Tonico Pereira: 'Talvez o sexo seja um dos meus vícios mais fortes'
Ator, que está em dois novos curtas e ganhará filme sobre sua vida, diz que filha o ajuda a se ‘regenerar’ do machismo e reconhece erros do passado com parceiras
Maria Fortuna, O Globo, 31/03/21
Tonico Pereira agora pensa duas vezes antes de fazer uma piada. Famoso pela verborragia sem freio, o ator tem sido confrontado pela filha Nina, de 15 anos. Feminista ferrenha, ela não admite o machismo que identifica no pai de 72 anos. Quando Nina nasceu, gêmea de Antonio, Tonico já tinha Daniela (hoje, com 47 anos) e Thaia (45). As duas cresceram em meio à ausência da figura paterna, na época, mais interessada em sexo, drogas e rock and roll. Aos 57 anos, Tonico teve, portanto, uma segunda chance de ser pai de verdade. Os adolescentes (frutos do casamento de 25 anos com a bailarina Marina Salomon) são os fios que o atualizam sobre as questões contemporâneas.
Enquanto leva um choque de realidade, Tonico acessa as memórias do tempo em que a mãe incentivava sua valentia em brigas de rua e o proibia de chorar. Nascido em Campos dos Goytacazes numa família pobre (daí sua iniciativa de empreender em vários negócios: “Posso escrever um livro de autoajuda sobre falência”), ele começou a trabalhar aos 8 anos. Vendeu mariola e parafuso, fez faxina, foi peixeiro e avião de contrabando de relógio importado e lança-perfume. As experiências de quem sorveu a vida com a curiosidade de um bom aluno (“a vida me levou a ser formado também pelos bares e puteiros do Brasil inteiro”) compõem a base de seus personagens, guiados pela emoção e pelo tom tragicômico (“a linguagem do ser humano”, diz).
A vivência do ator, que não decora texto (“improviso até Shakespeare”) e usa ponto eletrônico há 15 anos, será contada no documentário “Toniquices do Pereira”, dirigido por Lucas Rossi. Com ele, Tonico rodou, recentemente, o filme “Bandeira preta”, previsto para o segundo semestre. Enquanto isso, o ator pode ser visto no curta “Um espinho de marfim”, adaptação do conto homônimo de Marina Colasanti, dirigido por Luis Fernando Bruno e Isabella Secchin, e que será exibido neste sábado e domingo no YouTube. Tonico também gravou participação em “Um lugar ao sol”, novela que sucederá a “Amor de mãe”, e está reservado para a próxima de João Emanuel Carneiro.
Após superar vários problemas de saúde (“já operei quatro cânceres de bexiga, hemorroidas, prótese peniana...”), Tonico, vacinado, lamenta a morte por Covid-19 da ex-mulher, que tinha câncer. Na conversa a seguir, ele diz que seus maiores erros foram com justamente com as mulheres e revela ser viciado em sexo.
Você foi vacinado no último sábado. Como se sente?
Frustrado porque a vacina ainda não é para todo mundo. Prefiro eu morrer do que as pessoas ao meu lado, porque não tenho mais lágrimas (há dois meses, Tonico perdeu Eliana, mãe de suas filhas, que tinha câncer, mas morreu de Covid-19).
Em 2019, enfrentou cinco pneumonias. Parou de fumar?
Não. De dois meses para cá, tive três diverticulites. Pneumonia, devem ter sido umas 20. Tenho DPOC (doenças pulmonares que bloqueiam o fluxo de ar), sou diabético e tive trombose. Não sei como supero tudo isso... Já operei garganta, quatro cânceres de bexiga, hemorroidas, prótese peniana que, inclusive, foi vencida pela diabetes... Tive que correr para o hospital para tirá-la. Mas ela era maravilhosa.
Hoje tenho uma que é médio, mas tenho a garantia da outra. O negócio é que o médico me cobrou 25 mil reais para fazer essa operação. Quase que falei: "Doutor, eu que vou cobrar para o senhor botar a mão no meu pau!"...
Falando no assunto... Como anda o sexo aos 72 anos?
Gosto muito. Talvez o sexo seja um dos meus vícios mais fortes. Para mim, não é doença, é saudável.
Você tem um brechó. Como é ser comerciante na pandemia?
Um implorador para que abaixem o aluguel da loja (risos). Honro compromissos e estou me fodendo. Como já fali umas oito vezes, vou superar. Tenho insegurança com o rendimento do trabalho de ator, então, sempre fiz outras coisas que me amparassem. Mas fali em todas as profissões, e quem sustenta tudo é a de ator. Posso escrever um livro de autoajuda sobre falência, pode dar dinheiro, né? (risos). Tipo: "Não façam o que eu fiz".
Tonico Pereira: "Sempre fui muito brigão. Toda vez que eu brigava na rua, minha mãe mandava eu dar mais porrada" Foto: Leo AversaEstá difícil segurar os filhos adolescentes em casa na quarentena?
