domingo, 27 de outubro de 2019

Eliane Brum


Eliane Brum e a arte de escrever para não matar e para não morrer

Jornalista e escritora, que acaba de lançar coletânea de textos jornalísticos em inglês, aproxima-se da palavra através da escuta e conta com lirismo as histórias e detalhes da vida que (quase) ninguém vê


A jornalista Eliane Brum - Lilo Clareto


Aos oito anos, Eliane Brum (Ijuí, Rio Grande do Sul, 1966) virou uma assassina. Pelo menos foi o que sentiu no dia em que matou um filhote de barata. A culpa foi tamanha que a menina ficou imaginando a vida que aquela criatura já não teria. Assim nasceu A biografia de uma barata, o primeiro texto da jornalista, escritora e documentarista, escrito em primeira pessoa em um caderno de capa vermelha que ela conserva até hoje. A colunista do EL PAÍS conta, entre gargalhadas, que esse foi o jeito que encontrou para "dar memória e uma vida" ao ser que havia matado. De certo modo, essa continua sendo a motivação da sua escrita. "Sempre digo que eu escrevo para não matar e para não morrer", conta do outro lado do telefone, em Londres, em uma tarde cinzenta e de chuva fina.
Há poucas semanas, uma obra de Eliane entrou em um seletíssimo grupo de um dos mais prestigiosos prêmios literários dos EUA, ao lado do Pulitzer. The Collector of Leftover Souls (Graywolf Press), que reúne crônicas e reportagens produzidas entre 1999 e 2015, foi publicada nos Estados Unidos e no Reino Unido e entrou na lista das dez indicadas para o Prêmio Nacional de Literatura dos EUA (National Book Award) deste ano. A crítica especializada o define como uma coletânea de "vidas comuns tornadas extraordinárias por uma mestra em jornalismo que capta toda a sua perplexidade e rebelião silenciosa" e destaca a habilidade da autora em "habitar a vida de suas fontes enquanto suprime seus próprios preconceitos, julgamentos e visões de mundo". Enquanto isso, no Brasil, Eliane, que é finalista do Prêmio Comunique-se como melhor jornalista de mídia escrita, prepara-se para lançar, no mês que vem, um novo livro. Brasil, construtor de ruínas (Arquipélago), parte de reportagens e artigos de opinião escritos nos últimos anos, especialmente o EL PAÍS.
Filha de professores que trabalhavam de manhã, de tarde e de noite para sustentar a ela e seus dois irmãos mais velhos, Eliane apaixonou-se pela palavra através da escuta. "Antes mesmo de aprender a ler ou escrever, sempre gostei muito de escutar e de ficar ouvindo histórias. Eu botava um banquinho num canto e ficava ouvindo as histórias dos adultos e observando muito as coisas. Sempre gostei muito mais de escutar do que de falar". Ela lembra, no entanto, de uma sensação de "estar presa, um pouco encarcerada em um mundo pequeno", sentimento que só dissipou quando começou a juntar as letras e fazer sentido com elas.

"Ler me deu essa possibilidade de ser muitas coisas, de não ficar presa no meu corpo. Eu podia ser homem, monstro, fada, planta, alienígena, podia ser um monte de coisa. O meu mundo ficou muito maior". Foi assim que começou a trancar-se no quarto, ainda criança, com vários livros, sem querer sair sequer para comer. A escrita veio logo depois.
"Eu tinha nove anos quando acordei um dia, em uma manhã super melancólica. Estava chovendo, e eu me senti tão triste, tão sem saída, um sentimento insuportável... Aí escrevi minha primeira poesia, que era muito ruim", conta e ri. "Aquilo me mostrou que escrever era um ato de vida. Para mim, até hoje, escrever é um ato de vida, um ato de fazer viver, de poder estar viva e de lutar pela vida e por tudo aquilo que é vivo. Essa menina, essa experiência com a palavra, pariu a mulher que eu sou hoje".

