quarta-feira, 31 de março de 2021

Tonico

Tonico Pereira: 'Talvez o sexo seja um dos meus vícios mais fortes'
Ator, que está em dois novos curtas e ganhará filme sobre sua vida, diz que filha o ajuda a se ‘regenerar’ do machismo e reconhece erros do passado com parceiras
Maria Fortuna, O Globo, 31/03/21

 
Tonico Pereira ganha homenagem de grafiteiro | Rejane Guerra

Tonico Pereira agora pensa duas vezes antes de fazer uma piada. Famoso pela verborragia sem freio, o ator tem sido confrontado pela filha Nina, de 15 anos. Feminista ferrenha, ela não admite o machismo que identifica no pai de 72 anos. Quando Nina nasceu, gêmea de Antonio, Tonico já tinha Daniela (hoje, com 47 anos) e Thaia (45). As duas cresceram em meio à ausência da figura paterna, na época, mais interessada em sexo, drogas e rock and roll. Aos 57 anos, Tonico teve, portanto, uma segunda chance de ser pai de verdade. Os adolescentes (frutos do casamento de 25 anos com a bailarina Marina Salomon) são os fios que o atualizam sobre as questões contemporâneas.
Enquanto leva um choque de realidade, Tonico acessa as memórias do tempo em que a mãe incentivava sua valentia em brigas de rua e o proibia de chorar. Nascido em Campos dos Goytacazes numa família pobre (daí sua iniciativa de empreender em vários negócios: “Posso escrever um livro de autoajuda sobre falência”), ele começou a trabalhar aos 8 anos. Vendeu mariola e parafuso, fez faxina, foi peixeiro e avião de contrabando de relógio importado e lança-perfume. As experiências de quem sorveu a vida com a curiosidade de um bom aluno (“a vida me levou a ser formado também pelos bares e puteiros do Brasil inteiro”) compõem a base de seus personagens, guiados pela emoção e pelo tom tragicômico (“a linguagem do ser humano”, diz).

A vivência do ator, que não decora texto (“improviso até Shakespeare”) e usa ponto eletrônico há 15 anos, será contada no documentário “Toniquices do Pereira”, dirigido por Lucas Rossi. Com ele, Tonico rodou, recentemente, o filme “Bandeira preta”, previsto para o segundo semestre. Enquanto isso, o ator pode ser visto no curta “Um espinho de marfim”, adaptação do conto homônimo de Marina Colasanti, dirigido por Luis Fernando Bruno e Isabella Secchin, e que será exibido neste sábado e domingo no YouTube. Tonico também gravou participação em “Um lugar ao sol”, novela que sucederá a “Amor de mãe”, e está reservado para a próxima de João Emanuel Carneiro.

 
Tonico Pereira não decora texto e usa ponto eletrônico há 15 anos: 'Eu não interpreto, eu vivo' Foto: Leo Aversa

Após superar vários problemas de saúde (“já operei quatro cânceres de bexiga, hemorroidas, prótese peniana...”), Tonico, vacinado, lamenta a morte por Covid-19 da ex-mulher, que tinha câncer. Na conversa a seguir, ele diz que seus maiores erros foram com justamente com as mulheres e revela ser viciado em sexo.

Você foi vacinado no último sábado. Como se sente?
Frustrado porque a vacina ainda não é para todo mundo. Prefiro eu morrer do que as pessoas ao meu lado, porque não tenho mais lágrimas (há dois meses, Tonico perdeu Eliana, mãe de suas filhas, que tinha câncer, mas morreu de Covid-19).

Em 2019, enfrentou cinco pneumonias. Parou de fumar?
Não. De dois meses para cá, tive três diverticulites. Pneumonia, devem ter sido umas 20. Tenho DPOC (doenças pulmonares que bloqueiam o fluxo de ar), sou diabético e tive trombose. Não sei como supero tudo isso... Já operei garganta, quatro cânceres de bexiga, hemorroidas, prótese peniana que, inclusive, foi vencida pela diabetes... Tive que correr para o hospital para tirá-la. Mas ela era maravilhosa.
Hoje tenho uma que é médio, mas tenho a garantia da outra. O negócio é que o médico me cobrou 25 mil reais para fazer essa operação. Quase que falei: "Doutor, eu que vou cobrar para o senhor botar a mão no meu pau!"... 

Falando no assunto... Como anda o sexo aos 72 anos?
Gosto muito. Talvez o sexo seja um dos meus vícios mais fortes. Para mim, não é doença, é saudável.

Você tem um brechó. Como é ser comerciante na pandemia?

Um implorador para que abaixem o aluguel da loja (risos). Honro compromissos e estou me fodendo. Como já fali umas oito vezes, vou superar. Tenho insegurança com o rendimento do trabalho de ator, então, sempre fiz outras coisas que me amparassem. Mas fali em todas as profissões, e quem sustenta tudo é a de ator. Posso escrever um livro de autoajuda sobre falência, pode dar dinheiro, né? (risos). Tipo: "Não façam o que eu fiz".

Tonico Pereira: "Sempre fui muito brigão. Toda vez que eu brigava na rua, minha mãe mandava eu dar mais porrada" Foto: Leo Aversa

Está difícil segurar os filhos adolescentes em casa na quarentena?
Está. Mas a convivência diária me trouxe descobertas maravilhosas. Tenho aprendido muito com eles em vários aspectos. Minha filha e uma feminista, progressista. Quero evitar a palavra "esquerda", acho progressista é mais elegante e sapiente. Esse período está servindo para me regenerar da minha formação machista.

 
Tonico com os filhos gêmeos Antonio e Nina, de 15 anos: "Estou aprendendo muito com eles, em vários aspectos" Foto: Marina Salomon

Estou querendo me regenerar. Porque machismo e racismo não se cura com literatura, mas com vivência absoluta de pé no chão, o chão ardendo e a gente se modificando por força da nossa vivência. É o que me modifica e me faz ter agora uma autocritica sobre o quanto eu ainda sou machista. Fico feliz com a oportunidade de conhecimento que minha filha está me dando diariamente.

Que exemplos de machismo ela aponta em você?
São vários comportamentos. Sou muito verborrágico, falo coisas muito espontâneas. O que para mim pode ser uma piada, para ela, é uma ofensa fundamental. A gente tenta equalizar essa situação entre nós. Ela está me proporcionando esse tipo de descoberta que, para mim, era tácita. Tive duas mulheres muito fortes na minha vida: minha mãe e minha avó. As duas eram muito mais machistas que os maridos. Estou aprendendo com minha filha a não ser igual a elas.

Como te criaram na base do "homem não chora"?
Tudo isso e muito mais. Sempre fui muito brigão. Toda vez que eu brigava na rua e minha mãe estava perto, ela mandava eu brigar mais, dar mais porrada. Grande parte do meu machismo é uma herança maternal.

Você tem uma coleção de carros, um hobby bem "macho", não é?
Até isso está diminuindo. Hoje, estou com seis e vendendo alguns para me precaver de uma ausência de emprego. Tenho um conjunto de pagamentos que extrapola, dois adolescentes que fazem cursos que nunca fiz na vida, minha outras filhas, uma delas ficou viúva...
Mas esse negócio de carro é fruto da minha infância pobre. Meu pai nunca teve carro naquela época. Hoje, posso ter carros que eram os da minha infância. São de 1929, 1952, 1967, 1976...

Que outras vantagens enxerga por ter sido pai tardio?
Quando fui pai mais novo, era um cara completamente doido. No sentido mais amplo do viver, das drogas, do álcool, do sexo...  Não que hoje esteja inutilizado, mas sou mais comedido. Fui muito ausente com as minhas filhas. Saía e voltava três dias depois.
Hoje, chego em casa todo dia, já é um avanço. Engraçado é que esses dois mais novos me cobram muito mais do que minhas filhas, que foram vítimas reais da minha loucura. A visão dessas pessoas de 15 anos é muito crítica. Principalmente, quando são mulheres. Temos culturas completamente diferentes.

Você já contou ter recebido pedidos de reconhecimento de paternidade. Passou por uma situação constrangedora?
Tinha um homem que aparecia toda vez que eu entrava numa novela. Ele exigia que o tratasse como filho. Quando sugeri um teste de DNA, ele sumiu.

Como é seu personagem em "Um lugar ao sol"?
É um professor do personagem principal, o Cauã (Reymond). Fiz questão de dar um enfoque bastante progressista. Dei uma aula e até me emocionei. Claro que improviso bastante, faz parte do meu acervo e do meu modus operandi.
Se deixar, improviso Shakespeare (risos). Tem uma coisa em mim que as pessoas não acreditam... Eu não leio nada! Li muito pouco na vida. Estou lendo agora o livro do Stepan (Nercessian, "Garimpo de almas"), que é a minha praia... Mas não tenho formação acadêmica nenhuma, trabalho desde os 8 anos. Precisei muito viver.
O laboratório para a construção dos seus personagens é a sua própria vida...
E nada é mais vida do que o que vem  na hora. Eu não decoro nada, não adianta me programar. Palavras têm pensamento e não texto por trás. Se tiver com a compreensão do espetáculo, vai falar o texto na dosagem, no timbre certo. Muito mais do que numa situação decorada, em que o voo de uma mosca pode desconcertar e fazer o texto ir embora.
Eu não interpreto, eu vivo. A minha relação é com a vida, não é com o teatro, a TV, o cinema. É a vida que me move. Ela me levou a ser formado também pelos bares e puteiros do Brasil inteiro. Isso me dá uma sedimentação que não troco por nenhum academicismo.
Uma vez, quando eu estava fazendo do rei Cláudio de "Hamlet", uma famosa crítica de teatro disse que eu não tinha "physique" de um rei. Perdi a compostura e fiz uma carta arrojada para ela. Disse que minha intenção não era fazer um rei dinamarquês. Imagina eu, de peruca loura!
Porque a discussão, para mim, não era o rei, mas o poder. Essa era a essência para fazer aquele personagem. Eu estava fazendo o Antonio Carlos Magalhães, o Sarney, o poder! Citei um exemplo radical para ela: "Se você exige comportamento de rei, não deve admitir que o Charles seja príncipe e futuro rei. Porque um cara que declarou publicamente que tinha prazer em cheirar o OB da amante...".
Isso não é o comportamento de rei, é o comportamento humano! Eu me pauto pela humanidade e pela possibilidade que o personagem tem de interagir com o mundo politicamente. Nunca iria fazer uma caricatura de um rei e trair toda a possibilidade de pensamento dentro desse personagem.

