sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Machado de Assis nas redes

Machado de Assis divide torcidas nas redes e vira ícone da 'zoeira' com Gretchen e Nazaré Tedesco. Autor é redescoberto por uma nova geração por meio dos memes, das tretas e dos debates infinitos da web

Bolívar Torres, 29/12/2021 

Conhecido por abordar a literatura de forma bem-humorada em sua conta no TikTok (@patzzic), o streamer Patzzic descobriu recentemente a força de Machado de Assis nas redes sociais. Sempre que publica um vídeo sobre o Bruxo do Cosme Velho, sua audiência explode. No final de novembro, ele viralizou ao resgatar uma velha fofoca de que o escritor teria tido um caso extraconjugal com Georgiana, mulher de outro nome canônico da literatura brasileira, José de Alencar. Era para ser apenas uma brincadeira despretensiosa, mas acabou rendendo quase 4 milhões de visualizações e muitos comentários exaltados de alguns de seus 53 mil seguidores.

Para o booktoker, ficou claro que existe um “impacto digital machadiano”. E as menções ao autor na internet ao longo de 2021 lhe dão razão. O Bruxo tem sido uma maneira fácil de gerar o que os mais íntimos com a comunicação digital chamam de “engajamento”. Suas pautas mobilizam fãs, haters ou simples curiosos. Sua figura também é usada em memes e motiva “tretas” de todos os tipos, literárias ou não. No Twitter, o ano começou com o influencer Felipe Neto causando revolta ao questionar o ensino de Machado nas escolas. E está terminando com os tuiteiros debatendo se o autor tinha “sotaque carioca” (sim, isso foi uma polêmica).

— Sempre que alguém menciona negativamente a obra machadiana, surge um exército de internautas disposto a comprar briga em defesa do autor — relata Patzzic. — Acho que é por isso que os posts sobre ele dão tão certo. Sinto que as pessoas têm um afeto quase familiar com tudo o que se associa à obra de Machado. E, quando a gente se sente íntimo de algo, tendemos a proteger, a reconhecer o valor com muita intensidade.

Machado de Assis em meme nas redes Foto: O Globo

Divisão em torcidas

O tema “Machado” tem esse poder de mobilizar e dividir torcidas, o que tem tudo a ver com o ambiente das redes sociais. Quem nunca quis dar o seu pitaco no infinito debate “Capitu traiu Bentinho?” — que, aliás, foi recorrente no Twitter em 2021. Em setembro, uma matéria do GLOBO sobre o livro “O código Machado de Assis”, que busca comprovar “juridicamente” a existência de um caso extraconjugal em “Dom Casmurro”, fez mais uma vez a treta voltar à tona.

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Tweet @meridadotropico

Se o jovem não consegue ler Machado de Assis como que todo ano tem a discussão insuportável de Capitu traiu ou não traiu aqui no twitter?

3:00 PM · 23 de jan de 2021

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Segundo o autor de literatura afrofuturista e pesquisador Alê Santos, que escreveu um dos posfácios de uma edição de “Memórias póstumas de Brás Cubas” publicada pela Antofágica em 2019, as redes ampliaram o universo em torno de Machado. Questões sociais, políticas e raciais ganharam um peso ainda maior.

Em 2019, a ação “Machado de Assis real” , criada pela Faculdade Zumbi dos Palmares, recriou uma imagem clássica do autor, corrigindo o processo de embranquecimento feito por seus contemporâneos. A campanha ganhou tração nas redes sociais. No mesmo ano, uma foto até então desconhecida de Machado, em que ele aparece muito mais negro, também viralizou.

— Existe uma geração que está redescobrindo Machado não necessariamente pela escola, mas pelas discussões nas redes sociais — diz Santos. — São debates que vão além dos seus livros e trazem o espírito da internet, como memes ou threads no Twitter. Isso dá uma nova energia para os estudos sobre o autor e também gera demandas para levar as mesmas discussões a outras linguagens, como podcasts, documentários e séries de TV.

Entre Gretchen e Nazaré

O que Machado de Assis tem em comum com Gretchen e Nazaré Tedesco? Assim como a cantora de “Conga, Conga, Conga” e a vilã de “Avenida Brasil”, o Bruxo virou uma infinita fonte de memes. Segundo o pesquisador Eloy Vieira, estes três personagens estão ligados na cultura digital brasileira por um espírito tipicamente brasileiro: o da zoeira.

— Eles são símbolo de um humor de autocomiseração que tem muito a ver com a nossa identidade nacional —diz Vieira, autor da tese “Quando a telenovela vira meme: como a Zuera e o Melodrama se articulam a partir dos memes da reprise de Avenida Brasil”, que analisa as relações entre cultura de massa e cultura digital.

O pesquisador vai além. Para ele, Machado é o fundador de uma certa autoironia brasileira, que foi evoluindo dos clássicos até os memes contemporâneos. Isso não significa, é claro, que os produtores de conteúdo atuais tenham bebido diretamente na matriz (o Bruxo e seus livros), ou que estejam conscientes de carregar este humor peculiar.

— É algo que ficou na cultura e foi passando, de referência em referência — diz ele. — Como sempre, na internet o que interessa é como as pessoas estão se reapropriando de tudo isso. É assim que funciona a cultura do meme.

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Tweet @Prefeitura_Rio

Sim. Quem não fala Dom Cashmurro tá falando errado. 😛

Leandro @durazzo

será que Machado de Assis tinha sotaque carioca? Memóriash póshtumash de Brásh Cubash e tal?

8:55 AM · 9 de nov de 2021

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Entre todas as polêmicas recentes em torno de Machado, Vieira vê a do “sotaque” como a mais representativa. Tudo começou em novembro, quando um usuário no Twitter se perguntou se o autor falava em carioquês. Parece algo óbvio, já que o Bruxo nasceu e morreu no Rio de Janeiro, mas não para os usuários das redes sociais, que passaram dias em cima da questão, tuitando insights ou simulando um possível sotaque antigo do escritor em vídeos no TikTok. Até o Twitter oficial da prefeitura do Rio entrou na brincadeira.

— Acho que rendeu tanto porque Machado é uma referência que mesmo quem não conhece “conhece”. Também porque foi uma sacada boba, mas sobre algo que ninguém nunca pensa, então criou uma sensação de novidade nas ideias — acredita o antropólogo Leandro Durazzo, o autor do tuíte original, que cresceu em Santos e tem sotaque paulista.

Alê Santos reconhece que essa presença de Machado nas redes se dá, muitas vezes, em uma esfera extraliterária. Ela não substitui a relação com os livros, mas pode se somar a ela.

— Essa vivência digital tem uma função muito diferente da dos livros — diz Santos. — Não dá para falar em “substituição”, mas é fato que, até pelo ambiente aflorado da internet, incentiva muito mais a participação entre os jovens.


Bruxo do Livramento: Machado de Assis chega aos 180 anos, e jovens o descobrem negro e do morro

Bolívar Torres, 15/06/2019

Grafite em homenagem ao escritor brasileiro Machado de Asis, perto da casa em que teria nascido, na Ladeira do Livramento Foto: GABRIEL MONTEIRO / Agência O Globo

A aula acontece nas ladeiras do Morro do Livramento, ao pé da Providência, no Centro do Rio. É ali, diante de uma casa parcialmente demolida, que Pedro Guilherme Freire explica: antes de virar o Bruxo do Cosme Velho, celebrado na Academia e nos salões, Joaquim Maria Machado de Assis foi um garoto pobre do Livramento. Exatamente como muitos de seus alunos. A iniciativa de Freire, professor do Colégio Estadual Caic Tiradentes, na Zona Portuária, reflete um esforço para reconfigurar a imagem do maior escritor do Brasil.

No mês passado, a campanha “Machado de Assis Real” lançou a “primeira errata feita para corrigir o racismo na literatura brasileira”. E recriou a foto clássica do autor, ressaltando suas feições negras. Também criou um movimento para que as editoras deixem de comercializar livros em que o escritor apareça embranquecido. E saiu a campo para encorajar novos escritores negros. Nascido há 180 anos (a data do aniversário é na próxima sexta, 21), o Machado “real” ainda pega muita gente de surpresa.

Como os alunos do professor Freire, que não faziam ideia de que o fundador da Academia Brasileira de Letras era filho de um pintor de paredes negro com uma lavadeira branca, e não pôde concluir os estudos porque precisou se sustentar desde cedo. A visita ao local em que o autor de “Dom Casmurro” teria nascido faz parte do projeto “Nossa escola, meu lugar, nossas histórias: etnografia e memória social da área portuária”.

— É importante dar destaque a esse Machado menos conhecido, que morou no Livramento — diz Freire, que também fundou um curso de pré-vestibular gratuito na região, com o nome do escritor. — Em vários aspectos, ele se parece com os jovens atuais da região, em sua maioria pobres e negros, que acabam largando a escola porque são obrigados a trabalhar cedo.

Também professora da rede pública e conselheira consultiva do Museu de História e Cultura Afro-Brasileira, Elen Ferreira conta que seus alunos negros “ficam desconcertados quando descobrem que Machado de Assis tinha a mesma cor que eles.

— Ver um rosto negro como protagonista da História em sala de aula é algo novo — argumenta ela.

Nascida ali mesmo, na zona portuária, e idealizadora do projeto Pretinhas Leitoras, que promove rodas de leitura para meninas da região, Elen tenta trazer Machado para a realidade de seus alunos, criando paralelos:

— Ele está aí há quase 200 anos, e só agora conseguimos fazer essa relação com os alunos. Além do mais, essa postura ainda é restrita a poucos espaços sociais. Outro problema é ver Machado como um exemplo de meritocracia, achar que todos os jovens daqui podem ser iguais a ele se quiserem, quando na verdade sua trajetória é uma exceção.