Eliane fala com a voz suave e calma. Tem um jeito tranquilo que convive com o ímpeto de uma mulher determinada. Em 2017, mudou-se para Altamira, no Pará, para estar mais perto da pauta que tem motivado a maior parte de sua vida profissional e pessoal: a defesa da floresta e a vida (todo tipo de vida) no planeta. Ela conta que começou a ir para a Amazônia em 1998, quando trabalhava para o jornal gaúcho Zero Hora. Conheceu a floresta em cada Estado brasileiro onde ela nasce, cresce e é desmatada ou incendiada. Em 2011, começou acompanhar as histórias das pessoas que seriam afetadas pela construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, principalmente as populações ribeirinhas. Depois, decidiu instalar-se ali.
"Eu quis ficar mais perto. Coloco-me ao lado das pessoas que defendem que a Amazônia é o centro do mundo, principalmente no momento histórico em que o maior desafio da nossa espécie é a emergência climática. Aí eu pensava: se eu digo que ela é o centro do mundo, por que eu não estou lá? Resolvi ir para o centro do mundo e queria ter também essa experiência de ver o Brasil a partir da Amazônia, olhar de lá para o Sudeste, para Brasília, para o Sul, olhar da Amazônia para o mundo, mudar meu ponto de vista", diz.

Essa determinação já havia nascido com a menina que pariu a mulher. Quando tinha cinco ou seis anos, durante a ditadura militar, seu pai era presidente de uma faculdade comunitária em Ijuí, e um de seus projetos era uma escola "que tinha muito o espírito do Paulo Freire". Naquela época, a prefeitura achou aquela escola subversiva e, em uma reunião, Eliane viu o pai ser humilhado pelo prefeito. A escola foi retirada da administração da faculdade. "Aquela experiência foi tão chocante para mim, que voltei para casa e fiquei pensando em como eu ia responder àquela injustiça. E aí, na minha cabeça de criança, resolvi botar fogo na prefeitura", conta. De madrugada, antes de todos da casa acordarem, Eliane colocou uma caixa de fósforo dentro do bolso do vestido e atravessou a praça que separava sua casa da sede municipal. "Eu fui e acendi o fósforo. Na minha cabeça, era só acendê-lo que conseguiria queimar a prefeitura. É claro que gastei a caixa de fósforos inteira e não consegui. Aí, voltei para casa com uma mistura de humilhação e alívio. Meu primeiro ato revolucionário, rebelde, foi fracassado. Mas serviu para descobrir, aos poucos, que escrever era um jeito de lutar sem botar fogo".

Os desacontecimentos

Eliane tem muito "estranhamento", não acha normais as coisas. "Descobri que estranhar era ser repórter. E eu sempre estranhei e sempre me interessei menos pelo que está no palco iluminado e mais pelo que está na coxia, os detalhes ao redor. É o que me interessa. Os detalhes e as subjetividades às vezes contam mais". Para ela, são esses elementos que determinam o que chama de desacontecimentos e que são a principal matéria-prima do seu trabalho. As pessoas cujas histórias não são ouvidas ou contadas, as passagens do cotidiano que, de tão corriqueiras —mas não menos fantásticas, emocionantes ou importantes— não costumam aparecer nos noticiários. Foi com essas histórias que conquistou o prêmio Jabuti em 2007, com A Vida que Ninguém Vê, uma coletânea de textos sobre desacontecimentos diários que vão desde o mendigo que jamais pediu coisa alguma ou um álbum de fotografias encontrado no lixo até o carregador de malas do aeroporto que nunca voou.
"Nos primeiros anos de repórter, as pessoas diziam que eu fazia as pautas humanas. E eu sempre fiquei pensando: mas existem pautas não humanas?", gargalha Eliane. "Sempre foi difícil dizer sobre o que eu escrevo. Acabo dizendo que escrevo sobre direitos humanos, mas não acho que seja isso, até porque eu acho que as gentes não são só humanas. Os animais são gente, as plantas são gente, eu vejo o mundo de um outro jeito".

Autora de outros quatro livros —Coluna Prestes - O Avesso da Lenda (1994), O Olho da Rua (2008), A Menina Quebrada (2013) e Meus desacontecimentos – A história da minha vida com as palavras (2014)—, Eliane também faz ficção. Publicou em 2011 o romance Uma Duas (LeYa), onde transforma em palavra, com a mesma força e sensibilidade de seus textos jornalísticos, a intrincada relação entre mãe e filha.
O romance nasceu em 2010 quando, depois de duas décadas como repórter, ela quis dedicar-se exclusivamente à ficção. Hoje, ainda escreve contos em algumas coletâneas, mas o plano foi adiado porque o Brasil aconteceu. "O país se convulsionou, digamos, e eu fui capturada por essa super realidade. Mas espero voltar para a ficção, porque tem realidades que a gente só consegue contar através dela. Há realidades que precisam ser inventadas para serem contadas", diz.

