à ação é determinada pelo Amor, que exige
que se sacrifique tudo: situação, família e honra” (Manifesto surrealista de l’Age d’or).
Simultaneamente com a exaltação do “amor louco”, o filme contém um simbolismo
freudiano (provavelmente devido sobretudo a Dali), violentos ataques
metafóricos à religião e à ordem social; os nobres convidados, com os rostos
cobertos de mosca, indiferentes aos criados que ateiam fogo e aos operários que
atravessam o salão; o guarda florestal matando uma criança; os esqueletos dos
bispos sobre os rochedos. Como também diz o manifesto dos surrealistas: “As
primeiras pedras se colocam, os tiras espancam como ocorre todo dia, no seio da
sociedade burguesa, acolhidos pela mais completa indiferença”. L'âge d'or,
apresentado à censura com o sonho de um louco, foi liberado, mas depois das
primeiras exibições no Studio 28 as organizações fascistas destruíram a sala
aos gritos de “Morte aos judeus”, e o filme foi proibido pelo prefeito de
policia Chiappe. O filme é o testemunho de uma época e da revolta surrealista em
1930. (George Sadoul, Dicionário de filmes, p. 17, LPM, 1993)
Sobre o surrealismo
11/01/21
No Tempo dasDiligências, (Stagecoach), 1939, John Ford
Stagecoach no iutubi
Por Ivanildo Pereira
John
Ford uma vez descreveu a si próprio com a frase “Eu faço westerns”. Se
levarmos essa declaração ao pé da letra, então tudo começou com No Tempo das
Diligências. Trata-se não apenas de um dos mais importantes filmes da
história do cinema americano, mas também do nascimento de um artista: afinal, o
John Ford que faz westerns é quem nasce com ele.
Ford
já era um cineasta veterano quando o fez, tendo se aventurado em diversos tipos
de filme. Porém, quando se volta um pouco na carreira dele, percebe-se que o
interesse no western estava meio presente, dormente, desde cedo: na época do
cinema mudo, o diretor fez alguns trabalhos dentro do gênero. No Tempo das
Diligências foi o seu primeiro western falado, e embora ele tenha
continuado a se aventurar longe do seu gênero por assinatura, Ford definiu o
western como ninguém antes dele. Depois da sua visão, o gênero nunca mais foi o
mesmo. O Monument Valley, paisagem do Estado americano do Utah que serviu de
cenário para o filme, e vários outros depois dele, pertencia a Ford. O western,
por um tempo, pertenceu a ele.
É o
caso raro de revolução dentro de um gênero cinematográfico, mas uma revolução
impulsionada pela simplicidade. A história de No Tempo das Diligências é
simples e básica: é a aventura de um grupo de personagens durante uma perigosa
viagem a bordo de uma diligência a caminho de Lordsburg. Os personagens também
são bastante simples, arquétipos, mesmo rasos. A bordo da diligência temos o
condutor caipirão com sotaque exagerado (Andy Devine), o médico beberrão
(Thomas Mitchell), o jogador galanteador e misterioso (John Carradine), o
banqueiro ganancioso e que se acha superior a todos (Berton Churchill), o
vendedor de temperamento dócil (Donald Meek), a mulher virtuosa e grávida que
quer se reunir com o marido (Loiuse Platt) e uma prostituta com coração de ouro
(Claire Trevor). Tentando trazer um pouco de ordem dentro do grupo, está o
xerife (George Bancroft).
Embora
os personagens sejam simples, capazes de ter sua personalidade descrita em
poucas linhas e facilmente identificáveis graças a seus maneirismos e
figurinos, vários deles acabam passando por pequenos arcos dramáticos durante a
viagem. Alguns deles, ao final da jornada, não serão mais os mesmos que eram
quando a iniciaram. Tudo porque, com cerca de 20 minutos de filme, entra em
cena o catalisador da mudança, o personagem mais importante do filme. E que
entrada: Ford aproxima, com um movimento de dolly, sua câmera do jovem
John Wayne, segurando uma sela numa mão e girando um rifle na outra. É por ele,
o Ringo Kid, que a diligência para, e a atenção do público de cinema parou
também, para acompanhá-lo. Ainda o acompanhamos.
Aqui
cabe um parêntese: Ford já conhecia o esforçado Wayne de muito tempo, quando
ele ainda era um extra ou ator de faroestes “B”. Ele o conhecia mesmo quando
Wayne ainda era Marion Morrison, seu nome verdadeiro. Com No Tempo das
Diligências, Ford enfim fez do seu amigo um astro — neste filme, Claire
Trevor ainda ficou com o “top billing”, ou seja, o nome mais alto nos
créditos. Depois dele, e dessa entrada em cena, ninguém nunca mais ficaria
acima de John Wayne novamente.
O
Ringo Kid vai provocar mudanças dentro da dinâmica do grupo, principalmente por
ser a figura mais interessante: apesar de possuir um bom coração, ele deseja
chegar a Lordsburg para matar o homem que assassinou seu pai e seu irmão. Ringo
é um fugitivo da lei, mas é o único dentro da diligência que trata Dallas, a
“garota de saloon” feita por Trevor, com respeito e consideração. Os
“enjeitados” se unem e o relacionamento entre os dois, que evolui para uma
paixão, é retratado com ternura por Ford, Wayne e Trevor. Aliás, é curioso
notar como, embora Kid seja o protagonista, Dallas é na verdade o “coração” do
filme, e em certa medida os demais personagens também são definidos pela forma
como a encaram. Graças à personagem, Ford e o roteirista Dudley Nichols
conseguem introduzir na narrativa considerações interessantes e sutis sobre o
papel da mulher dentro do universo western. Há um aspecto inegável de crítica
social em No Tempo das Diligências, e é curioso ver como a diligência
acaba se tornando uma espécie de microcosmo dos Estados Unidos, com diferentes
facetas da sociedade americana sendo expostas nela.
No entanto, apesar de tudo isso, o longa virou mesmo um
clássico e divisor de águas dentro do gênero por dois motivos centrais. O
primeiro é a ação: o clímax do filme é simplesmente a melhor cena de ação que o
cinema já tinha visto até então, o momento no qual a diligência, cada vez mais
dentro do território perigoso, é atacada pelos índios. É a deixa para Ford
criar um momento capaz de empolgar mesmo os espectadores de hoje: ele filma
seus atores em frente a uma back-projection — a ação projetada numa tela
— enquanto as façanhas mais espetaculares ficam a cargo do lendário dublê
Yakima Canutt, que pula entre os cavalos da diligência dublando o herói de
Wayne, e depois arrepia a todos passando por baixo dos cavalos e da diligência
ao interpretar um índio. A cena se move numa velocidade tão alta que Ford até
se empolga e viola a regra dos 180 graus em alguns momentos, fazendo a
diligência se mover tanto da esquerda para a direita quanto da direita para a
esquerda. Mas quando vemos os cavalos passando por cima da câmera, um dos
grandes contra-plongés do cinema, tudo é perdoado em nome da empolgação…
O outro motivo pelo qual No Tempo das Diligências
superou todos os westerns até então é o seu aspecto mitológico. Antes de Ford e
do seu filme, o Velho Oeste americano era, sim, cenário de aventuras, mas sem a
conotação mitológica que acabou tendo depois de ambos. O Velho Oeste pós-John
Ford era um lugar de emoções tão vastas quanto as paisagens, onde homens muito
justos lutavam contra outros muito ruins. Nada exemplifica melhor isso do que o
final do filme, quando o xerife libera Ringo Kid para cumprir seu objetivo
porque, dentro da história, ele reconhece que outro tipo de justiça precisa ser
servido, e por um momento nós acreditamos nisso.
