Machado de Assis divide torcidas nas redes e vira ícone da 'zoeira' com Gretchen e Nazaré Tedesco. Autor é redescoberto por uma nova geração por meio dos memes, das tretas e dos debates infinitos da web
Bolívar Torres, 29/12/2021
Conhecido por abordar a literatura de forma bem-humorada em sua conta no TikTok (@patzzic), o streamer Patzzic descobriu recentemente a força de Machado de Assis nas redes sociais. Sempre que publica um vídeo sobre o Bruxo do Cosme Velho, sua audiência explode. No final de novembro, ele viralizou ao resgatar uma velha fofoca de que o escritor teria tido um caso extraconjugal com Georgiana, mulher de outro nome canônico da literatura brasileira, José de Alencar. Era para ser apenas uma brincadeira despretensiosa, mas acabou rendendo quase 4 milhões de visualizações e muitos comentários exaltados de alguns de seus 53 mil seguidores.
Para o booktoker, ficou claro que existe um “impacto digital machadiano”. E as menções ao autor na internet ao longo de 2021 lhe dão razão. O Bruxo tem sido uma maneira fácil de gerar o que os mais íntimos com a comunicação digital chamam de “engajamento”. Suas pautas mobilizam fãs, haters ou simples curiosos. Sua figura também é usada em memes e motiva “tretas” de todos os tipos, literárias ou não. No Twitter, o ano começou com o influencer Felipe Neto causando revolta ao questionar o ensino de Machado nas escolas. E está terminando com os tuiteiros debatendo se o autor tinha “sotaque carioca” (sim, isso foi uma polêmica).
— Sempre que alguém menciona negativamente a obra machadiana, surge um exército de internautas disposto a comprar briga em defesa do autor — relata Patzzic. — Acho que é por isso que os posts sobre ele dão tão certo. Sinto que as pessoas têm um afeto quase familiar com tudo o que se associa à obra de Machado. E, quando a gente se sente íntimo de algo, tendemos a proteger, a reconhecer o valor com muita intensidade.
Divisão em torcidas
O tema “Machado” tem esse poder de mobilizar e dividir torcidas, o que tem tudo a ver com o ambiente das redes sociais. Quem nunca quis dar o seu pitaco no infinito debate “Capitu traiu Bentinho?” — que, aliás, foi recorrente no Twitter em 2021. Em setembro, uma matéria do GLOBO sobre o livro “O código Machado de Assis”, que busca comprovar “juridicamente” a existência de um caso extraconjugal em “Dom Casmurro”, fez mais uma vez a treta voltar à tona.
........
Tweet @meridadotropico
Se o jovem não consegue ler Machado de Assis como que todo ano tem a discussão insuportável de Capitu traiu ou não traiu aqui no twitter?
3:00 PM · 23 de jan de 2021
.......
Segundo o autor de literatura afrofuturista e pesquisador Alê Santos, que escreveu um dos posfácios de uma edição de “Memórias póstumas de Brás Cubas” publicada pela Antofágica em 2019, as redes ampliaram o universo em torno de Machado. Questões sociais, políticas e raciais ganharam um peso ainda maior.
Em 2019, a ação “Machado de Assis real” , criada pela Faculdade Zumbi dos Palmares, recriou uma imagem clássica do autor, corrigindo o processo de embranquecimento feito por seus contemporâneos. A campanha ganhou tração nas redes sociais. No mesmo ano, uma foto até então desconhecida de Machado, em que ele aparece muito mais negro, também viralizou.
— Existe uma geração que está redescobrindo Machado não necessariamente pela escola, mas pelas discussões nas redes sociais — diz Santos. — São debates que vão além dos seus livros e trazem o espírito da internet, como memes ou threads no Twitter. Isso dá uma nova energia para os estudos sobre o autor e também gera demandas para levar as mesmas discussões a outras linguagens, como podcasts, documentários e séries de TV.