O que o filme sobre sua vida vai revelar de mais curioso?
Sei, não, um documentário sobre mim... Eu sou muito rasgado, e isso pode chocar. Tenho a premissa de viver, essa é a minha escola e, dentro dela, prevalecem muito mais erros do que  acertos. O acerto é uma comodidade. O que muda o homem é o erro, a observação e a superação desse erro.
O erro é a grande faculdade da minha vida. Errei pra cacete, continuo errando e não tenho nenhum pudor em me arrepender. O arrependimento é um ato de inteligência maior. Vivo errando e me arrependendo. É isso que o filme pode trazer.

Qual foi o erro mais grave que cometeu?
Porra, eles são tão grandes que é difícil... Te falei de um fundamental. Eu não sabia o que era machismo, estou acordando agora. Me proponho a falar coisas que são laboratoriais na minha vida e que emprego no trabalho. Às vezes, faço personagens completamente escrotos. E as pessoas julgam por essa escrotidão que é de personagem, mas é alimentada por mim. Erros com mulher foram vários. Acho que as mulheres deveriam, me matar.
Peço desculpas às mulheres. Ainda sou machista, mas estou tentando mudar. O mundo contribui, a gente pesca ou não. Não espero ser perdoado por ninguém, mas peço perdão. Sou minimamente inteligente para me arrepender.

Já sofreu ameaça de morte por causa dos posts políticos que compartilha nas redes?
Já. Uma vez, disseram que iam me matar e descobri que era um pastor de São Paulo. Também acontecem ameaças veladas para que eu não possa dizer que estou sendo ameaçado. Para mim, é impossível negar o que penso. Posto muito, é uma compulsão. E sempre falando porque sou analfabeto. Escrevo errado e, quando falo, boto a pontuação onde eu quero.
A pessoa que eu sou transmite para o ator essa possibilidade de que o ser humano é capaz de tudo. O mesmo pai que joga uma filha do oitavo andar é o que corre para pegar a criança que está caindo. Somos essa coisa dupla, abrangente, total.
Às vezes, sou agressivo, inconveniente e sou alertado disso. "Tonico, você falou uma coisa para aquela pessoa...". Mas é sem uma intenção maior, porque, quando tenho, eu falo também. Mas sou aberto.

Em 2015, imagens de um clipe de Marcelo Yuka em que você aparecia cheirando cocaína vazaram como se se fossem reais. Como ficou o caso, você processou?
Eu sei quem postou. Foi um grupo de Caxias ligado a uma igreja. Aquilo foi tirado de um set de filmagem e ainda inventaram que era eu com três atrizes da Globo. Era uma fantasia absurda! Tentei processar. Queria a reparação como não verdade e ganhar um real que fosse. Porque só o dinheiro modifica esses caras. Mas um advogado falou que não valia e pena, que pediriam desculpas e ficaria por isso mesmo.

Depois de mais de 50 anos de carreira, que personagem deseja fazer?
Todas as narrativas e personagens me interessam. Meu grande patrimônio é a minha quadrilha formada pelos meus personagens. Sou apenas o capo e eles me sustentam. Sou feliz por ter esses companheiros de qualquer origem, situação e caráter.
Adoro ter liberdade para trabalhar. Há diretores que não admitem outras ideias, mas eu só trabalho com troca de ideias. Não me chame se eu não puder opinar. Agora, estou mais esperto e não discuto, proponho. Às vezes, o cara diz: "Ah, mas a fala não é essa". Aí, eu falo do jeito que ele quer, mas a pontuação é minha, é pessoal, indivisível, é o meu caráter, a minha noção das coisas.

Com todos esses problemas de saúde, tem medo de morrer?
Não sei se tenho medo, porque é uma coisa inerente à vida. Sendo materialista, acho que é apenas uma transformação em pó. Tenho pesadelos com a morte, mas sempre estou brigando com ela, e quando acordo, tô dando soco para tudo quanto é lado. Às vezes, atinjo até a minha esposa, minha mulher, sei lá como fala agora...
O desconhecido sempre me atraiu. Mas tenho medo da morte dos próximos, das pessoas que habitam o meu coração. Quando eu morrer, não gostaria de ser enterrado nem cremado. Gostaria de de ser colocado numa praça bucólica de uma cidade do interior, completamente nu, para que os pássaros me comam e realizem o meu sonho maior, que é o de voar.

segunda-feira, 29 de março de 2021

5G, o edital no Brasil

Edital do leilão de 5G beneficia setores aliados a Bolsonaro
Contrapartidas de investimento favorecem militares, agricultores e até caminhoneiros, grupos próximos ao presidente


Julio Wiziack  FSP, 28/03/2021

O governo usou o edital do leilão do 5G para atender pleitos de setores que o apoiam e convenceu o Ministério das Comunicações a direcionar contrapartidas de investimentos para que os vencedores do certame atendam principalmente militares, agricultores e caminhoneiros.
Esse grupo contará com políticas públicas definidas para levar a internet em banda larga móvel ao campo, estradas e regiões inóspitas da Amazônia até 2028, começando a partir de julho do próximo ano.


De acordo com as regras do edital aprovadas pela Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) em fevereiro, esses investimentos serão abatidos dos preços das outorgas, que foram avaliadas pelos técnicos da agência em R$ 35 bilhões. Todas as contrapartidas giram em torno de R$ 32 bilhões.
Ou seja: a União receberá no leilão algo entre R$ 3 bilhões e R$ 3,5 bilhões pelas licenças. O restante deverá ser investido pelas teles nas diversas obrigações atreladas a cada faixa de frequência adquirida. Frequências são avenidas no ar por onde as teles fazem trafegar seus sinais. Fora dessas faixas ocorrem interferências.


No edital, serão vendidos os direitos de exploração de quatro faixas de frequências —700 MHz; 2,3 GHz; 3,5 GHz (específico para o 5G) e 26 GHz. Cada frequência foi dividida em diversos blocos. O leilão está marcado para ocorrer até julho deste ano.
Durante as discussões para o preparo do edital, diversos setores se articularam junto ao governo vislumbrando no certame uma forma de obter vantagens.
Os caminhoneiros, que ameaçam com paralisações sempre quando dispara o preço do combustível, contaram com a ajuda do ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, para conseguir, em uma primeira etapa, a cobertura de mais de 21 mil quilômetros de rodovias federais (BRs 163; 364; BR-242; BR-135; BR-101 e BR-116).


Para os caminhoneiros, essa cobertura entra no pacote que o ministro Tarcísio prepara para melhorar as condições dos motoristas de carga e, assim, diminuir as chances de futuras paralisações. É uma medida que vai garantir ainda a segurança das cargas por permitir monitoramento remoto ao longo de todo o trajeto da rodovia. Hoje, somente alguns trechos estão cobertos por antenas de celular.
No entanto, essa cobertura não será feita com a tecnologia 5G. As operadoras poderão usar qualquer tipo de frequência e terão de escolher os trechos das estradas assim que arrematar cada lote do leilão.
Até 2028, quando o 5G estiver totalmente implantado no país, o governo quer que mais de 48 mil quilômetros de estradas estejam cobertos. Além das estradas, as teles serão obrigadas a conectar todas as cidades com tecnologia 4G e construir redes de transporte (cabos que ligam todas as cidades entre si) com fibra óptica ao longo desse período.


Outra diretriz definida pelo Ministério das Comunicações foi a permissão para que pequenos provedores possam atuar no 5G. Hoje eles já respondem por mais de 40% dos acessos de internet em banda larga no país atendendo, primordialmente, pequenos municípios onde as operadoras tradicionais não chegam ou oferecem pacotes mais caros para compensar seus custos.


Em audiência pública realizada na Câmara dos Deputados há cerca de dez dias, a Frente Parlamentar da Agricultura e a CNA (Confederação Nacional da Agricultura) se mostraram atendidas pelo edital que permitirá aos grandes proprietários agrícolas contratarem essas empresas para construírem projetos de conectividade no campo.
Isso será possível porque o leilão reservou frequências para operadoras regionais de pequeno porte que ainda poderão contar com fundos setoriais para tomar dinheiro emprestado no mercado e, assim, financiar esses projetos no campo.


Esse pleito foi defendido pela ministra da Agricultura, Tereza Cristina, que atuou junto ao Ministério das Comunicações para que a agricultura tivesse ao menos “algum G” [referência a qualquer das tecnologias de conexão móvel -- 2G, 3G, 4G e, agora, 5G).
Para ela, a conectividade no campo é uma forma de estimular a mecanização e soluções de plantio e colheita que permitirão o aumento da produtividade.
De acordo com levantamento apresentado pela CNA na Câmara, dentre os dez maiores municípios produtores somente três têm mais de 50% de cobertura de internet —Nova Mutum e Sapezal (MT) e Maracaju (MS).


A ala militar do governo também atuou para conseguir melhorar a rede de fibra óptica na região amazônica, forma de aprimorar as comunicações das Forças Armadas. Inicialmente, o Exército e o Ministério da Defesa conseguiram interligar os municípios de Manaus e Tefé com 900 km de cabos de fibra óptica depositado no leito do rio Amazonas. Sem recursos, agora conseguiram que o programa fosse incluído como contrapartida do 5G. Ao todo, será aplicado R$ 1 bilhão na construção dessa rede que conectará 59 municípios da região amazônica.


Outro pleito da ala militar do Palácio do Planalto foi a construção de uma rede privativa para a administração pública federal. Esta foi a saída vislumbrada pelo ministro das Comunicações, Fábio Faria (PSD-RN), para evitar que o presidente Jair Bolsonaro impedisse a chinesa Huawei de fornecer equipamentos de rede 5G para as operadoras.
Bolsonaro pretendia boicotar a gigante chinesa das telecomunicações porque se aliou estrategicamente ao ex-presidente dos EUA Donald Trump, que travou com a China uma disputa geopolítica. A Huawei foi um dos alvos escolhidos.


O interesse dos militares em terem uma rede só para o governo, sem a presença dos equipamentos da fabricante chinesa, ainda encontra resistência das operadoras que não veem como explicar o financiamento de uma rede que será operada por uma concorrente -- a Telebras, estatal que abriga militares e que opera um satélite com grande capacidade para conexões de internet em todo o território nacional.