Imóvel onde Machado de Assis teria nascido (laranja e branco), na Ladeira do Livramento, Centro do Rio Foto: Marcelo Piu / 10-03-2013

Morador da Providência, Luan Domingos da Silva, 25 anos, só foi descobrir que tinha a mesma origem do Bruxo aos 18, quando ingressou no pré-vestibular Machado de Assis. Como o “conterrâneo”, ele teve dificuldade para se manter na escola, equilibrando trabalho e estudos.

— Tive aulas na Providência, mas os professores não traziam esse contexto, de um Machado daqui — diz Luan, que está concluindo o curso de Geografia na Uerj. — Saber que ele morava aqui e era negro, como a maioria dos alunos, nos aproximou dele, além de nos dar uma referência. A gente sabe que ele foi uma exceção. Mas, como muita gente aqui, estava tentando mudar seu destino. Foi assim que percebi que a universidade, tão perto fisicamente, poderia estar perto também do imaginário.

O Livramento de Machado, porém, era um bocado diferente do de Luan. A violência, por exemplo, não chegava a preocupar. A região era uma grande chácara e, acima, no morro da Providência, a favela nem existia ainda. Mas a área já era segregada. Não por acaso, uma das metáforas mais fortes da obra do autor é a “ilha”, como lembra o escritor Silviano Santiago, autor do romance “Machado”, sobre a velhice do Bruxo.

Machado de Assis em foto clássica do século XIX (esq.) e na versão da campanha Machado Real Foto: Divulgação / Agência O GLOBO

Negro numa sociedade escravocrata, Machado teve que inventar, segundo Santiago, um “projeto existencial” só seu para ascender socialmente. Também contou com algumas oportunidades pouco comuns para alguém de seu meio, como pais que sabiam ler e escrever, e a proximidade com pessoas que puderam lhe ensinar outros idiomas, como latim e francês. Um misto de sorte e genialidade, que o fizeram ser um ponto fora da curva.

— Ele teve que se resolver por conta própria: já que não tinha apoio da escola nem do Estado, empurrou a si mesmo —diz Santiago. — Mas é importante lembrar que estamos falando de um gênio.

Quase 200 anos depois, a trajetória do Bruxo inspira o estudante Charles Gomes, 21 anos, que cursa o pré-vestibular Machado de Assis. Morador da Providência e sonha em fazer faculdade de Geografia, coisa que nem imaginava anos atrás.

— A mentalidade racista está na nossa própria casa, a gente é criado para achar que só serve para o trabalho braçal — conta Charles. — A gente acha que o museu perto da Providência não é para nós, que a biblioteca não é para nós. Mesmo quando é gratuito, achamos que é pago. Está tão perto e ao mesmo tempo tão distante. É como se a cultura não fosse para nós. Ninguém fala, mas a gente sente.


quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Sabine Weiss

Morre Sabine Weiss, a última fotógrafa 'humanista', aos 97 anos. Sabine Weiss, que comprou sua primeira câmera aos 12 anos, imortalizou a vida simples do povo, sem ostentação e sem arrogância

Redação, AFP, 29 de dezembro de 2021

A fotógrafa franco-suíça Sabine Weiss morreu na terça-feira, 28, aos 97 anos, em sua casa em Paris, anunciaram sua família e equipe em um comunicado divulgado nesta quarta, 29. Nascida na Suíça em 1924 e nacionalizada com passaporte francês, Sabine, a última discípula da escola humanista francesa, morava em Paris. Foi na capital francesa, no Boulevard Murat, que instalou sua oficina, no início dos anos 1950, acrescentou sua equipe.

Assim como Doisneau, Boubat, Willy Ronis e Izis, Sabine Weiss imortalizou a vida simples do povo, sem ostentação e sem arrogância.  "Nunca pensei que estivesse fazendo fotografia humanista. Uma boa foto deve comover, estar bem composta e desnuda", disse ela ao jornal La Croix. 

Paris, 1949, pelo olhar da fotógrafa Sabine Weiss, que morreu aos 97 anos Foto: Sabine Weiss

Ganhadora do prêmio de fotografia Women in Motion de 2020, Sabine Weiss protagonizou mais de 160 exposições ao redor do mundo.

Nascida como Weber em 23 de julho de 1924, em Saint-Gingolph, às margens do lago de Genebra, Sabine Weiss comprou sua primeira câmera, aos 12 anos, com o dinheiro de sua mesada. Aprendeu o ofício aos 16, em um famoso estúdio de Genebra. Chegou a Paris em 1946 e começou a trabalhar para o fotógrafo de moda Willy Maywald.  Pioneira da fotografia do Pós-Guerra, de formação eclética e uma amante tanto das cores quanto do preto e branco, viu sua carreira decolar na Paris dos anos 1950.

Simone Weiss ficou conhecida nos anos 1950; na imagem um retrato feito na Hungria em 1982 Foto: Sabine Weiss

No ano de seu casamento, 1950, abriu seu estúdio no 16º distrito. No mesmo período, Doisneau apresentou-a à revista Vogue e à agência Rapho (hoje Gamma-Rapho). Ela então começou a frequentar os círculos artísticos da época, retratando Stravinsky, Britten, Dubuffet, Léger, ou Giacometti. 

Trabalhou para revistas renomadas como Newsweek, Time, Life, Esquire e Paris-Match, e foi bem-sucedida nos mais diverso tipos de registro: da reportagem (viajou muito), à publicidade e à moda, passando pelo entretenimento e pela arquitetura. De personalidade discreta e menos conhecida do grande público que outros fotógrafos de sua geração, essa mulher efervescente de pouco mais de um metro e meio afirmava nunca ter sofrido "discriminação" de gênero.

Acima de tudo, Weiss percorreu, incansável, a capital francesa, às vezes com o marido, o pintor americano Hugh Weiss, muitas vezes à noite, para congelar momentos fugazes: trabalhadores em ação, beijos furtivos, idas e vindas no metrô... Com sua câmera, afirmava ela, gostava de capturar a garotada, mendigos, ou sorrisos, com os quais ia cruzando nas ruas. 

"Na fotografia, fiz de tudo", declarou à AFP, em uma entrevista em 2020.  "Fui a necrotérios, fábricas, fotografei gente rica, tirei fotos de moda (...) Mas o que fica são apenas as fotos que tirei apenas para mim, sobre a caminhada", completou. 

Pont Neuf, em 1949. Para Sabine Weiss, uma boa foto deve comover, estar bem composta e desnuda Foto: Sabine Weiss

Prolífica e generosa, em 2017, legou cerca de 200 mil negativos e 7 mil folhas de contato para o Museu do Eliseu, em Lausanne.  "Não sei quantas fotos tirei", disse à AFP em 2014, "de qualquer modo, isso não significa muito".


sábado, 25 de dezembro de 2021

UMAS FÉRIAS

Machado de Assis

Vieram dizer ao mestre-escola que alguém lhe queria falar.  

-- Quem é? 

 -- Diz que meu senhor não o conhece, respondeu o preto.  

-- Que entre.  

Houve um movimento geral de cabeças na direção da porta do corredor, por onde devia entrar a pessoa desconhecida. Éramos não sei quantos meninos na escola. Não tardou que aparecesse uma figura rude, tez queimada, cabelos compridos, sem sinal de pente, a roupa amarrotada, não me lembra bem a cor nem a fazenda, mas provavelmente era brim pardo. Todos ficaram esperando o que vinha dizer o homem, eu mais que ninguém, porque ele era meu tio, roceiro, morador em Guaratiba. Chamava-se tio Zeca.

Tio Zeca foi ao mestre e falou-lhe baixo. O mestre fê-lo sentar, olhou para mim, e creio que lhe perguntou alguma cousa, porque tio Zeca entrou a falar demorado, muito explicativo. O mestre insistiu, ele respondeu, até que o mestre, voltando-se para mim, disse alto:  -- Sr. José Martins, pode sair.  A minha sensação de prazer foi tal que venceu a de espanto. Tinha dez anos apenas, gostava de folgar, não gostava de aprender. Um chamado de casa, o próprio tio, irmão de meu pai, que chegara na véspera de Guaratiba, era naturalmente alguma festa, passeio, qualquer cousa. Corri a buscar o chapéu, meti o livro de leitura no bolso e desci as escadas da escola, um sobradinho da Rua do Senado. No corredor beijei a mão a tio Zeca. Na rua fui andando ao pé dele, amiudando os passos, e levantando a cara. Ele não me dizia nada, eu não me atrevia a nenhuma pergunta. Pouco depois chegávamos ao colégio de minha irmã Felícia; disse-me que esperasse, entrou, subiu, desceram, e fomos os três caminho de casa. A minha alegria agora era maior. Certamente havia festa em casa, pois que íamos os dous, ela e eu; íamos na frente, trocando as nossas perguntas e conjeturas. Talvez anos de tio Zeca. Voltei a cara para ele; vinha com os olhos no chão, provavelmente para não cair.  

Fomos andando. Felícia era mais velha que eu um ano. Calçava sapato raso, atado ao peito do pé por duas fitas cruzadas, vindo acabar acima do tornozelo com laço. Eu, botins de cordovão, já gastos. As calcinhas dela pegavam com a fita dos sapatos, as minhas calças, largas, caíam sobre o peito do pé; eram de chita. Uma ou outra vez parávamos, ela para admirar as bonecas à porta dos armarinhos, eu para ver, à porta das vendas, algum papagaio que descia e subia pela corrente de ferro atada ao pé. Geralmente, era meu conhecido, mas papagaio não cansa em tal idade. Tio Zeca é que nos tirava do espetáculo industrial ou natural. -- Andem, dizia ele em voz sumida. E nós andávamos, até que outra curiosidade nos fazia deter o passo. Entretanto, o principal era a festa que nos esperava em casa. 