Para escrever, depois de anos acostumada a trabalhar em meio ao barulho das redações, ela constrói um mundo próprio em qualquer lugar. "Em meu processo, sinto que escrevo primeiro dentro, vou costurando as coisas dentro de mim. Aí, quando sento mesmo para escrever, sou bem rápida". Mantém o hábito da infância e tenta ler ao menos um livro por semana. Atualmente, está entregue ao romance Como ser as duas coisas, de Ali Smith, e Outras Mentes, de Peter Godfrey-Smith, que mistura história natural e filosofia. "Além dos que estou lendo, tenho meus livros de cabeceira. Nos últimos anos, são dois: Sempre a mesma neve e sempre o mesmo tio, da Hertha Müller, que é um livro lindíssimo, que me ajuda a resistir em cotidiano de exceção. O outro é Teoria King Kong, da Virginie Despentes, um livro selvagem, que segue ecoando em mim e para onde volto muitas vezes", conta. 

Hoje, Eliane entra na floresta para contar seus acontecimentos e desacontecimentos. "Minhas reportagens são por minha conta e são de longuíssimo prazo, podem durar anos", ri. Ela conta que uma das melhores coisas de entrar na natureza é ficar sem conexão à Internet. "Só deixo uma mensagem no e-mail e aviso às pessoas mais próximas que eu vou sumir e depois volto. Isso é maravilhoso. Ainda bem que não tem Internet ainda por lá, porque aí dá para fazer realmente essa imersão profunda, que muda muito a gente". Eliane ainda prefere ouvir a si mesma, à floresta, à vida. Entre matar e morrer no turbilhão do mundo, ela continua a escrever.

Joana Oliveira, São Paulo 18/ 10/2019

Recomendação

Lula livre, sim, mas sem fraudar a história

O PT não contribuirá com a criação de um futuro melhor se seu maior líder seguir insistindo em apagar a memória de Belo Monte.

ELIANE BRUM, 24/10/2019

Luiz Inácio Lula da Silva, preso há mais de um ano, deve ser libertado. E isso provavelmente acontecerá, de um modo ou outro. Lula deve ser libertado porque o processo que o colocou na cadeia está povoado por abusos do poder judiciário e despovoado de provas. Como já escrevi neste espaço, a prisão de Lula não mostrou que até os poderosos são presos no Brasil, mas sim que até os poderosos podem ter seus direitos violados no Brasil. O que cada um acha sobre a culpa ou inocência de Lula não importa, o que importa são provas e o cumprimento do rito legal. É isso que nos protege a todos, é isso o que também separa a democracia da ditadura. É fundamental, porém, fazer uma distinção. Como qualquer brasileiro, Lula tem direito à justiça. Mas Lula não tem direito aos seus próprios fatos.

Mais perto da possível libertação, Lula já iniciou sua campanha num país dilacerado por ódios que seu partido também ajudou a produzir. Já anuncia o desejo de viajar pelo Brasil. É uma vontade legítima. Inclusive porque era ele o candidato em primeiro lugar nas pesquisas para a eleição de 2018 e foi impedido pelo judiciário, que decidiu mudar de forma arbitrária os rumos do país. O PT não deve nem pode ser riscado do mapa eleitoral e do debate político do Brasil, como querem alguns grupos. Quem decide se o partido pode representá-los são os eleitores.

O problema que se anuncia é a tentativa de recuperar o espaço perdido pelo partido apagando as contradições do PT no poder. E, principalmente, tentando remover – ou pelo menos contornar – a pedra no meio do caminho chamada Belo Monte. Não vai dar para apagar Belo Monte. Esta pedra é grande demais.

Belo Monte não é um erro, mas o que os povos do Xingu chamam, e isso desde o governo Lula, de “um crime contra a humanidade”. É também o que o Ministério Público Federal chama de “etnocídio”. E, mais recentemente, também de “ecocídio” e de “genocídio”. É ainda onde se desenha aquela que pode se tornar a maior tragédia da Amazônia brasileira: a morte da Volta Grande do Xingu, onde vivem os povos Juruna e Arara, além de ribeirinhos, pela administração predatória da água por Belo Monte.

O autoritarismo destrói um país. Por todos os motivos óbvios. E também porque interrompe o debate público, assim como os movimentos em curso. Em cotidiano de exceção, como já vive o Brasil, as diferenças entre os projetos políticos são borradas em nome do objetivo maior, o de impedir a completa destruição da democracia. O processo de aprimoramento das instituições e de melhoria da sociedade é suspenso e toda a energia é consumida no gesto de bloquear a acelerada corrosão dos direitos.

