segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Miguel Nicolelis

Miguel Nicolelis lança distopia, diz que Harari é ‘superficial’ e eleição em SP é ‘experimento’

Neurocientista estreia na ficção científica com ‘Nada Será Como Antes’, em que imagina uma corrida contra uma tragédia mundial, fala sobre as chances de extinção da raça humana, afirma que estamos ‘em um beco sem saída’ e celebra a liberdade oferecida pela literatura

Por Gabriel Zorzetto O Estado, 16/09/2024 

Miguel Nicolelis ouvia música clássica momentos antes de receber a reportagem do Estadão para um entrevista em sua casa, na agradável região do Pacaembu, em São Paulo. É um dos hobbies favoritos do professor e neurocientista, também um ávido leitor e nadador. O apreço pelo esporte aquático, aliás, nasceu na pandemia de covid-19 e tornou-se, mais do que tudo, uma luta contra um trauma de infância, instaurado quando o pequeno Miguel viu seu primo ser salvo de um afogamento pelo tio. O medo da água se arrastou por décadas, mas agora chegou ao fim.

Maior é a preocupação com o futuro da humanidade, tema de seu novo livro, Nada Mais Será Como Antes (Ed. Planeta/Minotauro), ficção científica com altas doses de realismo no qual ele traça o mundo em 2036 à beira da catástrofe, fruto da falta de cuidado com o meio ambiente.
A mente de Nicolelis, capaz de armazenar a mais variada gama de informações, pesquisa há 40 anos os mistérios do cérebro humano. Reconhecido internacionalmente, o paulistano de 63 anos (e palmeirense fanático) tem no currículo a invenção da interface cérebro-máquina, que permitiu ao jovem paraplégico Juliano Pinto, usando um exoesqueleto robótico, desferir o chute de abertura na Copa do Mundo do Brasil em 2014 – cena eternizada em um quadro na casa do professor Emérito da Universidade Duke (EUA) e fundador do IIN-ELS, em Natal-RN, responsável por capacitar profissionais na área.



Nesta entrevista, Nicolelis falou sobre a estreia no gênero literário e abordou uma série de temas, como o embate entre Elon Musk e o Poder Judiciário do Brasil; as possibilidades de extinção da espécie humana; o impacto do uso de aplicativos no cérebro; sequelas da covid-19 e inteligência artificial. Ele ainda criticou o historiador israelense Yuval Harari e definiu a ascensão dos coachs na sociedade como uma “tragédia”.
Miguel Nicolelis, médico, cientista, professor e apaixonado pelo Palmeiras, posa em sua casa em São Paulo Foto: Daniel Teixeira/Estadão

O senhor mora há muitos anos nos EUA. Como divide sua vida entre lá e São Paulo?
São Paulo é a minha cidade favorita no mundo. Eu já morei em vários lugares no mundo e nunca encontrei um lugar que eu me sinto tão bem como em São Paulo. Porque não há lugar no mundo onde eu como tão bem. Claro, minha família está aqui. Tem o Palmeiras, né? Como eu vou viver sem o Palmeiras? Mesmo com todos os problemas - não só a poluição atmosférica, a poluição sonora também. Eu moro há 35 anos numa cidadezinha [Durham, na Carolina do Norte] com 300 mil habitantes, no meio de uma floresta, no campus da universidade. Quando chego aqui, tem dias que eu não consigo dormir. Mas, no geral, as vantagens são maiores do que os problemas.

O senhor costuma fazer projeções bem reais da condição humana. Por que decidiu agora escrever um livro de ficção científica?
Um pouco antes da pandemia, talvez o meu melhor amigo americano falou assim: ‘você tem ideias muito interessantes sobre como o cérebro está sendo influenciado pelo mundo moderno. E as pessoas têm muito medo de ler livro científico. Elas acham que não vão entender, que o jargão é muito complexo e que os cientistas nem sempre conseguem se expressar coloquialmente. Por que você não escreve um livro de ficção científica?’. Cheguei à conclusão que era uma boa ideia e comecei. Só que quando a pandemia aconteceu, calhou de eu ter mais tempo, e eu percebi que algumas das minhas ideias estavam se manifestando durante a pandemia. O processo de tribalização da humanidade, onde você forma novos grupos sociais que ferrenhamente se adequam a alguma abstração mental, como por exemplo, a de que a cloroquina vai funcionar ou que a Terra é plana. Essa formação de milhões de grupos nas redes sociais que não têm mais nenhum contato com a realidade tangível. Apesar do livro se passar em 2036, eu estou brincando com meus amigos e o que era para ser só um livro de ficção científica está virando um ensaio jornalístico, porque muitas das coisas que eu previ que poderiam acontecer daqui a 10, 12 anos estão acontecendo agora.

Por exemplo?
Esse embate do verdadeiro poder que manda no mundo com os governos nacionais. Acabamos de ver o embate de um dos overlords da Big Tech [Elon Musk] com o Judiciário brasileiro. E é um embate que repercutiu no mundo inteiro. As pessoas começaram a falar: ‘opa, se a Suprema Corte Brasileira pode bater de frente, talvez a gente possa bater de frente também’. Saiu no jornal The Guardian um editorial muito bom, falando que realmente é uma guerra não declarada que começa a ter reflexões na gestão de um país, por exemplo. É só você ver quem controla dois terços dos satélites do mundo e quem controla hoje os satélites que mantêm as Forças Armadas Brasileiras funcionando na Amazônia. Se o nosso amigo ali [Musk] desliga o botão, as Forças Armadas Brasileiras estão incomunicáveis, o que é um absurdo.
O professor Miguel Nicolelis acaba de lançar o livro 'Nada Mais Será Como Antes' Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Quais os maiores desafios que o senhor encontra na hora de escrever?
Sempre gostei muito de escrever, porque minha mãe [Giselda Laporta Nicolelis] é escritora, então eu cresci vendo ela contar histórias para crianças e escrevendo livros. Quando você escreve livros científicos ou teses científicas, as normas são muito rígidas. Eu sempre brinco que cada sentença tem que ter uma citação de algum autor para você validar o seu pensamento. E, evidentemente, quando eu comecei a escrever esse livro, me senti completamente liberto, porque eu não precisava pedir permissão para o editor da revista ou do congresso de ciência ou do livro de ciência para colocar as minhas opiniões.