O atendimento de serviços telefônicos e de internet ao governo hoje é feito pelas próprias operadoras, mas deverá passar para a Telebras caso não haja uma mudança em um decreto que regula essa prestação de serviço. Por meio de sua assessoria, o Ministério disse que editou uma portaria em janeiro deste ano para “orientar e estabelecer critérios” na definição de compromissos de abrangência do edital 5G pela Anatel. De acordo com o ministério, a cobertura de rodovias é apenas um detalhe em um plano maior de levar conexão 4G a todos os municípios, além de infraestrutura de fibras ópticas.
As rodovias foram consideradas prioritárias porque figuram entre as principais vias do país e possuem cerca de 7 mil km de trechos sem cobertura localizados, majoritariamente, nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Além disso, 61% das estradas do país não têm qualquer tipo de cobertura.


Sobre o Programa Amazônia Integrada e Sustentável (Pais), o ministério informa que foi a saída encontrada diante das dificuldades para a conexão do Norte devido às condições climáticas e geográficas da região. Neste caso, foi preciso “incentivos específicos governamentais”. Ao todo, serão 7 infovias lançadas no leito do rio Amazonas e seus afluentes totalizando 10 mil quilômetros de cabos.
Para o ministério, a criação de uma rede privativa para o governo federal não somente reflete a preocupação do governo na área de segurança e defesa cibernética como garante privilégios que as redes comerciais não permitem porque são obrigadas a garantir a isonomia no tráfego, principalmente de dados.


O LOBBY DE CADA UM
O que cada setor ganhou com o 5G


Militares
A construção de uma rede privativa parra o governo federal a um custo de, ao menos, R$ 1 bilhão. Essa rede não terá equipamentos da chinesa Huawei e poderá discriminar o tráfego de dados. Também conseguiram recursos para conectar a região Norte e, assim, melhorar a comunicação das Forças Armadas na região


Agricultores
Operadoras regionais de pequeno porte poderão tomar empréstimos com garantias de um fundo público para construir redes que atendam os grandes produtores na busca de conexão de máquinas e equipamentos, forma de melhorar a produtividade no campo


Caminhoneiros

A categoria conseguiu assegurar a cobertura de mais de 48 mil km de rodovias, começando pelas seis principais BRs (163, 364, 242, 135, 101 e 116)

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Rede de transporte: São os cabos (fibras ópticas) de alta capacidade de tráfego de dados que acompanham o trajeto das estradas sob o solo, em geral, até chegarem a uma central na sede de cada município. Essas redes são interligadas entre si, permitindo que, a partir de um local, a operadora possa ter acesso à funcionalidade de toda sua rede em território nacional


Central: É um prédio protegido que abriga todos os equipamentos mais sensíveis de conexão no município. Cidades muito grandes costumam ter mais de uma central. É o chamado núcleo da rede. Ali ficam computadores, comutadores, roteadores e demais equipamentos que fazem as conexões.


Estação: Prédios menores ligados às centrais por fibras ópticas que ficam espalhados pelos bairros de determinado município. Essa estrutura (dotada de equipamentos similares aos da central mas de menor porte) se conecta às antenas de celular, uma estrutura conhecida no setor como rede de acesso ou periferia


Antena: No topo de cada antena, as operadoras instalam os equipamentos que recebem e emitem os sinais de telefonia de todas as tecnologias (2G, 3G e 4G)


Usuários: Sempre que se desloca pela cidade com seu aparelho, o cliente vai sendo transferido de uma antena para outra. A troca de sinal entre seu aparelho e a antena não pode cair durante a transição
 

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Qual o desafio com o 5G?
Nos locais onde hoje as teles prestam o serviço com uma antena, elas terão de instalar outras nove. Isso somente para cumprir as exigências da tecnologia, que promete velocidades até cem vezes maior com tempo de resposta de menos de um segundo entre o celular e a antena mais próxima
 

Essa transição será tranquila, com ocorreu com as tecnologias passadas?
Depende. O alinhamento estratégico de Jair Bolsonaro com o presidente dos EUA, Donald Trump, ameaça a atuação da chinesa Huawei, cujos equipamentos integram praticamente 60% das redes das operadoras brasileiras
 

O que ocorre se o Brasil banir a Huawei?
Segundo o presidente da fabricante, seus equipamentos de 2G, 3G e 4G não conversam com os de 5G de outros concorrentes. Ou seja: as teles teriam de trocar todos os equipamentos dessas tecnologias, tanto nas centrais quanto nas antenas, e substituí-los pelo de outros fabricantes antes de inaugurar sua rede 5G
 

Mas isso traz custos para o consumidor?
Sim. As teles teriam de, não só adquirir as frequências de 5G em um leilão, como gastar na compra de equipamentos para toda a sua rede. Seria como jogar todo o investimento que elas já fizeram no lixo. Estima-se que essa troca levaria entre três e quatro anos até que o último município fosse atingido
 

Esse gasto foi incluído no preço do leilão?
Não. O leilão é para as frequências, avenidas no ar por onde as operadoras fazem trafegar seus dados. Por isso, espera-se que um banimento da Huawei acarrete aumento do preço do 5G para o consumidor
 

Não há como fazer com que esses equipamentos conversem entre si?
Sim, mas os fabricantes aguardam as definições de padrões internacionais de interoperabilidade, algo que ainda deve demorar um ano para ser definido, depois da realização do leilão no Brasil previsto para o segundo bimestre de 2021
 

Fonte: empresas, Anatel, Ministério das Comunicações


quarta-feira, 24 de março de 2021

Gerda Taro

 La fotógrafa bajo el pseudónimo de Robert Capa, Spotfem, 05/03/2021


Gerda Taro (Stuttgart, Alemania, 1910) fue una brillante fotógrafa, especializada en conflictos bélicos, cuyas inolvidables fotografías de la guerra civil española han pasado a la historia del fotoperiodismo por derecho propio. Esta joven intrépida y libre, que rompió todos los roles reservados para las mujeres de su época, es considerada la primera mujer corresponsal gráfica de guerra y la primera que, tristemente, perdió la vida ejerciendo su profesión.  Sin embargo, su nombre y su figura fueron olvidados por la historia durante más de 60 años y su trabajo atribuido a su pareja, el húngaro Endre Friedmann. ¿El motivo? Ambos trabajaron bajo el famosísimo pseudónimo Robert Capa, hoy considerado el mejor fotógrafo de guerra del S.XX.  

El uso de este pseudónimo impedía identificar al autor de cada fotografía, sin embargo, a día de hoy, gracias a los datos biográficos, se ha podido recuperar parte de la obra de esta pionera del fotoperiodismo. Por otra parte, Gerda Taro era mucho más que una profesional de talento. Su adelantada visión estratégica y comercial fue decisiva en su carrera y la de su compañero: fue la creadora del mito de la fotografía Robert Capa, una marca tras la que trabajaban ambos, un equipo creativo y comercial que alcanzó un éxito sin precedentes en todo el mundo y cambió la historia de la fotografía.
 

A pesar de todo, si buscamos en internet “Robert Capa”, le  encontraremos a él, Endre Friedmann, y no a ella. Gerda Taro no fue la única que trabajó como fotoperiodista bajo un nombre masculino en aquella época, ya que daba mayor facilidad a la hora de hacerse un hueco en la profesión. En este artículo, cuando citemos a Robert Capa, nos referiremos a la pareja de fotoperiodistas,  y para hacerlo individualmente, los llamaremos por sus nombres. Bienvenidos a la apasionante vida de Gerda Taro, 26 años llenos de talento, audacia, viajes, aventuras, amor y, sobre todo, de un legado en fotografías que sirven para documentar el sufrimiento de una guerra, sus batallas, sus rostros y su dolor.

Gerda Taro es considerada la primera mujer corresponsal gráfica de guerra y la primera que,  tristemente, perdió la vida ejerciendo su profesión

                   Gerda, una mujer hecha a sí misma, audaz, apasionada y comprometida. Fuente: IG @avenidagarcialorca

Su nombre original era Gerta Pohorylle (aunque se lo cambió más adelante a Gerda Taro, más fácil de pronunciar y con una sonoridad similar a la del nombre de la estrella Greta Garbo) y había nacido en Stuttgart en el seno de una familia burguesa judía. Desde muy joven sintió simpatía por las ideas socialistas y por la lucha obrera. En 1929, su familia se traslada a la ciudad de Leipzig, unos años antes de que el partido nazi consiguiera el poder de forma democrática. La joven Gerda fue detenida por difundir propaganda contra el gobierno nazi, por lo que la familia tuvo que huir y se dispersó por varios países. Así llegó a París, acompañada de su amiga Ruth, allí trabajó de niñera, camarera y de mecanógrafa de un psicoanalista. Un día, su amiga le dijo que iba a hacer de modelo para un joven fotógrafo llamado Endre Friedmann, un joven húngaro de familia acomodada. Este había vivido un proceso muy parecido al de Gerda: tuvo dificultades en su país por su lucha antifascista, por lo que se vio obligado a abandonarlo y terminó instalándose en París. Empezaba a hacer sus primeros trabajos como fotógrafo y, en 1932, trabajando para la revista Regards, fue el único que pudo fotografiar a León Trotsky durante un discurso en Copenhague. El destino quiso que se encontraran en aquella sesión fotográfica a la que acudió Gerda para acompañar a su amiga. Se enamoraron casi de inmediato. Tenían muchas cosas en común y, aunque en ese momento no lo sabían, estaban predestinados a hacer grandes cosas juntos.
 

En aquellos años, la situación económica era inestable, el crack del 29 era reciente y se respiraba el clima convulso de entreguerras. El odio hacia los judíos prendía como una mecha imparable. No eran tiempos fáciles para sobrevivir, por lo que Gerda y Endre necesitaban un plan para salir adelante. Gerda tenía un gran instinto comercial para lo que hoy en día llamamos la “marca personal” y él sabía mucho de fotografía. Así, Gerda ideó una estrategia para poder ganar dinero y, al mismo tiempo, Endre le enseñó todo sobre las herramientas fotográficas. Eran un equipo infalible, se complementaban, eran inteligentes, valientes y luchadores. Gerda inventó un fotógrafo ficticio, Robert Capa, americano y rico, al que no se podía acceder sino a través de sus representantes, que eran ellos mismos. Un plan perfecto: crear una figura cuyo propio misterio generase interés. A través de su trabajo en la agencia de fotografía Alliance Photo, Gerda consiguió los contactos suficientes para empezar a vender las fotografías del falso fotógrafo. Como mujer tratando de acceder a un sector profesional dominado por hombres, sabía que su trabajo debía ser brillante: “Me esfuerzo por ser perfecta para sentirme invulnerable”, decía.
 