Está. Mas a convivência diária me trouxe descobertas maravilhosas. Tenho aprendido muito com eles em vários aspectos. Minha filha e uma feminista, progressista. Quero evitar a palavra "esquerda", acho progressista é mais elegante e sapiente. Esse período está servindo para me regenerar da minha formação machista.
Estou querendo me regenerar. Porque machismo e racismo não se cura com literatura, mas com vivência absoluta de pé no chão, o chão ardendo e a gente se modificando por força da nossa vivência. É o que me modifica e me faz ter agora uma autocritica sobre o quanto eu ainda sou machista. Fico feliz com a oportunidade de conhecimento que minha filha está me dando diariamente.
Que exemplos de machismo ela aponta em você?
São vários comportamentos. Sou muito verborrágico, falo coisas muito espontâneas. O que para mim pode ser uma piada, para ela, é uma ofensa fundamental. A gente tenta equalizar essa situação entre nós. Ela está me proporcionando esse tipo de descoberta que, para mim, era tácita. Tive duas mulheres muito fortes na minha vida: minha mãe e minha avó. As duas eram muito mais machistas que os maridos. Estou aprendendo com minha filha a não ser igual a elas.
Como te criaram na base do "homem não chora"?
Tudo isso e muito mais. Sempre fui muito brigão. Toda vez que eu brigava na rua e minha mãe estava perto, ela mandava eu brigar mais, dar mais porrada. Grande parte do meu machismo é uma herança maternal.
Você tem uma coleção de carros, um hobby bem "macho", não é?
Até isso está diminuindo. Hoje, estou com seis e vendendo alguns para me precaver de uma ausência de emprego. Tenho um conjunto de pagamentos que extrapola, dois adolescentes que fazem cursos que nunca fiz na vida, minha outras filhas, uma delas ficou viúva...
Mas esse negócio de carro é fruto da minha infância pobre. Meu pai nunca teve carro naquela época. Hoje, posso ter carros que eram os da minha infância. São de 1929, 1952, 1967, 1976...
Que outras vantagens enxerga por ter sido pai tardio?
Quando fui pai mais novo, era um cara completamente doido. No sentido mais amplo do viver, das drogas, do álcool, do sexo... Não que hoje esteja inutilizado, mas sou mais comedido. Fui muito ausente com as minhas filhas. Saía e voltava três dias depois.
Hoje, chego em casa todo dia, já é um avanço. Engraçado é que esses dois mais novos me cobram muito mais do que minhas filhas, que foram vítimas reais da minha loucura. A visão dessas pessoas de 15 anos é muito crítica. Principalmente, quando são mulheres. Temos culturas completamente diferentes.
Você já contou ter recebido pedidos de reconhecimento de paternidade. Passou por uma situação constrangedora?
Tinha um homem que aparecia toda vez que eu entrava numa novela. Ele exigia que o tratasse como filho. Quando sugeri um teste de DNA, ele sumiu.
Como é seu personagem em "Um lugar ao sol"?
É um professor do personagem principal, o Cauã (Reymond). Fiz questão de dar um enfoque bastante progressista. Dei uma aula e até me emocionei. Claro que improviso bastante, faz parte do meu acervo e do meu modus operandi.
Se deixar, improviso Shakespeare (risos). Tem uma coisa em mim que as pessoas não acreditam... Eu não leio nada! Li muito pouco na vida. Estou lendo agora o livro do Stepan (Nercessian, "Garimpo de almas"), que é a minha praia... Mas não tenho formação acadêmica nenhuma, trabalho desde os 8 anos. Precisei muito viver.
O laboratório para a construção dos seus personagens é a sua própria vida...
E nada é mais vida do que o que vem na hora. Eu não decoro nada, não adianta me programar. Palavras têm pensamento e não texto por trás. Se tiver com a compreensão do espetáculo, vai falar o texto na dosagem, no timbre certo. Muito mais do que numa situação decorada, em que o voo de uma mosca pode desconcertar e fazer o texto ir embora.
Eu não interpreto, eu vivo. A minha relação é com a vida, não é com o teatro, a TV, o cinema. É a vida que me move. Ela me levou a ser formado também pelos bares e puteiros do Brasil inteiro. Isso me dá uma sedimentação que não troco por nenhum academicismo.
Uma vez, quando eu estava fazendo do rei Cláudio de "Hamlet", uma famosa crítica de teatro disse que eu não tinha "physique" de um rei. Perdi a compostura e fiz uma carta arrojada para ela. Disse que minha intenção não era fazer um rei dinamarquês. Imagina eu, de peruca loura!
