quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Aparência e Essência


Essência para a filosofia é “aquilo que a coisa é em si mesma”, isto é, a verdade mais profunda da coisa, o ser da coisa. E aparência, como a própria palavra sugere, é aquilo que a coisa aparenta ser e não aquilo que ela é em si. Aqui temos uma diferença/oposição/contradição (dialética). Ser e aparecer são realidades opostas que não somente se distinguem em suas características, mas que se digladiam entre si não havendo espaço e possibilidade de convivência. (Danilo Corrêa)

Aparência

Lauro é professor universitário, 31 anos, bonito e corpo escultural. Um Apolo com barriga zero. Irritante quando o vi em minha frente. O cara era só massa magra e eu com barriga maior que zero, não obeso, claro, mas frente a frente me deu um complexo de inferioridade estética.
Conversei com Lauro durante uma hora em sua sala de trabalho na universidade.

Tô casado não. Solteirinho da silva. Não tenho tempo para namorar. Sou contaminado pelo trabalho. Minha vida se resume em trabalho e nos intervalos, academia de ginástica.

Tempo social e tempo profissional. O primeiro quase inexiste. O trabalho de Lauro é predominantemente pesquisa. É da geração do Curriculum Lattes.

Rapaz, sou escravo do dead line. Veja lá no meu Lattes, um artigo a cada três meses. Tem que ser assim, é a sobrevivência como docente da universidade.

É a opinião de Lauro. Sobrevivência na universidade operacional contemporânea.  Como ele conheço vários docentes e várias docentes que pensam como.

Sindicato? Me acho cientista, cara. E como tal, confesso pra ti, não me considero trabalhador. Trabalho sim, e muito, para a ciência.

A origem da universidade está na idade média circunscrita ao pensamento cristão medieval. A igreja era a protetora e zeladora. Na época os universitários tinham imunidades similares às dos clérigos. E clérigos não eram trabalhadores.

E a família Lauro?

Minha família mora longe. Estou com eles e elas no Natal. Meus irmãos e irmãs são diferentes. Não pensam como penso, mas me dou bem com eles e elas. Gosto da minha família.

Saí da conversa com Lauro lembrando de Caravaggio.

Narcissus - 1597-99
Galleria Nazionale d'Arte Antica - Rome
https://favourite-paintings.blogspot.com.br/2011/03/michelangelo-merisi-caravaggio.html 15/08/2017

Essência

Marcos é um rapaz de 30 anos que mora em Vila Velha, Espírito Santo. Tem um filho, de 10, que mora com a mãe em Belo Horizonte. Todo o mês Marcos envia a mesada (1 salário mínimo) para o filho.

Tenho uma vida agitada, mas gosto do que faço. Moro com minha mãe e tenho muito carinho por ela, diz Marcos. A mãe, dona Manuela, tem personalidade forte e sabe como defender o filho. Não mexe com meu filho, senão viro bicho, diz sempre.

O filho da Manuela é um cara animado e falante. Estudou até o ensino médio e tem uma cultura respeitável. Conversa bem sobre literatura, cinema e psicanálise. Filosofar? É com ele mesmo. Gosta de moda e por sinal se veste muito bem.

Relato a seguir uma semana na vida agitada de Marcos.

Segunda: durante o dia é divulgador em uma loja de um shopping na Praia da Costa. A partir das 18 horas é apoio/segurança em um jantar no Cerimonial Orla Camburi em Jardim Camburi em Vitória. Volta depois da meia noite para Vila Velha. Para isto toma dois ônibus (o popular bacurau). Chega em casa às duas horas da madrugada.

Terça: Acorda às 6 horas e vai para a loja Aquarius na Glória, em Vila Velha. Lá trabalha como apoio e divulgador. À noite, a partir das 19 horas é garçom na boite Octopus em Itaparica, Vila Velha. Sai a 1 hora e chega em casa às 2 da madrugada. 

Quarta: Às 8 horas está no shopping da Praia da Costa. As 13 se manda para a Glória para o serviço na loja Aquarius. A noite volta para a Octopus. Está em casa às 2 da madrugada.

Quinta: a partir das 8 é apoio e divulgador na loja Veneza Modas na Glória. À noite, a partir das 20, é apoio no show do Exaltasamba no Parque de Exposição de Carapina, no município da Serra. Fica por lá até 1 hora da madrugada. Para voltar mais dois ônibus (bacurau) e depois de duas horas está em casa.

Sexta: durante o dia, é Papai Noel de uma loja no shopping na Praia da Costa. A noite é garçom no Bar do Luiz em Itapuã, Vila Velha. 