Perceba
como a “vingança” de Ringo não é realmente um ato perverso, pois o vilão usa um
rifle no duelo desigual. É menos uma vingança do que uma luta entre Davi e
Golias, com espingardas e pistolas. O Velho Oeste de Ford é um de lendas,
irreal mesmo, mas um lugar ao qual cinéfilos e fãs do mundo todo ainda gostam
de retornar. Aqui é onde o cinema superou a realidade: muita gente hoje
acredita mais nos mitos e lendas do Oeste de John Ford do que nas histórias
reais do período. E tudo começou com No Tempo das Diligências, o filme
que marcou o instante no qual um artista pegou um gênero popularesco e o
transformou em poesia, em força imagética, “no material do qual sonhos são
feitos”. Ele fazia westerns mesmo.
13/01/2021
Gaslight (A meia Luz),
1940, Thorold Dickinson
A bela e ingênua Paula Alquist (Ingrid Bergman) conhece o vivido Gregory Anton (Charles Boyer) e, após um curto namoro, se casam eles e passam duas semanas de lua-de-mel na Itália, onde Paula estudou ópera. Voltando a Londres, o casal se muda para a casa de uma tia de Paula, que foi uma famosa estrela de ópera e que também foi morta misteriosamente, sendo que Paula encontrou seu corpo quando ainda era criança. Entre os criados há Elizabeth Tompkins (Barbara Everest), que cozinhou para a família durante anos, e Nancy Oliver (Angel Lansbury), uma empregada que se insinuou para Gregory no minuto em que ele entrou na residência. Gregory logo ordena que a parte de cima da mansão seja lacrada e explica a Paula, que este ato é para o próprio bem dela, pois foi lá que sua tia foi assassinada. A partir de então Paula começa a perder coisas, sendo que Gregory fala para ela que seus lapsos de memória estão começando a perturbar a vida social deles. Ele revela a outros que a mãe de Paula morreu em um manicômio. Em uma reunião social onde Gregory reprova Paula pelo comportamento irregular dela, ambos são observados por Brian Cameron (Joseph Cotten), um detetive da Scotland Yard que se interessa pelo casal e começa a fazer investigações sobre o assassinato não solucionado da tia de Paula. Miss Thwaites (May Whitty), uma fofoqueira, dá informações sobre os hábitos do casal, o que aumenta as suspeitas de Cameron em relação a Gregory. Cameron tenta ver Paula em particular, mas é impedido várias vezes por Gregory, que está sempre alerta. Quando Cameron tem finalmente êxito, ela está à beira de um colapso nervoso. Paula explica que ela nota que a luz de gás nos quartos dela fica instável e diminuta, mas ninguém mais nota isto e ela acredita que é outra alucinação. Enquanto falam a luz de gás escurece e Cameron confirma isto. Ele então acha coisas perdidas por Paula, trancadas na escrivaninha do marido dela, juntamente com uma carta que Gregory aparentemente escreveu há vinte anos atrás para a tia assassinada de Paula.
14/01/2021
A morte espera no 322, (Pushover),1954, Richard Quine
Pushover no iutube
Kim Novak (1933)
A Morte Espera no 322, no original Pushover, de 1954, é muito menos conhecido, falado, lembrado do que deveria. Jamais tinha ouvido falar dele, apesar de gostar especialmente do cinema americano dos anos 30 a 60, e tenha uma predileção pelo film noir. Pushover é absolutamente noir. Foi realizado por um diretor de respeito, Richard Quine, embora talvez mais conhecido pelas comédias elegantes (Jejum de Amor, 1955, Quando Paris Alucina, 1964, Como Matar Sua Esposa, 1965) e dramas e/ou melodramas românticos (O Nono Mandamento, O Mundo de Suzie Wong, os dois de 1960).
Tem uma abertura espetacular, uma trama interessantíssima, fascinante, e ótimas interpretações. É um belo thriller. E ainda por cima é o filme que introduziu Kim Novak às platéias de cinema, o primeiro filme dessa mulher de beleza fenomenal que já começou com tudo e nos primeiros quatro, cinco anos da carreira se firmou como uma das maiores estrelas de Hollywood. O filme começa de maneira magistral. Um guarda armado está chegando a uma agência do Bank of South California, de manhãzinha. Tira do bolso a chave para abrir a porta da agência – e nesse exato momento é dominado por dois homens armados.
O assalto começa antes de se iniciarem os créditos. Os dois bandidos já estão dentro do banco quando vemos os créditos iniciais. “Introducing Kim Novak”, dizem eles. Naquela época, os créditos eram bem rápidos, e então eles terminam ainda durante o assalto. Nem uma única palavra é pronunciada ao longo dos 4 primeiros minutos do filme, o tempo que se leva para mostrar o assalto. Os dois bandidos estavam já com uma fortuna dentro de uma maleta, prontos para sair do banco. O guarda, no último momento, tenta tomar o revólver de um dos ladrões. O outro ladrão o executa com tiros certeiros.
Corta, e é como se outro filme estivesse começando.
A câmara mostra o movimento junto a uma sala de cinema que está exibindo The Nebraskan, no Brasil O Valente de Nebraska, um western lançado um ano antes do próprio Pushover, em 1953. Uma jovem e bela mulher, extremamente jovem e extremamente bela, sai do cinema. É loura, tem o cabelo bem curto. Usa um casaco de pele daqueles que berram que custam os olhos da cara. Dirige-se a seu carro, estacionado ali perto. Gira a chave, e ouvimos aquele barulho de motor que não quer pegar. Gira de novo, e é o mesmo barulho. Um homem de terno, gravata e chapéu – ou seja, vestido igual a praticamente todos os homens daquela época – se aproxima dela, diz que o carro pode estar afogado, se oferece para ajudar. Os dois já haviam se visto no cinema. Ela diz que o viu, ele diz que a viu também.
A loura desliza para o banco do carona, e o homem – interpretado por Fred MacMurray, então com 46 anos, mas com aquela aparência de mais velhos que os homens tinham nos anos 30 a 50 – se senta ao volante. A jovem loura (Kim Novak tinha ridículos 20 anos de idade durante as filmagens de Pushover) olha para ele sem temor algum, sem demonstrar que está preocupada com a possibilidade de aquele desconhecido tentar alguma coisa, dar uma cantada, o que for. O homem não consegue fazer o carro pegar, e diz que vai olhar o motor. Abre o capô, dá uma observada, diz que não está afogado, deve ser outro problema.
A loura pergunta se ele tem alguma sugestão. Ele tem, é claro: há uma oficina ali perto. Ela poderia pedir ao mecânico para dar uma olhada no carro, e esperar por uma resposta dele num bar que também ficava ali perto. A loura diz que se sentiria mais segura se o homem a acompanhasse. Nesse momento, fiquei pensando: mas diabo, como é possível que um avião desses, aquela Kim Novak toda, esteja dando tanta bola pra um sujeito feio que nem Fred MacMurray?
Mas na mesma hora me lembrei que a personagem de Barbara Stanwyck também deu bola para o dele, em Pacto de Sangue/Double Indemnity (1944). E que em Se Meu Apartamento Falasse/The Apartment o personagem dele comia o da jovem e lindinha Shirley MacLaine. As personagens femininas de filmes de Fred MacMurray são muito mais surpreendentes do que poderia sonhar a nossa vã filosofia, Horácio.
O filme rapidamente revela que aquele sujeito é um policial
Daí a pouquinho, o mecânico aparece no bar em que Paul Sheridan está bebendo com a jovem e deslumbrante Lona McLane, para dizer que não tinha conseguido consertar o carro; terá que rebocá-lo para a oficina, para examinar melhor o motor. Lona pergunta se Paul pode levá-la para casa. Ele faz aquela pergunta de tantos filmes: – “Your place or mine?” A sua casa ou a minha? E ela, em 1954, na profundeza dos caretas, forçadamente pudicos anos 50, em plena vigência do Código Hays, o manual de autocensura dos grandes estúdios, e suas regras rígidas a respeito do relacionamento entre homens e mulheres, responde apenas com um “Surprise me”.