 -- Não creio que sejam anos de tio Zeca, disse-me Felícia. 

 -- Por quê? 

 -- Parece meio triste.  

-- Triste, não, parece carrancudo.  

-- Ou carrancudo. Quem faz anos tem a cara alegre. 

-- Então serão anos de meu padrinho...  

-- Ou de minha madrinha...  

-- Mas por que é que mamãe nos mandou para a escola? 

-- Talvez não soubesse.  

-- Há de haver jantar grande...  

-- Com doce...  

-- Talvez dancemos

Fizemos um acordo: podia ser festa, sem aniversário de ninguém. A sorte grande, por exemplo. Ocorreu-me também que podiam ser eleições. Meu padrinho era candidato a vereador; embora eu não soubesse bem o que era candidatura nem vereação, tanto ouvira falar em vitória próxima que a achei certa e ganha. Não sabia que a eleição era ao domingo, e o dia era sexta-feira. Imaginei bandas de música, vivas e palmas, e nós, meninos, pulando, rindo, comendo cocadas. Talvez houvesse espetáculo à noite; fiquei meio tonto. Tinha ido uma vez ao teatro, e voltei dormindo, mas no dia seguinte estava tão contente que morria por lá tornar, posto não houvesse entendido nada do que ouvira. Vira muita cousa, isto sim, cadeiras ricas, tronos, lanças compridas, cenas que mudavam à vista, passando de uma sala a um bosque, e do bosque a uma rua. Depois, os personagens, todos príncipes. Era assim que chamávamos aos que vestiam calção de seda, sapato de fivela ou botas, espada, capa de veludo, gorra com pluma. Também houve bailado. As bailarinas e os bailarinos falavam com os pés e as mãos, trocando de posição e um sorriso constante na boca. Depois os gritos do público e as palmas... 

Já duas vezes escrevi palmas; é que as conhecia bem. Felícia, a quem comuniquei a possibilidade do espetáculo, não me pareceu gostar muito, mas também não recusou nada. Iria ao teatro. E quem sabe se não seria em casa, teatrinho de bonecos? Íamos nessas conjeturas, quando tio Zeca nos disse que esperássemos; tinha parado a conversar com um sujeito.  Paramos, à espera. A idéia da festa, qualquer que fosse, continuou a agitar-nos, mais a mim que a ela. Imaginei trinta mil cousas, sem acabar nenhuma, tão precipitadas vinham, e tão confusas que não as distinguia, pode ser até que se repetissem. Felícia chamou a minha atenção para dous moleques de carapuça encarnada, que passavam carregando canas, -- o que nos lembrou as noites de Santo Antônio e S. João, já lá idas. Então falei-lhe das fogueiras do nosso quintal, das bichas que queimamos, das rodinhas, das pistolas e das danças com outros meninos. Se houvesse agora a mesma cousa... Ah! lembrou-me que era ocasião de deitar à fogueira o livro da escola, e o dela também, com os pontos de costura que estava aprendendo. 

-- Isso não, acudiu Felícia. 

-- Eu queimava o meu livro.  

-- Papai comprava outro.  

-- Enquanto comprasse, eu ficava brincando em casa; aprender é muito aborrecido.  Nisto estávamos, quando vimos tio Zeca e o desconhecido ao pé de nós. O desconhecido pegou-nos nos queixos e levantou-nos a cara para ele, fitou-nos com seriedade, deixou-nos e despediu-se.  -- Nove horas? Lá estarei, disse ele.

 -- Vamos, disse-nos tio Zeca.  Quis perguntar-lhe quem era aquele homem, e até me pareceu conhecê-lo vagamente. Felícia também. Nenhum de nós acertava com a pessoa; mas a promessa de lá estar às nove horas dominou o resto. Era festa, algum baile, conquanto às nove horas, costumássemos ir para a cama. Naturalmente, por exceção, estaríamos acordados. Como chegássemos a um rego de lama, peguei da mão de Felícia, e transpusemo-lo de um salto, tão violento que quase me caiu o livro. Olhei para tio Zeca, a ver o efeito do gesto; vi-o abanar a cabeça com reprovação. Ri, ela sorriu, e fomos pela calçada adiante.  Era o dia dos desconhecidos. Desta vez estavam em burros, e um dos dous era mulher. Vinham da roça. Tio Zeca foi ter com eles ao meio da rua, depois de dizer que esperássemos. Os animais pararam, creio que de si mesmos, por também conhecerem a tio Zeca, idéia que Felícia reprovou com o gesto, e que eu defendi rindo. Teria apenas meia convicção; tudo era folgar. Fosse como fosse, esperamos os dous, examinando o casal de roceiros. Eram ambos magros, a mulher mais que o marido, e também mais moça; ele tinha os cabelos grisalhos. Não ouvimos o que disseram, ele e tio Zeca; vimo-lo, sim, o marido olhar para nós com ar de curiosidade, e falar à mulher, que também nos deitou os olhos, agora com pena ou cousa parecida. Enfim apartaram-se, tio Zeca veio ter conosco e enfiamos para casa.  

A casa ficava na rua próxima, perto da esquina. Ao dobrarmos esta, vimos os portais da casa forrados de preto,

-- o que nos encheu de espanto. Instintivamente paramos e voltamos a cabeça para tio Zeca. Este veio a nós, deu a mão a cada um e ia a dizer alguma palavra que lhe ficou na garganta; andou, levando-nos consigo. Quando chegamos, as portas estavam meio cerradas. Não sei se lhes disse que era um armarinho. Na rua, curiosos. Nas janelas fronteiras e laterais, cabeças aglomeradas. Houve certo rebuliço quando chegamos. É natural que eu tivesse a boca aberta, como Felícia. Tio Zeca empurrou uma das meias portas, entramos os três, ele tornou a cerrá-la, meteu-se pelo corredor e fomos à sala de jantar e à alcova.  Dentro, ao pé da cama, estava minha mãe com a cabeça entre as mãos. Sabendo da nossa chegada, ergueu-se de salto, veio abraçar-nos entre lágrimas, bradando:  

-- Meus filhos, vosso pai morreu!  

A comoção foi grande, por mais que o confuso e o vago entorpecessem a consciência da notícia. Não tive forças para andar, e teria medo de o fazer. Morto como? morto por quê? Estas duas perguntas, se as meto aqui, é para dar seguimento à ação; naquele momento não perguntei nada a mim nem a ninguém. Ouvi as palavras de minha mãe, se repetiam em mim, e os seus soluços que eram grandes. Ela pegou em nós e arrastou-nos para a cama, onde jazia o cadáver do marido; e fez-nos beijar-lhe a mão. Tão longe estava eu daquilo que, apesar de tudo, não entendera nada a princípio; a tristeza e o silêncio das pessoas que rodeavam a cama ajudaram a explicar que meu pai morrera deveras. Não se tratava de um dia santo, com a sua folga e recreio, não era festa, não eram as horas breves ou longas, para a gente desfiar em casa, arredada dos castigos da escola. Que essa queda de um sonho tão bonito fizesse crescer a minha dor de filho não é cousa que possa afirmar ou negar; melhor é calar. O pai ali estava defunto, sem pulos, nem danças, nem risadas, nem bandas de música, cousas todas também defuntas. Se me houvessem dito à saída da escola por que é que me iam lá buscar, é claro que a alegria não houvera penetrado o coração, donde era agora expelida a punhadas.  

O enterro foi no dia seguinte às nove horas da manhã, e provavelmente lá estava aquele amigo de tio Zeca que se despediu na rua, com a promessa de ir às nove horas. Não vi as cerimônias; alguns vultos, poucos, vestidos de preto, lembra-me que vi. Meu padrinho, dono de um trapiche, lá estava, e a mulher também, que me levou a uma alcova dos fundos para me mostrar gravuras. Na ocasião da saída, ouvi os gritos de minha mãe, o rumor dos passos, algumas palavras abafadas de pessoas que pegavam nas alças do caixão, creio eu:-- "vire de lado,-- mais à esquerda,-- assim, segure bem..." Depois, ao longe, o coche andando e as seges atrás dele...

Lá iam meu pai e as férias! Um dia de folga sem folguedo! Não, não foi um dia, mas oito, oito dias de nojo, durante os quais alguma vez me lembrei do colégio. Minha mãe chorava, cosendo o luto, entre duas visitas de pêsames. Eu também chorava; não via meu pai às horas do costume, não lhe ouvia as palavras à mesa ou ao balcão, nem as carícias que dizia aos pássaros. Que ele era muito amigo de pássaros, e tinha três ou quatro, em gaiolas. Minha mãe vivia calada. Quase que só falava às pessoas de fora. Foi assim que eu soube que meu pai morrera de apoplexia. Ouvi esta notícia muitas vezes; as visitas perguntavam pela causa da morte, e ela referia tudo, a hora, o gesto, a ocasião: tinha ido beber água, e enchia um copo, à janela da área. Tudo decorei, à força de ouvi-lo contar.  Nem por isso os meninos do colégio deixavam de vir espiar para dentro da minha memória. Um deles chegou a perguntar-me quando é que eu voltaria. 

-- Sábado, meu filho, disse minha mãe, quando lhe repeti a pergunta imaginada; a missa é sexta-feira. Talvez seja melhor voltar na segunda.  

-- Antes sábado, emendei.  