En muy poco tiempo, recibieron muchos encargos por los que cobraban un precio muy superior al que se pagaba habitualmente en París por fotografías de ese tipo.  La primera exposición fue en 1936: había nacido el mito de Robert Capa. La propia Gerda empezó a apasionarse por la fotografía y empezó a hacer instantáneas. Es en este momento cuando se empieza a difuminar la línea que separa el trabajo de los dos, lo que será una constante en su trayectoria en común.
 

Para vender fotografías, Gerda inventó un fotógrafo ficticio, americano y rico, Robert Capa, al que no se podía acceder sino a través de sus representantes, que eran ellos mismos

          París, 1935. Gerda y Endre, dos fotorreporteros de guerra que hicieron historia. Fuente: IG @fabiana_maiorano

Con el estallido de la guerra civil española, decidieron acudir sin pensárselo demasiado, quizá movidos por su vocación, pero también por factores artísticos y políticos. La etapa más intensa de Robert Capa estaba a punto de comenzar. Los jóvenes sintieron la necesidad de llevar sus cámaras a España y contar lo que estaba ocurriendo. «Tengo la necesidad de contar la historia de las miserias anónimas», explicaría Gerda más tarde. Llegaron a España en julio de 1936 para retratar el horror que se estaba desencadenando en el país. Estuvieron en diversas contiendas, obteniendo instantáneas de momentos claves de la guerra: la defensa de Madrid, la Batalla del Ebro, la Batalla de Brunete o la despedida de las Brigadas Internacionales. Pero no solo retrataron la primera línea de batalla, sino que quisieron mirar a las zonas de la retaguardia, donde se encontraba la población civil. Y así encontraron los rostros de la pobreza, el hambre, la desesperación, el dolor.
 

Hay una fotografía muy famosa que seguramente todo el mundo recuerda. Su nombre es Muerte de un miliciano y fue tomada el 5 de septiembre de 1936. En ella podemos ver a un miliciano en el preciso instante en que es abatido por una bala. Esta instantánea dio la vuelta al mundo porque lograba retratar descarnadamente y a tiempo real el horror de una guerra.  A pesar de que la veracidad de esta fotografía ha sido cuestionada desde diferentes ámbitos, mucha gente sabe que su autor es Robert Capa, es decir, Taro y Friedmann. A día de hoy es difícil precisar quién de los dos pudo realizar esa fotografía que se convirtió en todo un icono del S.XX, pero sí sabemos a ciencia cierta que es fruto de una colaboración profesional ejemplar.
 

"Tengo la necesidad de contar la historia de las miserias anónimas», decía Gerda. Su colaboración profesional con Friedmann fue ejemplar y lograron imágenes tan trascendentes como Muerte de un miliciano, icono del S.XX"
 

                                                              Milicianas en el frente. Fuente: IG @namakbul

                         Muerte de un miliciano, portada de La muerte en marcha. Fuente: IG @stephaneboudonvanhille
 
 

Contra todo pronóstico, en 1937 sus caminos empezaron a separarse. Gerda creó su propia marca en solitario, Photo Taro, se instaló sola en Madrid y fue contratada como corresponsal gráfica de guerra por el diario Ce Soir. Su primer reportaje importante en solitario fue publicado en abril de 1937 en la revista Regards, en la que mostraba a una población civil masacrada por la guerra. La motivación de la fotoperiodista era denunciar con sus fotografías las terribles realidades que la rodeaban para ayudar a cambiarlas. Era una persona fuerte y valiente, con una gran sensibilidad que también le pasaba factura: “Cuando piensas en todas las personas magníficas que hemos conocido y que han muerto… Tienes la absurda sensación de que, de algún modo, no es justo seguir vivo”, decía.  Con la única compañía de su cámara Leica, Gerda se ponía en situaciones peligrosas para retratar el horror de las trincheras desde el interior, con el afán de obtener la fotografía más auténtica, más elocuente, más impactante. En las crónicas de la época la apodaban «la pequeña rubia» o “el pequeño zorro rojo”, por su reducida estatura, su carácter intrépido y por el color de su pelo, rubio rojizo.
 

Por desgracia, una de aquellas jornadas entre trincheras iba a ser fatídica para ella. Era el verano de 1937, en la batalla de Brunete. La fotógrafa se dirigía a un pueblo cercano a buscar carrete para su cámara cuando comenzó un ataque aéreo del bando nacional. La joven cayó a la carretera y, por accidente, fue atropellada por un tanque republicano perteneciente a su convoy. La trasladaron de inmediato a un hospital de campaña en El Escorial, pero no pudo hacerse nada por salvar su vida. Nunca pudieron encontrarse las fotografías que hizo ese día con su Leica, quizás atropellada también por aquel tanque. El partido comunista francés organizó un acto conmemorativo por su muerte como una heroína republicana y fue enterrada en el famoso cementerio de Père-Lachaise en París. Desde ese momento fue considerada la primera fotoperiodista de la historia y la primera que murió ejerciendo su profesión en el frente aunque, tras tantos honores, iría cayendo paulatinamente en el olvido.
 

“Cuando piensas en todas las personas magníficas que hemos conocido y que han muerto… Tienes la absurda sensación de que, de algún modo, no es justo seguir vivo”

 
 Gerda asumía el riesgo que su trabajo suponía para su propia vida, como todos los fotoperiodistas de guerra. Fuente: IG @dallaluceallavoce

«Ahora que Gerda ha muerto, todo se ha acabado para mí», dijo Friedmann al enterarse de su muerte.  Descubrió la noticia en un periódico, en la consulta de su dentista. La mujer de su vida había fallecido. Parece ser que nunca se repuso de su pérdida. Pasó semanas bebiendo, sin querer continuar su trabajo, sin ver a nadie. Sin embargo, poco a poco volvió a resurgir y siguió trabajando con el nombre de Robert Capa. Sus trabajos en los distintos conflictos bélicos de los que fue testigo fueron realmente brillantes y alimentaron su fama. Tal vez por eso, todo el mundo tendió a pensar que todas las imágenes firmadas con su nombre le pertenecían. Endre nunca más volvió a nombrarla, quizá por el extremo dolor que sintió al perderla.
 

El fotógrafo también murió 17 años después, al igual que ella, en un accidente mientras cubría un conflicto bélico. Tenía 40 años. Había fallecido el gran Robert Capa y ya solo existía el recuerdo de Endre Friedmann, de Gerda Taro no quedó ni rastro durante varias décadas. Por suerte, a finales de los ochenta comenzó a recuperarse su figura gracias a la obra de biógrafos como Richard Whelan e Irme Schaber y al trabajo del Centro Internacional de Fotografía, fundado por el propio hermano de Endre.
 

¿Cómo pudieron, entonces,  recuperarse las fotografías de los años en los que Gerda y Endre fueron Robert Capa? Fue posible gracias a la «maleta mexicana». Esta aventura empezó cuando Endre, en 1939, trató de sacar de Francia los negativos de las fotografías realizadas en el frente español. Estos terminaron en manos del embajador de México, que las olvidó completamente durante años, sin saber el tesoro que poseía. Las imágenes pasaron a un familiar que era cineasta, Benjamin Tarver, que, cuando fue consciente de la relevancia del material, se puso en contacto con el Centro Internacional de Fotografía, en 1995. Sin embargo, las conversaciones se detuvieron y no fue hasta 2007 que Tarver decidió donar las fotografías a esta misma institución. A pesar de que Endre nunca quiso llevarse todo el mérito, es difícil saber qué fotos hizo cada uno en el tiempo en el que operaron bajo la marca Robert Capa. En Death in the making, el primer libro que el fotógrafo publica sobre la Guerra Civil en 1938, incluye varias instantáneas tomadas por ella. En la dedicatoria puede leerse:  «A Gerda, que pasó un año en el frente español, y allí quedó».


En 2007 se recuperaron los negativos del trabajo de Gerda y Endre como Robert Capa en el frente español, pero es difícil identificar al autor de cada una
 

                                                      Un padre sostiene a su hijo herido. Fuente: IG @2dueridghe

                                             Civiles huyendo con lo que pueden cargar. Fuente: IG @avenidagarcialorca

No es la primera vez en la historia del arte que ocurre esto, pero en este caso ha sido posible recuperar la verdad y Gerda ya ocupa el lugar que merece en la historia de la fotografía, sobre todo en la fotografía de guerra.  Recientemente, se ha publicado La chica de la Leica, un texto en el que la autora Helena Janeczeck novela la vida de Taro dando una mayor visibilidad a su trabajo y su memoria.  En marzo de 2020, el Museo Reina Sofía de Madrid inauguró una exposición llamada Frente y retaguardia: Mujeres en la Guerra Civil y, por vez primera, tres fotografías atribuidas a Endre Friedmann como Robert Capa fueron definitivamente expuestas bajo la autoría de Gerda Taro, tras una ardua investigación que determinó ese veredicto. La exposición trató de hacer justicia y mostrar el papel invisibilizado de la mujer en los contextos de guerra, por ejemplo, el de las fotorreporteras.
Hace tan solo un par de años, una última aventura digital puso el epílogo a la historia de Gerda. Fue a raíz de una fotografía que John Kiszely publicó en su Twitter, en la que veíamos a un joven doctor, su padre, atendiendo a una mujer ensangrentada en el frente español, concretamente durante la batalla de Brunete. En el dorso de la foto estaba escrito: «Mrs Frank Capa, Brunete». Así, tras algunas comprobaciones, pudo saberse que esa mujer era Gerda Taro en su lecho de muerte. Y ese fue el cierre fotográfico de su vida, la última foto, paradójicamente, la que ella no pudo hacer y la que permaneció oculta durante muchos años.


 En la exposición Frente y retaguardia: Mujeres en la Guerra Civil del Museo Reina Sofía de Madrid (2020) se incluyeron, por primera vez, tres fotografías atribuidas a Endre Friedmann como Robert Capa, bajo la autoría de Gerda Taro

 
El Dr. Kiszely, voluntario en las brigadas internacionales, atendió a Gerda en su lecho de muerte. Fuente: TW @johnkiszely

Robert Capa, como equipo creativo, funcionó a la perfección y dio como resultado instantáneas que perdurarán para siempre en nuestras retinas, por eso es justo recordar el lugar de Gerda Taro en la consecución de esa memoria histórica en imágenes. Fue una gran mujer que ejerció el fotoperiodismo con profundidad, pasión, honestidad y calidad humana, una profesional comprometida que vivió y murió por sus fotografías. Prueba de ello es la anécdota que contaron los que estuvieron junto a su cama en aquel hospital de campaña. Aseguran que sus últimas palabras antes de morir fueron: «¿Alguien recogió mi cámara?»