Vai demorar um bom tanto até o espectador ter a confirmação de algo que ele pode ter começado a suspeitar desde o início: sim, Paul Sheridan mexeu no motor do carro de Lona McLane para que ele não pegasse. Antes de entrar no cinema, logo depois dela, ele abriu o capô e mexeu num carburador, ou coisa parecida. O que não demora nada, o que vem logo depois desse encontro do sujeito de meia-idade com a jovem loura, é a revelação de que Paul Sheridan é policial. E a polícia sabe que Lona McLane é a amante, teúda e manteúda, do conhecido bandido Harry Wheeler (Paul Richards), o homem que, segundo as descrições das testemunhas, havia assaltado o banco, levado a grande fortuna de US$ 210 mil e ainda assassinado um guarda.
O IMDb, o site mais enciclopédico que existe sobre cinema, e cuida de todo tipo de detalhe, especificou que, em valores de 2017, aqueles US$ 210 mil que Harry Wheeler levou do Bank of South California seriam quase US$ 2 milhões. Pouco mais de one point 9 million, como se diz lá.
Um estudo sobre a tentação – o marinheiro diante da sereia, o pato diante da femme fatale
O plano do tenente de polícia Carl Eckstrom (o papel de E.G. Marshall), o encarregado do caso do roubo do banco, é simples: vai botar vários policiais de campana junto ao prédio de apartamentos em que vive Lona McLane, à espera do momento em que Harry Wheeler apareceria lá para ver sua linda amante. Algum dia ele iria inevitavelmente aparecer, raciocina o tenente.
Um policial ficará num carro estacionado nas proximidades da entrada principal do prédio, o do número 322 do título escolhido pelos exibidores brasileiros, A Morte Espera no 322. Dois outros policiais ficarão em um apartamento no mesmo prédio, em outro bloco, de onde dá para observar os movimentos dentro do apartamento que Harry Wheeler custeia para a jovem amante. Um ficará observando os movimentos da moça – a dame, a broad, como dizem os policiais –, com um binóculo, enquanto o outro cuida do gravador que registra tudo o que se fala no telefone dela. O policial Paul Sheridan vai ficar olhando, através de um binóculo, para todos os movimentos da mulher deslumbrante que deu para ele.
É uma maravilha de sacada de quem criou a história.
A tentação, essa coisa fascinante e pavorosa. A sereia. O fruto proibido – proibido mas belíssimo, apetitoso, chamativo. Pushover é um belo filme sobre a tentação. Morri de pena desse pobre Paul Sheridan, policial veterano, ficha imaculada, ali exposto à tentação, diante dos olhos do espectador. Nesse ponto, Paul Sheridan se aproxima bastante de Walter Neff, o vendedor de seguros interpretado pelo mesmo Fred MacMurray em Pacto de Sangue/Double Indemnity. Exatamente como Walter Neff, Paul Sheridan não estava procurando problema, sarna para se coçar, mulher irresistivelmente bela que representasse a Tentação em si, o suco concentrado da Tentação. De forma alguma. Recebeu ordens de se aproximar – sem, obviamente, revelar sua condição de policial – da amante do bandido procurado. Recebeu ordens, e obedeceu. Cumpriu o que lhe foi determinado. Aí pronto. Estava diante da Tentação. Eva e Adão diante da Maçã. O navegante solitário ouvindo o canto da sereia. O pato diante da femme fatale.
Os guias confirmam que o filme não teve grande reconhecimento
Leonard Maltin confirma meu pressentimento, minha sensação de que o filme não teve o reconhecimento que merecia. Tachou o filme com apenas 2.5 estrelas em 4, e sequer se deu ao trabalho de informar que aquela foi a estréia de Kim Novak: “MacMurray é tira que se apaixona pela boneca de gangster Novak; bom elenco cobre campo conhecido.” Também confirmando essa minha sensação, o monumental Guide des Films de Jean Tulard não traz o filme entre os 15 mil que comenta. E Le Petit Larousse des Films, um guia que me encanta a cada nova consulta, dedica a ele três rápidas linhas de sinopse que revelam mais do que deveriam sobre a trama.
O livro The Columbia Story tem a obrigação de falar de Kim Novak – e fala: “Em Pushover, Kim Novak, que o estúdio estava preparando para ser uma nova Marilyn Monroe (eles poderiam ter tido a original, se Harry Cohn não tivesse desistido do contrato dela), fazia um papel não muito diferente do de Barbara Stanwyck no muito superior Double Indemnity (Paramount, 1944).” Em seguida o livro conta mais da trama do que é necessário – bem mais do que relatei aí acima – e conclui dizendo que o elenco de apoio, de primeiro nível, incluía Phil Carey, Dorothy Malone e E.G. Marshall. É inevitável lembrar de Pacto de Sangue/Double Indemnity. Escrevi sobre as semelhanças com ele duas vezes antes de ler o verbete do The Columbia Story. Não acho, no entanto, que seja o caso de fazer comparação entre os dois em termos de qualidade, usar um para falar mal do outro. Claro que Pacto de Sangue é um filme superior a este aqui – é um dos maiores clássicos do filme noir de todos os tempos, um dos mais belos filmes do cinema americano em geral.
E, sobretudo, são histórias diferentes demais, personagens diferentes demais. Só o fato de o protagonista, esse pobre Paul Sheridan, ser um policial, um homem da lei, e um bom homem da lei, já torna a trama distinta, diferente da do grande filme de Billy Wilder. A situação de Paul Sheridan é ainda mais difícil que a de Walter Neff. A tentação de passar para o outro lado da lei é ainda mais aflitiva, angustiante, apavorante.
A mulher do bandido é loura, linda e sensual – mas não é fria, calculista, criminosa
Em seu interessante livro O Outro Lado da Noite: Filme Noir, o estudioso carioca A. C. Gomes de Mattos afirma que Lona “não é uma verdadeira mulher fatal no sentido noir, de uma assassina fria e calculista”. É a mais absoluta verdade. A Lona McLane de Kim Novak é loura e bela e sensual como a Phyllis Dietrichson de Barbara Stanwyck, e também como a Cora Smith de Lana Turner em O Destino Bate à Porta/The Postman Always Rings Twice (1946). É loura e bela e sensual como as duas que vieram antes dela – e, como suas antecessoras, é a Tentação em estado puro, a Tentação concentrada.
Mas, como bem diz Gomes de Mattos, não é, de forma alguma, uma assassina fria e calculista. É apenas a mulher de um bandido. Que de bandida não tem nada – a ponto de se apaixonar verdadeiramente pelo homem mais velho que aparece em sua vida. Há um diálogo impressionante entre Paul e Lona, quando ela o confronta dizendo que já sabe que ele é um policial – e, a princípio, ele tenta negar, diz que muito ao contrário, ele é amigo de Harry Wheeler, e Harry pediu a ele para vigiar a amante.
Paul, o policial até então absolutamente honesto, pergunta: – “Se você soubesse de onde vinha o dinheiro, você teria aceito?”
E ela, a femme fatale que é fatale mas não é fria nem calculista, a ponto de se apaixonar pelo homem que ela tenta: – “O dinheiro não é sujo. Só as pessoas.”
Em seu livro, Gomes de Mattos relata todos os pontos básicos das tramas dos filmes noir que comenta. Não transcrevo aqui mais trechos do que ele diz porque seriam spoilers, mas registro o final de seu verbete: – “A direção de Quine distingue-se pelo seu rigor e unidade dramática e bons efeitos de suspense burlam a expectativa de acontecimentos, que a gente prevê, mas que se desenrolam de maneira diferente.” De novo, Gomes de Mattos acerta perfeitamente. Em especial depois da metade dos curtíssimos 88 minutos do filme, o espectador prevê o que deverá vir, e muito do que ele prevê vem, sim – mas não exatamente como a gente poderia imaginar. A rigor, de forma surpreendente.