-- Pois sim, concordou.  

Não sorria; se pudesse, sorriria de gosto ao ver que eu queria voltar mais cedo à escola. Mas, sabendo que eu não gostava de aprender, como entenderia a emenda? Provavelmente, deu-lhe algum sentido superior, conselho do céu ou do marido. Em verdade, eu não folgava, se lerdes isto com o sentido de rir. Com o de descansar também não cabe, porque minha mãe fazia-me estudar, e, tanto como o estudo, aborrecia-me a atitude. Obrigado a estar sentado, com o livro nas mãos, a um canto ou à mesa, dava ao diabo o livro, a mesa e a cadeira. Usava um recurso que recomendo aos preguiçosos: deixava os olhos na página e abria a porta à imaginação. Corria a apanhar as flechas dos foguetes, a ouvir os realejos, a bailar com meninas, a cantar, a rir, a espancar de mentira ou de brincadeira, como for mais claro.

Uma vez, como desse por mim a andar na sala sem ler, minha mãe repreendeu-me, e eu respondi que estava pensando em meu pai. A explicação fê-la chorar, e, para dizer tudo, não era totalmente mentira; tinha-me lembrado o último presentinho que ele me dera, e entrei a vê-lo com o mimo na mão.  

Felícia vivia tão triste como eu, mas confesso a minha verdade, a causa principal não era a mesma. Gostava de brincar, mas não sentia a ausência do brinco, não se lhe dava de acompanhar a mãe, coser com ela e uma vez fui achá-la a enxugar-lhe os olhos. Meio vexado, pensei em imitá-la, e meti a mão no bolso para tirar o lenço. A mão entrou sem ternura, e, não achando o lenço, saiu sem pesar. Creio que ao gesto não faltava só originalidade, mas sinceridade também.  

Não me censurem. Sincero fui longos dias calados e reclusos. Quis uma vez ir para o armarinho, que se abriu depois do enterro, onde o caixeiro continuou a servir. Conversaria com este, assistiria à venda de linhas e agulhas, à medição de fitas, iria à porta, à calçada, à esquina da rua... Minha mãe sufocou este sonho pouco depois dele nascer. Mal chegara ao balcão, mandou-me buscar pela escrava; lá fui para o interior da casa e para o estudo. Arrepelei-me, apertei os dedos à guisa de quem quer dar murro; não me lembra se chorei de raiva.  

O livro lembrou-me a escola, e a imagem da escola consolou-me. Já então lhe tinha grandes saudades. Via de longe as caras dos meninos, os nossos gestos de troça nos bancos, e os saltos à saída. Senti cair-me na cara uma daquelas bolinhas de papel com que nos espertávamos uns aos outros, e fiz a minha e atirei-a ao meu suposto espertador. A bolinha, como acontecia às vezes, foi cair na cabeça de terceiro, que se desforrou depressa. Alguns, mais tímidos, limitavam-se a fazer caretas. Não era folguedo franco, mas já me valia por ele. Aquele degredo que eu deixei tão alegremente com tio Zeca parecia-me agora um céu remoto, e tinha medo de o perder. Nenhuma festa em casa, poucas palavras, raro movimento. Foi por esse tempo que eu desenhei a lápis maior número de gatos nas margens do livro de leitura; gatos e porcos. Não alegrava, mas distraía.  

A missa do sétimo dia restituiu-me à rua; no sábado não fui a escola, fui à casa de meu padrinho, onde pude falar um pouco mais, e no domingo estive à porta da loja. Não era alegria completa. A total alegria foi segunda-feira, na escola. Entrei vestido de preto, fui mirado com curiosidade, mas tão outro ao pé dos meus condiscípulos, que me esqueceram as férias sem gosto, e achei uma grande alegria sem férias.

Nova antologia mapeia várias fases do Machado contista

“O escrivão Coimbra e outros contos”, organizado por Luiz Ruffato, traz 17 histórias curtas do autor carioca, entre elas “Pai contra mãe” e “A cartomante”

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

A terra o sol e nóis

A terra é aproximadamente uma bola com raio de 6.370 km e massa de 5,9 x 1024 kg. Tem uma rotação em torno de seu próprio eixo de 1.674 km/h. E um movimento de translação ao redor do sol (1,9 x 1030 kg e raio de 696.340 km) com velocidade variando de 108.720 a 109.040 km/h. A órbita da terra ao redor do sol é elíptica e a distância terra - sol  varia de  147.100.00 e 152.100.00 km 

A idade da terra é de 4,54 x 109 anos. O sol 4,60 x 109 anos.

A idade da população humana (homo sapiens) na terra é de cerca de 300.000 anos. Um neném em relação à idade de terra. Mesmo assim, um neném com a genética da autodestruição e da degradação desenfreada do meio ambiente.

2001 uma odisseia no espaço, 1968 - filme 

Assim caminha a humanidade.


Mais um Dia - Nelson Freitas 

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Michel Rabagliati: 'Paul em casa'

‘Paul em casa’: HQ de Michel Rabagliati apresenta angústias de um solitário avesso à tecnologia

Premiado quadrinista canadense usa humor agridoce em autoficção sem muito disfarce: "as máscaras caíram"

Telio Navega, O Globo, 20/12/2021

"Paul em casa", de Michel Rabagliati Foto: Divulgação

Paul está em casa. E sozinho. Ou melhor, quase. O cãozinho Biscoito ainda lhe faz companhia. Mas Paul, agora divorciado, se sente muito solitário, principalmente porque sua filha também partiu, e a residência em que a família morava agora é grande demais só para ele. Daí estar mal cuidada, com a piscina suja e a grama tão alta. Abandonada assim como o próprio Paul, um homem de cinquenta e poucos anos avesso à tecnologia e com problemas para dormir, além de ter uma mãe que mora sozinha e volta e meia precisa de sua ajuda.

Este é o enredo de “Paul em casa” (Comix Zone), mais novo quadrinho do canadense Michel Rabagliati, que costuma fazer de seu personagem uma espécie de alter ego de si mesmo. Paul já protagonizou vários momentos da vida do autor em livros que renderam a Rabagliati neste ano o prêmio de Melhor Série no Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême pelo conjunto da obra. E não foi o primeiro por lá. Há 11 anos, ele ganhou o prestigiado prêmio do público pelo álbum “A canção de Roland”, publicado no Brasil pela mesma Comix Zone.

— É sempre interessante e encorajador ganhar prêmios, mas, por incrível que pareça, não me traz tanta alegria — revela Rabagliati por e-mail. — No dia seguinte, volto ao trabalho e já esqueci tudo isso. Gosto de ser lido, que é o que mais importa para mim no final do dia.

Humor na melancolia

Assim como Rabagliati, Paul trabalhou por muitos anos como designer gráfico e, em determinado momento da vida, decidiu se dedicar exclusivamente à ilustração editorial. Ambos são profissionais autônomos, que costumam trabalhar de forma isolada. Mas a pandemia evidentemente atingiu mais o autor da HQ:

— Para ser franco, entrei em pânico no início. Já vivia a solidão e tive muita dificuldade em lidar com a ideia de me trancar ainda mais! Especialmente durante o inverno em Quebec, onde fica frio e escuro a partir das 16h. Tive que me acostumar como todo mundo, mas não foi fácil!

A autoficção que o quadrinista canadense produz em “Paul em casa” é melancólica, porém com muito bom humor. Afinal como não rir com a rabugice do personagem com relação à nova tipologia das placas de trânsito? “Por que tudo sempre tem que mudar?”, pergunta-se Paul ao volante, angustiado. Ou sua aversão aos aparelhos de celular, em busca das verdadeiras relações humanas, como antigamente, antes das redes sociais? Evidentemente Paul não se sente confortável nos dias atuais. E o mesmo deve acontecer com Rabagliati, que se expõe bastante neste novo livro, ainda que insira um pouco de ficção. Ele diz que pareceu natural ir mais longe na psicologia de seu personagem.

— Nos meus dois livros anteriores eu consegui, ao contar duas histórias de minha juventude, evitar me mostrar hoje, aos 50 anos — explica o quadrinista canadense. — Em “Paul em casa”, as máscaras caíram e eu pinto um quadro bastante preciso dos últimos dez anos de minha vida. Honestamente, eu acreditava que isso me libertaria e me ajudaria a olhar para o futuro, mas não foi bem o caso, ainda estou muito deprimido. Acho que acabei herdando a genética de minha mãe, que era cronicamente deprimida.

Apesar da solidão de Paul, o humor agridoce e a arte cartunesca de Rabagliati tornam a leitura de “Paul em casa” agradável. O amor do personagem por sua mãe e filha, com choques de gerações de todos os lados, é um trunfo. E uma crônica bem realista de nossos dias, em que interagimos mais pelo Facebook. A pandemia só acentuou isso. O final poético do livro, porém, traz esperança.

Rabagliati já produziu nove aventuras com seu alter ego como protagonista — sete delas ainda inéditas no Brasil — e avisa que seu próximo livro será um pouco diferente, uma graphic novel no verdadeiro sentido do termo.

— Estou trabalhando em um pequeno romance ilustrado — revela o autor. — O formato é um pouco menor do que os livros de minha série, e a história se passa numa ilha do Quebec, onde às vezes passo uma semana com minha filha, no verão. É a história de uma viagem. No momento, estou na terceira parte da história.

Michel Rabagliati 


terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Escola sem sala de aula

“Inquietava-nos ver a escola com suas salas de aula cheias de carteiras enfileiradas, com seus alunos a olhar o tempo inteiro para um professor à sua frente, ditando padrões, impondo saberes, em sua maioria desligados da realidade dos educandos e com uma avaliação de aprendizagem mais excludente do que formativa.”