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Gerta Pohorylle conhecida profissionalmente como Gerda Taro (Estugarda, 1 de agosto de 1910 – Brunete, 26 de julho de 1937) foi fotógrafa, jornalista e anarquista alemã de origem judaica. É lembrada como sendo a primeira mulher fotojornalista a morrer enquanto fazia cobertura de guerra.
Esposa do fotógrafo húngaro Robert Capa, ficou conhecida principalmente por seu registro da Guerra Civil Espanhola em fotos que hoje marcam a memória daqueles eventos. Gerda documentou o cotidiano e as batalhas do fronte em vários momentos perigosos da guerra e ao ficar sem filme para sua câmera, arrumava carona no carro de um general que estava sendo usado para transportar os feridos. Quando foram atingidos por aviões alemães que apoiavam as tropas de Franco perto de Villanueva de la Cañada, um tanque desgovernado do exército republicano colidiu com eles e Gerda foi mortalmente ferida no estômago.
Capa e Taro foram nomes inventados pelo casal para tentar atenuar a intolerância vigente na Europa na época e para terem nomes mais atraentes para o mercado norte-americano. Uma grande parte da produção, originalmente, atribuída a Capa era da autoria de Gerda Taro.



Saviani e as ideias pedagógicas no Brasil (1)

Havia educação, mas não havia pedagogia

O exemplo dos Tupinambás ilustra o entendimento de que numa sociedade sem classes, como era o caso das comunidades primitivas, os fins da educação coincidem "com os interesses comuns do grupo e se realizam igualitariamente em todos os seus membros, de modo espontâneo e integral" (Ponce, p. 21). Ou seja: não havia instituições específicas organizadas tendo em vista os fins da educação. Por isso a educação era espontânea. E cada integrante da tribo assimilava tudo o que era possível assimilar, o que configurava uma educação integral. Podemos dizer que nesse contexto não se punha, ainda, a questão das ideias pedagógicas e da pedagogia. Com efeito havia aí uma educação em ato, que se apoiava sobre três elementos básicos: a força da tradição, constituída como um saber puro orientador das ações e decisões dos homens; a força da ação, que configurava a educação como um verdadeiro aprender fazendo; e a força do exemplo, pelo qual cada indivíduo adulto e, particularmente, os velhos ficavam imbuídos da necessidade de considerar suas ações como modelares, expressando em seus comportamentos e palavras o conteúdo da tradição tribal. As ideias educacionais coincidiam, portanto, com a própria prática educativa, não havendo lugar para a mediação das ideias pedagógicas que supõem a necessidade de elaborar em pensamento as formas de intervenção na prática educativa. Nessas condições havia, pois, educação, mas não havia pedagogia, ao menos no sentido em que tal expressão está sendo utilizada no presente trabalho. É com essa forma de sociedade e esse tipo de educação que vieram a se chocar os conquistadores europeus. (Saviani, pp. 38-39)

O livro de Dermeval Saviani, citado acima, é uma obra seminal para entendermos a história da educação brasileira. Todo mundo deveria ler este livro, em especial docentes. Trata da análise das ideias pedagógicas no período de 1549 a 2001. 

Um resumo do seu conteúdo:

Primeiro período: as ideias pedagógicas no Brasil entre 1549 e 1759, o monopólio da vertente religiosa da pedagogia tradicional

Segundo período: as ideias pedagógicas no Brasil entre 1759 e 1932, coexistência entre as vertentes religiosa e leiga da pedagogia tradicional

Terceiro período: as ideias pedagógicas no Brasil entre 1932 e 1969, predomínio da pedagogia nova

Quarto período: as ideias pedagógicas no Brasil entre 1969 e 2001, configuração da concepção pedagógica produtivista

Na introdução Saviani (p. 9) explica as questões teóricas relativas ao conceito das ideias pedagógica e à perspectiva de análise:

A questão em pauta foi enfrentada procurando-se articular no tempo longo os tempos curtos e médio, para usar a linguagem de Braudel, ou os movimentos orgânicos e conjunturais, na linguagem de Gramsci. Tal perspectiva permitiu estabelecer uma periodização preliminar utilizando eventos (o tempo curto dos acontecimentos) de caráter educacional como marcos de períodos (o tempo médio das conjunturas) enquanto mediação para entendermos o processo global (o tempo longo das estruturas). A terminologia entre parêntesis, retirada de Braudel, apesar de sua fecundidade, revela-se ainda presa aos limites formalistas próprios de uma lógica um tanto determinista que caracteriza o estruturalismo. Nesse sentido parece mais feliz a abordagem de Gramsci, que expressa, já na terminologia (movimentos orgânicos e conjunturais), o empenho em captar o processo em sua unidade dinâmica e contraditória.

No embate entre Braudel e Gramsci, Saviani faz a opção pelo último já que ele sugere a abordagem metodológica que permite dar conta mais satisfatoriamente da história como um processo cujo movimento necessita ser reconstruído pelo historiador. 

E o livro vai nessa onda. Tem hora que é o Dermeval historiador e tem hora que é o Saviani educador. Mas na verdade é o Dermeval Saviani misturando educação com a realidade dialética de um Brasil com classes, com uma igreja influente na educação e com uma classe dominante, que até hoje, não aceita a universalização da educação pública e gratuita em todos os níveis. 

A periodização das ideias pedagógicas

1º Período (1549 – 1759) - monopólio da vertente religiosa da pedagogia tradicional: uma pedagogia brasílica ou período heroico (1549 – 1599) e a institucionalização da pedagogia jesuítica ou Ratio Studiorum (1599 – 1759)

2º Período (1759 -1932) - coexistência entre as vertentes religiosas e leiga da pedagogia tradicional: a pedagogia pombalina ou as ideias do despotismo esclarecido (1759 – 1827) e desenvolvimento da pedagogia leiga (ecletismo, liberalismo e positivismo) (1827 – 1932)

3º Período (1932 – 1969) - predominância da pedagogia nova: equilíbrio entre a pedagogia tradicional e a pedagogia nova (1932 – 1947); predomínio da influência da pedagogia nova (1947 – 1961) e a crise da pedagogia nova e articulação da pedagogia tecnicista (1961 – 1969)

4º Período (1969 – 2001) – configuração da concepção pedagógica produtivista: predomínio da pedagogia tecnicista, manifestação da concepção analítica de filosofia da educação e concomitante de uma visão crítico – produtivista (1969 – 1980); ensaios contra – hegemônicos (pedagogias da “educação popular”), pedagogias da prática, pedagogia crítico – social dos conteúdos e pedagogia histórico – crítica (1980 – 1991) e o neoprodutivismo e suas variantes (neoescolanovismo, neoconstrutivismo e neotecnicismo) (1991 – 2001)

Tempos pombalinos

Marques de Pombal ou Sebastião José de Carvalho e Melo (1699 – 1782) viveu numa época marcada pelo iluminismo que conversava quase nada com a igreja católica. O Iluminismo fez duras críticas ao absolutismo e à igreja. E Pombal, no poder, foi responsável pela expulsão dos jesuítas de Portugal. Não ao absolutismo, mas ele foi um representante do despotismo esclarecido. Como ocorreu com Catarina II (1729 – 1796), imperatriz da Rússia. 

Por isso, no Brasil, há a transição da pedagogia jesuítica (1599 – 1759) para a pedagogia pombalina (1759 – 1827). Saviani (p. 101) cita um dos influenciadores na elaboração das reformas pombalinas, Antônio Nunes Ribeiro Sanches:

Mas a concepção iluminista e burguesa de Antonio Nunes Ribeiro Sanches reveste-se de uma particularidade que precisa ser evidenciada: ela ancora-se não apenas na teoria política, mas busca fundamentação na economia política. As ideias de Ribeiro Sanches (1699 – 1783) aproximam-se daquelas esposadas por Bernard Mandeville. Afirmações como o saber ler, escrever e contar consistem em “artes muito nocivas para o pobre obrigado a ganhar o pão de cada dia mediante sua faina diária”, o que significa que “cada hora que esses infelizes dedicam aos livros é outro tanto de tempo perdido para a sociedade (Mandeville, 1982, p. 191); e nenhum reino necessita de maior rigor na supressão total do ensino de ler e escrever” (Sanches, 1922, p. 112) mostram a crueza das posições defendidas sem rebuços por esses dois pensadores, contrastando vivamente com as proclamações de que “todos por igual, pobres e plebeus, ricos e nobres e não apenas os filhos dos ricos ou cidadãos principais” devem ter acesso à escola (Comênio, 1966, p. 139) que estamos acostumados a ler nos compêndios pedagógicos. Provavelmente nenhum outro terá formulado com maior clareza, sinceridade e fidelidade a visão burguesa da educação popular do que Mandeville quando afirmou que, “em uma nação livre na qual não se permite a escravidão, a riqueza mais segura consiste numa multidão de pobres laboriosos. Assim, “para fazer feliz a sociedade e manter contentes as pessoas, ainda que nas circunstâncias mais humildes, é indispensável que o maior número delas seja pobre e, ao mesmo tempo, totalmente ignorante” (Mandeville, 1982, p. 190).

Educação e instrução

No tópico “desenvolvimento da pedagogia leiga (ecletismo, liberalismo e positivismo) (1827 – 1932)” destaco a discussão das ideias pedagógicas durante os debates na Assembleia Constituinte de 1823. Lá a questão sobre educação e instrução. Novamente o corte de classes sociais, não com a crueza e crueldade explícita de Mandeville, mas com viés intelectual de Nicolas de Condorcet (1743 – 1794). Condorcet participou da Revolução Francesa e como bom iluminista acreditava na inevitabilidade do progresso e do racionalismo. E como um bom burgues tinha uma posição sobre a educação diferente da de Comênio. Nas discussões durante a Assembleia Constituinte de 1823 prospera a nascimento do ensino privado e confessional no Brasil.