Entre Gretchen e Nazaré
O que Machado de Assis tem em comum com Gretchen e Nazaré Tedesco? Assim como a cantora de “Conga, Conga, Conga” e a vilã de “Avenida Brasil”, o Bruxo virou uma infinita fonte de memes. Segundo o pesquisador Eloy Vieira, estes três personagens estão ligados na cultura digital brasileira por um espírito tipicamente brasileiro: o da zoeira.
— Eles são símbolo de um humor de autocomiseração que tem muito a ver com a nossa identidade nacional —diz Vieira, autor da tese “Quando a telenovela vira meme: como a Zuera e o Melodrama se articulam a partir dos memes da reprise de Avenida Brasil”, que analisa as relações entre cultura de massa e cultura digital.
O pesquisador vai além. Para ele, Machado é o fundador de uma certa autoironia brasileira, que foi evoluindo dos clássicos até os memes contemporâneos. Isso não significa, é claro, que os produtores de conteúdo atuais tenham bebido diretamente na matriz (o Bruxo e seus livros), ou que estejam conscientes de carregar este humor peculiar.
— É algo que ficou na cultura e foi passando, de referência em referência — diz ele. — Como sempre, na internet o que interessa é como as pessoas estão se reapropriando de tudo isso. É assim que funciona a cultura do meme.
......
Tweet @Prefeitura_Rio
Sim. Quem não fala Dom Cashmurro tá falando errado. 😛
Leandro @durazzo
será que Machado de Assis tinha sotaque carioca? Memóriash póshtumash de Brásh Cubash e tal?
8:55 AM · 9 de nov de 2021
.......
Entre todas as polêmicas recentes em torno de Machado, Vieira vê a do “sotaque” como a mais representativa. Tudo começou em novembro, quando um usuário no Twitter se perguntou se o autor falava em carioquês. Parece algo óbvio, já que o Bruxo nasceu e morreu no Rio de Janeiro, mas não para os usuários das redes sociais, que passaram dias em cima da questão, tuitando insights ou simulando um possível sotaque antigo do escritor em vídeos no TikTok. Até o Twitter oficial da prefeitura do Rio entrou na brincadeira.
— Acho que rendeu tanto porque Machado é uma referência que mesmo quem não conhece “conhece”. Também porque foi uma sacada boba, mas sobre algo que ninguém nunca pensa, então criou uma sensação de novidade nas ideias — acredita o antropólogo Leandro Durazzo, o autor do tuíte original, que cresceu em Santos e tem sotaque paulista.
Alê Santos reconhece que essa presença de Machado nas redes se dá, muitas vezes, em uma esfera extraliterária. Ela não substitui a relação com os livros, mas pode se somar a ela.
— Essa vivência digital tem uma função muito diferente da dos livros — diz Santos. — Não dá para falar em “substituição”, mas é fato que, até pelo ambiente aflorado da internet, incentiva muito mais a participação entre os jovens.
Bruxo do Livramento: Machado de Assis chega aos 180 anos, e jovens o descobrem negro e do morro
Bolívar Torres, 15/06/2019
A aula acontece nas ladeiras do Morro do Livramento, ao pé da Providência, no Centro do Rio. É ali, diante de uma casa parcialmente demolida, que Pedro Guilherme Freire explica: antes de virar o Bruxo do Cosme Velho, celebrado na Academia e nos salões, Joaquim Maria Machado de Assis foi um garoto pobre do Livramento. Exatamente como muitos de seus alunos. A iniciativa de Freire, professor do Colégio Estadual Caic Tiradentes, na Zona Portuária, reflete um esforço para reconfigurar a imagem do maior escritor do Brasil.
No mês passado, a campanha “Machado de Assis Real” lançou a “primeira errata feita para corrigir o racismo na literatura brasileira”. E recriou a foto clássica do autor, ressaltando suas feições negras. Também criou um movimento para que as editoras deixem de comercializar livros em que o escritor apareça embranquecido. E saiu a campo para encorajar novos escritores negros. Nascido há 180 anos (a data do aniversário é na próxima sexta, 21), o Machado “real” ainda pega muita gente de surpresa.