Que ser humano não se desmancharia por aquela jovem Kim Novak?
Vejo, depois de anotar tudo o que vai aí acima, que, no cartaz americano original, há uma frase, uma tagline, que é como um subtítulo: “The story of tentation”. Corretíssimo. Pushover – a história da tentação. Vejo também que os exibidores portugueses encontraram um título perfeito para o filme: Tentação Loira. Já o escolhido pelos exibidores franceses, esse é esquisito: Du Plomb pour L’Inspecteur. Chumbo para o inspetor. Esquisito.
Não conhecia a palavra que é o título original, Pushover. Pessoa fácil de conquistar ou seduzir. Algo fácil de fazer ou vencer – barbada. O dicionário da Longman dá um exemplo: “Charles is a pushover for girls with blue eyes”. Charles se desmancha por garotas de olhos azuis. Que ser humano não se desmancharia diante daquela Lona McLane que vem na pele de Kim Novak aos 20 aninhos de idade?
Juro que há no filme alguns closes do rosto de Kim Novak em que ela parece ainda não estar tão absolutamente, absurdamente, insanamente bela quanto apareceria em alguns dos filmes que fez logo depois – Férias de Amor/Picnic (1955), Melodia Imortal/The Eddy Duchin Story (1956), Meus Dois Carinhos/Pal Joey (1957) e, é claro, é óbvio, Um Corpo Que Cai/Vertigo (1958).
Fiquei com a sensação de que, depois dessa estréia dela em Pushover, a Columbia Pictures investiu em alguma coisa para melhorar o que Deus já havia feito com perfeição – um dos rostos mais lindos que já passaram diante de uma câmara de cinema, uma coisa assim que só poderia ser comparada a Ingrid Bergman, Grace Kelly, Ava Gardner. Não sei bem o que poderiam ter mexido. Algo nos dentes, talvez? Não eram comuns, naqueles meados de anos 1950, as intervenções de cirurgiões plásticos. E não é uma mudança grande que ocorreu – mas fiquei pensando que podem ter feito alguma coisinha.
O chefão da Columbia investiu tudo para transformar aquela jovem em grande estrela
Marilyn Pauline Novak (pois é, o primeiro nome dessa moça nascida em Chicago em 1933, de um casal de professores, perfeita classe média da grande metrópole, é exatamente esse aí) foi uma das últimas estrelas criadas, inventadas, fabricadas pelos grandes estúdios. Talvez a última grande.
Conta o livro Leading Ladies que a jovem Marilyn Pauline tinha 12 anos quando venceu um concurso de beleza patrocinado por uma marca de geladeiras. Atravessou então o país rumo a Hollywood, onde, anos mais tarde, um teste chamou a atenção do Harry Cohn, o chefão da Columbia. Cohn estava procurando uma beleza jovem para ir tomando o lugar da sua grande estrela Rita Hayworth e enfrentar a novata em que a 20th Century Fox vinha investindo muito, Marilyn Monroe, “Ela concordou em mudar seu primeiro nome, mas, apesar dos protestos de Cohn, de que Novak era muito étnico, ela se recusou a mudar o nome de família.”
Contrato assinado, a moça, pouco mais que uma menina, fez seis filmes no período de dois anos, de 1954 a 1956. “Por volta de 1956, tinha se transformado em uma das mais populares estrelas do cinema americano”, diz o livro Leading Ladies. “Seu papel de Madge em Picnic tem sido muitas vezes citado como um perfeito exemplo de mistério indefinível que realça as interpretações da atriz. Em um momento, ela é a segura deusa do sexo, para, no momento seguinte, parecer uma garotinha perdida da cidade pequena que protesta: ‘Estou tão cansada de me dizerem que sou bonita!’”
Em 1955, fez O Homem do Braço de Ouro, ao lado de Frank Sinatra, sob a direção firme, prussiana, de Otto Preminger – um baita drama que ousava mostrar abertamente o vício em drogas pesadas entre músicos de jazz. De novo com Frank Sinatra, e ao lado da então pós balzaquiana Rita Hayworth que ela vinha substituir, fez Meus Dois Amores/Pal Joey, uma comedinha musical gostosa e leve como a pluma. Para aí então, em 1958, fazer o papel duplo no mais extraordinário de todos os grandes filmes do mestre Alfred Hitchcock.
O talento da atriz acaba ficando em segundo plano diante da beleza da estrela
Em 2000, escrevi sobre Vertigo para uma coluna que tinha na Agência Estado, chamada “O Melhor do DVD”. Eu já havia escrito antes sobre o filme, em anotações feitas para mim mesmo, e numa delas, em 1997, tinha cometido a seguinte frase: “Como o velho Hitch conseguiu dirigir bem a Kim Novak! Ela nunca foi boa atriz, se é que não estou louco. Mas aqui no filme ela está esplêndida, sensacional; ela é duas pessoas diferentes, primeiro Madeleine e depois Judy, Madeleine uma mulher rica, cosmopolita, de gestos elegantes, Judy uma moça humilde do interior do Kansas, com um jeito quase vulgar. Ela consegue ter duas vozes diferentes, dois sotaques diferentes. É absurdamente talentoso o trabalho dela. Isso sem falar, é claro, da beleza estonteante, da sensualidade, da absurda sensualidade do andar, do olhar.”
“Ela nunca foi boa atriz”, afirmei, no texto que escrevi apenas para mim mesmo, em 1997. Em 2000, para a coluna da Agência Estado, me penitenciei por ter feito aquela afirmação absurda: “A atriz escolhida pelo mitológico diretor para os papéis-chave de Madeleine e depois Judy era Vera Miles (que havia acabado de trabalhar com ele em O Homem Errado, de 1957, e voltaria a trabalhar de novo em Psicose, em 1961). Vera Miles fez os testes com as roupas criadas pela também lendária Edith Head para a personagem de Madeleine, e chegou a ser feito um quadro de Carlotta Valdes com o rosto da atriz – o quadro é mostrado no documentário. O início das filmagens se atrasou, Vera Miles ficou grávida e Kim Novak pegou o lugar.
“Nada contra Vera Miles, que é uma atriz muito boa e é uma mulher bonita. Mas que abençoada gravidez, a dela. Porque Kim Novak era muito mais que bonita; tinha uma beleza estonteante, acachapante – e é uma das responsáveis pelo fato de o filme ser uma das maiores obras-primas do cinema.
“Kim Novak é de fato duas pessoas inteiramente diferentes, Madeleine e Judy. Madeleine é aquela mulher rica, cosmopolita, de gestos elegantes, de uma sensualidade sempre presente, mas contida. Judy é uma moça humilde do interior do Kansas – “Salinas, Kansas”, ela diz, várias vezes -, com um jeito quase vulgar, ou até escancaradamente vulgar. Kim Novak consegue ter duas vozes diferentes, dois sotaques diferentes, dois andares diferentes, dois olhares diferentes. Um espanto.”
Por todas as muitas qualidades que tem, este Pushover, Tentação Loira em Portugal, Du Plomb pour l’Inspecteur na França, A Morte Espera no 322 aqui, deveria ter sido visto com mais atenção. Como foi o filme que introduziu Kim Novak, então, é absurdo que ele não tenha tido a consideração que merece. O eventual leitor pode ver o filme a hora que quiser. Ele está disponível em um canal do YouTube chamado Cine Antiqua. Com legenda e imagem e sons muito bons.
16/01/2021
A voz suprema do blues (Ma Rainey’s
botton), 2020, George C.
Wolfe
A Voz Suprema do Blues: Um bom
filme com grandes atuações
Por Barbara
Demerov
A Voz Suprema do Blues, filme
póstumo estrelado por Chadwick Boseman (Pantera Negra), é aquele tipo de
produção que possui uma história com menos brilho quando comparada às atuações
de seu elenco. A comovente performance de Boseman é o que traz vida à trama -
que ainda conta com outra grande atriz ao seu lado: a vencedora do Oscar Viola
Davis. São dois atores que tomam os holofotes individualmente, já que dividem
pouco a tela.