Sobre educação e instrução Saviani (p. 122) cita Condorcet:

Argumenta (Condorcet), então, que, embora sendo todos os homens livres e possuindo os mesmos direitos, uma grande parte dos filhos dos cidadãos é destinada a ocupações duras que tomarão todo o seu tempo; uma outra parte, cujos recursos dos pais permitem destinar mais tempo a uma educação mais extensa, tem acesso a profissões mais lucrativas; por fim os que, nascidos com uma fortuna independente, podem dedicar-se inteiramente a uma educação que lhe assegure os meios de uma vida feliz (Condorcet,1989, pp. 57-58). Conclui, assim, que é “impossível submeter a uma educação rigorosamente idêntica homens cuja destinação é tão diferente” (idem, p. 58). Portanto, a educação pública deve limitar-se à instrução, já que esta é passível de ser graduada, escalonada, ao passo que uma educação comum tem que ser completa; caso contrário, ela será nula e até mesmo prejudicial (idem, pp. 57-72).

As ideias de Condorcet foram introduzidas, na Assembleia Constituinte de 1823, através de Martim Francisco Ribeiro d’Andrada Machado, irmão de José Bonifácio de Andrada e Silva.

A universalização da educação e a educação como direito (e não como mercadoria) é uma luta histórica no Brasil, ainda não vencida. Foi derrotada nas Assembleias Constituintes de 1823 e 1988. 

Mas a peleja continuou no século XX. 

Sistema educacional, a questão em debate

Na primeira metade do século XX o debate sobre o sistema educacional brasileiro esteve em disputa. De um lado as propostas de ensino tradicional vindas desde a época jesuítica e de outro as ideias da pedagogia leiga (ecletismo, liberalismo e positivismo). Com o início da república surgiram as exigências produtivas. Na última década do século XIX desembarcaram no Brasil 803 mil imigrantes, dos quais 577 da Itália (Furtado, 1982, p. 128). Na substituição do trabalho escravo pelo trabalho assalariado, a educação foi chamada a participar. Sobre as dificuldades de um consenso sobre a ideia de um sistema educacional no Brasil Saviani (p. 167) argumenta:

E Rui Barbosa constatava em 1882: “O Estado, no Brasil consagra a esse serviço (educação) apenas 1,99% do orçamento geral, enquanto as despesas militares devoram 20,86% “(Chaia, 1965, pp. 82-87). Dessa forma, o sistema educacional de ensino não se implantou e o país foi acumulando um grande déficit histórico em matéria de educação. Além das limitações materiais, cumpre considerar, também, o problema relativo à mentalidade pedagógica. Entendida como a unidade entre a forma e o conteúdo das ideias educacionais, a mentalidade pedagógica articula a concepção geral do homem, do mundo, da vida e da sociedade com a questão educacional. Assim, numa sociedade determinada, dependendo das posições ocupadas pelas diferentes forças sociais, estruturam-se diferentes concepções filosófico-educativas às quais correspondem específicas mentalidades pedagógicas.

Com a proclamação de República em 1989 e o regime federativo, a instrução popular teve sua primeira regulamentação. Sob  batuta de Benjamin Constant, em 1890, o Decreto 981, de 8 de novembro, propunha uma reforma dos ensinos primário e secundário. Mas já levou um contra da corrente positivista da qual Benjamin Constant fazia parte. E qual a divergência? A reforma pretendia conciliar os estudos literários com os científicos (Cartolano, 1994. pp. 123-179). Na época o estado de São Paulo conseguiu um sistema de educação que se consolidou em 1896. E foram pioneiros na organização de ensino primário na forma de grupos ecolares.

Na intersecção dos séculos XIX e XX três mentalidades pedagógicas apresentaram-se com razoável nitidez: as mentalidades tradicionalista, liberal e cientificistas. As duas últimas correspondiam ao espírito moderno que representavam o Estado laico na educação e na cultura (Barros, 1959, pp. 21-36). Era de se esperar uma luz no fundo do túnel para um novo sistema nacional de educação. Mas não foi bem assim. Saviani (p. 168) explica:

No entanto, a mentalidade cientificista de orientação positivista, declarando adepta da completa "desoficialização" do ensino, acabou por converter-se em mais um obstáculo à realização da ideia de sistema nacional de ensino. Na mesma direção comportou-se a mentalidade liberal que, em nome do princípio de que o Estado não tem doutrina, chegava a advogar o seu afastamento do âmbito educativo. Conclui-se, pois, que as dificuldades para a realização da ideia de sistema nacional de ensino se manifestaram tanto no plano das condições materiais como no âmbito da mentalidade pedagógica. Assim, o caminho da implantação dos respectivos sistema nacionais de ensino, por meio do qual os principais paises do Ocidente lograram universalizar o ensino fundamental e erradicar o analfabetismo, não foi trilhado pelo Brasil. E as consequências desse fato projetam-se ainda hoje, deixando-nos um legado de agudas deficiências no que se refere ao atendimento das necessidades educacionais do conjunto da população. 

Grupos escolares

A lei nº 88 de 08/09/1892 definiu a reforma geral da instrução pública paulista. O centro desta reforma foi a escola primária e a grande novidade foi a criação dos grupos escolares "criados para reunir de quatro a dez escolas, compreendidas no raio da obrigatoriedade escolar" (Reis Filho, 1995, p. 76, in Saviani, p. 171). 

Na estrutura anterior, as escolas primárias, então chamadas de primeiras letras, eram classes isoladas ou avulsas e uni docentes. Ou seja, uma escola era uma classe regida por um professor, que ministrava o ensino elementar a um grupo de alunos em níveis e estágios diferentes de aprendizagem. E essas escolas isoladas, uma vez reunidas, deram origem, ou melhor, foram substituídas pelos grupos escolares. (Saviani, pp. 171-172)

Cada grupo escolar tinha um diretor ou diretora. As escolas isoladas eram não seriadas, nos grupos escolares, ao contrário, eram seriados. O agrupamento de alunos se dava de acordo com o grau ou série havendo uma progressividade da aprendizagem. Os princípios pedagógicos em que os conteúdos eram desenvolvidos pelos docentes tinha a marca do ensino tradicional como considerou, mais tarde, os defensores da Escola Nova. Ei-los: (1) Simplicidade, análise e progressividade; (2) Formalismo, aspectos lógicos e dedutivos; (3) A decomposição dos conteúdos facilitando  a memorização; (4) O sistema de prêmio e castigo visando a garantir a organização pedagógica sob a autoridade do professor; (5) Emulação, o sentimento de mérito e a ideia do dever e necessidade de aprovação e (6) a intuição ou o oferecimento de dados sensíveis à observação. (Reis Filho, 1995, p. 68).

A implantação dos grupos escolares: na Paraíba foi criado em 1908, mas implementado em 1916; no Rio Grande do Norte, em Natal, em 1908; em Vitória foi criado o primeiro grupo escolar em 1908 (Grupo Escolar Gomes Cardim); em Santa Catarina, em 1911, em Lages; no Paraná em 1903, em Curitiba; em São Luis do Maranhão em 1905 e na Bahia, em Salvador, em 1908.

E assim, o Brasil foi contaminado pelos grupos escolares.

Uma observação relevante de Saviani (pp. 174-175):

Quanto ao significado pedagógico da implantação do modelo dos grupos escolares, cumpre observar que, por um lado, a graduação do ensino levava a uma mais eficiência divisão do trabalho escolar ao formar classes com alunos de mesmo nível de aprendizagem. E essa homogeneização do ensino possibilitava um melhor rendimento escolar. Mas, por outro lado, essa forma de organização conduzia, também, a mais refinados mecanismos de seleção, com atos de padrões de exigência escolar, "determinando inúmeras e desnecessárias barreiras à continuidade do processo educativo" o que acarretava "o acentuado aumento da repetência nas primeiras séries do curso" (Reis Filho, 1995, p. 138). No fundo, era uma escola mais eficiente para o objetivo de seleção e formação das elites. A questão da educação das massas populares ainda não se colocava.

Fui alfabetizado em grupo escolar na década de 1960. E estava lá: a segmentação de conteúdos, o sistema de prêmio e castigo, a indefectível disciplina e autoridade da professora ou professor, a análise sempre em prejuizo da síntese e o estímulo ao individualismo (nunca a aprendizagem em grupo) no processo educacional. Nada mais do que a abordagem tradicional do ensino aprendizagem.

Um bando de ideias novas

Nas primeiras décadas do século XX, as ideias pedagógicas foram marcadas pelo debate entre liberalismo e positivismo. Eram as ideias laicas e secularizadas na educação que, obviamente, não tinham o respaldo da Igreja Católica. O bem estar entre o Governo e Igreja terminou com o fim do Império e início da República. A Associação Brasileira de Educação (ABE), criada em 1924, tornou-se o espaço propício para os debates do "bando de ideias novas" na expressão de Silvio Romero (Costa, 1967, pp. 97-102).  A ABE organizou, em 1927, a I Conferência Nacional da Educação, evento que passou a ser promovido regularmente. 

E qual a reação católica neste bando de ideias? Sair do púlpito e ir para a briga. Saviani (p. 179) explica:

A mobilização da Igreja expressou-se na forma de resistência ativa articulando dois aspectos: a pressão para o restabelecimento do ensino religioso nas escolas públicas e a difusão de seu ideário pedagógico mediante a publicação de livros e artigos em revistas e jornais e, em especial, na forma de livros didáticos para uso nas próprias escolas públicas assim como na formação de professores, para o que ela dispunha de suas próprias Escolas Normais.

Em 1928, já aparecia a figura de Alceu Amoroso Lima como diretor do Centro Dom Vital, "a maior afirmação da inteligência cristã do Brasil". (Casali, 1995, p. 119). Alceu deu muito trabalho ao escolanovismo no período pós 1930.

A Igreja, na sua fase atual, em virtude do impulso proporcionado pelo Papa à Ação Católica, não pode contentar-se apenas em formar padres; ela almeja permear o Estado [...] e para isto são necessários os leigos, é necessária uma concentração de cultura católica representada por leigos. Muitas personalidades podem se tornar auxiliares mais preciosos da administração etc., do que como cardeais ou bispos (Gramsci, 1976, p. 308. In Saviani, p. 180).

O depois

Esta conversa não terminou. Posteriormente iremos continuar a analisar as ideias pedagógicas no século XX, muito bem discutidas no livro do Dermeval Saviani. É um desafio para quem não é da área da pedagogia, mas a peleja continua.

Falta o debate sobre (1) A predominância da pedagogia nova (1932 -1961) que teve seu inicio com "O manifesto dos pioneiros da educação nova", em 1932 e  (2) A configuração da concepção pedagógica produtivista (1969 - 2001), onde, em plena ditadura militar-civil, entra em vigor a reforma universitária instituída pela Lei 5.540 de 28/11/1968.