Nesse futuro próximo, 2036, qual é a lógica mais plausível para a extinção humana?
Bom, eu não quero dar um spoiler do livro, porque ele é um thriller. Imagina se você descobre hoje que nós temos 26 horas para decidir o que nós vamos fazer porque a humanidade vai sofrer um evento cataclísmico que vai mudar tudo, toda a infraestrutura elétrica, eletrônica e digital. O livro se passa em 2036 porque é o centenário da tese do Alan Turing que inaugura a era eletrônico-digital. Nesse período, nós ignoramos uma série de fragilidades existenciais ao construir essa civilização eletroeletrônica. E o que eu quis mostrar no livro é que três mil anos atrás os egípcios já sabiam dessas fragilidades e já levavam elas em conta. Nós estamos notando que aqui no meio do inverno em São Paulo está fazendo 36 graus e o ar está irrespirável. Nos últimos dias, São Paulo está com o pior ar do mundo, segundo a agência suíça que mede isso. Então eu quis mostrar um cenário que pouca gente pensou e que é muito mais provável que um meteoro. Ele pode ocorrer muito antes de uma pandemia pior do que a da covid-19. Eu não vou contar porque senão destrói a trama. Mas do ponto de vista científico, a própria NASA colocou ele como uma das preocupações prioritárias.

Como o senhor reage quando tragédias climáticas ocorrem?
Eu tenho um capítulo logo no começo do livro, que é o estado do mundo em 2036, feito como se fosse um jornal. E lá eu coloco a confluência de todas essas crises que acredito que vão ocorrer em 2036: a crise hídrica, com a falta de água doce para o mundo inteiro; a crise climática, falo de como a fumaça dos incêndios da Amazônia vem para o sudeste do Brasil; a crise alimentar, que é uma decorrência do problema das secas que estão ocorrendo no mundo todo. Falei da crise de energia, porque ninguém fala isso publicamente. Menciono as pandemias, em que a covid-19 foi só a ponta do iceberg do que está para vir. Todas essas crises estão interconectadas. Quando você tem o aquecimento global, as geleiras na Antártida degelam. Quando elas degelam, liberam milhares de novos vírus, que não temos a menor ideia do que seja, que estão lá há milhões de anos, guardadinhos na geladeira dos polos. À medida que nós fomos construindo a civilização moderna, nos dissociamos do mundo natural. E achamos que o mundo natural está aqui para nos servir, indefinidamente, só que não está. A Terra está claramente dizendo para nós que chegamos ao limite, se é que não já passamos. É um beco sem saída.

 Palestra do professor Miguel Nicolelis em 2005 Foto: Paulo Liebert/Estadão

O ser humano está menos inteligente com o passar do tempo?
É muito difícil dizer por que a inteligência é um troço difícil de medir. Existem testes. Eu não acredito em boa parte disso. O teste de QI pra mim é um troço muito limitado, porque a inteligência tem muitos fatores e a vasta maioria desses fatores não é mensurável do ponto de vista computacional. Como você vai medir criatividade? Eu conheci pessoas, cientistas, que nunca conseguiram fazer absolutamente nada na escola. Foram alunos medíocres, mas de repente encontraram seu nicho de atuação e viraram expoentes mundiais. Então, os atributos mais preciosos da mente humana, que definem a condição humana, não são digitais, nem mensuráveis pela lógica de computadores.

Como o uso excessivo de aplicativos impacta no cérebro?
90% dos americanos que responderam a uma pesquisa não ficam 3 metros longe do celular o dia inteiro. É como se o cara tivesse uma dependência física. Ele não consegue deixar o celular num canto e jogar bola na rua. E essa compulsão cobra. As pessoas hoje não conseguem ler um livro sem parar para consultar o seu celular. Então, a atenção é fragmentada, a memória é fragmentada. Porque você começa a clicar em múltiplos hiperlinks de um texto ou aplicativo e esquece o que motivou você a estar ali. A nossa memória de curto prazo é limitada. Várias teses em psicologia e neurociência estão demonstrando um aumento de ansiedade crônica em jovens, depressão e isolamento social porque boa parte da humanidade está se relacionando digitalmente e não presencialmente. E o nosso cérebro foi moldado e evoluiu para investir em encontros sociais presenciais.
E sobre a diferença entre ler o livro físico para o Kindle, por exemplo, impacta muito o cérebro?
Não tenho nenhum estudo formal sobre isso. Eu leio ambos. Tenho uma biblioteca eletrônica gigantesca, porque como eu viajo muito, preciso ter os meus livros à minha disposição. Mas eu não parei jamais de ler livros físicos, porque a experiência para mim é diferente. A forma de gravar, de memorizar, é muito mais efetiva para mim do que no livro eletrônico. Eu lembro muito mais do conteúdo de um livro que eu li fisicamente. E o fato também que a experiência do livro é multissensorial. As pessoas acham que isso é desprezível, mas não é. Você, literalmente, incorpora o livro físico.
Miguel Nicolelis, durante a 9ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), em 2011 Foto: Wilton Junior/Estadão

O mundo lidou bem com a covid-19?
Não, os políticos ao redor do mundo não tinham a menor noção, porque o objetivo da comunidade científica durante a pandemia era salvar vidas. E a maioria dos políticos tem outras agendas. A minha sensação é que se tivermos outra pandemia vai ser muito difícil, com o grau de desinformação que existe. A quantidade de informações falsas espalhadas foi brutal. Se você remover o genocídio indígena e a escravidão, que são espalhados por séculos, não existe um fenômeno pontual, num período de meses, que matou tanta gente: mais do que 700 mil, que é o número oficial. E até hoje nós não temos uma data de memória das pessoas que faleceram. Outros países criaram dias onde se tenta celebrar a memória das vítimas. A memória coletiva no Brasil é nula. A pandemia não acabou. Tivemos surtos na Califórnia, em Singapura, nos países europeus, e ninguém fala mais nada. Eu trato disso no livro também: como o vírus informacional apaga a memória pregressa. Chamo isso de brainets, redes de cérebros que são formadas pela disseminação de uma abstração mental. Isso faz com que, basicamente, todos os países do mundo, com raríssimas exceções, estejam passando por um processo de polarização interna, que a gente não conhece na história.
Como a covid-19 afetou a mente humana?
É um vírus vascular, que ataca a parede interna da vasculatura, pelo corpo inteiro. Só em 2021, registraram 21 milhões de pessoas com sequelas neurológicas da covid-19. É um número absurdo. Isso foi há três anos. Parkinson, derrames, suspeita de demência. Todos os tipos de doenças neurológicas estão sendo descritas como sequelas crônicas. É um problema de saúde pública. Até o momento eu não ouvi nenhum tipo de estratégia mundial ou nacional para lidar com isso, porque não há sistema de saúde público ou privado que vai dar conta disso em longo prazo. E sem as vacinas nós teríamos perdido o dobro, o triplo de pessoas.