Sem salas de aula e focada na educação comunitária, escola do Brejo paraibano é reconhecida internacionalmente. Com ensino gratuito e participação da comunidade, 'Escola dos Nossos Sonhos', localizada em Bananeiras, já ganhou prêmio global de inovação.

Por Ana Beatriz Rocha, g1 PB, 15/10/2021

Roda de educandos junto a comunidade, em Bananeiras. — Foto: Arquivo pessoal/ Escola dos Nossos Sonhos

Quase que um consenso, a educação sempre é tida como um ponto primordial para qualquer avanço das sociedades. Uma formação de qualidade é responsável não só por permitir que o indivíduo tenha acesso às oportunidades, mas que o desenvolvimento cidadão atue de modo que ele esteja pronto para oferecer seu melhor ao coletivo. Mas de qual educação se fala quando o assunto é ‘educação de qualidade’? A resposta, por vezes, dependerá de onde se fala. Para os moradores do campo, das áreas distantes dos grandes centros, a educação pode ser fagulha de esperança para uma vida que garanta as benesses da Zona Rural, sem perder os direitos e os acessos de quem vive próximo às capitais.

Essa fagulha se acendeu em 2005 no Brejo paraibano. Na cidade de Bananeiras, a pouco mais de 120 quilômetros de distância de João Pessoa, as Irmãs do Carmelo Sagrado Coração de Jesus e Madre Teresa, popularmente conhecidas como Irmãs Carmelitas, se inquietaram ao perceber que muitos homens e mulheres do campo não tinham tido acesso à alfabetização. Nos fundos de uma casa simples, morada de um lavrador, surgiu a Escola Nossa Senhora do Carmo. O projeto social, de início, tinha como foco alfabetizar camponeses da região. Mas não era suficiente. O analfabetismo costumava se perpetuar e não fazia sentido garantir educação aos pais e desassistir os filhos, e foi assim que o objetivo se estendeu. As crianças passaram a integrar a rede de educandos beneficiados pela educação das Irmãs. O projeto hoje tem, inclusive, reconhecimento internacional..

A professora Leila Sarmento estava lá, entre os ramos dos sonhos que ali nasciam. Doutora em Educação pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), a atual gestora da escola era, na época, um dos braços que colocavam em prática as idealizações das Irmãs, que por serem de clausura, não poderiam sair de onde viviam para interagir e educar os alunos. Desde o início Leila nutria a inquietação diante da possibilidade de, através da oportunidade que ali surgia, construir um novo modelo de educação, distante dos moldes tradicionais que conhecia e percebia muitas falhas. “A partir desse desejo de fazer uma escola nova, Paulo Freire foi e ainda é nosso maior referencial, com essa proposta de educar com os sujeitos, sempre levando em conta os fatores sociais que cercam a vida de todos”, conta Leila.

Em 2007 o sonho começou a ganhar estrutura física, através de doações e recursos populares. A construção foi um processo, e até 2015 se manteve sob lideranças das Irmãs Carmelitas. Os olhos da Igreja Católica não enxergavam com bom grado um projeto social liderado por quem era de clausura, e na escolha de ser fiel à fé, elas decidiram fechar a escola.

Todo trabalho é realizado em conjunto, desde a estrutura físicas à formação dos ideais. — Foto: Arquivo pessoal/Escola Dos Nossos Sonhos

No entanto, a comunidade não se via sem o projeto, e foi a crença de uma construção alternativa de saberes que levou todos a se reunirem para seguir com a iniciativa. Mas o caminho seria outro. Nasceria, ali, a ‘Escola dos Nossos Sonhos’, uma escola comunitária na busca de uma jornada sem hierarquias, tendo a subjetividade dos educandos como centro.

O que você quer aprender?

O primeiro passo era o coração da pessoa humana. Longe da rigidez, acreditavam que os afetos norteiam sonhos e desejos, e que levar tudo isso em conta facilitaria o querer das crianças pelo aprendizado. De acordo com Leila Sarmento, o ponto fortalecedor do projeto, até hoje, é dividir as decisões com o coletivo. “Cada passo é dado através de assembleias e colegiados, onde além da equipe de voluntários, os pais e integrantes da comunidade acrescentam ideias e sugerem mudanças”, explica a gestora. Mas havia, ainda, um incômodo.

“Inquietava-nos ver a escola com suas salas de aula cheias de carteiras enfileiradas, com seus alunos a olhar o tempo inteiro para um professor à sua frente, ditando padrões, impondo saberes, em sua maioria desligados da realidade dos educandos e com uma avaliação de aprendizagem mais excludente do que formativa.”

Foi essa angústia que levou a equipe pedagógica a testar um modelo inovador na região. Nesse novo ciclo, a ‘Escola dos Nossos Sonhos’ não optaria mais por séries. A ideia era integrar os estudantes, incentivar os trabalhos coletivos e as trocas para além das quatro paredes das salas de aula, para além das provas e das notas por rendimento. E então, as salas se transformaram em espaços coletivos de aprendizagem, utilizados pelos educandos através das necessidades de cada um, os professores se transformaram em tutores e mediadores de projetos, e os alunos foram desafiados a serem autônomos e exercerem sua liberdade.

Entre as crianças, a autonomia é trabalhada como etapa primordial. “O que você tem interesse? o que você gostaria de aprender na escola?”, perguntas como essa são comuns, e desde cedo a opinião dos menores é levada em conta e valorizada na construção dos saberes. Sem ementa antiga e inalterada, os cronogramas vão sendo montados de acordo com cada grupo. Longe do improviso, a equipe da escola realiza, frequentemente, ciclos de estudos com foco na capacitação para esse modelo educacional. Essa rotina permite que novas atividades e ações sejam sempre incorporadas. E Leila Sarmento garante que esse sonho não surgiu do nada, mas segundo muitas referências de outras escolas que já realizam modelo similares, e encontraram êxito, principalmente fora do Brasil.

“Muitas vezes, sentimos que nosso maior esforço é por romper com a forma pela qual fomos educados, cuidar para que nossa nova prática não seja permeada de costumes velhos", desabafa Leila.

O método principal é reunir os saberes através de projetos de pesquisa, o interesse dos alunos guia sobre quais conhecimentos eles vão se debruçar, através de planos diários e roteiros periódicos. Essa liberdade caminha, lado a lado, com as habilidades exigidas pelas diretrizes da Base Comum Curricular, estipuladas pelo Ministério da Educação. O método não está desvinculado do aprendizado regular que os estudantes precisam ter para garantir que serão certificados ao fim dos estudos. Os educandos contam com a colaboração dos tutores, é esse grupo de homens e mulheres, em parte voluntários, que orienta as atividades. Após o momento de orientação, os educandos ficam livres para executar as pesquisas, seja no refeitório, na sombra de uma árvore ou no pátio.

Chá literário nas comunidades campesinas. — Foto: Arquivo pessoal/ Escola dos Nossos Sonhos

Tutoria como um ‘lecionar que acolhe’

A vontade de fazer a diferença é capaz de cooptar vários sonhadores com um propósito em comum, e foi assim com Aline Miranda. Ainda em 2012 a pedagoga passou a fazer parte da escola. Nascida e criada no campo, sempre se aproximou de vertentes educacionais que compreendem as particularidades do lugar. Aline defende a educação comunitária como quem defende uma vida de lutas. Exerce na escola a função de tutoria, a escolha da nomenclatura tem relação com os caminhos abordados no dia a dia. Sem aulas, as orientações são individuais, e os momentos coletivos são direcionados para as interações entre os estudantes, com uma mediação dos profissionais que se veem como integrantes do processo de formação, sem serem totalmente responsáveis por ele.

Tutoria de Aline com um dos educandos, acolhimento focado no indivíduo. — Foto: Arquivo pessoal/ Escola dos Nossos Sonhos

De acordo com a tutora Aline, "tudo é construído por todos, nada de cima para baixo. Acredito que essa educação promove o desenvolvimento de todos através de uma proposta transformadora. Os educandos adquirem consciência da responsabilidade que têm pelo crescimento pessoal e socioambiental." Foi essa aposta de mudança que levou Aline a manter os próprios filhos na escola em que é voluntária. Para ela, a principal diferença da metodologia é tratar de cada detalhe como um fruto do coletivo, com foco na comunidade. A tutora explica que desde as decisões, até os resultados, tudo envolve a lógica grupal, “eles se sentem bem, o ensino se torna mais prazeroso e o resultado é maravilhoso”, afirma.

Hoje com 230 educandos, com a chegada da pandemia, apesar da tristeza em ter que levar as atividades para casa, a escola conseguiu se adaptar. Com a metodologia de ‘Fichas de Interesse’, as atividades foram realizadas com os familiares e acompanhadas, à distância, pelos tutores. Aline acredita que isso foi possível graças à autonomia já trabalhada com os educandos. O que não significa que a socialização não fez falta. As aulas presenciais voltaram em julho de 2021, e aos poucos as atividades foram retornando, com o privilégio dos ambientes abertos.

As atividades ao ar livre já eram rotina antes da pandemia, mas o distanciamento aumentou. — Foto: Arquivo pessoal/ Escola dos Nossos Sonhos

A escola comunitária de Bananeiras faz parte das iniciativas espalhadas pelo Brasil que tem a educação popular como ponto norteador. Até a década de 1940 o conceito era utilizado para falar de uma educação que pudesse chegar a todos os públicos, que incluísse, por exemplo, povos do campo e de cidades mais distantes dos grandes centros. Com a popularização dos diálogos propostos pelo intelectual Paulo Freire, em meados de 1960, novas formulações foram criadas em torno do que seria a defesa da educação popular no Brasil. As discussões se voltaram, então, para construções de saberes emancipatórios, que levasse aos povos minorizados, englobados como classes trabalhadoras, uma liberdade no processo de aquisição de conhecimento.