Referências

Barros, Roque Spencer Maciel (1959). A ilustração brasileira e a ideia de universidade. São Paulo, FFCL-USP (Boletim nº 241. História e Filosofia da Educação, nº 2)

Cartolano, Maria Teresa Penteado (1994). Benjamin Constant e a instrução pública no início da República. Tese (Doutorado)-Unicamp, Campinas.

Casali, Alipio Márcio Dias (1995). Elite intelectual e restauração da Igreja. Petrópolis, Vozes.

Chaia, Josephina (1965), Financiamento escolar no segundo império. Marília, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília.

Comênio, João Amós (1966). Didáctica Magna. Lisboa, Fundação Calouse Gulbenkian. 

Em tempo: Comênio (1592 – 1670), República Checa, foi um inovador e um dos primeiros defensores da universalidade da educação, conceito que defende em seu livro Didactica magna. É considerado o pai da educação moderna, aplicou um método de ensino mais efetivo, a partir dos conceitos mais simples para chegar aos mais abrangentes. Aconselhava o aprendizado contínuo, por toda a vida, e o desenvolvimento do pensamento lógico, em vez da simples memorização. Apoiava o acesso das crianças pobres e das mulheres à escola. Introduziu livros textos escritos na língua nativa dos alunos, em vez de latim.

Condorcet, Marquis de [Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat] (1989). Cinq mémoires sur l’instruction publique. Paris, Ediling.

Costa, João Cruz (1967). Contribuição à historia das ideias no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira [1ª ed. em 1955].

Dermeval Saviani, "História das ideias pedagógicas no Brasil", 5ª edição, Autores Associados, 2019

Furtado, Celso (1982). Formação econômica do Brasil. 18ª edição. São Paulo, Nacional.

Gramsci, Antonio (1975). Quadermi del carcere. Torino, Einaudi. 4 vols. (Edicione critica dell'Instituto Gramsci a cura di Valentino Gerrantana)

Mandeville, Bernard (1982). La fábula de la abejas o los vicios privados hacen prosperidad pública. México, Fondo de Cultura Económica.

Ponce, Anibal (2001). Educação e luta de classes. 19ª ed. São Paulo, Cortez

Reis Filho, Casemiro (1995). A educação e a ilusão liberal. 2ª ed. Campinas, Autores Associados




segunda-feira, 22 de março de 2021

A cartomante de Lima Barreto

Lima Barreto

Não havia dúvida que naqueles atrasos e atrapalhações de sua vida, alguma influência misteriosa preponderava. Era ele tentar qualquer coisa, logo tudo mudava. Esteve quase para arranjar-se na Saúde Pública; mas, assim que obteve um bom “pistolão”, toda a política mudou. Se jogava no bicho, era sempre o grupo seguinte ou o anterior que dava. Tudo parecia mostrar-lhe que ele não devia ir para adiante. Se não fossem as costuras da mulher, não sabia bem como poderia ter vivido até ali. 

Há cinco anos que não recebia vintém de seu trabalho. Uma nota de dois mil-réis, se alcançava ter na algibeira por vezes, era obtida com auxílio de não sabia quantas humilhações, apelando para a generosidade dos amigos. Queria fugir, fugir para bem longe, onde a sua miséria atual não tivesse o realce da prosperidade passada; mas, como fugir? Onde havia de buscar dinheiro que o transportasse, a ele, a mulher e aos filhos? Viver assim era terrível! Preso à sua vergonha como a uma calceta, sem que nenhum código e juiz tivessem condenado, que martírio! 

A certeza, porém, de que todas as suas infelicidades vinham de uma influência misteriosa, deu-lhe mais alento. Se era “coisa feita”, havia de haver por força quem a desfizesse. Acordou mais alegre e se não falou à mulher alegremente era porque ela já havia saído. Pobre de sua mulher! Avelhantada precocemente, trabalhando que nem uma moura, doente, entretanto a sua fragilidade transformava-se em energia para manter o casal. Ela saía, virava a cidade, trazia costuras, recebia dinheiro, e aquele angustioso lar ia se arrastando, graças aos esforços da esposa. Bem! As coisas iam mudar! Ele iria a uma cartomante e havia de descobrir o que e quem atrasavam a sua vida. 

Saiu, foi à venda e consultou o jornal. Havia muitos videntes, espíritas, teósofos anunciados; mas simpatizou com uma cartomante, cujo anúncio dizia assim: “Madame Dadá, sonâmbula, extralúcida, deita as cartas e desfaz toda espécie de feitiçaria, principalmente a africana. Rua etc.”. 

Não quis procurar outra; era aquela, pois já adquirira a convicção de que aquela sua vida vinha sendo trabalhada pela mandinga de algum preto mina, a soldo do seu cunhado Castrioto, que jamais vira com bons olhos o seu casamento com a irmã. Arranjou, com o primeiro conhecido que encontrou, o dinheiro necessário, e correu depressa para a casa de Madame Dadá. O mistério ia desfazer-se e o malefício ser cortado. A abastança voltaria à casa; compraria um terno para o Zezé, umas botinas para Alice, a filha mais moça; e aquela cruciante vida de cinco anos havia de lhe ficar na memória como passageiro pesadelo. 

Pelo caminho tudo lhe sorria. Era o sol muito claro e doce, um sol de junho; eram as fisionomias risonhas dos transeuntes; e o mundo, que até ali lhe aparecia mau e turvo, repentinamente lhe surgia claro e doce. Entrou, esperou um pouco, com o coração a lhe saltar do peito. O consulente saiu e ele foi afinal à presença da pitonisa. Era sua mulher.

Antologia de literatura


The naked dawn

The naked dawn é o título de um filme clássico de Edgard G. Ulmer de 1955. A tradução para o Brasil foi Madrugada da Traição (não me pergunte porque). Assisti várias vezes e me deu inspiração para escrever umas mal digitadas linhas neste blog. Está em Ofélia.

Conhecendo Edgar G. Ulmer

Ulmer dirigiu 128 filmes ao longo de 32 anos. Era checo, muito inteligente e culto. Educado na Academia de Artes e Ciências de Viena, foi ator e cenógrafo de Max Reinhardt, trabalhou em Estocolmo com o sueco Mauritz Stiller e, na Alemanha com Pabst, Lang e Murnau. Em 1929 dividiu com Robert Siodmak a direção de Gente no domingo (Meschen am Sonntag, 1930), em que debutaram também Billy Wilder (roteirista) e Fred Zinnemann (assistente de fotografia). Em Hollywood, especializou-se em westerns, na Universal, até ser levado por Murnau para a Fox. Ulmer participou das três obras-primas de Murnau: A última gargalhada, Aurora e Tabu. Também colaborou com Stroheim e Lubitsch. Por tudo isso, merecia ter tido outra carreira.

Seu primeiro filme expressivo, O gato negro (The black cat, 1934), com Boris Karloff e Bela Lugosi, era puro Bauhaus. À exceção de O insaciável (Rutless, 1948) e Madrugada da traição (The naked dawn, 1955), seus filmes B mais apreciados foram produzidos para a independente PRC (Producers Releasing Corporation), entre 1944 e 1946: Barba Azul, Estranha ilusão, Club Havana, Curvas do destino e Flor do mal (The strange woman). Nenhum com a aura de Curva do destino.

Aurora DVD (...) tirou dos arcanos do filme B um clássico que não admite discussões: Curva do destino (Detour, 1945), de Edgard G. Ulmer (1904 – 1972). Filmado em seis dias, num motel e num carro de estúdio, é o melhor filme noir de baixíssimo orçamento, um melodrama minimalista, com direito a femme fatale, boate, brumas, troca de identidades, carros ominosos e aquelas fatalidades que às vezes aproximam das tragédias de Shakespeare e das danações de Dostoievski. (Augusto, pp 215, 216)

Madrugada da Traição (The Naked Dawn, EUA, 1955). Direção: Edgar G. Ulmer. Rot. Original: Julian Zimet. Fotografia: Frederick Gately. Música: Herschel Burke Gilbert. Montagem: Dan Milner. Dir. de arte: Martin Lencer. Cenografia: Harry Reif. Com: Arthur Kennedy, Betta St. John, Eugene Iglesias, Charlita, Roy Engel, Tony Martinez, Francis McDonald.

Maria Lopez  (Betta St. John)

O fora-da-lei Santiago (Kennedy) influencia em Manuel Lopez (Iglesias), um pobre agricultor índio, o desejo da riqueza fácil, ao contrário do que o próprio Santiago desejara. Embora tenha muito dinheiro, Santiago não possui o menor interesse nele e gasta-o à medida que ganha. Casado com Maria (St. John), a quem trata como sua serva, Manuel tenta trair Santiago, que não desconfia de nada e o tem em grande conta. Porém, na manhã que resolve abandonar a propriedade de Manuel, escuta indignado a confissão de que Manuel tentara atentar contra sua vida e de Maria que preferia abandonar o marido e fugir com ele. Chocado, Manuel leva Maria, porém ao retornar para salvar Manuel das garras da lei, é ferido mortalmente e recomenda que o casal parta sem ele.         

Sempre instilando talento e originalidade nos filmes de gênero de baixo orçamento que dirigiu, Ulmer não foge a regra nesse western psicológico. Menos do que qualquer preocupação realista, interessa ao cineasta trabalhar com metáforas e embaralhar os papéis sociais tidos como certos pela sociedade, fazendo com que o aparente vilão possua uma invejável nobreza de caráter e despojamento e o aparente mocinho seja extremamente mesquinho. Quando se tem em conta o quão pouco o cineasta tem em conta o realismo, o personagem do marginal, vivido por Kennedy pode ser apreciado, sem qualquer cobrança sobre a sua exacerbada bonomia e desapego às coisas materiais. Distante de toda a mística do oeste selvagem, com seus longos planos de planícies e vales, o cineasta se detém em planos fechados e perscruta relações sociais que bem poderiam transcorrer em qualquer metrópole. Universal. 82 minutos.

Cid Vasconcelos

Edgard G. Ulmer no iutubi

Madrugada de traição (The Naked down, 1955) 

Curva do destino (Detour, 1945)

O gato negro (Black cat, 1934) 

Barba azul (Bluebeard, 1944)

Aníbal, O Conquistador1959 

The Strange Woman (1946)

Clube Havana,1945

O insaciável (Rutless,1948) 

Citação

Augusto, Sérgio (2019). Vai começar a sessão: ensaios sobre cinema, Objetiva.