O cientista Miguel Nicolelis na Campus Party, em 2016 Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Somos escravos da IA?
Sim, faz tempo. Tudo que falamos na mídia, na internet, que discutimos no nosso dia a dia, é um teatro de fantoches. A gente nunca toca realmente quem está controlando os movimentos dos bonequinhos de fantoches. A analogia mais ou menos é essa. Desde o início das mídias de massa é óbvio que viramos escravos, porque nós não dominamos os meios de comunicação. Daqui a pouco não vamos conseguir saber o que é verdade. A menos que você esteja na testemunha ocular de um evento, e mesmo assim vai ser complicado, você não vai saber se aquilo é verdade. A atriz Scarlett Johansson está processando a OpenAI porque eles usaram a voz dela, sem permissão, tipo a Alexa. E ela já foi vítima de deepfakes horrorosos, filmes pornográficos. Ela é uma vítima do problema grave que nós estamos enfrentando. As pessoas não conhecem a ciência por detrás da dita IA, porque não é nem inteligente, nem artificial. É basicamente um grande repositório de dados. Eles só vomitam as correlações mais frequentes, e quando não sabem a resposta, eles mentem. O plágio é completo, porque absorvem todo o material online que eu, você, colocamos lá, nossas fotos, nossos e-mails, etc. Toda a nossa presença online foi usada de graça, então é como se você tivesse uma mina onde você tira o ouro de graça. É um negócio da China, da [rua] 25 de março.

Por que a ciência nunca foi prioridade para os políticos do Brasil?
Quando eu cheguei nos EUA, em 1979, vindo do Brasil, não sabia absolutamente nada do que era o mundo fora aqui dos arredores do Parque Antártica. Cheguei na Filadélfia, no centro da ciência mundial, perguntei ao meu orientador: ‘qual é o segredo?’. Ele falou: ‘5%’. É a porcentagem do PIB americano que foi investido desde a Segunda Guerra Mundial, ininterruptamente, todos os anos até hoje. 70 anos de investimento estratégico do governo federal. Não é dinheiro privado, é o dinheiro público americano que construiu essa hegemonia. Desde o final do século 19, os EUA começaram a perceber que ciência ia mudar a história do país. E mudou. Hoje quem faz isso é a China. Na história do Brasil, a ciência nunca foi prioridade. Basta ver como é decidido quem vai ser ministro da Ciência e Tecnologia: é o que sobra dos acordos políticos. Não tem relevância nenhuma do ponto de vista político. E não tem um orçamento relevante o suficiente. Anos atrás, o Brasil tinha 1,12% do PIB devotado para ciência. Isso era o recorde, em 2010, em 2012. E só caiu desde então. Por quê? Porque a ciência é vista no Brasil como uma mercadoria de troca do jogo político. Porque nós não temos um projeto de nação. Nunca tivemos.

O senhor não gosta muito do Yuval Harari, certo?
A minha crítica é a mesma do orientador do Harari, em Oxford, que diz que nem fala mais com ele porque ele basicamente abordou temas extremamente importantes com superficialidade e teses que não têm nenhuma base. Certos livros dele beiram a eugenia, por exemplo. No Sapiens, eu tomei o maior susto, porque eu não sabia do livro, alguém me deu o livro e falou: ‘você tem que ler o último capítulo porque é o seu trabalho!’. Eu fui ver, e ele cita o meu livro e põe uma imagem de outro grupo que não tem nada a ver comigo. Então, ele deu a entender que aquela imagem era do meu laboratório, e aquela imagem era do grupo de Pittsburgh. Acho que o Sapiens é uma colagem em que não há uma teoria. O que ele fala da minha área está cheio de erros conceituais. Eu nunca falei no meu livro o que ele coloca na minha boca. Quando você se propõe a escrever um livro sobre vários temas, é bom que você dê uma estudada no que existe na área, né? Mas ele vendeu muito, caiu nas graças de gente como Bill Gates. Ele virou um porta-voz dessa aristocracia.

Qual sua opinião sobre a ascensão dos coachs? – um deles, Pablo Marçal, inclusive, está na corrida eleitoral de SP.
É uma tragédia. É outro exemplo de um vírus informacional que gera algo que ilude milhões de pessoas. O que está acontecendo em São Paulo, na eleição, é um experimento social ou político do que o mundo vai virar ou já está virando. Onde alguém, sem nenhum currículo, sem nenhuma proposta, sem nenhum projeto para uma cidade que está cheia de problemas, como todos nós sabemos, consegue penetrar e ser apoiado por uma fração gigantesca do eleitorado da cidade, que é a maior metrópole do hemisfério sul. Então, se você parar para pensar, só o fenômeno dele estar empatado nas pesquisas de opinião pública, é uma coisa inacreditável. E as pessoas não se dão conta do passado desse senhor. É um voto antissistema que está acontecendo no mundo inteiro.

O senhor perdeu a esperança na humanidade?
Não. Eu sou palmeirense, como é que eu posso perder a esperança? (risos) Só receio que nós estamos nos transformando rapidamente na única espécie no planeta Terra que conspira para a sua própria extinção. Você não vê nenhum outro organismo no mundo explorando o seu habitat a ponto de não conseguir mais sobreviver nele. Você não vê nenhum outro organismo se autodestruindo na magnitude como fazemos. Por isso eu quis escrever esse livro, que é quase um alerta. Nós esquecemos que o mundo natural não está sob o nosso controle.


Nada Mais Será Como Antes
    Autor: Miguel Nicolelis
    Editora: Planeta Minotauro
    512 págs; R$ 89,90


domingo, 15 de setembro de 2024

Pílulas 22

Ataque dos cães 

(...) Assim, o longa-metragem investe no subentendido, aquilo de que ninguém fala, porém se encontra na cabeça de todos: o sexo escondido, a embriaguez ocultada, a homossexualidade disfarçada, a competição velada. Há ferozes confrontos de olhares entre Phil e Peter, ou Phil e Rose, tornando os diálogos dispensáveis: basta enxergar o rosto dos protagonistas para descobrir suas intenções. Esta “família tradicional” de 1925, representando a América profunda, confronta-se à realidade por trás das aparências. O roteiro encontra a potente metáfora da contaminação para sugerir um mal que se impregna nos quatro heróis de maneira irremediável — a trama nunca oculta seu teor trágico. O título provém dos Salmos, 20:22: "Livrai a minha alma da espada, e o meu ser, do ataque dos cães”, evocando a força maligna e inesperada, corroborada pela sombra de cachorros na geografia das montanhas. A partir do livro de Thomas Savage, a cineasta busca uma saída simbólica, de ordem moral, ao confronto entre a masculinidade e a feminilidade de dois homens. Qual deles seria, afinal, o cão infiltrado na família? Aquele que chega posteriormente, trazendo a modernidade, ou o homem conservador, que despreza os novos habitantes da casa? A religiosidade e a noção de virtude são postas à prova. (...) Bruno Carmelo

Salmo 22 (21): Deus ouve o clamor do pobre* Do mestre do canto. Sobre a corça da manhã. Salmo. De Davi

2-6Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?