Sábado: de novo é Papai Noel no shopping. À noite garçom no Bar do Luiz.

Domingo: é dia de descanso. E como ninguém é de ferro se encontra com o namorado Alcides.

Para Marcos não há tempo ruim, não reclama da vida.

Resumo da ópera

Marcos e Lauro têm vidas distintas. Marcos (a exploração do trabalho) e Lauro (a alienação) representam o ser e o aparecer.

A ciência é, por assim dizer, a plenificação da coisa em si. No início do processo, a ciência está para ela na forma de aparência. Este processo é considerado por Hegel como o modo da essência de mostrar se à aparência. É este mostrar se que constitui a alienação, pois a ciência assume a forma de aparência para realizar se plenamente. O aparecer é a forma que a essência assume para vir à tona. (Fabrício J.Brustolin)

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Feliz dia dos pais, João


A paternidade continua um privilégio de quem consegue receber e um favor de quem consegue exerce

Ana Paula Lisboa, O Globo – 16/08/2017

Minha mãe é filha de um homem mestiço português, e vem daí esse meu sobrenome da capital lusitana que muitos aqui em Luanda acreditam ser meu nome artístico.
Quando meu avô conheceu minha avó, ela era bem jovem, e ele, já um homem velho e casado com uma senhora branca, mas com muitas mulheres e, consequentemente, muitos filhos espalhados no mundo. Minha mãe era a única dos filhos fora do casamento que fora registrada por ele. Segundo meu avô, essa era a maior prova de amor que ele poderia dar à minha avó: acreditar que aquela filha era dele e dar a ela o seu sobrenome.
Minha avó faleceu, infelizmente, antes dos 50 anos, de um derrame cerebral. No dia do seu enterro, já há anos deixado por ela e cheio de recalque, meu avô soltou a seguinte pérola: “Filho de minhas filhas, meus netos são, de minhas noras serão, ou não?” Eu demorei anos pra entender o que esse ditado complexo significava, mas sabia que era algo muito ruim, porque minha mãe desde então cortou relações com meu avô e, mesmo depois de sua morte, nunca mais voltamos a Magalhães Bastos. A última notícia que tenho é de uma herança que minha mãe faz questão de não receber.
Eu sei que ela vai me matar quando ler essa coluna, mas eu precisava contar toda essa história íntima da minha família para dizer que ainda existem homens como o meu avô e filhas como a minha mãe. E que minha maior curiosidade está nos tios e primos que tenho pelo mundo e não conheço.
Sim, porque dados do Conselho Nacional de Justiça de 2011 dizem que mais de um quarto da população brasileira não tem na certidão de nascimento o nome do pai. O Estado do Rio lidera o ranking, com quase 700 mil crianças com “pai desconhecido”. A esses meus tios e tias foi privado o direito à personalidade e à identidade, a ter uma história de família para contar.
Nesse quase um mês fora do Rio, o que tem me guiado é pensar que “se você não sabe para onde está indo, saiba pelo menos de onde veio”.
Repararam no último domingo que, diferente do Dia das Mães, em que as redes sociais ficam repletas de amor, de agradecimento e de saudades, o Dia dos Pais traz uma enxurrada de ressentimento, de relações interrompidas ou que começaram tardiamente, de relatos de abandono e de tristeza? Parece até que pai se tornou aquilo que a gente nunca viu, nem comeu, só ouviu falar e admira nas fotos dos outros.
Porque é claro que há também as declarações de amor, de orgulho, de saudades, há os almoços, os churrascos, há a música do Fábio Júnior e a da Legião Urbana, há o perdão. Mas mesmo para essas pessoas, ter um bom pai parece ser um privilégio.
Por aqui o domingo foi normal, já que a data — Dia do Pai — é comemorada em 19 de março, dia de São José, o pai “adotivo” de Jesus. E mesmo o cristianismo não sendo uma referência atual pra mim, pareceu-me bem mais coerente que no Brasil, onde a data foi pensada por um publicitário.
A referência contemporânea mais antiga é que no início do seculo XX Sonora Luise resolveu homenagear seu pai, um veterano de guerra nos Estados Unidos, que foi pai solo de seis filhos depois que a esposa faleceu. No dia do aniversário dele, ela espalhou cartazes por toda a cidade com os seus feitos e emocionou todo o país.
Sem saber do feito de Sonora, eu fiz um post na semana passada pedindo para que pessoas usassem um tempinho do seu dia e ligassem para o meu pai, que fez aniversário do último dia 6 e que por não possuir nenhuma rede social, não havia recebido nenhuma declaração minha. Mais de 20 pessoas se disponibilizaram e ligaram para o meu pai, não sei se isso quer dizer alguma coisa, mas desses, só dois eram homens. E o presente no fim não foi pra mim ou para ele, foi para essas pessoas, que me devolveram emocionadas frases como “por um tempinho eu tive pai”.
Não é por acaso que Sonora tenha resolvido homenagear o pai depois de ouvir um sermão sobre as mães. Segundo a história, ela percebeu o quanto toda a abnegação feminina estava presente nos feitos do pai, e desde então pouca coisa mudou.
A paternidade continua um privilégio de quem consegue receber e um favor de quem consegue exercer. Enquanto a maternidade se entende como um dom natural.
Não é só sobre pagar pensão ou dar o seu nome, tem a ver com “romper com esse padrão histórico e compulsório do abandono, do desapego e do descompromisso com a paternidade frente a questões da reprodução da vida, do amor e da criação das pessoas”.
Tem a ver com expectativa social que se cria sobre o que é ser pai e, consequentemente, sobre o que é ser mãe, porque é realmente impossível descolar uma coisa da outra. Tem a ver com homens que formam outros homens.
Tem a ver especialmente com João, meu mais jovem afilhado, que nasceu bem no dia do aniversário do meu pai. Porque João tem um desses “pais desconhecidos” que todo mundo conhece. Porque João tem irmão, tem avô, tem primos e talvez João nunca os conheça. Eu fico pensando se João fará uma postagem de rancor no Dia dos Pais.
Não, João fará posts de quem nessas datas agradece à vida pela mãe, pela avó, pelas madrinhas e se orgulha por romper esse ciclo e ser um homem diferente.