Dirigido por George C. Wolfe, que realizou diversos trabalhos na Broadway e já
venceu um Tony, A Voz
Suprema do Blues entrega uma ambientação enérgica e ao
mesmo tempo acolhedora. Em meio aos anos 20, regado pelo som do blues e com o
racismo disfarçado de boas intenções, o longa se passa no espaço de uma tarde
de calor em Chicago, durante a gravação de um álbum da cantora Ma Rainey
(Davis, praticamente irreconhecível no papel). A personalidade forte da artista
pode ser percebida desde os primeiros momentos do filme, quando se apresenta no
palco ao lado de sua banda.
Mesmo sendo história
baseada em figuras reais - especialmente Ma Rainey -, A Voz Suprema do
Blues não tem caráter absolutamente biográfico. Afinal, o roteiro se
aproveita de um pequeno recorte temporal e de Rainey em si para, então, chegar
ao seu cerne: discutir o racismo emaranhado no meio artístico. As discussões,
contudo, acontecem apenas entre os personagens negros e são todas encabeçadas
pelo personagem de Boseman, Levee. Sonhador e de personalidade forte, o trompetista
é apaixonado por música e mergulha fundo em seu sonho de se tornar mais
reconhecido.
Este desejo profissional é justamente o que mais movimenta as discussões,
sempre calorosas dentro da pequena sala de ensaios. E, pouco antes de começarem
a gravação do álbum de Rainey, até mesmo o modo como Levee é respeitoso com o
chefe (branco) do estúdio é motivo para a banda questionar o papel do jovem
músico para a comunidade negra. São cenas como essas, muito bem dirigidas e que
aproveitam bem o espaço utilizado, que enfatizam o poder do roteiro de A
Voz Suprema do Blues.
Drama tem traços de teatro e possui monólogos poderosos de Chadwick Boseman
Apesar de ser um filme de época nos aspectos visuais e técnicos, a obra -
baseada em uma peça - ganha traços teatrais muito fortes graças aos diálogos e
à atenção dada às emoções. E quantas emoções. Boseman entrega dois monólogos
tão potentes e dramáticos que seu personagem cresce a ponto de se equiparar (ou
até mesmo superar) a presença de Davis no papel principal. Quando lembramos do
estágio de seu câncer à epoca das filmagens deste filme, as palavras que fala
com tanto vigor ganham múltiplas interpretações.
O texto de A Voz
Suprema do Blues apresenta bem os dois personagens de mais destaque,
Levee e Rainey. No entanto, o restante do elenco apenas orbita dentro daquele
espaço de gravação em prol da ação destinada particularmente à dupla. O
movimento de ação e reação após grandes momentos e discursos impacta, sobretudo
no terceiro ano, mas o filme como um todo soa inconclusivo, incompleto mesmo
diante de palavras tão absolutas.
Por ter como foco questões micro, detalhadas dentro de problemas enraizados na
sociedade, o macro (a casca da história) acaba perdendo um pouco de sua força.
Chadwick Boseman é a alma deste filme e até mesmo Viola Davis - que deve
garantir uma indicação ao Oscar ao lado do ator - se torna, em partes, uma
coadjuvante. Aqui são as palavras que ditam as ações, não o contrário. E é
justamente por isso que A Voz Suprema do Blues ganha mais
destaque por suas particularidades, mas não tanto pela trama em si.
17/01/2021
Fogueira de paixão (Possessed),
1947, Curtis
Bernhardt
“’ Eu te amo’ é uma forma tão inadequada de dizer eu te amo”, murmura
a apaixonada Joan Crawford a seu namorado (Van Heflin). Quando ele, que é
engenheiro e também um empedernido conquistador, observa, num trecho de êxtase
tecnológico, que a viga-mestra por ele projetada é mais bonita que a Srta.
Crawford, ela se queixa: “Porque você não me ama assim? Eu sou muito mais
bonita que uma viga-mestra”. Heflin não consegue ser da mesma opinião, e logo,
em desespero, ela se casa com Raymond Massey, um figurão do petróleo, pai de
uma filha esperta (Geraldine Brooks). Ver Heflin apaixonar-se pela enteada
revela-se demais para Crawford, que desaba com um caso de esquizofrenia que
realmente abala as paredes do sítio de Massey, e aí é rebocada pelos
psiquiatras. Em termos de suspense, este filme, dirigido por Curtis Bernhardt,
é muitas vezes impressionante, e ele e seu elenco dão o melhor de si. A
insanidade é usada, à típica maneira da Hollywood da década de 40, como
pretexto para carregar no dramalhão; não há um pingo de credibilidade – é isso
em parte que torna o filme divertido.
... O roteiro de Sylvia Richards e Ranald MacDougall baseou-se em One man’s secret, de Rita Weiman. (Pauline
Kael, 1001 filmes no cinema, p. 191, Companhia das Letras, 1994)
18/01/21
Tightspot (Ratos humanos), 1955, Phil Karlson
Ratos humanos no iutubi
PHIL KARLSON DEMONSTRA VIGOR E
COMPETÊNCIA NO 'B' "RATOS HUMANOS"
José Eugenio Guimarães éZootecnista, Cientista Social e Cinéfilo
O promotor Lloyd Hallett (Edward G.
Robinson) tenta tirar de circulação o gângster Benjamin Costain (Greene). Seu
último trunfo é o testemunho da presidiária Sherry Conley (Ginger Rogers). Em
torno dela se desenrolam os acontecimentos de Ratos humanos (Tight
spot, 1955). É realização de pegada noir, intensamente dialogada
e praticamente ambientada nos reduzidos espaços de um quarto de hotel. O tom
claustrofóbico obriga os atores a intensa interação. Este é o ponto alto deste
filme de baixo orçamento que nada fica a dever em vigor e dinamismo aos
congêneres desenvolvidos com aportes financeiros mais generosos. O diretor Phil
Karlson sempre transitou nas produções 'B', geralmente westerns, criminais e
suspense. Preferia as temáticas cruas, levadas a termo com a rapidez e fluência
do melhor jornalismo policial, como Ratos humanos. Pena que
filmes assim — econômicos, dinâmicos e sem firulas — não sejam mais realizados.
Duro é acreditar que a personagem interpretada por Ginger Rogers seja uma jovem
com a metade da idade que tinha a atriz no momento da realização. Mas Billy
Wilder já a deixou em situação parecida com A incrível Suzana (The
major and the minor), realizado 13 anos antes.
Ratos
humanos
é filme ‘B’ de padrão ‘A’ dirigido por um especialista. Alguns o consideram a
melhor realização de Phil Karlson, também lembrado pela categoria que imprimiu
a outros trabalhos menores como Pista cruenta (The Iroquois
trail, 1950), O manto da morte (The Texas Ranger,
1951), Os quatro desconhecidos (Kansas City confidential,
1952), Traição heróica (They rode West, 1954), Cidade
do vício (The Phoenix City story, 1955), Talhado
para campeão (Kid Galahad, 1962), Fibra de valente
(Walking tall, 1973) e Madrugada da vingança (Framed,
1975).
Karlson começou
carreira cinematográfica na Universal, nos anos 30, fazendo de tudo um pouco.
Envolveu-se tão seriamente com a atividade a ponto de esquecer o curso de
Direito. Antes de se tornar diretor foi montador, criador de piadas para Buster
Keaton, assistente de direção nas comédias de Abbott & Costello e nos
westerns em série estrelados por Tom Mix em fim de carreira. A estreia na
direção aconteceu em 1944, na diminuta Monogram, com a comédia A wave, a
WAC and a marine. Realizou outros 13 filmes para a companhia. Daí em
diante se consolidou nos B movies, de preferência em westerns, policiais
e filmes de suspense. Segundo afirmou, preferia as temáticas cruas, que
frequentavam as páginas de crime dos jornais. Conheceu o auge nos anos 50. Na
década seguinte dirigiu Dean Martin em O agente secreto Matt Helm
(The silencers, 1966) e Arma secreta contra Matt Helm
(The wrecking crew, 1968), tentativas mal sucedidas de aproveitar
o sucesso de James Bond.