Apesar de meus gritos, minha prece não te alcança!

Grito de noite, e não fazes caso de mim!

E tu habitas no santuário, onde Israel te louva!

 

Nossos antepassados confiavam em ti;

Confiavam, e tu os salvavas;

gitavam a ti, e ficavam livres,

confiavam em ti, e não se desapontaram.

Quanto a mim, eu sou verme, e não homem,

riso dos homens e desprezo do povo.

 

Todos que me vêem zombam de mim,

abrem a boca e balançam a cabeça:

"Ele recorreu a Javé... Pois que Javé o salve!

Que o liberte, se é o que o ama de fato!"

 

És tu quem me tirou do ventre

e me confiou aos peitos da minha mãe.

Fui entregue a ti desde o nascimento,

desde o ventre materno tu és o meu Deus.

Não fiques longe de mim que a angústia está perto,

e não há ninguém para me socorrer.

 

Cercam-me touros numerosos,

Touros fortes de Basã me rodeiam.

Contra mim escancaram a boca

os leões que dilaceram e rugem.

 

Estou com água derramada,

e meus ossos todos e desconjuntam.

Meu coração está como cera,

derretendo-se dentro de mim.

Minha força secou como argila,

e minha língua colou-se ao maxilar.

Tu me colocas na poeira da morte.

Cães numerosos me rodeiam,

e um bando de malfeitores me envolve,

furando minhas mãos e meus pés.

Posso contar todos o meus ossos.

As pessoas me observam e me encaram,

entre si repartem minhas vestes, e sorteiam a minha túnica.

 

Tu, porém, Javé não fiques longe!

Força minha, vem socorrer-me depressa!

Salva meu pescoço da espada,

e a minha pessoa, das patas do cão!

Arranca-me da goela do leão,

faze-me triunfar dos chifres do búfalo!

 

Vou contar tua fama aos meus irmãos,

vou louvar-te no meio da assembleia:

"Vocês que temem a Javé, louvem a Javé!

Glorifique-o, descendência toda de Jacó!

Tema-o, descendência toda de Israel!"

Sim, porque ele não desprezou,

não desdenhou a desgraça do pobre,

nem lhe ocultou a sua face:

quando gritou por socorro, ele o escutou.

 

De ti vem meu louvor na grande assembleia.

Cumprirei meus votos na presença dos que o temem.

Os pobres comerão e ficarão saciados,

louvarão a Javé aqueles que o buscam:

"Que o coração de vocês viva para sempre!"

Todos o confins da terra se lembrarão,

e voltarão para Javé,

é ele quem governa as nações.

Diante dele se prostrarão as cinzas da tumba,

diante dele se curvarão os que descem ao pó.

 

Javé me fará viver para ele,

minha descendência o servirá,

falará do Senhor para a geração futura,

contará a justiça dele ao povo que vai nascer:

tudo o que o Senhor realizou!

* Bíblia Sagrada, Edição Pastoral, pp. 691 e 692, Paulus, 1990.

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SL 22: Súplica de um inocente perseguido

2-6: A experiência mais profunda do sofrimento é sentir-se abandonado pelo próprio Deus. A lembrança dos benefícios concedidos aos antepassados fundamenta a súplica e procura mover Deus a agir. Segundo Mateus, Jesus recitou o v. 2 na cruz (cf. Mt 27, 46)

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A autoridade climática de Lula: mais um castelo de areia no meio de uma tempestade perfeita

Marcos Pędłowski, setembro 11, 2024 /

Em meio à greve crise hídrica e da temporada extraordinariamente alta de incêndios que afetam a Amazônia brasileira neste ano, o presidente Lula foi a Manaus para anunciar uma série de medidas que supostamente se dirigem a colocar o seu governo em movimento na luta contra a crise climática.  Durante essa visita, o presidente Lula anunciou, entre outras coisas, a criação de uma tal “Autoridade Climática“ que terá como função suposta atuar no enfrentamento dos eventos naturais extremos, os climáticos principalmente.

Pois bem, essa e outras medidas anunciadas em Manaus não passam de mais um exercício retórico do presidente Lula.  O fato é que seu governo vem atuando no sentido oposto do controle da crise climático, começando pelos mais de R$ 400 bilhões que serão destinados para financiar a atuação do latifúndioagro-exportador na safra 2024/2025, mas indo além na implementação de diversas metas incluídas no “novo” PAC que incluem a pavimentação da BR-319, a construção ou ampliação de hidrovias, portos e ferrovias.

O financiamento estatal vai assim alimentar a máquina de destruição da floresta amazônica e contribuir para a perda de áreas importantes não apenas da Amazônia brasileira, mas também de outros biomas importantes como o Cerrado e o Pampa.  Já para as agências ambientais e seus servidores, a grana vai continuar curta, muito curta.

Assim, o fato é que os pronunciamentos feitos por Lula em Manaus são daquele tipo de que só acredita quem quer, por ingenuidade ou por cinismo.

O problema que fica para todos que não estão usufruindo dos ganhos resultantes com a incineração das florestas e com o envenenamento dos recursos aquáticos pelos agrotóxicos despejados a gosto na monocultura da soja é o que fazer de prático para reverter essa aposta no aprofundamento da crise climática, e não em sua mitigação.

Eu começaria por deixar de acreditar nos castelos de areia que nos são presenteados pelo presidente Lula como se fossem qualquer tipo de solução real, mas que só servem para cegar quando secam.  O problema é que tudo indica é que as coisas ainda vão piorar muito antes de começarem a melhorar.

Pode ser tarde demais e isso me apavora 

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Cientistas usam fita métrica para calcular, árvore por árvore, a pegada de carbono exata da Amazônia

Uma pequena equipe em uma região remota da Colômbia está pesquisando cada árvore em um esforço para entender melhor a quantidade de carbono que aquece o planeta que a Amazônia realmente armazena

Por Max Bearak (The New York Times) 14/09/2024 

Com a ajuda de uma pequena corda amarrada nos tornozelos, Eugenio Sánchez, ágil aos 50 anos de idade, subiu em uma árvore alta como uma lagarta humana, com o peito arfando devido ao esforço, apenas para colher algumas folhas.

As folhas, encontradas apenas nos galhos mais altos, ajudariam os cientistas que estavam esperando lá embaixo a identificar a espécie. E isso, juntamente com o tamanho exato da árvore (ou pelo menos o mais próximo possível do tamanho de uma árvore), lhes diria algo muito importante: a quantidade de carbono que ela continha.