 

sexta-feira, 19 de março de 2021

A vodka, a igreja e o cinema

Leon Trotsky

Pravda, 12 de julho de 1923

Dois fenômenos importantes imprimiram a sua marca no mundo de vida operário: a jornada de oito horas e a proibição da vodka. A liquidação do monopólio da vodka, que a guerra exigia meios tão avultados que o tzarismo podia renunciar, como a um pecadilho, aos rendimentos que lhe advinham da venda de bebidas alcoólicas. Um bilhão de mais ou de menos era a diferença mínima. A revolução foi herdeira da liquidação do monopólio da vodka; sancionou o facto, fundando-se, porém em considerações de princípio. É só depois da conquista do poder pela classe operária — poder construtor consciente de uma economia nova — que a luta do governo contra o alcoolismo, luta ao mesmo tempo cultural, educativa e coerciva, adquire toda a significação histórica. Nesse sentido a interdição da venda devido à guerra imperialista, de nenhum modo modifica o facto fundamental de que a liquidação do alcoolismo vem acrescentar-se ao inventário das conquistas da revolução. Desenvolver, reforçar, organizar, conduzir com êxito uma política anti-alcoólica no país do trabalho renascente — eis a nossa tarefa. E os nossos êxitos econômicos e culturais aumentaram paralelamente com a diminuição do números de “graus”. Nenhuma concessão é aqui possível. 

No que respeita à jornada de oito horas, é uma conquista directa da revolução e das mais importantes. Em si mesmo, este fato provoca uma modificação fundamental da vida do operário ao libertá-lo de dois terços da jornada de trabalho. Cria-se assim uma base para transformações radicais do modo de vida, para melhorar a forma de viver, para desenvolver a educação coletiva, etc., mas trata-se apenas de uma base. Quanto mais o tempo de trabalho seja utilizado conscienciosamente, mas a vida do operário se organizará de forma completa e inteligente. É precisamente nisso que consiste, como já se disse, o sentido fundamental da convunção de Outubro: os êxitos econômicos de cada operário conduzem automaticamente a uma elevação material e cultural da classe operária no seu conjunto. “Oito horas de trabalho, oito horas de repouso, oito horas de liberdade” — proclama a velha fórmula do movimento operário. Nas atuais condições, essa fórmula adquire um conteúdo de todo novo: quanto mais as oito horas de trabalho forem produtivas, mais as oito horas de repouso serão reparadoras e higiênicas e mais as oito horas de liberdade serão culturais e enriquecedoras. 

Por conseguinte, o problema das distrações apresenta-se como um problema cultural e educativo muito importante. O caráter da criança revela-se e forma-se nos jogos. O caráter do adulto manifesta-se mais claramente nos jogos e nas distrações. Mas as distrações e os jogos podem da mesma forma ocupar um lugar de eleição na formação do caráter de toda uma classe se esta classe é jovem e segue avante como o proletário. O grande utopista francês Fourier, ao insurgir-se contra o ascetismo cristão e contra a repressão da natureza humana, construiu os falanstérios (as comunas do futuro) na base de uma utilização e de uma combinação justa e racional dos instintos e das paixões. Consubstancia-se aqui um pensamento profundo. Um Estado operário não é nem uma ordem espiritual nem um convento. 

Consideramos os homens tal como a natureza os criou e tal como a antiga sociedade em parte os educou e em parte os mutilou. Nesse material humano vivo, buscamos qual o ponto em que fixar a alavanca da revolução, do partido e do Estado. O desejo de distração, de entretenimento, de diversão e de riso, é um desejo legítimo da natureza humana. Podemos e devemos proporciona-lhe satisfações cada vez mais artísticas e, ao mesmo tempo, devemos fazer do divertimento um instrumento de educação coletiva, sem constrangimentos e dirigismo inoportunos. 

Atualmente, neste domínio, o cinema representa um meio que ultrapassa de longe todos os outros. Essa surpreendente invenção penetrou na vida humana com uma rapidez jamais vista no passado. Nas cidades capitalistas, o cinema faz agora parte integrante da vida quotidiana do mesmo modo que os balneários, os estabelecimentos de bebidas, a igreja e as demais instituições necessárias, louváveis ou não. A paixão pelo cinema é ditada pelo desejo de diversão, de ver qualquer coisa de novo, de desconhecido, de rir a até de chorar, não acerca das infelicidades próprias mas das de outrem. Todas essas exigências o cinema satisfaz de forma mais direta, mas espetacular, mais imaginativa e mais viva, sem que nada se exija do espectador, nem mesmo a cultura mais elementar. Daí esta reconhecida atração do espectador pelo cinema, fonte inesgotável de impressões e de sensações. Tal é o ponto de partida, e não só o ponto de partida, mas o domínio imenso a partir do qual se poderá desenvolver a educação socialista. 

O fato de até o presente, isto é, desde há quase em breve seis anos, não temos dominado o cinema, mostra até que ponto somos toscos e ignaros, para não dizer simplesmente tacanhos. É um instrumento que se nos oferece o melhor instrumento de propaganda qualquer que esta seja — técnica, cultural, anti-alcoólica, sanitária e política; permite uma propaganda atraente e acessível a todos, que fala a imaginação e que além disso, constitui uma fonte possível de rendimento. 

Motivo de atração e distração, o cinema por isso mesmo concorrência às cervejas e às feiras de compra e venda. Não sei quais são atualmente em Paria e Nova Iorque os estabelecimentos mais numerosos — se os bares ou as salas de cinema. Nem quais são os mais rendosos. Mas é claro que o cinema rivaliza antes de mais com as lojas de bebidas no que respeita as oito horas livres. Poderemos nós dominar esse incomparável instrumento? Por que não? O governo tsarista alguns anos toda uma rede de lojas de bebidas, o que lhe rendia milhões de rubros-ouro. Porque não poderia um governo operário organizar uma rede de salas de cinema, porque não poderia implantar esse modo de distração e de educação na vida popular, opondo-se ao alcoolismo e tornando-o ao mesmo tempo uma fonte de receitas? Será isso realizável? Por que não? Não é decerto empresa fácil, mas é em todo o caso mais natural, corresponde melhor a natureza, às forças e as capacidades de um Estado operário do que digamos, a restauração da rede de lojas de bebidas. O cinema rivaliza com os bares, mas também com a igreja. E essa concorrência pode tornar-se fatal para a igreja desde que completemos a separação da igreja do Estado socialista por uma união do Estado socialista com o cinema. 

Na classe operária russa, o sentimento religioso é praticamente nulo. Nunca, aliás, existiu verdadeiramente. A igreja ortodoxa representava o conjunto de costumes e uma organização política. Não conseguiu penetrar profundamente nas consciências nem ligar os seus dogmas com e os seus cânones aos sentimentos profundos das massas populares. A razão disso é sempre a mesma: a incultura da velha Rússia, inclusive a da sua igreja. É por isso que, ao despertar para a cultura, o operário russo se liberta tão facilmente da igreja à qual está superficialmente ligado. É verdade que para o camponês isso é mais difícil, não por ter penetrado mais profunda e intimamente nos ensinamentos da igreja — não se trata evidentemente disso — mas porque o seu modo de vida uniforme e rotineiro está estreitamente ligado aos ritos uniformes e rotineiros da igreja. 

O operário — inferimo-nos à massa operária sem partido — mantém com a igreja na maioria dos casos relações fundadas no hábito, habito esse enraizado, sobretudo nas mulheres. Conservam-se os ícones pendurados em casa, porque lá estão há longo tempo. Decoram as paredes, sem que estas pareceriam nuas e não se está a isso habituado. O operário não adquire novos ícones, mas não manifesta o propósito de retirar os antigos. Porque modo celebrar a festa da primavera, a ser fazendo um kulitch ou uma Paskha? E é uso fazê-los benzer para que não falte qualquer coisa. De modo nenhum se freqüenta a igreja por espírito religioso, mas sim porque há lá muita e esplendor, muita gente e se canta bem; a igreja atrai devido a toda uma série de motivos sócio-estéticos, que nem a fábrica, nem a família nem a rua oferecem. A fé não existe ou quase não existe. Em todo o caso, não existe qualquer respeito pela hierarquia eclesiástica, nenhuma confiança na força mágica do rito. Não existe também vontade de cortar com tudo isso. O divertimento e a distração representam um enorme papel nos ritos da igreja.

A igreja age por métodos teatrais sobre a vista, o ouvido e o olfato (o incenso!) e, através deles, age sobre a imaginação. No homem, a necessidade de espetáculo — ver e ouvir qualquer coisa de não habitual e de colorido, qualquer coisa para além do acinzentado do quotidiano — é muito grande, é irremovível e persegue-o desde a infância até à velhice. Para libertar as largas massas desse ritual, dessa religiosidade rotineira, a propaganda anti-religiosa não basta, embora seja necessária. A sua influência limita-se apenas de tudo a uma minoria ideologicamente mais informada. Se as largas massas não se submetem a propaganda anti-religiosa, não é porque seja fortes os seus laços com a religião; é, pelo contrário, porque não tem nenhum vínculo ideológico, mantendo com a igreja relações uniformes, rotineiras e automáticas, de que não tem consciência, como basbaque que não recusa participar numa procissão, ou numa solenidade faustosa, ouvir cânticos ou agitar as mãos.

É nesse ritualismo sem fundamento ideológico que pela sua inércia se incrusta na consciência, e do qual a crítica por si só não pode triunfar, mas que se pode desagregar por meio de novas formas de vida, por novas distrações, por uma nova espetaculosidade de efeitos culturais. E aqui o pensamento volta-se de novo naturalmente para o instrumento mais poderoso por ser o mais democrático: o cinema. O cinema não carece de uma hierarquia diversificada, de brocados ostentosos, etc.; basta-lhe um pano branco para fazer nascer uma espetaculosidade muito mais penetrante do que a igreja, da mesquita ou da sinagoga mais rica ou mais habituada às experiência teatrais seculares. Na igreja apenas se realiza um ato, aliás sempre igual, ao passo que o cinema mostrará que na vizinhança ou do outro lado da rua, no mesmo dia e à mesma hora, se desenrolam simultaneamente a páscoa pagã, judia e cristã. O cinema diverte, excita a imaginação pela imagem e afasta o desejo de entrar na igreja. Tal é o instrumento de que devemos saber fazer uso custe o que custar!