De acordo com o pesquisador da UFPB, José Francisco De Melo Neto, a educação popular tem sua teoria de conhecimento definido pela realidade. Uma pedagogia promotora do outro, com uma perspectiva política acompanhada de valores éticos como: justiça, respeito ao humano, solidariedade, diálogo em sua realização, buscando a emancipação e felicidade das pessoas. Os projetos que seguem a linha freireana costumam destacar aspectos como humildade, respeito à diversidade e tolerância como pontos estruturantes do processo educacional.

Familiares como parte importante da jornada educacional

Através de reuniões periódicas, os familiares dos educandos fazem parte das decisões. Mas como a proposta é expandir para toda comunidade, não são apenas opiniões. Essas famílias ajudam em todo processo de evolução da escola. Não são poucas as iniciativas de melhorar, e essa foi uma das características observadas pela artesã Milena Ferreira dos Santos ao decidir matricular o filho Luan Renner. O menino tinha 4 anos quando entrou para a 'equipe dos sonhos’. Ainda em 2012, antes da reformulação, Milena confiou ao filho à iniciativa que prometia uma educação ampla e inclusiva. Não se arrependeu, fala do ambiente escolar na primeira pessoa do plural, chama de “nossa” a escola que fez a diferença na formação de Luan e no cotidiano da comunidade, e fará falta. Com tom saudoso, lamenta que aos 14 anos ele tenha que sair em busca de outro lugar, pois atingiu a idade limite.

“Temos o voluntariado, onde eu atuo com muito carinho na construção de uma escola melhor para comunidade. Tudo foi desenhado junto, pensado junto. É um lugar muito importante. Para mim é um orgulho falar de lá, e já fico com o coração apertado pela saída dele”, comenta a mãe. Mas o sonho de Milena não terminou, o voluntariado seguirá para atender outras crianças, e esse bem ainda estará dentro de casa. Com um bebê de 4 meses, Milena pretende seguir cuidando da escola para que as condições sejam ainda melhores quando o segundo filho puder estudar lá.

“Nos projetos coletivos, um irmão desenhou a escola para o outro, eu acho isso muito bonito”.

Reconhecimento: Escola Transformadora

A partir das reformulações feitas em 2015, a ‘Escola dos Nossos Sonhos’ alçou voos maiores. O Ministério da Educação lançou, no mesmo ano, o edital Inovação e Criatividade em Educação Básica. Entre as mais de 600 iniciativas inscritas em todo país, a escola de Bananeiras recebeu o reconhecimento pelos novos valores propostos, e representou a Paraíba como uma das quatro experiências do estado certificadas pelo MEC em 2015. Já em 2017 um passo mais largo foi dado, passaram a integrar a rede das Escolas Transformadoras do Mundo, certificada pelo Instituto Alana/Ashoka, estando no grupo de vinte e uma instituições brasileiras que detêm essa certificação, sendo a primeira a representar o estado da Paraíba.

Em 2019, veio mais uma oportunidade a nível global. O Escolas2030 é um programa global de pesquisa-ação que busca avaliar, desenvolver e disseminar boas práticas para a educação de qualidade de crianças e jovens. A ‘Escola dos Nossos Sonhos’ é uma das 100 instituições brasileiras que integram o projeto espalhado em apenas 10 países. Dentro desse projeto ainda foi criado um grupo de Escolas-Polo, com 14 instituições para servir de referência às demais, e a escola paraibana faz parte.

Para Leila Sarmento, gestora da escola, os reconhecimentos apontam para um futuro possível “isso mostra que a construção coletiva é que traz bons resultados. Se educação é um processo de sujeitos ela não pode ser em mão única, mas em coletivo. Isso é o nosso diferencial”, certifica Leila.

Projeto arquitetônico da escola, construído junto a comunidade. — Foto: Arquivo pessoal/ Escola dos Nossos Sonhos

As atividades seguem sendo possíveis através de benfeitorias e doações, contando com convênio municipal e estadual, que permite manter a folha de pagamento dos colaboradores. Muitas despesas são cobertas com a realização de rifas, brechós e empenho de toda comunidade. E foi essa mesma comunidade que se uniu para preencher papéis e materializar em desenhos quais eram os sonhos para a estrutura física da unidade. As várias vontades construíram uma só planta arquitetônica, e é a partir do desenho em papel que eles têm construído, tijolo por tijolo, o sonho de uma estrutura que permita seguir com as atividades. Nunca foi cogitado transformar o projeto numa escola particular, onde tentassem manter os ideias, mas limitassem o acesso. Para a ‘Escola dos Nossos Sonhos’, só é comunidade se for aberto, se for para todos, com todos, até que a liberdade ultrapasse os campos de Bananeiras e se espalhe por todo lugar.

*Sob supervisão de Jhonathan Oliveira

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Como surgiram as universidades

Com raízes bastante próximas da religião, as instituições de ensino superior passaram por grandes reformas através dos séculos

Redação Publicado em 12/12/2021

 
Fotografia do Selwyn College, da Universidade de Cambridge - Foto por David Iliff. Licença: CC BY-SA 3.0 / Creative Commons/ Wikimedia Commons

Ainda que o conceito de “universidade” seja relativamente recente — com sua aplicação à educação superior datando do século 12 — há variedades muito mais antigas de instituições dedicadas a estudos avançados, com raízes em diversas culturas. Os primeiros centros de ensino superior tinham base na tradição religiosa. O mais antigo identificado é o centro budista Taxila — com origem entre os séculos 5 e 6 a.C. no reino de Gandhar, atual Paquistão. Sua influência se estendeu por mais de 800 anos e, em seu auge, chegou a receber mais de 10 mil jovens da Babilônia, Grécia, Síria, China e Índia. Lá, os estudantes ingressavam com 16 anos e, no lugar de aulas em grandes auditórios, tinham lições individualizadas das 68 disciplinas oferecidas — que iam de caça, medicina a escola militar e música. Cada professor tinha completa autonomia no seu trabalho, e os estudos terminavam quando o mestre estivesse satisfeito com as conquistas do aluno.

Na Grécia antiga, a busca pelo conhecimento era feita em debates entre pensadores, sem currículo estruturado e com poucos registros escritos — tanto na Academia de Atenas, fundada por Platão, como nos encontros informais dos seguidores de Aristóteles. O Museu (e a Biblioteca) de Alexandria, no Egito, também atraía inúmeros estudiosos e pensadores, mas não oferecia educação formal. Fundado no século 3 a.C., foi o centro de estudos avançados mais importante do mundo greco-romano. Com uma educação pouco mais estruturada, o monastério Nalanda, na Índia, oferecia uma vasta gama de disciplinas da tradição budista — como sânscrito, medicina, saúde pública e economia. Fundado no século 5, o campus possuía dez templos, uma biblioteca de nove andares, lagos, parques e acomodação para os estudantes que vinham da Coreia, Japão, China, Pérsia, Tibet e Turquia.

 
Fotografia da Universidade de Oxford / Crédito: Divulgação/ Universidade de Oxford

Havia um exame de admissão, e apenas três a cada dez estudantes eram aceitos. A instituição foi saqueada em 1193 pelo Exército turco, e o incêndio em sua biblioteca teria ardido por meses. Na mesma época, o Pandidakterion de Constantinopla, fundado em 425 e reorganizado em cátedras em 848, educava jovens para assumirem posições de liderança no império. Também conhecida como Universidade do Átrio do Palácio de Magnaura, a instituição é considerada por alguns historiadores como o primeiro centro de educação superior com características das universidades modernas — como independência acadêmica. 

As primeiras universidades europeias surgiram de forma independente e quase espontânea, como resposta às circunstâncias e necessidades da época. No final do século 11, estudiosos começaram a se reunir em Bolonha, aos pés de juristas mais experientes, para mirar a antiga Lei Romana como um guia para orientar as novas relações conflituosas entre império, Igreja, reinados, principados, cidades e indivíduos.

A Idade Média, porém, viu o retorno da educação de base religiosa. Na Europa, ordens religiosas e monastérios patrocinavam as escolas, dedicadas somente à educação do clero. Estudantes judeus, especialmente na Europa Central, se instruíam diretamente com eminentes intérpretes do Talmude — a fonte básica da lei judaica. Entre os séculos 8 e 11, o mundo islâmico criou as madrasas. Nessas instituições, estudantes, auxiliares e mestres viviam juntos por diversos anos em pequenas habitações anexas às mesquitas, estudando o Corão. Duas madrasas se destacam por terem se tornado universidades e estarem ainda em operação: a Universidade de Al-Karaouine, fundada em 859, no Marrocos, e a Al-Azhar University, fundada em 970 no Egito.

Semelhante, jovens buscavam a Catedral de Notre Dame, em Paris, para estudar artes, filosofia e teologia. Surgiram as universidades de Bolonha, em 1088, e de Paris, em 1150. Pouco tempo depois, foram criadas regulações definindo as obrigações de professores e estudantes, e adotado o termo universitas (que, em latim, designava um grupo de pessoas legalmente reconhecidas como uma coletividade).