A equipe, usando botas de borracha cobertas de lama, estava no início de um processo de meses de medição meticulosa de praticamente todas as plantas lenhosas que cresciam nesse trecho da floresta amazônica na Colômbia, uma a uma. Um censo de todas as 125 mil plantas individuais com um tamanho de tronco de pelo menos um centímetro de diâmetro.

Isso faz parte de um novo esforço multimilionário em dezenas de trechos de floresta em todo o mundo, cujo objetivo é descobrir, com um grau de precisão sem precedentes, até que ponto as florestas prestam um serviço épico à humanidade, capturando e bloqueando enormes quantidades de dióxido de carbono, o principal gás de efeito estufa que aquece o planeta.

Os dados coletados nesse pequeno local podem ajudar os pesquisadores a melhorar as ferramentas financeiras para proteger as florestas Foto: Federico Rios/NYT

A Amazônia é vasta. Quase dez Texas caberiam nela. Em meio à vasta extensão esmeralda, esse minúsculo fragmento, com menos de um décimo de milha quadrada, serve como uma representação do todo maior. Como uma amostra representativa da parte noroeste da Amazônia, ela contém cerca de 1.200 espécies de plantas lenhosas, desde gigantescas sumaúmas até cipós bem enrolados.

Com fita métrica e lentes de aumento, os cientistas e seus ajudantes passaram por cima de raízes escorregadias e atravessaram uma densa vegetação rasteira. As carcaças caídas das árvores gigantes matamatá e ojé se transformaram em passarelas improvisadas em espirais pantanosas de detritos lamacentos. Na verdade, durante a maior parte do ano, essa parcela da floresta é inundada e acessível apenas por canoa. Ela está repleta de escorpiões, tarântulas e larvas que se enterram na pele.

Alguém pode se perguntar: todo esse trabalho apenas para colocar uma fita métrica ao redor de uma árvore?

Em escala global, esse tipo de dados coletados manualmente pode preencher uma lacuna importante em nossa compreensão das florestas. No ano passado, o Bezos Earth Fund investiu US$ 12 milhões na criação de pelo menos 30 desses locais em todo o mundo, principalmente nos trópicos. O esforço é liderado pelo Smithsonian Tropical Research Institute, ou STRI, que foi pioneiro no cálculo da biomassa florestal décadas atrás. Eles esperam um dia ter 100 desses locais.

 Lauris Sangama tem ajudado a estudar as árvores por quase duas décadas Foto: Federico Rios/NYT

Uma contabilidade de carbono mais precisa, dizem esses grupos, fortalecerá os esforços incipientes para colocar um preço realista de comércio nas emissões de dióxido de carbono como forma de criar incentivos financeiros para desestimular o desmatamento e poluir menos. Esses dados também podem aprimorar os modelos complexos que os cientistas usam para tentar entender o aquecimento global.

Ao longo do caminho, a equipe na Colômbia também descobriu espécies raras e não catalogadas anteriormente. E para alguns povos indígenas locais, como Sánchez, há um emprego que se baseia em gerações de sabedoria herdada.

Em outras palavras, informações tão granulares que quase parecem íntimas são uma ferramenta importante para combater o aquecimento global e a perda de ecossistemas. Como salvar a floresta se você não sabe como ela está mudando? Como consertar um relacionamento se você não conhece as necessidades de seu parceiro?

“Sempre dissemos que a floresta é o nosso teto”, disse Lauris Sangama, 48 anos, uma mulher indígena Tikuna que carregava um paquímetro e um tablet eletrônico para a coleta de dados e cuja aldeia de 186 pessoas é cercada pelo parque nacional Amacayacu, onde o censo está sendo realizado. “Agora que entendo o carbono e tudo isso, sei que a floresta é ainda mais importante do que imaginávamos.”

Os dados coletados em locais como esses serão combinados com os dados de satélites que categorizam as árvores com base nas características visíveis de cima. Mas a maioria dos satélites não consegue penetrar de forma confiável a copa espessa da floresta.

“Só é possível obter medições de carbono realmente precisas combinando dados de satélite com verificação em terra”, disse Laura Duncanson, especialista em sensoriamento remoto da Universidade de Maryland. “Por exemplo, estou falando de abraçar árvores.”

As florestas tropicais e outras terras absorvem um terço de todas as emissões mundiais de dióxido de carbono que aquecem o planeta. A Amazônia, apesar de sua imensidão, é na verdade particularmente frágil. Este ano, os incêndios na Amazônia brasileira atingiram o recorde de 14 anos. Toda a região foi banhada por fumaça enquanto a equipe fazia seu trabalho recentemente.

Os cientistas vêm alertando há anos que a Amazônia está se aproximando de um ponto de inflexão, no qual ela deixa de capturar dióxido de carbono e passa a ser um emissor líquido dele. À medida que encolhe, ela se torna menos capaz de extrair água do oceano e sustentar sua exuberância (que, em uma forma de pensar do sistema climático, também é sua capacidade de armazenar carbono).

As florestas tropicais, que absorvem enormes quantidades de gases de efeito estufa, foram reduzidas pelo desmatamento Foto: Federico Rios/NYT

Essas tendências estão impulsionando uma ampla gama de esforços para proteger ou expandir as áreas florestais.

Isso pode envolver compensações de carbono, como créditos obtidos por investimentos em projetos que evitam, reduzem ou capturam emissões, permitindo que indivíduos ou empresas neutralizem suas próprias emissões de gases de efeito estufa. Também inclui títulos de reflorestamento, um tipo de ativo negociável que oferece aos investidores maior retorno financeiro quando os recursos são utilizados para plantar árvores capazes de absorver mais carbono da atmosfera.

Já existe um mercado para instrumentos como esses no valor de quase US$ 1 trilhão (R$ 5,56 trilhão). No entanto, para que o preço desses instrumentos funcione adequadamente, são necessários dados melhores sobre a quantidade exata de carbono que as diferentes florestas contêm. “Dados ruins podem equivaler a créditos inúteis”, disse Khaled Diab, da Carbon Market Watch, uma organização sem fins lucrativos. “Esse problema é incrivelmente difícil de resolver.”

Andrés Upegui, um dos membros da equipe. Trinta locais de florestas tropicais como este estão sendo pesquisados em todo o mundo Foto: Federico Rios/NYT

As dúvidas sobre esses dados são um dos motivos pelos quais, no ano passado, o mercado de compensação de carbono encolheu pela primeira vez em sete anos. Esses problemas, embora estejam no cerne do censo de árvores em Amacayacu, mal abalaram o ardor da equipe que o realizou.

Álvaro Duque, 59 anos, professor da Universidade Nacional da Colômbia, que está liderando o censo, tem uma voz expressiva e retumbante. Enquanto ele e seus colegas caminhavam de uma estação de pesquisa remota ainda mais para dentro da floresta em direção ao lote do censo, era difícil não imaginar que qualquer vida selvagem próxima os ouviu a quilômetros de distância e fugiu.