O Brasil é um presente constantemente interrompido para que as elites econômicas e políticas (e às vezes também intelectuais) possam manter – ou recolocar – o passado. Em geral, o fazem aliando-se aos novos atores que nada querem mudar, apenas ter acesso ao restrito grupo dos que detêm os privilégios de classe, de raça e de gênero. Entre os novos atores deste momento estão, por exemplo, as lideranças evangélicas fundamentalistas.

"O autoritarismo mata a potência de uma geração, obrigando-a apenas a reagir."

A constante interrupção leva à perda de toda a energia de uma geração de brasileiros na criação do futuro. Barra também o protagonismo de grupos historicamente silenciados que tinham passado a disputar o presente, caso dos negros nos últimos anos. É assim que se mata a potência de um país. Obrigando as pessoas a esgotar suas forças no gesto de fazer barreira para perder menos, sem espaço para criar gestos para avançar mais. É o que o Brasil e outros países governados por déspotas eleitos vivem hoje.

Se o PT foi violentamente atingido pelas manobras autoritárias de forças com as quais fez alianças no passado e pode voltar a fazer nas próximas eleições, como setores do MDB, é também evidente que a truculência do bolsonarismo no poder abriu uma possibilidade para, mais uma vez, o partido operar para apagar suas digitais em crimes cometidos durante os 13 anos no poder. Pessoas que estiveram em governos do PT ou os apoiaram ativamente, nos últimos anos tiveram que encarar a dura realidade de um partido que se corrompeu. Mais recentemente, porém, parecem ter retornado ao estado de autoilusão: os abusos cometidos pelo judiciário na prisão de Lula deu um forte motivo para voltar a se sentirem no lado certo da história e promover o esquecimento dos atos arbitrários do PT. Mais uma vez se ouve de parte da esquerda que não é hora de criticar o PT. Nunca foi hora, como sabemos.

É da essência do maniqueísmo apagar as complexidades. Num país polarizado, o maniqueísmo serve aos dois polos. Ou é todo o mal, ou é todo o bem. A adesão à política pela fé, na qual os eleitores se comportam como crentes, mesmo quando ateus, atinge todo o espectro ideológico do Brasil. Da direita a esquerda.

A fragilidade da democracia brasileira é causada, em grande parte, pela impunidade dos crimes dos agentes de Estado na ditadura. Deste apagamento da memória nasceu uma democracia com alma deformada. Um dos principais objetivos dos grupos no poder, em especial o dos generais, é apagar suas digitais das violências cometidas durante o regime militar (1964-1985). Jair Bolsonaro tem se esforçado para torcer os fatos e reformular o passado ao seu gosto, convertendo torturadores em heróis e violências de Estado em atos de heroísmo. Em geral, governos autoritários investem no apagamento da história como primeiro ato, colocando no lugar sua mitologia. Os estados totalitários do século 20 são aulas completas sobre essa falsificação. É por compreender a extensão dessa violência que parcelas da sociedade brasileira têm se mobilizado para impedir a destruição da história da ditadura.

Já deveríamos ter compreendido o gravíssimo equívoco representado por compactuar com apagamentos em nome de oportunismos, ou, se preferirem palavras mais palatáveis, do pragmatismo político, da estratégia eleitoral, de governabilidades ou como queiram chamar. Já deveríamos ter aprendido que omissões e silenciamentos nos levam a lugares ainda mais sombrios. Deveríamos, mas tudo indica que não.

"É triste um país em que os homens públicos querem ser “mitos” – e não homens públicos."

Nas entrevistas que Lula tem dado para preparar sua possível saída da prisão, ele deixa claro que seguirá apostando no fortalecimento do próprio mito, inflado agora por uma injustiça. Tem dito a aliados que pretende rodar o Brasil e assumir o papel de “fio condutor da pacificação nacional”. A “pacificação”, palavra que também foi usada por Michel Temer (MDB) no início de seu governo, é palavra recorrente na história do Brasil. Como já testemunhamos, ela tem servido para apagar assimetrias, desigualdades raciais e iniquidades. É a proposta de conciliação sem justiça social. Uma das tragédias do Brasil é a obsessão por “mitos” quando o que precisamos tanto é de um homem ou uma mulher imbuído de espírito público suficiente para colocar o país acima de suas ambições pessoais.