Ginger Rogers, 44 anos,
distante do período em que conheceu o sucesso nos musicais em parceira com Fred
Astaire, interpreta Sherry Conley em Ratos humanos. Em torno dela
se desenrolam os acontecimentos nesse filme de pegada noir, intensamente
dialogado e praticamente ambientado em interiores, principalmente nos reduzidos
espaços de um quarto de hotel. O tom claustrofóbico obriga os atores a uma
intensa interação. Nesse jogo, Ratos humanos apresenta o que tem
de melhor, mesmo sendo difícil fazer de conta que a personagem de Rogers tenha
20 anos menos que a idade declarada da atriz.
Apesar de jovem, Sherry Conley acumula experiência. Segundo conta, aprendeu cedo a conhecer a vida: aos 16 anos, como modelo. Não tardou a dar o mau passo e se perder, envolvendo-se com a gang do mafioso Benjamin Costain (Greene), alvo da investigação do promotor Lloyd Hallett (Robinson), que pretende deportá-lo. Difícil é reunir testemunhos. O último, Pete Tonelli (Alfred Linder – não creditado), sob proteção policial, foi assassinado ao entrar no tribunal. Com essa morte, precedida de rápidas explicações, o filme começa de maneira eficaz e vibrante. É exemplo do que se pode fazer com poucas tomadas à base de planos condensados encadeados com rapidez.
Sem Tonelli,
Hallett apela para a presidiária Sherry Conley. Sob escolta policial, é
retirada da prisão e levada a um quarto de hotel no qual terá a companhia de Willoughby
(Anderson) — agente penitenciária boa praça e mãe dedicada, que goza da estima
de Sherry — e Vince
Striker (Keith) — detetive de traços duros, poucas palavras e dúbio segundo a
boa cartilha do noir. Rolará, evidentemente, uma atração entre a
irrequieta e “faminta” personagem de Rogers e Striker.
Inutilmente, Hallett tenta
convencê-la a depor contra o gângster. Apelos ao civismo e à boa consciência da
jovem não funcionam, nem benefícios como a redução da pena. Sherry se mantém
fiel ao próprio lema: “Não seja voluntária, para nada!”. Ainda mais com o risco
de ser assassinada.
Mas Costain conta com ampla rede de informações, inclusive na polícia.
Sabe que seguro morreu de velho. Prefere não se arriscar com Sherry. Tenta
eliminá-la quando estava a caminho do hotel. A segunda tentativa também falha,
graças à intervenção de Striker. Na troca de tiros Sherry sai ferida
superficialmente. Mas a generosa Willoughby é mortalmente atingida.
A morte de Willoughby abala as convicções de Sherry. Mas será um “golpe”
de Hallett que a convencerá terminantemente a depor: a visita da irmã Laura
(McVeagh). Procura-a por motivos inteiramente egoístas. Em nome deles, tenta convencê-la
a não testemunhar. É a gota que faltava! A sequência do diálogo áspero entre as
irmãs é um dos trunfos de Ratos humanos. Outro bom momento é a
dança da carente Sherry com Striker. Mais adiante, a dubiedade do detetive fica
clara. Está na folha de pagamento de Costain. Se não pode colaborar de pronto
na eliminação da testemunha, foi por falta de condições que não o
incriminassem. Nos momentos finais, aturdido pela crise de consciência, morre
ao salvar Sherry de mais um atentado. Striker cumpre, dessa forma, a trajetória
moral que o conduz do pecado à redenção, mesmo pagando preço alto.
Ratos humanos permite boa fruição. É bem conduzido. A
direção soube aproveitar, inclusive com humor, a tensão que emana do embate de
personagens confinados em espaços reduzidos. As interpretações são afinadas,
mesmo com Ginger Rogers não conseguindo disfarçar que é muito mais velha que
sua personagem. Mas a narrativa poderia conter menos previsibilidade. O
espectador atento, habituado aos clichês, reconhece o andamento no qual uma
sequência ou uma fala permitem antecipar os movimentos seguintes. Apesar disso,
cabe lamentar que filmes assim — econômicos, dinâmicos e sem enfeites — não
sejam mais produzidos.
20/01/2021
Kagi (Alucinação sensual), 1959, Kon Ichikawa
Perverso, no melhor sentido da
palavra. Como tratamento de oportunismo sexual, lembra um pouco Pacto de sangue, mas infinitamente mais complexo. No
início, um jovem médico, sensual e bonitão, vaidoso de suas proezas sexuais,
nos diz que seu paciente, um homem idoso está perdendo a virilidade. E o velho
curva-se e expõe as nádegas – para tomar uma injeção. Mas não consegue se
tornar potente com a injeção, e por isso induz o jovem médico, que corteja a
sua filha, a fazer amor com sua esposa. Observando-os, fazendo-se artificialmente
ciumento, o velho consegue levantar um pouco o espírito. O engraçado, claro, é
que a esposa, soberbamente interpretada por Machiko Kyô , é a esposa japonesa tradicional, obediente
– e coopera com o plano do marido. Coopera tanto que, uma vez excitada pelo
jovem médico, literalmente mata o velho marido de carinho – excita-o até a
morte. É ao mesmo tempo um suicídio e um assassinato perfeito. O título – A
chave – se encaixa no romance de Tanizake em que o filme se baseia, mas melhor
seria se o filme se chamasse o buraco da fechadura. Todo mundo espiona todo
mundo, e embora cada um esconda seus motivos e ações, ninguém se engana. A tela
é o nosso buraco da fechadura, e nós somos os voyeurs que vemos todos se
espionarem uns aos outros. Quando o velho faz fotos obscenas da esposa,
entrega-as ao jovem para revelar. O jovem mostra-as à sua noiva, a filha, cuja
reação é afirmar que pode fazer tudo que a mãe faz e um outro nível de ironia é
o fato de que isto não é verdade – o filme é também uma devastadora sátira à
jovem japonesa moderna ocidentalizada. Como a mãe, Machiko Kyô, com seus ombros
macios e caídos e seu ritmado andar acolchoado, parece uma antiga fantasia
erótica. Dirigido por Kon Ichikawa, este filme sobre pornografia seria quase
perfeito se não lhe tivessem tascado um estúpido final (que não está no
romance). (Pauline Kael, 1001 filmes
no cinema, p. 256, Companhia das Letras, 1994)
Machiko Kyô (1924–2019) e Ganjirô Nakamura (1902–1983) protagonizam também o filme anterior, Kagi. Haruko Sugimura (1909 - 1997) é uma atriz muito frequente nos filmes de Ozu, por exemplo Era uma Vez em Tóquio (1953)
Por Luiz Santiago
Ervas Flutuantes (1959) é uma refilmagem de Yasujiro Ozu feita de um outro filme seu, Uma História de Ervas Flutuantes (1934), cujo roteiro escreveu com Kôgo Noda. Com outro elenco, nomes de personagens mudados e agora em cores, o filme tem exatamente a mesma premissa que a versão dos anos 30, elencando uma companhia de teatro itinerante que retorna a uma província (aqui) depois 12 anos para uma longa temporada. O chefe da trupe é Komajuro Arashi (Ganjirô Nakamura) e seu retorno a este lugar tem menos a ver com teatro do que com o passado vivido ao lado da proprietária de um bar local, aqui, vivida por Haruko Sugimura, atriz que já trabalhara antes com Ozu mas não na primeira versão de Ervas…
Nesta filmagem de 1959, Ozu certamente está mais maduro como diretor e consegue transmitir uma sensação de identidade ainda maior para esses atores e seu cotidiano no decorrer de uma temporada de apresentações. O ritmo tem uma maior alternância entre eventos mais intensos e mais calmos, com uma unidade bastante coesa na obra, pelo menos até a sequência final, que para mim foi um problema na versão de 1934 e continuou sendo um problema nesta versão, com seu tom excessivamente melodramático após uma longa narrativa de caráter mais simples e mais realista.