“O ar no sub-bosque da floresta está repleto de compostos que nos fazem sentir relaxados”, disse ele animado. “A única coisa que abafava suas vozes era o mambe, um pó fino verde-matcha feito de uma mistura de folhas de coca e yarumo que é muito apreciado localmente. Para aproveitar seus leves efeitos estimulantes, você o coloca em colheradas na bochecha, deixa sua saliva penetrar nele e então o deixa penetrar lentamente em seu sistema.

A fumaça dos incêndios florestais na Amazônia foi uma presença constante durante a recente missão de pesquisa Foto: Federico Rios/NYT

Com as bochechas cheias, é difícil falar. Eventualmente, porém, as palavras saem. Todos competiram para contar histórias de picadas de cobra, resgates de helicóptero e caminhadas de 80 quilômetros pela floresta para jogar futebol.

“Isso faz com que você fale com o coração”, disse Duque.

De forma mais prosaica, Duque também está animado por ter recebido financiamento para esse projeto de pesquisa. O subsídio de Bezos é o tipo de dinheiro que os pesquisadores da Colômbia, de Camarões ou do Camboja raramente esperam receber.

“Neste país, temos quatro botânicos para toda a Amazônia”, disse Andrés Barona, 45 anos, que trabalha para o Instituto Sinchi, um órgão de pesquisa do governo voltado para a floresta tropical. Barona é uma enciclopédia ambulante que pode dizer a família, o gênero e a espécie de quase todas as plantas que vê. Ainda assim, disse ele, “temos espécies que não sabemos nem mesmo a que família de árvore pertencem aqui”.

Álvaro Duque, o cientista que lidera o censo de árvores Foto: Federico Rios/NYT

Os locais de censo escolhidos pelo STRI são particularmente biodiversos. Os locais com os mais diferentes tipos de árvores são os mais úteis para o treinamento dos algoritmos de sensoriamento remoto usados pelos satélites para escanear vastas extensões da selva.

A biodiversidade de Amacayacu é de tirar o fôlego.

De acordo com Duque, há uma média de cerca de 250 espécies de árvores por acre. Pequenas mudas, com suas folhas de bebê ainda vermelhas. Adolescentes na altura do joelho, cuja sobrevivência ainda é incerta. Depois, aquelas que atingem a altura do peito, talvez com um centímetro de diâmetro, ultrapassando o limite para serem incluídas no censo.

Algunmas podem atingir até 30 metros de altura na copa das árvores, criando novos galhos onde macacos-esquilo e tucanos-de-garganta-branca podem formar grupos.

Quando não estão na floresta realizando o censo das árvores, muitos dos membros da equipe dormem em um centro de pesquisa espartano, construído sobre palafitas na floresta. Lá, em uma noite, com uma dose de rum, Duque contou o que a floresta havia lhe dado.

“Isso”, disse ele, acenando com o braço para a cornucópia, ‘me salvou’.

Como muitos de seus colegas, ele cresceu durante anos sombrios na Colômbia, marcados por guerras sangrentas contra os chefes do tráfico de drogas e guerrilheiros marxistas. Ele foi criado por uma mãe jovem e solteira. Mas o interesse permanente por árvores desde a infância foi uma constante. Hoje, ele usa sua posição para elevar outras pessoas.

Sangama, por exemplo. Ela é a única pessoa transgênero em Palmeras, seu vilarejo, uma desvantagem cultural que ela descreveu com franqueza. Mesmo assim, ela foi eleita vice-curaca, ou chefe do vilarejo.

Mocagua, o vilarejo mais próximo do Parque Nacional Amacayacu Foto: Federico Rios/NYT

Recentemente, em Palmeras, depois de voltar para casa em um barco, ela cozinhou banana-da-terra na brasa. Ela mora com o namorado, quase 30 anos mais novo que ela, e uma mulher com quem ele teve um filho recentemente. E ela foi a medidora de árvores mais confiável de Duque por quase 20 anos, uma posição de estabilidade que a ajudou na transição.

“Em nossa comunidade, ser trans é visto como algo horrível, algo que não deveria existir”, disse ela. “Mas, ao fazer ciência, provo que tenho um papel. Que não há distinção entre o trabalho de um homem e o de uma mulher.”

Trabalhos desse tipo lançam luz sobre dinâmicas na Amazônia que estão longe de ser óbvias.

Por exemplo, novos estudos postulam que, apesar da biodiversidade arbórea, cerca de metade do carbono da região está contido em apenas 2% ou mais de suas espécies. E essas espécies, geralmente enormes árvores de madeira de lei, podem ser as mais suscetíveis às mudanças climáticas (e à extração ilegal de madeira).

Logicamente, as medidas mais eficazes a serem tomadas se concentrariam na proteção dessas árvores. Mas é necessário esse tipo de pesquisa para saber isso. “A idade das trevas da escassez de dados tropicais pode estar acabando”, disse Duncanson, especialista em sensoriamento remoto.

Com a coleta de dados em andamento, Duque e Barona carregaram suas malas em direção ao rio, onde um barco os levaria de volta ao mundo com ar-condicionado. O céu estava carregado de fumaça de incêndios próximos e distantes. Não havia nuvens de tempestade, que se elevavam até a borda da estratosfera, prontas para varrer a floresta com chuva. Nenhuma havia caído em 16 dias.

Este conteúdo foi traduzido com o auxílio de ferramentas de Inteligência Artificial e revisado por nossa equipe editorial. Saiba mais em nossa Política de IA. https://www.estadao.com.br/link/estadao-define-politica-de-uso-de-ferramentas-de-inteligencia-artificial-por-seus-jornalistas-veja/

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50 dias de greve no INSS: a greve que a mídia burguesa e progressista esconde vídeo

Trabalhadores da seguridade social realizam greve histórica e ocupam a presidência do INSS

Por Redação, 09/09/2024

Com ocupação histórica na presidência do INSS em Brasília nos dias 4 e 5 de setembro, trabalhadores lutam por melhores condições salariais e de trabalho.

Após mais de 50 dias de greve, os trabalhadores do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) protagonizaram uma ação histórica ao ocupar a presidência do órgão em Brasília, nos dias 4 e 5 de setembro de 2024. Esta medida ousada foi uma resposta direta à brutal retaliação do governo, que judicializou a greve, impôs descontos severos e tentou marcar faltas injustificadas. A Federação Nacional dos Sindicatos de Trabalhadores em Saúde, Trabalho, Previdência e Assistência Social (FENASPS) e o Comando Nacional de Greve (CNG) utilizam a ação para sublinhar a urgência de uma negociação real e reivindicar justiça social e respeito aos direitos dos servidores.