Universidade de Pádua 

Lista de universidades

sábado, 11 de dezembro de 2021

Crise na Capes

Crise na Capes ameaça qualidade da pesquisa e divisão de verbas para pós-graduação
Baixo orçamento e atraso na avaliação de mestrados e doutorados prejudicam órgão

Júlia Marques, O Estado de S. Paulo, 11 de dezembro de 2021

Poucas semanas após os pedidos de exoneração de servidores do órgão responsável pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), novas renúncias voltaram a colocar sob holofotes a gestão federal da Educação. Dessa vez, o foco se voltou para a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Cento e quatorze pesquisadores convocados para trabalhos na Capes deixaram suas funções nos últimos dias, após divulgarem críticas à atual gestão da fundação e relatarem entraves às atividades. Sem precedentes, as renúncias são a ponta do iceberg de uma crise que se aprofundou nos últimos anos e tem consequências em todo o ensino superior e na pesquisa científica brasileira.
Tarefas da Capes como a avaliação periódica dos cursos de mestrado e doutorado e até a elaboração de um plano para a pós-graduação na próxima década estão atrasadas. Ao mesmo tempo, cortes no orçamento da fundação prejudicaram o pagamento de bolsas a estudantes de licenciatura. A falta de verbas cria ainda entraves ao reajuste dos pagamentos de mestrandos e doutorandos, congelados há oito anos. 

Dependem da Capes a garantia de qualidade dos cursos de pós-graduação (mestrado e doutorado) no Brasil e a distribuição de bolsas para esses pesquisadores, que são o motor da ciência brasileira. Também é função do órgão distribuir verbas para programas de pós. E até mesmo vagas na graduação sofrem impacto das tarefas desempenhadas na Capes.
Fundada em 1951, a Capes é ligada ao Ministério da Educação. Ao longo dos anos, consolidou, com participação da comunidade científica, um sistema de fomento a cursos de pós considerado referência para alavancar a pesquisa. O modelo de regulação evita que novos mestres e doutores sejam formados em programas que ainda precisam se estruturar. 

A avaliação resulta em notas para cursos de mestrado e doutorado, em escala de 1 a 7. Quanto mais alta a nota, melhor é o curso. Programas muito bem avaliados recebem mais verba para que possam aprimorar ainda mais e melhorar a pesquisa brasileira. Recursos também podem ser aplicados em cursos com notas baixas para alavancá-los. A nota é importante ainda para que alunos saibam pontos fortes e fracos de seus programas e possam escolher onde fazer um mestrado e doutorado.
Quando um curso de mestrado tem nota abaixo de 3, deixa de funcionar. O mesmo ocorre com doutorados com nota abaixo de 4. Universidades privadas têm interesse em evitar o fechamento de seus cursos de pós porque podem ser rebaixadas e perder autonomia se não tiverem pelo menos dois doutorados e quatro mestrados. E, sem autonomia, perdem dinheiro: não conseguem abrir novas vagas até mesmo na graduação

Raio x: Capes financia a formação de cientistas, mas distribuição de recursos depende de avaliação paralisada


Sob sigilo

Esse trabalho de avaliação da Capes, feito a cada quatro anos, entrou no centro de uma polêmica ainda sem solução. A avaliação relativa aos anos de 2017 a 2020 deveria ter sido concluída este ano, mas atrasou e só deve terminar em meados do ano que vem. A pandemia e mudanças na gestão da Capes – só no governo Bolsonaro, foram três presidentes – atrapalharam o processo. Em setembro, uma liminar da Justiça suspendeu a avaliação após uma ação do Ministério Público Federal (MPF) questionar a forma de aplicação de critérios.

Pesquisadores que renunciaram nas últimas semanas disseram não ver mobilização da atual presidente da Capes, Claudia Queda de Toledo, para retomar a avaliação. Eles são professores de universidades de ponta convocados em mandato de quatro anos para compor comissões de avaliação em cada área do conhecimento. De 49 grupos, quatro ficaram vazios e novos cientistas terão de ser nomeados.
“Não vimos da Capes postura taxativa em defesa da avaliação, que, sabemos, é algo importantíssimo”, diz Roberto Imbuzeiro, pesquisador do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa). Ele e outros 30 pesquisadores deixaram a comissão de avaliação dos cursos na área de Matemática. O grupo critica o fato de a Capes ter demorado a ir à Justiça para derrubar a liminar. A decisão foi parcialmente revertida no início do mês, logo após as renúncias nas comissões de Matemática, Física e Química.

Comemorada pela Capes, a nova liminar, no entanto, ainda trava a divulgação dos resultados das avaliações. Isso, na prática, significa que os trabalhos dos cientistas podem até continuar – mas as notas devem ficar sob sigilo. Pesquisadores e entidades dizem que a situação cria insegurança. Soma-se a isso a incerteza sobre a extensão dos mandatos de cientistas que permanecem na Capes, para que possam concluir o trabalho iniciado há quatro anos. Após decisão da Justiça de manter notas em segredo, mais cientistas resolveram deixar o trabalho. A última debandada atingiu a Engenharia.
“Fazer uma avaliação que mobiliza milhões de reais, milhares de consultores, todas as áreas do conhecimento e depois não divulgar as notas não faz sentido”, diz o pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Paulo dos Santos, coordenador de uma das áreas de avaliação na Capes. Após a debandada, o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU) pediu que a corte investigue a crise na Capes. E a Comissão de Educação do Senado aprovou audiência sobre o tema.

Sem resultados da avaliação, são usadas notas antigas, de 2017, para nortear a distribuição de bolsas e verbas – com isso, corre-se o risco de premiar grupos que pioraram ou deixar de dar recursos aos que mais merecem. E nem instituições nem estudantes poderão saber se seus cursos melhoraram ao longo dos anos. “Sem avaliação, não tem qualidade da pós, que é onde se faz pesquisa científica no Brasil”, diz Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e ex-diretor de avaliação da Capes.  “A avaliação da Capes foi a principal protagonista do fortalecimento da Ciência, Tecnologia e Inovação no País, em todas as áreas do conhecimento”, afirmam a SBPC, a Academia Brasileira de Ciências e outras três entidades, em carta divulgada esta semana. O grupo também vê risco no sigilo. 

A Capes nega falta de empenho para retomar a avaliação e informou que o atraso ocorreu “por força de decisão judicial”. Disse, ainda, que o calendário está sendo reajustado. Indagada se pretendia brigar na Justiça para reverter o sigilo dos resultados, a presidente da Capes disse que a fundação não está brigando na Justiça, “mas apenas esclarecendo procedimentos e prestando informações necessárias” e que a intenção é ter autorização para a divulgação dos resultados. Também afirma que a prorrogação de mandatos dos pesquisadores vai considerar o novo cronograma, “em respeito à legalidade e à segurança jurídica”. 

Novos cursos

Apesar de a Capes não saber quando terá notas da avaliação dos programas que já existem, decidiu abrir a chamada para novos cursos – esse foi outro motivo de agravamento da crise com pesquisadores. O anúncio foi feito por Cláudia em evento com donos de faculdades privadas.  O problema, segundo cientistas, é que até mesmo a abertura de novos cursos de pós deveria se nortear pelos resultados dos que já existem: se uma universidade quer abrir um novo mestrado, é desejável que esse curso seja pelo menos parecido, em relação à qualificação dos professores, por exemplo, com os que já existem na mesma área. Uma vez que as notas estão defasadas, essa comparação ficaria prejudicada. Cientistas também dizem haver pressão em prol de novos cursos a distância.

A presidente da Capes, que foi reitora do Centro Universitário de Bauru, justifica a abertura de novos cursos pelo risco de que instituições percam o status. “Várias universidades estão sendo descredenciadas porque não atendem ao requisito legal de terem quatro cursos de mestrado e dois de doutorado. Isso não é justo.” A fundação nega que interesses privados estejam norteando esses trabalhos e diz que novos cursos são oportunidade de fortalecimento da pós.
“Ninguém é contrário à expansão do sistema, mas tem de ser planejada”, diz Carlos Henrique de Carvalho, presidente do Fórum Nacional de Pró-Reitores de Pesquisa e Pós-graduação, grupo que reúne mais de 200 instituições de ensino e de pesquisa. Ele também questiona o atraso para começar um planejamento que vai nortear ações na pós pelos próximos dez anos. Sobre isso, a Capes diz que o plano começará a ser elaborado assim que o relatório do anterior for aprovado, ainda este ano.

Sem reajuste

Enquanto aumentam as inseguranças sobre a avaliação dos cursos de mestrado e doutorado, a pós-graduação no Brasil está à míngua. Mestrandos e doutorandos não têm reajuste em bolsas desde 2013, o que leva à perda de 60% no poder de compra. Um mestrando recebe hoje R$ 1,5 mil por mês – pouco mais de um salário mínimo – e um doutorando, R$ 2,2 mil. Os baixos valores são apontados como motivo para a fuga de cérebros. A Capes diz que o reajuste demandaria crescimento de quase R$ 2 bilhões no orçamento. “O reajuste das bolsas é necessário”, afirma a presidente, Cláudia Queda de Toledo. “Contudo, isso não depende apenas da Capes, mas sobretudo de disponibilidade orçamentária.”

Neste ano, estudantes de licenciatura que recebiam bolsas de R$ 400 pagas pela Capes para realizar projetos em escolas tiveram repasses mensais atrasados por falta de verbas. Parte dos alunos teve de desistir das atividades para buscar emprego em outras áreas. Os pagamentos só puderam ser retomados após aprovação de projeto de lei no Congresso.


sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Ataque de Cães e First Cow

subvertem a perspectiva dos faroestes

Diretoras mantém protagonismo masculino, mas abordam gênero com linguagens e sutilezas distintas 

Helen Beltrame-Linné​, Folha de São Paulo, 09/12/2021

Depois de ter sido o filme mais visto do streaming na semana passada, com uma audiência estimada de 13 milhões de domicílios, o western "Ataque dos Cães" despontou como favorito da temporada norte-americana de premiações ao levar as principais láureas da crítica de Nova York pelo NY Film Critics Circle.