Isto aqui também é curioso porque se encontra na fase final da carreira do diretor ou, numa análise mais ampla, na Era dos filmes mais crus de Ozu no pós-guerra. Claro que o fato de ser um remake de outro momento de sua carreira tem um peso nisso, mas fica difícil ignorar o tom diferente do roteiro para aquilo que cineasta produzia no momento. Quando falo nisso, trago à tona a visão de “colapso de núcleos humanos” que vemos no longa, entre profissionais e familiares, mas o grande momento de diferença continua sendo o encerramento, inclusive com a manutenção da violência cometida por Komajuro e a relação complicada que ele tem com Sumiko (Machiko Kyô), submetida a uma verdadeira montanha-russa de emoções.
O grande fotógrafo Kazuo Miyagawa, frequente colaborador de Kenji Mizoguchi, foi o escolhido para iluminar a obra, o que resultou em um filme de fortes contrastes e bem mais escuro, tanto para internas quanto para externas, mergulhando os personagens em uma permanente melancolia, mesmo nas cenas mais ternas da película. Ervas Flutuantes é um exercício de convivência e mudanças. Nem sempre as reações das pessoas são aquilo que esperamos delas e nesta refilmagem, tal sensação fica ainda mais evidente. Emoções, compromissos e condições sociais são apenas alguns dos itens que formam a vida desses personagens, que os afetam e que são passageiros, como as ervas flutuantes do título. Como a vida de cada um de nós.
22/01/2021
The Search (Perdidos na tormenta),
1948, Fred
Zinnemann
Tanto Marlon Brando quanto
Montgomery Clift fizeram suas estreias na tela com o diretor Fred Zinnemann –
Brando em Espíritos indômitos (1950) e Clift neste filme, de estilo quase
documentário (usando os atores como se fossem temas de documentário e misturando-os
com não-profissionais) num estúdio de Zurique e nos acampamentos da
Administração de Socorro e Reabilitação das Nações Unidas (UNRRA em inglês), na
zona da Alemanha ocupada pelos americanos. É sobre os terrores das crianças
refugiadas da Segunda Guerra Mundial. Um grupo delas entra em pânico quando são
postas numa ambulância da Cruz Vermelha, pois acham que estão sendo ludibriadas
e entrando numa câmara de gás motorizada; um menino apavorado e sem poder falar
(feito por Ivan’Jandl, de nove anos, natural de Praga) foge. No papel do
soldado americano que encontra o menino, coloca numa ambulância, conquista sua
confiança e faz com que ele volte a falar, Clift dá ao filme uma lufada de
emoção. Sua gesticulação e ritmos vocais são diferentes da atuação a que os
cinéfilos se acostumaram; ele é sensível e absorvente de uma maneira nova, estilizada,
mas realista. O filme faz um corte transversal entre o que ocorre com o menino
e as cenas de sua desesperada e persistente mão checa (feita pela cantora
Jarmila Novtna) que se arrasta de acampamento em acampamento à procura do
filho. A emoção se apodera de muitos espectadores, mesmo que o suspense
manipulado e a apelação sentimental impeçam o filme de fazer qualquer justiça
ao tema.
... Zinnemann trabalhava nos EUA
desde 1930, mas muitas pessoas que viram o filme acharam que ele era um novo e
brilhante diretor europeu, e a reputação dele estava feita. (Pauline Kael, 1001 filmes no cinema, p.
381, Companhia das Letras, 1994)
23/01/2021
This is not a burial, it’s a resurrection, 2019, Lemohang
Jeremiah Mosese
Synopsis
In a small village nestled amongst
the mountains of land-locked Lesotho, an 80 year old widow awaits the return of
her only surviving family member: her son, a migrant worker labouring in a
South African coal mine. It is Christmas and he is due home. Sombre messengers
deliver the news: her son has died in a mining accident. Distraught by the sudden
news of his untimely death, Mantoa struggles to find meaning in her existence.
An invisible wall of bewilderment arises and stands between Mantoa and the
outside world. God, the village, and reality too, appear further and further
away. Consumed by grief, her yearning for death and reuniting with her family
steadily grows. She yearns to be laid to rest in the local cemetery with her
loved ones.
Mantoa winds up her affairs early and makes arrangements for her own burial.
Her plans are punctuated when she learns that the village is to be forcibly
resettled due to the construction of a dam reservoir. The land will be flooded
and the cemetery desecrated. Mantoa’s resolve is unwavering; igniting a
collective spirit of defiance within the community. In the final dramatic
moments of her life, Mantoa’s legend is forged and made eternal.
DIRECTOR’S STATEMENT
I still know every texture of my
grandmother’s house; its walls, its thatched roof, the smell of oak trees after
rain. Soon it will be no more. Soon it will be razed and flooded and water will
be channeled into the heart of South Africa. Communities are being erased en
masse in the name of progress. Forgotten in a soulless march towards futurity.
I am not for or against progress. I am more interested in questioning the
psychological, spiritual and social elements that come with it. New and old.
Birth and death. An ecclesiastical reverence to the earth. Through Mantoa’s
eyes, we see that there is a lot of darkness to face, but ultimately this is a
story about the resilience of the human spirit.
PRODUCERS/DISTRIBUTORS
PRODUCTION 1: Cait Pansegrouw,
Elias Ribeiro – Urucu Media
5 Howe Street
7925 – Cape Town, South Africa
Tel. 27833950088
cp@urucumedia.com
http://www.urucumedia.com
24/01/2021
Winaypacha, 2017, Óscar
Catacora
Wiñaypacha: o comovente longa protagonizado por uma senhora
que nunca tinha visto um filme
Lucía Blasco - BBC Mundo
Willka e Phaxsi são dois
idosos aimarás que vivem em uma parte remota dos Andes. O jovem diretor Óscar
Catacora conta a história deles em 'Wiñaypacha', filme que representará o Peru
nos prêmios Oscar e Goya.
No meio dos Andes peruanos, Willka e Phaxsi são a vida que
resiste ao frio e à solidão do Altiplano. São vestígios de uma cultura e de uma
língua milenares que estão em perigo de extinção.
Vicente Catacora e Rosa Nina dão vida, no longa-metragem
Wiñaypacha, a estes dois octogenários que formam um casal inseparável.
Aos pés da majestosa montanha Allincapac, mais de 5 mil
metros acima do nível do mar, os protagonistas desse filme - o primeiro gravado
na íntegra em língua aimará - sobrevivem às inclemências do tempo e da miséria,
esperando um vento que lhes traga de volta seu filho que emigrou.
Sol e Lua, seus nomes na língua ancestral, sofrem, choram,
riem e vivem ligados à Pachamama, a Mãe Terra.
O jovem cineasta peruano Óscar Catacora, de 31 anos, nos conta
a história deles. Não fazem falta música, movimentos de câmera e nem efeitos
especiais: 96 planos fixos bastam para compor uma narrativa que comove e
estremece.
Com seu primeiro filme, ele ganhou no Festival de Cinema de
Guadalajara (México) os prêmios de Melhor Jovem Diretor, Melhor Obra e Melhor
Fotografia e será o indicado peruano aos prêmios Oscar e Goya na categoria de
melhor filme estrangeiro e ibero-americano de 2019.
A BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC, conversou com ele
no festival Hay Arequipa, que aconteceu entre 8 e 11 de novembro.
BBC News Mundo - "Wiñaypacha" é uma ficção, mas
também é autobiográfica. O protagonista, Vicente Catacora, é seu avô materno.