O INSS

O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) é um pilar fundamental da seguridade social brasileira, responsável por garantir benefícios essenciais para milhões de trabalhadores e suas famílias. Fundado em 1990, substituindo o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e o Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social (IAPAS), o INSS administra aposentadorias, pensões por morte, auxílio-doença, salário-maternidade, e diversos outros benefícios que asseguram a dignidade e a segurança dos trabalhadores em momentos de fragilidade. Contudo, o atual governo tem promovido um ataque sistemático a este importante órgão, vinculando-o ao desmonte mais amplo da previdência social.

A Reforma da Previdência, aprofundada pelo Novo Teto de Gastos, é uma tentativa clara de desmantelar a seguridade social. Ao limitar os investimentos públicos, o Novo Teto de Gastos ataca diretamente a previdência social, cortando recursos e ignorando as crescentes necessidades de uma população envelhecida e vulnerável. Este movimento não é apenas um ataque aos direitos dos trabalhadores, mas um passo em direção à privatização e sucateamento dos serviços públicos.

A luta e as reivindicações da categoria

Os trabalhadores do INSS, que estão em greve há mais de 50 dias, têm exigido uma série de melhorias fundamentais, incluindo:

     Recomposição Salarial

     Reestruturação das Carreiras

     Cumprimento do Acordo de Greve de 2022

     Reconhecimento da Carreira do Seguro Social como Típica de Estado

     Melhorias nas Condições de Trabalho

Frustrações nas Negociações e Golpe Sindical

Os momentos de negociação foram marcados por tentativas de diálogo ineficazes e imposições unilaterais por parte do governo. A mais recente frustração foi a imposição de propostas sem ouvir os trabalhadores, onde mudanças foram apresentadas sem considerar as reais necessidades da categoria. Além disso, os servidores enfrentaram um golpe sindical quando a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Seguridade Social (CNTSS), um ente com pouca representatividade nacional ligado à Central Única dos Trabalhadores (CUT), assinou um acordo sem a ciência dos demais sindicatos e sem a avaliação da base.

Esse golpe resultou na decisão da presidência do INSS de considerar a greve encerrada e impor faltas injustificadas aos servidores que permanecerem em greve. Tal medida pode levar à demissão por abandono de cargo, ameaçando diretamente os direitos dos trabalhadores.

A ocupação da presidência do INSS: um marco de resistência

Em resposta à retaliação, o Comando Nacional de Greve (CNG) da FENASPS, em conjunto da categoria, ocupou a presidência do INSS em 4 de setembro de 2024. Esta ocupação durou 24 horas e foi uma demonstração de coragem e resistência. Os trabalhadores e trabalhadoras que participaram da ocupação conseguiram a revogação do ofício que impunha faltas injustificadas, mostrando a força e a determinação da categoria em sua luta por direitos.

Após a ocupação vitoriosa, o CNG da FENASPS orienta os trabalhadores a fortalecer as caravanas de 9 a 13 de setembro e a ampliar a greve em todo o país. A pressão sobre os parlamentares e o governo é essencial para avançar nas negociações e garantir que as demandas da categoria sejam atendidas.

A luta dos servidores do INSS é uma batalha crucial na defesa dos direitos sociais e da seguridade social no Brasil. A ocupação da presidência do INSS é um exemplo brilhante de resistência e compromisso com a justiça social. Agora, mais do que nunca, é fundamental apoiar a greve e exigir que o governo negocie de forma séria e respeitosa.

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Lula bombeiro joga gasolina na fogueira do clima

Políticas do Planalto para queimadas e petróleo têm consistência de cortinas de fumaça

 Marcelo Leite, fsp, 13/09/2024

Amazônia e cerrado ardem, cobrindo mais da metade do Brasil com um manto de fuligem. Entre as grandes cidades do mundo, São Paulo tem a pior qualidade do ar. Rio Branco, no Acre, sufoca com o dobro de poluentes da capital paulista.

Diante do sinistro ambiental e de saúde, o país descobre que a mangueira do Estado para debelar as chamas está furada. Isso quando não a utiliza para deitar mais combustíveis fósseis na fornalha da mudança climática.

De um Congresso de onde só se esperam coisas ruins veio isso mesmo. Os 290 deputados e 50 senadores da Frente Parlamentar da Agropecuária fingiram não saber que a culpa pelas queimadas é do agro e cobraram explicações da titular do Meio Ambiente, Marina Silva (Rede).

Ela as deve, por certo, como todo ocupante de cargo público. Mas até o carpete do Salão Verde danificado no 8 de janeiro por simpatizantes da bancada ruralista sabe que a ministra é uma das poucas na Esplanada a fazer algo contra os incêndios.

A incongruência mora no Planalto. Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deu para posar de bombeiro, mas o que o presidente diz e faz na encruzilhada da floresta e do clima mostra que sua disposição para apagar a fogueira do aquecimento global é tão confiável quanto a liderança de um ex-coach debaixo de chuva no Pico dos Marins.

Lula sacou do bolso uma pseudossolução para a míngua do rio Madeira, que pela primeira vez em seis décadas exibe menos de 1 m de profundidade e isola ribeirinhos: asfaltar a rodovia BR-319 (Porto Velho-Manaus). Como na BR-163 (Cuiabá-Santarém), rasgará uma frente de desmatamento por madeireiros e grileiros piromaníacos.

Seus ministros das Relações Exteriores e da Agricultura mandaram carta à União Europeia, enquanto amazônia e cerrado queimavam, defendendo o agronegócio incendiário. Pedem adiamento do Regulamento para Produtos Livres de Desmatamento, que vigoraria em dezembro e afetaria 30% das exportações à UE.

Nada se compara, porém, com a obsessão varguista de Lula e do PT com o gigantismo da Petrobras e a exploração de petróleo e gás na margem equatorial da amazônia. O pretexto é usar a renda dos fósseis para financiar a transição energética, uma balela.

Levantamento da ONG Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) noticiado pela coluna Painel S.A. indica que empresas do setor petroleiro se beneficiaram com uma renúncia fiscal de R$ 260 bilhões de 2015 a 2023. Só a Petrobras foi agraciada com R$ 117 bi (R$ 13 bi/ano).

Por outro lado, a estatal tem planos de aplicar US$ 5,2 bi (R$ 29,2 bi) em energias renováveis até 2028. Isso dá R$ 5,8 bi/ano, menos da metade do que vem sugando de subsídios na forma de impostos reduzidos —isso numa década em que a alta finança impôs ao país uma obsessão com equilíbrio fiscal à custa de gastos sociais.