Quando Lula deixar a prisão, estará num Brasil diferente. Com a crise climática se agravando em curso acelerado, a Amazônia vem ganhando rapidamente a centralidade que sempre deveria ter ocupado. Sem floresta em pé – e por floresta se compreende não só árvores, mas todas as vidas, porque tudo ali funciona de forma conectada – não há possibilidade de enfrentar o superaquecimento global. Neste contexto, a desastrosa política dos governos do PT para a Amazônia ficarão mais – e não menos evidentes. Esta política é marcada especialmente por grandes “monumentos à insanidade”, como costuma dizer Antonia Melo, a maior liderança popular do Médio Xingu: as hidrelétricas de Belo Monte, no rio Xingu, Santo Antonio e Jirau, no rio Madeira, e Teles Pires, no rio de mesmo nome.

Belo Monte, o símbolo maior desta política que violou sistematicamente os direitos dos povos da floresta, está programada para ser concluída neste ano. As consequências de sua construção apenas começaram. O pior ainda pode estar por vir, caso o Ministério Público Federal não consiga impedir que a Norte Energia S.A, a empresa concessionária, execute uma administração da água que poderá condenar a Volta Grande do Xingu, onde vivem os povos Juruna e Arara, à morte. Outros povos da região atingida por Belo Monte, os Parakanã, Araweté e Assurini, de recente contato, publicaram um documento em 22 de outubro “exigindo a suspensão da liberação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e um pedido formal de desculpas pelos problemas já causados às etnias”.

Como Lula trata Belo Monte, uma obra que nem a ditadura conseguiu construir devido à resistência dos movimentos sociais e dos povos do Xingu, mas o PT sim, porque traiu seus aliados? Em entrevista à BBC Brasil, no final de agosto, Lula declarou: “Tenho orgulho de ter feito Belo Monte”. E, em outro ponto: “Não tente culpar a Dilma pelo que está ocorrendo em Belo Monte hoje. Cada um de nós é responsável pelo período que governou o país”. Em outubro, numa entrevista ao UOL, Lula afirmou aos jornalistas Flávio Costa e Leonardo Sakamoto: “Eu não sei o que vou fazer quando eu sair daqui, mas eu tinha vontade de voltar ao Xingu, a Belo Monte, eu não conheci Belo Monte. Eu fui lá fazer um debate, mostrar que seria um bem para o desenvolvimento. Se você tem, depois de anos, a informação de que a coisa está desandando lá em Altamira, eu disse isso numa entrevista, é preciso ver o que está acontecendo agora. Se estas pessoas estão cumprindo o acordo feito em 2009, se as pessoas estão cumprindo todas as determinações. Então o que proponho para você é que poderia, até para me ajudar, a procurar os ministros que fizeram o acordo na época e pedir a eles irem junto com você para lá para saber o que não está sendo cumprido”.

Sério. Lula disse isso mesmo. Não há menção de que tenha ficado ao menos levemente ruborizado.

"Lula pode começar seu programa de estudos sobre Belo Monte lendo as 25 ações movidas pelo Ministério Público Federal."

Caso sua saída da prisão ainda demore um pouco, Lula pode organizar um programa de estudos para se aprofundar sobre as violações ocorridas na construção de Belo Monte durante os governos do PT. Pode começar pelo próprio leilão, arquitetado por ele com a ajuda do amigo e ex-ministro da ditadura Delfim Netto. Ganhou o consórcio formado às pressas, para simular uma disputa, com pequenas empreiteiras sem nenhuma experiência em projetos deste porte. Em seguida, as grandes empreiteiras – as que preferiram não disputar (Odebrecht e Camargo Correa) e a que disputou e perdeu (Andrade Gutierrez) – formaram o Consórcio Construtor Belo Monte. As pequenas também migrariam para este consórcio na sequência. É na construção que está os lucros – e também a propina. Esta parte da história está sendo investigada e documentada pela Operação Lava Jato.

Em seguida, Lula pode ler as 25 ações movidas pelo Ministério Público Federal denunciando todas as violações ocorridas para materializar Belo Monte no Xingu, algumas delas durante o seu próprio governo. Pode seguir seu plano de estudos lendo o livro “A expulsão de ribeirinhos em Belo Monte”, organizado e publicado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Em 449 páginas, cientistas e pesquisadores de diferentes áreas documentam as atrocidades cometidas e as consequências que vão desde a ameaça de extinção de espécies à destruição da saúde mental das pessoas que foram expulsas de suas terras, ilhas e casas.