Como os alunos do professor Freire, que não faziam ideia de que o fundador da Academia Brasileira de Letras era filho de um pintor de paredes negro com uma lavadeira branca, e não pôde concluir os estudos porque precisou se sustentar desde cedo. A visita ao local em que o autor de “Dom Casmurro” teria nascido faz parte do projeto “Nossa escola, meu lugar, nossas histórias: etnografia e memória social da área portuária”.
— É importante dar destaque a esse Machado menos conhecido, que morou no Livramento — diz Freire, que também fundou um curso de pré-vestibular gratuito na região, com o nome do escritor. — Em vários aspectos, ele se parece com os jovens atuais da região, em sua maioria pobres e negros, que acabam largando a escola porque são obrigados a trabalhar cedo.
Também professora da rede pública e conselheira consultiva do Museu de História e Cultura Afro-Brasileira, Elen Ferreira conta que seus alunos negros “ficam desconcertados quando descobrem que Machado de Assis tinha a mesma cor que eles.
— Ver um rosto negro como protagonista da História em sala de aula é algo novo — argumenta ela.
Nascida ali mesmo, na zona portuária, e idealizadora do projeto Pretinhas Leitoras, que promove rodas de leitura para meninas da região, Elen tenta trazer Machado para a realidade de seus alunos, criando paralelos:
— Ele está aí há quase 200 anos, e só agora conseguimos fazer essa relação com os alunos. Além do mais, essa postura ainda é restrita a poucos espaços sociais. Outro problema é ver Machado como um exemplo de meritocracia, achar que todos os jovens daqui podem ser iguais a ele se quiserem, quando na verdade sua trajetória é uma exceção.
Morador da Providência, Luan Domingos da Silva, 25 anos, só foi descobrir que tinha a mesma origem do Bruxo aos 18, quando ingressou no pré-vestibular Machado de Assis. Como o “conterrâneo”, ele teve dificuldade para se manter na escola, equilibrando trabalho e estudos.
— Tive aulas na Providência, mas os professores não traziam esse contexto, de um Machado daqui — diz Luan, que está concluindo o curso de Geografia na Uerj. — Saber que ele morava aqui e era negro, como a maioria dos alunos, nos aproximou dele, além de nos dar uma referência. A gente sabe que ele foi uma exceção. Mas, como muita gente aqui, estava tentando mudar seu destino. Foi assim que percebi que a universidade, tão perto fisicamente, poderia estar perto também do imaginário.
O Livramento de Machado, porém, era um bocado diferente do de Luan. A violência, por exemplo, não chegava a preocupar. A região era uma grande chácara e, acima, no morro da Providência, a favela nem existia ainda. Mas a área já era segregada. Não por acaso, uma das metáforas mais fortes da obra do autor é a “ilha”, como lembra o escritor Silviano Santiago, autor do romance “Machado”, sobre a velhice do Bruxo.
Negro numa sociedade escravocrata, Machado teve que inventar, segundo Santiago, um “projeto existencial” só seu para ascender socialmente. Também contou com algumas oportunidades pouco comuns para alguém de seu meio, como pais que sabiam ler e escrever, e a proximidade com pessoas que puderam lhe ensinar outros idiomas, como latim e francês. Um misto de sorte e genialidade, que o fizeram ser um ponto fora da curva.
— Ele teve que se resolver por conta própria: já que não tinha apoio da escola nem do Estado, empurrou a si mesmo —diz Santiago. — Mas é importante lembrar que estamos falando de um gênio.
Quase 200 anos depois, a trajetória do Bruxo inspira o estudante Charles Gomes, 21 anos, que cursa o pré-vestibular Machado de Assis. Morador da Providência e sonha em fazer faculdade de Geografia, coisa que nem imaginava anos atrás.
— A mentalidade racista está na nossa própria casa, a gente é criado para achar que só serve para o trabalho braçal — conta Charles. — A gente acha que o museu perto da Providência não é para nós, que a biblioteca não é para nós. Mesmo quando é gratuito, achamos que é pago. Está tão perto e ao mesmo tempo tão distante. É como se a cultura não fosse para nós. Ninguém fala, mas a gente sente.