Resumo da ópera: nem o governo Lula, nem o Estado brasileiro como um todo, tem um plano de ação coerente para descarbonizar a economia e mitigar o aquecimento global, seja estancando a maior fonte de emissões de carbono (desmatamento e queimadas do agro), seja abandonando a ideia fixa do petróleo.

Prometer desmate zero em 2030 é tão fácil quanto descumprir essa meta.

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Não, presidente Lula, não queremos a BR-319

Os povos indígenas que sofreram massacres e genocídio sabem muito bem o que 'integração' significa

Txai Suruí, fsp, 13/09/2024

A Amazônia se tornou o maior emissor de gases de efeito estufa no mundo. Isso se deu devido às queimadas e à seca extrema que afetam a região e cobriram com fumaça 60% do país. O dado é do projeto Copernicus, da União Europeia. Só neste ano, até o dia 9 de setembro, foram 82 mil focos de incêndio na Amazônia, o dobro em relação ao mesmo período do ano passado.

A região sofre com uma grande estiagem, que se intensifica a cada estação, tornando secos os rios e deixando comunidades ribeirinhas e indígenas isoladas, sem acesso a água e comida. O climatologista Carlos Nobre, numa entrevista, disse estar apavorado e que não se previu a rapidez com que a crise do clima impactaria os dias atuais.

No entanto, mesmo diante dessa crítica realidade, o presidente Lula anunciou a retomada da pavimentação de um trecho da rodovia BR-319, o Lote C, que liga Manaus (AM) a Porto Velho (RO). Recebeu críticas de ambientalistas e indígenas. A BR-319 ficou intransitável e, por ser economicamente inviável, suas obras foram abandonadas em 1988. Houve uma retomada com projetos de manutenção no governo Dilma, que trouxeram o aumento do desmatamento na região.

Em 2020, o Dnit anunciou a pavimentação do Lote C, em ação classificada pelo Ministério Público Federal como de "má-fé" e "afronta ao Judiciário" pelo descumprimento de decisão transitada em julgado que estabelece consulta prévia, livre, informada e de boa-fé aos povos indígenas impactados e a realização de Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima).

Os documentos anexados à portaria emitida pelo Dnit não apresentam os estudos ambientais e a consulta aos povos indígenas. A BR-319 impacta mais de 18 mil indígenas de 63 terras indígenas (TI), além de outras cinco comunidades e uma população de isolados. A rota da rodovia afetará um dos blocos mais preservados da Amazônia brasileira.

Além disso, a pavimentação permitiria e fomentaria a migração de desmatadores do "arco do desmatamento" para outras regiões. No total, estima-se que cerca de metade da floresta amazônica brasileira seria impactada, não apenas a borda da BR-319.

O ministro dos Transportes, Renan Filho, e parlamentares da região argumentam que a rodovia pode promover a integração e diminuir o isolamento dos estados de Amazonas e Roraima. Reutilizam o discurso de integração, como quando da colonização da Amazônia. Os povos indígenas que sofreram massacres e genocídio sabem muito bem o que a integração significa para seus povos e territórios.

Ao contrário do que afirmam seus defensores, a BR-319 não traz benefício algum aos povos da região, que já sofrem com seus impactos e vêm tendo violados seus direitos de consulta, previstos no artigo 169 da Organização Internacional do Trabalho.

É um absurdo que se use a situação de emergência vivida pelos povos da região para beneficiar o agronegócio. Isso apenas trará mais impactos para suas vidas, agravando a emergência climática. Não se pode combater a crise do clima desrespeitando direitos indígenas e incentivando projetos que só beneficiam os destruidores da floresta.

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O futebol como fábrica de memórias entre mães e filhos

Milly Lacombe, UOL, 13/09/2024

Eu não pude perceber que o pranto ia me levar de vendida. Estava no meio de uma simples reflexão sobre o que penso do futebol e quando me dei conta estava em lágrimas e impossibilitada de seguir falando. A culpa é da Marilia Ruiz e eu vou explicar.

Antes de entrarmos no ar para o Fim de Papo da quinta-feira 12 de setembro, ainda nas conversas de bastidores, Marilia contou para a turma de debatedores do dia (Renato Mauricio Prado, Arnaldo Ribeiro e eu) que tinha levado os três filhos ao jogo em que o Corinthians venceu o Juventude pela Copa do Brasil. Eu escutei ela falar sobre isso sem me dar conta de onde o relato ia me pegar.

Ainda no começo do programa eu saí falando sobre o que sinto com o futebol, sobre como viver momentos é mais importante do que levantar canecos, sobre a importância do Corinthians nas pequenas coisas da vida, sobre essa torcida que canta mais alto quando leva um gol e faz isso no exato momento em que levou o gol, explodindo em amor na dificuldade talvez mais do que na alegria. E emendei dizendo que o futebol é sobre uma mãe que leva seus três filhos para um jogo como o que vimos entre Corinthians e Juventude. Foi nesse momento que travei ao vivo aos prantos.

Tive que pensar o que me arrebatou desse modo. De imediato lembrei do dia em que minha mãe me pegou pela mão e foi comigo ao Morumbi ver o Corinthians ganhar da Ponte em 1977. Fomos só ela e eu. Meu pai berrando que era perigoso, que não estava certo levar uma criança de nove anos para dentro daquela multidão, que não íamos entrar porque não tínhamos ingresso, que estava frio, que era tarde e eu tinha aula no dia seguinte, que era uma irresponsabilidade, que seríamos pisoteadas. Ele tentou de tudo. Mas minha mãe, que nem gostava de futebol, resolveu que eu ia ficar com aquela memória e fomos nós duas.

De fato, aquela noite improvável ainda mora em mim. O barulho, o gol que eu não vi porque todo mundo estava de pé na minha frente, o gol que eu senti e que me fez compreender que, no futebol, sentir é melhor do que ver.

Quando minha mãe morrer, aquela noite me manterá ligada a ela. É o que temos nessa vida: as memórias com as pessoas que amamos. O resto passa. Até as dores são menores. E o futebol é uma usina de memórias.

Então, imaginando Marília e seus três filhos naquela noite mágica dentro do estádio do Corinthians eu talvez tenha sido arrebatada por esse amor que não se explica. Mais forte ainda porque é uma mãe que leva sua cria. Mais forte ainda porque entre os filhos temos uma filha. Esse troço de mãe e filha criando memórias no futebol me pega fundo.

E aí eu quebrei. E quebro enquanto escrevo esse texto. O futebol é isso. Podem tentar NFLizar esse troço quanto quiserem. O futebol não vai se entregar a essa cafonice que invadiu nossos campos. Ele resiste. Ele vive. Ele insiste todas os dias em que uma mãe pega seus filhos e, tarde da noite, leva todo mundo para um jogo de bola.