Terminado este livro, o presidente que materializou Belo Monte pode aprofundar seu conhecimento sobre o próprio governo e o de sua sucessora, Dilma Rousseff, estudando o Dossiê produzido pelo Instituto Socioambiental, no qual estão narrados como os povos indígenas foram corrompidos pela Norte Energia SA com uma “espécie de mesada de 30 mil reais em mercadorias”, fazendo com que mesmo indígenas de recente contato passassem a comer salgadinhos e refrigerantes em vez de alimentos da sua roça e peixes do rio. Poderá ler inclusive documentos com timbre do Ministério de Saúde do governo de Dilma Rousseff que dizem o seguinte:

“A partir de setembro de 2010 [último ano do governo Lula], com a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, os indígenas passaram a receber cestas de alimentos, composta por alimentos não perecíveis e industrializados. Com isso os indígenas deixaram de fazer suas roças, de plantar e produzir seus próprios alimentos. Porém, em setembro de 2012 [primeiro mandato de Dilma Rousseff], tal ‘benefício’ foi cortado, os indígenas ficaram sem o fornecimento de alimentos e já não tinham mais roças para colher o que comer, o que levou ao aumento do número de casos de crianças com Peso Baixo ou Peso Muito Baixo Para a Idade, chegando a 97 casos ou 14,3%”.

Em outro ponto do documento, o aumento dos casos de “doença diarreica aguda” em 2010 é relacionado à atuação da Norte Energia nas aldeias:

“Em 2010 registramos um aumento considerável, já que numa população de 557 crianças menores de 5 anos ocorreram 878 casos, o equivalente a 157% dessa população ou 1.576,3 para cada 1.000 crianças. (…) Mudanças nos hábitos alimentares com a introdução de alimentos industrializados oriundos de recursos financeiros das condicionantes para construção da hidrelétrica de Belo Monte é outro fator contribuinte para o alto índice existente”.

A desnutrição infantil nas aldeias da região, conforme dados do dossiê, aumentou 127% entre 2010 e 2012. Um quarto das crianças estava então desnutrida. No mesmo período, ainda segundo o dossiê, o atendimento de saúde a indígenas cresceu 2.000% (dois mil por cento) nas cidades do raio de impacto de Belo Monte. A situação é tão aterradora que, em 2014 [ano da eleição de Dilma para o segundo mandato], técnicos da Funai recomendaram a aquisição de cestas básicas para enfrentar a vulnerabilidade alimentar das comunidades. Dito de outro modo: cestas básicas para impedir que indígenas, que antes de Belo Monte tinham autonomia alimentar, morressem de fome ou de doenças causadas pelo consumo repentino e indiscriminado de produtos industrializados, assim como pela interrupção do plantio, pesca e coleta de alimentos, causado pelo ingresso dos mesmo produtos.

Os índices de exploração ilegal de madeira dispararam na área de influência da obra. Na Terra Indígena Cachoeira Seca, uma das afetadas pela usina, foram extraídos 200.000 metros cúbicos de madeira só em 2014 [governo de Dilma Rousseff]. Essa quantidade é suficiente para encher mais de 13.000 caminhões madeireiros. Em 2013, a TI Cachoeira Seca foi a mais desmatada do Brasil. (leia mais aqui).

Uma indígena do povo Araweté disse então ao antropólogo Guilherme Heurich: “As mercadorias são a contrapartida de nossa morte futura”. Onde estava a Funai naquele momento? Ah, sim. Tinha sido convenientemente enfraquecida na região pelo governo do PT, com fechamento de postos justamente quando era mais necessária.

"Na construção de Belo Monte, os governos do PT converteram povos da floresta em pobres urbanos e enviaram a Força Nacional para reprimir greves de trabalhadores."

Como Lula está preocupado com a obra que impôs aos povos de Altamira e do Xingu, ele também pode ler os testemunhos dos ribeirinhos constrangidos a assinar com o dedo papéis que não eram capazes de ler, papéis que os condenavam a perder tudo. Quando milhares foram submetidos à “remoção compulsória”, não havia nenhuma assistência jurídica disponível para a população atingida, parte dela analfabeta.