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Família profana

Morreu Jeanne Moreau, em 31/07/2017 aos 89 anos. Uma atriz e mulher incríveis, com uma cinematografia extensa e com algumas obras inesquecíveis.

Neste dia Inácio Araújo escreveu na Folha de São Paulo sobre Jeanne:
Foram apenas dois casamentos, mas, sabidamente, muitos amantes. Significam a inquietude sem fim, o gosto pela independência, a inteligência e o poder de sedução dessa atriz que, se vê sua força de estrela arrefecer na maturidade (como acontece frequentemente às atrizes), ainda filmaria, entre outros, com R.W. Fassbinder ("Querelle, de 1982), "Além das Nuvens" (1995, de novo com Antonioni, agora em parceria com Wim Wenders).

O filme emblemático de Jeanne Moreau, sem dúvida, foi Jules et Jim (http://www.imdb.com/title/tt0055032/) de François Truffaut, 1962. O título em português acrescenta Uma mulher para dois. Uma idiotice inominável.

Jules et Jim: a estória

Catherine (Jeanne Moreau), Jules (Oskar Werner) e Jim (Henri Serre) se conhecem e a partir daí tornam-se inseparáveis. Uma relação triangular cheia de idas e vindas. Três boêmios com pensamentos as vezes divergentes mas convergentes num quisito: a liberdade.

Era 1916 e logo vem a guerra. Jules, alemão e Jim, francês, participam, como soldados, em lados opostos. Às vezes, tenho medo de que vá matar Jules durante uma batalha, confessa Jim.

O trio volta a se encontrar no pós-guerra. Jules está casado com Catherine e com uma filha, Sabine. Jim aceitou que ela pertencia ao Jules.

Mas o casamento Catherine - Jules não estava nada bom.

Jules: Ela não é realmente minha esposa, Jim. Ela já teve três amantes. Um foi um encontro logo antes de nosso casamento, como uma despedida de solteira. Outro foi uma vingança por algo que eu fiz. E não sei o que. Não sou o homem que ela precisa...E ela não aceita isso. Estou acostumado a ela ser infiel comigo...Mas não suportaria vê-la partir.

Catherine numa palavra: inquietude.

O trio resolve morar juntos.

Um casamento profano, não sagrado.

As idas e vindas continuam. Ela ainda insatisfeita, infiel e aflita.

Final da estória: Catherine convida Jim para andar em seu automóvel e a seguir cai no mar do alto de um penhasco. Morrem juntos.

O caixão de Jim era maior que ele em vida. O de Catherine era uma caixa de joia.

Há dois temas: o da amizade dos dois, que tenta sobreviver, e o da impossibilidade de viver a três. A ideia do filme é que o casal não é um conceito satisfatório, mas não há outra solução (Truffaut)