Porque a discussão, para mim, não era o rei, mas o poder. Essa era a essência para fazer aquele personagem. Eu estava fazendo o Antonio Carlos Magalhães, o Sarney, o poder! Citei um exemplo radical para ela: "Se você exige comportamento de rei, não deve admitir que o Charles seja príncipe e futuro rei. Porque um cara que declarou publicamente que tinha prazer em cheirar o OB da amante...".
Isso não é o comportamento de rei, é o comportamento humano! Eu me pauto pela humanidade e pela possibilidade que o personagem tem de interagir com o mundo politicamente. Nunca iria fazer uma caricatura de um rei e trair toda a possibilidade de pensamento dentro desse personagem.
O que o filme sobre sua vida vai revelar de mais curioso?
Sei, não, um documentário sobre mim... Eu sou muito rasgado, e isso pode chocar. Tenho a premissa de viver, essa é a minha escola e, dentro dela, prevalecem muito mais erros do que acertos. O acerto é uma comodidade. O que muda o homem é o erro, a observação e a superação desse erro.
O erro é a grande faculdade da minha vida. Errei pra cacete, continuo errando e não tenho nenhum pudor em me arrepender. O arrependimento é um ato de inteligência maior. Vivo errando e me arrependendo. É isso que o filme pode trazer.
Qual foi o erro mais grave que cometeu?
Porra, eles são tão grandes que é difícil... Te falei de um fundamental. Eu não sabia o que era machismo, estou acordando agora. Me proponho a falar coisas que são laboratoriais na minha vida e que emprego no trabalho. Às vezes, faço personagens completamente escrotos. E as pessoas julgam por essa escrotidão que é de personagem, mas é alimentada por mim. Erros com mulher foram vários. Acho que as mulheres deveriam, me matar.
Peço desculpas às mulheres. Ainda sou machista, mas estou tentando mudar. O mundo contribui, a gente pesca ou não. Não espero ser perdoado por ninguém, mas peço perdão. Sou minimamente inteligente para me arrepender.
Já sofreu ameaça de morte por causa dos posts políticos que compartilha nas redes?
Já. Uma vez, disseram que iam me matar e descobri que era um pastor de São Paulo. Também acontecem ameaças veladas para que eu não possa dizer que estou sendo ameaçado. Para mim, é impossível negar o que penso. Posto muito, é uma compulsão. E sempre falando porque sou analfabeto. Escrevo errado e, quando falo, boto a pontuação onde eu quero.
A pessoa que eu sou transmite para o ator essa possibilidade de que o ser humano é capaz de tudo. O mesmo pai que joga uma filha do oitavo andar é o que corre para pegar a criança que está caindo. Somos essa coisa dupla, abrangente, total.
Às vezes, sou agressivo, inconveniente e sou alertado disso. "Tonico, você falou uma coisa para aquela pessoa...". Mas é sem uma intenção maior, porque, quando tenho, eu falo também. Mas sou aberto.
Em 2015, imagens de um clipe de Marcelo Yuka em que você aparecia cheirando cocaína vazaram como se se fossem reais. Como ficou o caso, você processou?
Eu sei quem postou. Foi um grupo de Caxias ligado a uma igreja. Aquilo foi tirado de um set de filmagem e ainda inventaram que era eu com três atrizes da Globo. Era uma fantasia absurda! Tentei processar. Queria a reparação como não verdade e ganhar um real que fosse. Porque só o dinheiro modifica esses caras. Mas um advogado falou que não valia e pena, que pediriam desculpas e ficaria por isso mesmo.
Depois de mais de 50 anos de carreira, que personagem deseja fazer?
Todas as narrativas e personagens me interessam. Meu grande patrimônio é a minha quadrilha formada pelos meus personagens. Sou apenas o capo e eles me sustentam. Sou feliz por ter esses companheiros de qualquer origem, situação e caráter.
Adoro ter liberdade para trabalhar. Há diretores que não admitem outras ideias, mas eu só trabalho com troca de ideias. Não me chame se eu não puder opinar. Agora, estou mais esperto e não discuto, proponho. Às vezes, o cara diz: "Ah, mas a fala não é essa". Aí, eu falo do jeito que ele quer, mas a pontuação é minha, é pessoal, indivisível, é o meu caráter, a minha noção das coisas.
Com todos esses problemas de saúde, tem medo de morrer?
Não sei se tenho medo, porque é uma coisa inerente à vida. Sendo materialista, acho que é apenas uma transformação em pó. Tenho pesadelos com a morte, mas sempre estou brigando com ela, e quando acordo, tô dando soco para tudo quanto é lado. Às vezes, atinjo até a minha esposa, minha mulher, sei lá como fala agora...
O desconhecido sempre me atraiu. Mas tenho medo da morte dos próximos, das pessoas que habitam o meu coração. Quando eu morrer, não gostaria de ser enterrado nem cremado. Gostaria de de ser colocado numa praça bucólica de uma cidade do interior, completamente nu, para que os pássaros me comam e realizem o meu sonho maior, que é o de voar.
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