Para além do mérito do próprio filme — o primeiro de Jane Campion dez anos depois de cor-roteirizar e dirigir a maravilhosa série "Top of the Lake", disponível na HBO — chama a atenção o sucesso de mais um western dirigido por uma mulher. No ano passado, o mesmo prêmio da crítica havia sido entregue a "First Cow – A Primeira Vaca da América", de Kelly Reichardt, uma unanimidade nas listas de melhores do ano.

 
Benedict Cumberbatch em cena de "Ataques dos cães", de Jane Campion. Kirsty Griffin / Divulgação

O gênero do western foi consagrado por diretores homens como John Ford e Sergio Leone, que instauraram no imaginário popular as silhuetas de John Wayne e Clint Eastwood  como ícones do ideal masculino. Sob o pano de fundo do descampado velho oeste americano, caubóis eram a encarnação da força e da justiça, os defensores dos valores morais contra os nativos ameaçadores e os brancos fora da lei.

É essa masculinidade que os western dirigidos por mulheres vem pôr à prova. Em vez de glorificar a figura mítica do caubói durão e independente, o que vemos é um enfrentamento dessa masculinidade tóxica que pode muitas vezes sair pela culatra quando homens tentam "provar que são homens". Vale aqui um aceno rápido a "Domando o Destino", de 2017 e disponível na Netflix, dirigido por Chloé Zhao — de "Nomadland" e "Eternos"—, que aborda o quanto pode ser mortal o machismo impregnado na cultura caubói.

"Ataque dos Cães" é exemplar ao fazer um retrato da masculinidade rude e homofóbica do início do século 20, que parecia guiar as relações pessoais pela austeridade desértica e montanhosa que os cercava. Do estado de Montana empoeirado de "Ataque" para o Oregon campestre de "First Cow", o resultado é o mesmo: uma paisagem rude que revela caubóis muito mais próximos da realidade histórica que hoje conhecemos – homens fisicamente sobrecarregados, subnutridos e mal pagos.
Os dois filmes são hábeis em escapar dos estereótipos do gênero: não há juízes ou justiceiros, não há tiroteios. Quando um personagem de Campion abre uma caixa de madeira, não é um revólver que encontra, e sim uma revista de homens nus. Esse objeto, contudo, talvez represente um elemento que essas novas leituras pegam emprestado dos clássicos: o desejo e como ele pode trair os nossos sentidos.

Se o forasteiro tradicional quer algo que não pode ter — a mulher proibida em "Por um Punhado de Dólares" (1964) ou desaparecida em "Rastros de Ódio" (1956) —, em "Ataque de Cães" é o desejo de Phil, vivido por Benedict Cumberbatch, que o põe à mercê de Peter — Kodi Smit-McPhee.
"First Cow" explora uma dinâmica similar: o chefe local — de quem os protagonistas Cookie (John Magaro) e King-Lu (Orion Lee) roubam leite— tem a chance de os desmascarar quando experimenta os bolinhos. Mas não o faz. É possível ver na belíssima cena — que ecoa as madeleines de Proust e, por que não, a cena final de "Ratatouille" – uma lição importante sobre nossa disposição à fantasia: mais vale embarcar numa viagem de memória a uma Londres distante do que reconhecer a presença de leite no bolinho.


An Opening First Cow 

No que se refere à estética western, as duas diretoras exploram o gênero de forma bem distinta, o que fica claro logo nas primeiras cenas de cada filme. Se "Ataque" opta por exibir logo nos primeiros planos uma tomada ampla de um grande rebanho bovino, "First Cow" vai para o extremo oposto ao fixar a imagem surreal de uma única vaca sendo transportada numa pequena embarcação.
Reichardt seguirá nessa toada de enquadramentos mais pessoais, destacando as expressões de seus personagens. Enquanto Campion será mais fiel à cinematografia clássica, investindo nos planos abertos que ajudaram a eternizar a paisagem do velho oeste americano. A primeira aparição de Phil, como uma silhueta solitária enquadrada por uma janela, não deixa de ser uma homenagem à imagem icônica de John Wayne num clássico de John Ford.

Mas o que talvez mais salte aos olhos na tela é a presença de homens: são westerns dirigidos por mulheres cujo protagonismo é masculino. Coincidência ou não, ambos se baseiam em livros escritos por homens, obras originais com as quais as duas diretoras trabalham cada uma a seu modo. Reichardt é bastante fiel à obra original, "The Half-Life" (2004, não lançado no Brasil), a ponto de ter escrito o roteiro com o próprio autor Jonathan Raymond.

Já Campion adicionou diversas camadas ao romance homônimo de Thomas Savage (1967, também não lançado no Brasil). Questões não desenvolvidas claramente no livro, como a sexualidade do protagonista, são em "Ataque" ressaltadas pelos tempos longos e as sugestões criadas pela arrebatadora trilha sonora de Jonny Greenwood, do Radiohead.

The Power of the Dog Movie Score Suite - Jonny Greenwood (2021)

Diferentemente de Reichardt, que carrega a tensão do filme com o perigo de descoberta do crime dos protagonistas, Campion constrói uma teia complexa com personagens opacos que intrigam o espectador desde o início. Os dois filmes, contudo, têm protagonistas inegavelmente desajustados. Homens que destoam do ambiente, que não cabem na forma de masculinidade colocada à sua disposição pela sociedade a que pertencem. E talvez resida aí o maior interesse na releitura feminina feita nesses westerns recentes.

Não é a primeira vez que mulheres dirigem westerns. Lois Weber, Anita Loos, Lina Wertmüller e Maggie Greenwald são exemplos que a história do cinema nos dá de diretoras que, de alguma forma, colocaram a mulher em primeiro plano nesse gênero historicamente masculino. Mas nem por isso fizeram filmes feministas ou que escaparam aos estereótipos do gênero.

"Ataque dos Cães" e "First Cow" são filmes que revisitam um ambiente amplamente retratado pelo cinema, mas o fazem sob um novo olhar. Creio que é essa a lição que nos deixam Jane Campion e Kelly Reichardt com seus westerns: a presença na tela não é o único jeito de fazer um filme feminino. É o frescor de perspectiva a principal contribuição que as minorias históricas podem fazer para a produção audiovisual contemporânea.

(Numa infeliz coincidência, após enviar esta coluna recebi a notícia da morte de Lina Wertmüller, que cito no penúltimo parágrafo. A italiana, cuja alcunha mais famosa é "a primeira mulher a ter sido indicada para o Oscar", fez muito mais que isso em vida. O western que dirigiu, contudo –"A Pistoleira da Virginia" (1968), o único spaghetti western dirigido por uma mulher e com protagonismo feminino– não fez grande coisa pela revolução do gênero, com seu apelo soft porn e implicação questionável entre sexo e violência. Justiça seja feita, Lina foi contratada para assumir a direção aos 45 do segundo tempo com a demissão do diretor original e atuou inclusive sob um pseudônimo masculino. No mais, pretendo fazer a devida homenagem a Lina Wertmüller na próxima coluna.)

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Curió, Heleno e Bolsonaro

O buraco que ficou em Serra Pelada é a metáfora perfeita do Brasil que deixa gente, terra, meio ambiente e Amazônia aniquilados para o proveito de poucos

Cristina Serra, Folha de São Paulo, 06/12/2021

Quem é mais velho lembra, quem não lembra basta digitar "Serra Pelada" para encontrar imagens do que um dia foi o maior garimpo a céu aberto do mundo, nos anos 1980, no sul do Pará. Fotografias de Sebastião Salgado mostram homens cobertos de lama, arqueados sob o peso dos detritos que tiravam das entranhas da terra, na esperança de enriquecer.

Pouquíssimos ficaram ricos com o ouro. A maioria morreu de doenças, tiro, faca ou foi soterrada. No lugar, restou uma imensa cratera e um lago de mercúrio. Esse inferno foi controlado com mão de ferro por um militar do Exército, o Major Curió, que participara da repressão à Guerrilha do Araguaia, nos anos 1970. Em denúncias do Ministério Público Federal, Curió é acusado de tortura e assassinato. Não por acaso, é amigo de quem? Sim, Bolsonaro.

Serra Pelada e o desastre ambiental

Lembrei de tudo isso ao ler a reportagem de Vinicius Sassine, nesta Folha, mostrando a rapidez do ministro da Segurança Institucional, general Augusto Heleno, o decrépito, em autorizar projetos de pesquisa de ouro, em São Gabriel da Cachoeira, no oeste da Amazônia

Alguns dos empresários beneficiados são infratores ambientais, com histórico de problemas com o Ibama. E é a primeira vez que empresas recebem autorizações para pesquisar ouro nessa região, bem preservada e com várias terras indígenas. O buraco que ficou em Serra Pelada é a metáfora perfeita do Brasil que une na mesma linha do tempo Curió, Bolsonaro e Heleno. Gente, terra, meio ambiente, Amazônia, tudo aniquilado para o proveito de poucos.

Bolsonaro sabe que 2022 será seu último ano no poder, então vai correr para fazer (ou desfazer) tudo que não conseguiu até agora. Movimentos do Executivo e do Congresso andam juntos. A Câmara pode dar um "liberou geral" para as mineradoras se aprovar o novo Código de Mineração. Ficaria faltando o projeto que permite mineração em terras indígenas. Por enquanto, tal vilania encontrou resistência. 

A sensação é de que o Brasil só sai do lugar se for para dar um passo atrás.