Lula pode ainda refletir sobre como os governos do Partido dos Trabalhadores colocaram a Força Nacional para reprimir as greves dos... trabalhadores. Neste caso, os operários da usina e também as manifestações dos atingidos. Quem sabe Lula siga adiante e investigue como foi possível que a Agência Brasileira de Investigação (Abin) tenha infiltrado, em 2013, um espião no movimento social Xingu Vivo Para Sempre. E, se tiver fôlego, pode rememorar a acidentada evolução das licenças de Belo Monte no Ibama durante os governos do PT, com algumas demissões escandalosas de presidentes que se negaram a assinar permissões inaceitáveis.

A obra é vasta. É impossível se aprofundar na destruição promovida pela “grande obra do PAC” sem acompanhar a explosão da violência urbana provocada por Belo Monte, que transformou Altamira na cidade mais violenta da Amazônia. Assim como a conexão desta violência com o segundo massacre carcerário da história do Brasil, ocorrido em julho deste ano, em que 58 pessoas foram decapitadas ou queimadas vivas, e outras quatro foram executadas no percurso da transferência. É essencial conhecer os efeitos de uma rotina de balas e de mortes sobre as crianças dos “Reassentamentos Urbanos Coletivos”, os bairros construídos pela Norte Energia para empilhar os expulsos por Belo Monte. Há mais, muito mais. Dá para ocupar anos de prisão com horrores.

E então, talvez, Lula possa compreender a frase dita por Dom Erwin Kräutler, bispo emérito do Xingu, em 2012: “Lula e Dilma passarão para a história como predadores da Amazônia”.

"A exploração predatória da Amazônia não é ruptura, é continuidade."

O Brasil recente pode ser contado por rupturas. Mas pode ser contado também por pelo menos uma continuidade: a exploração predatória da Amazônia como política de Estado. Esta era a política dos governos da ditadura militar. E seguiu sendo a política dos governos da democracia, apesar dos direitos dos povos indígenas garantidos pela Constituição de 1988. Há semelhanças entre a política para a Amazônia desenvolvida pela ditadura e a política para a Amazônia implementada pelos governos do PT – de Lula, acelerada a partir da saída de Marina Silva do governo, a Dilma.

Com Bolsonaro, a exploração predatória atingiu níveis incomparáveis. Em velocidade inédita, ela é executada pela estratégia de desproteção da floresta e pela recusa à obrigação constitucional de demarcar as terras indígenas. O bolsonarismo tenta desfazer inclusive o que foi feito de positivo pelos governos anteriores. O resultado já pode ser visto antes mesmo do final do primeiro ano de governo, com a explosão do desmatamento e dos incêndios que assombraram o mundo.

Sobre a Amazônia, parece não haver polarização. Estão todos afinados. Dilma inaugurou Belo Monte explodindo de orgulho pouco antes do impeachment, Bolsonaro prometeu abrilhantar a cerimônia em que será ligada a última turbina, os militares de antes e os de agora invocam a fake news da ameaça à soberania nacional para seguir explorando a floresta e, apenas algumas semanas atrás, Lula declarou-se orgulhoso do que os moradores do Xingu chamam de Belo Monstro.

A Lava Jato tem muitos significados. Sempre critiquei seus flagrantes abusos, assim como o comportamento inaceitável do então juiz Sergio Moro. Ele e o procurador Deltan Dallagnol são os maiores inimigos da Lava Jato. Por conta de sua falta de limites e da sua vaidade continental, comprometeram também o trabalho dos procuradores sérios da Lava Jato, que desnudaram como funcionava o esquema de corrupção entre partidos e empreiteiras no país e botaram na cadeia milionários que até então tinham a impunidade como direito de classe. Entre os trabalhos sérios em curso está o desvendamento do esquema de corrupção que garantiu a construção de Belo Monte contra todas as violências visíveis a olho nu. Esta violação do Estado de direito é definida por Thais Santi, procuradora federal em Altamira, de “o mundo do tudo é possível”.

Lula ironiza quem pede a ele e ao PT autocrítica. Acha que não deve nenhuma explicação a quem o colocou no poder pelo voto acreditando no discurso da ética feito pelo partido desde a sua formação. Devemos entender então que o projeto que se mostrou em toda a sua imensa destruição em Belo Monte segue sendo a proposta do partido para a Amazônia. Se Lula almeja se alçar a “pacificador” do Brasil, deve ter uma frase em mente: “Se a paz não for para todos, não será para ninguém”.