Que outros componentes da sua vida pessoal há no filme?
Óscar Catacora - Vivi parte da minha infância com meus
avós paternos nas partes altas de Puno, a uns 4,5 mil metros de altitude. Eles
não falavam castelhano, por isso eu falo perfeitamente aimará. O filme se
baseia nesse passado com meus avós e na nostalgia que eles sentiam pela ausência
do meu pai e de seus outros filhos.
Meu pai me enviou para viver com meus avós quando eu era bem
pequeno, tinha 6, 7 anos. E fez o mesmo com meu irmão. Passávamos três ou
quatro meses lá durante as férias. Há esse costume entre os que vivem na zona
alta do Peru. É uma tradição necessária e que hoje está se perdendo.
Meus avôs paternos morreram há vários anos. Para a produção
do filme, buscávamos atores que pudesse interpretá-los e, finalmente, decidimos
apostar no meu avô materno, que também é aimará. Ele apoiou muito o projeto por
uma questão familiar.
BBC News Mundo - Rosa Nina, a mulher que interpreta Phaxsi,
não é sua avó, mas também não é atriz. Como foi trabalhar com ela?
Catacora - Rosa nos foi indicada por um amigo por suas
qualidades artísticas e sua personalidade sociável. Fomos à casa dela e ela
aceitou imediatamente nosso convite.
A senhora nunca tinha visto um filme e nunca tinha ido a uma
sala de cinema. Lembro bem quando me disse: "Não sei muito bem o que me
estão propondo, mas vou apoiá-los". Para nós foi incrível receber essa
resposta. E falar em aimará com ela foi chave.
Tivemos seis meses de trabalho intenso de preparação de
atuação. Ao princípio, eles erravam muito nos diálogos, improvisavam, não
dominavam as pausas, o ritmo... Não foi fácil. Era algo novo para eles.
BBC News Mundo - O que te inspirou a fazer este filme?
Catacora - Durante minhas aulas de comunicação para
desenvolvimento visitei vários povoados andinos, onde vi de perto o abandono
das pessoas de terceira idade.
Seus filhos tinham emigrado para as cidades e voltavam muito
poucas vezes por ano para vê-los. Eles, de certa maneira, sofriam de abandono.
BBC News Mundo - Poderíamos então dizer que o abandono é o
tema central?
Catacora - Sim, o filme aborda vários temas, mas o
central é o abandono da terceira idade. Willka e Phaxi estão distantes da
sociedade. Precisam de outras pessoas, de outros que possam acompanhá-los e
apoiá-los.
Tenho muito respeito por personagens mais velhos. Graças aos
meus pais aprendi que os mais velhos têm de ser respeitados, que têm sabedoria.
Mas no Peru e em outras partes do mundo há muitas pessoas
que nunca visitam seus pais e avós. É uma realidade que existe. Muita gente
está perdendo o respeito pelos mais velhos. Ignoram e os maltratam.
Na cidade e nas montanhas, um adulto velho é um estorvo. Mas
na cultura andina não existe isso: quanto mais velhas, mais veneradas as
pessoas são.
O filme também fala sobre a perda de identidade do povo
andino. A cultura e a língua andinas são pouco valorizadas pela sociedade.
Recentemente têm ganhado um pouco mais de importância.
E fala sobre um efeito da globalização: quando um filho
emigra para outro espaço social em busca de melhores oportunidades. É uma
denúncia, uma crítica a quem abandona suas raízes ancestrais.
BBC News Mundo - Numa cena, Phaxsi conta a Willka que teve
um sonho: seu filho voltaria. A busca pelo filho é um tema recorrente. Quem
este filho representa? É o próprio espectador?
Catacora - Sim. Alguns me dizem que, mais que uma
indireta, é uma direta aos espectadores que abandonam seus pais.
Mas também representa nossa sociedade, os filhos que nunca
vão poder dar sequência ao legado cultural. Esse filho que foi embora para um
lugar longe e que nunca vai poder transmitir os conhecimentos de sua cultura a
futuras gerações.
É como um filho que nunca nasceu, é uma metáfora, na
verdade.
BBC News Mundo - Quais outras metáforas tem o filme?
Catacora - São muitas. Uma delas é a do fósforo, que é
um produto da globalização. Os povos originais se converteram em dependentes do
sistema globalizado. Por isso acontecem várias tragédias no filme.
Outra metáfora é a cena final, que aborda a cosmovisão
andina. Por isso se fala muito da Pachamama, a Mãe Terra. Na cultura andina,
morros têm sexo. Há um morro macho e uma fêmea e há um casal de morros.
A avó sobe essa montanha para se tornar deusa, um ser
sagrado. Passamos um bom tempo buscando esse cenário natural para concluir o
filme. Não foi fácil encontrar a geografia adequada.
BBC News Mundo - A montanha é outra protagonista do filme.
Como foi rodar a mais de 5 mil metros de altitude?
Catacora - Foi um grande desafio. Apesar de em Puno
vivermos a 3,8 mil metros acima do nível do mar, subir mais mil metros é
complicado, porque você sente a diferença climática. Trabalhamos a zero grau em
alguns casos, às vezes menos.
Mas não diríamos que foi sofrido. Não nos queixamos do
trabalho. Na cultura aimará o trabalho não é nenhum castigo de Deus.
E, sim, a montanha é importante. A cordilheira dos Andes é
considerada uma beleza paisagística para tirar boas fotos. No entanto, as
pessoas não se dão conta do que está por trás desse desafio.
Pode ter uma família como a do filme esperando seu filho.
Pode haver uma cultura que vem sendo maltratada pela incursão das empresas
mineiras ou de outras instituições. O filme de certa forma expõe essa
realidade.
BBC News Mundo - Há, sem dúvida, uma forte intenção de
crítica política no filme.
Catacora - Sim, é uma crítica ao Estado que abandona os
povos originais. É um olhar político para que o Estado se preocupe com essas
populações.
O Peru é multicultural, tem cerca de 49 línguas nativas.
Algumas estão desaparecendo pouco a pouco. O Estado agora está promovendo a
recuperação e preservação de algumas.
Os povos indígenas recebem algum apoio. Mas temo que seja
mal utilizado com o pretexto de preservar, e que muitos se aproveitem disso.
Acho que é um tema delicado.
Deveria haver mais políticas de proteção e apoio, mas com um
tratamento cuidadoso. A ideia não é que o Estado converta esses povos em
dependentes. Deveria haver um fortalecimento para eles, dar-lhes apoio para que
aprendam a se sustentar depois.
O Estado deveria evitar que o povo aimará dependa dele.
BBC News Mundo - Que mensagem quer transmitir a quem vê seu
filme?
Catacora - Que entendam que a unidade familiar é o mais
importante da vida. Que aprendam a valorizar seus costumes e tradições. Que
valorizem um pouco a importância da família. Que olhem para o passado, de onde
vêm, isso vai ajudá-los a se projetar no futuro.
Minha avó costumava dizer que a maneira como você trata seus
pais é como seus filhos te tratarão quando for mais velho.
BBC News Mundo - E que interpretação gostaria que fizessem?
Catacora - Não gostaria que vissem o povo aimará como
ignorante, nem como miserável. Um dos grandes valores desse povo é o orgulho.
Somos um povo resistente e enfrentamos assim algumas culturas que quiseram nos
aniquilar.
BBC News Mundo - O filme ganhou vários prêmios. Esperava ter
tanto sucesso com seu primeiro filme?
Catacora - Na verdade, não. Queríamos fazer um bom
filme, e não estar em festivais.
É bom ouvir as notícias que correm, mas talvez eu não
expresse muito.
Tem a ver com minhas raízes, o homem aimará não se emociona
facilmente. Não quero dizer insensível, mas não exteriorizo muito essa
emotividade. Sinto e vivo isso internamente, e às vezes compartilho.