Não haverá paz na Amazônia sem justiça. Não permitiremos o apagamento da memória. Não esqueceremos. E não deixaremos esquecer.


terça-feira, 15 de outubro de 2019

Ofensiva final contra os povos indígenas


Viveiros de Castro: “Estamos assistindo a uma ofensiva final contra os povos indígenas”
Em entrevista à Pública, antropólogo diz que madeireiros e mineradores ilegais funcionam como “carne de canhão” para privatização da Amazônia

CIRO BARROS E THIAGO DOMENICI (AGÊNCIA PÚBLICA), EL PAIS - BRASIL
12 outubro 2019

Um dos mais influentes antropólogos do planeta, Eduardo Viveiros de Castro não se dá tanta importância. “Talvez seja uma conjunção aleatória, um contingente de fatores que fez com que eu me tornasse uma pessoa em evidência dentro da academia e, depois, fora”, diz com a franqueza habitual.
Escolhido pelos leitores aliados da Agência Pública, parceiro do EL PAÍS, como entrevistado do mês, Viveiros de Castro recebeu na semana passada nossos repórteres para uma conversa de mais de duas horas, em seu apartamento, no Rio de Janeiro.
A sua primeira entrevista após a eleição de Jair Bolsonaro havia sido aceita com uma dose de contragosto. “Não tenho visões especialmente inéditas e profundas sobre tudo o que está acontecendo. Estou apenas perplexo, como todo mundo”, disse, ao descrever o cenário atual como “um momento em que a palavra perdeu o fôlego, inclusive o valor. A gente não consegue mais distinguir a verdade da mentira”. Para ele, a verdade se tornou inacreditável.



Apesar das necessárias ressalvas, Viveiros de Castro conversou com a Pública sobre diferentes temas da atualidade — da resistência indígena à destruição da Amazônia. Do Governo Lula-Dilma a Bolsonaro e os militares. Da reforma agrária a Belo Monte. Do terraplanismo à mamadeira de piroca. Da questão climática ao fim do mundo. No início do papo, ao tentar classificar sua perplexidade, ele afirma: “A gente chegou numa situação no Brasil em que você tem que usar um vocabulário da psicopatologia”. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Pergunta. Um sujeito que o senhor admira, que é o Claude Lévi-Strauss, tem uma frase assim: “Meu desejo é um pouco mais de respeito para o mundo que começou sem o ser humano e vai terminar sem ele. Isso é algo que sempre deveríamos ter presente”. Até que ponto o que ele diz se refere ao momento que a gente está vivendo?

Resposta. Essa frase está num livro publicado em 1955, Tristes trópicos, o livro talvez mais conhecido dele fora da antropologia mais especializada. É um livro que reflete várias coisas, desde um certo pessimismo filosófico muito importante dentro da imaginação lévi-straussiana, como uma observação, em primeiro lugar, absolutamente verdadeira. É interessante como é uma observação que é, digamos assim, uma obviedade, porque o mundo começou sem o homem e vai terminar sem ele, e, ao mesmo tempo é uma obviedade que precisa ser lembrada. Primeiro porque é em cima do esquecimento dela que muitas vezes se constroem vidas e, em segundo lugar, porque nesse momento em particular algo que foi dito há 50 anos, 60 anos ganha, de repente, uma atualidade até certo ponto inesperada.

E mesmo que o Lévi-Strauss já tenha advertido para o fato de que a marcha da chamada civilização ocidental, necessariamente, envolvia uma destruição de suas próprias condições materiais de existência e, portanto, ela era um projeto civilizacional suicida, ele frequentemente localiza mais especificamente na civilização ocidental de origem europeia essa ideia de que é uma civilização que consome quantidades absurdas de matéria e energia, e que está produzindo entropia, está produzindo desorganização do cosmos terrestre e que, portanto, não poderá prosseguir dessa forma. Ela, na verdade, está colaborando para o fim da espécie, num certo sentido.
Essa ideia de que o mundo começou sem o homem e que, sabemos bem, vai terminar sem ele, toda questão diz respeito a quão rápido vai ser esse término. Vai terminar quando sem ele? A impressão que se tem é que esse término está se aproximando de nós com mais velocidade do que se imaginava. Mas, ainda que isso seja verdade, a ideia de que a crise atual, a mudança climática, a crise de todos os sistemas geofísicos, geoquímicos, do planeta, implique, necessariamente, a desaparição da espécie humana, talvez seja um pouco exagerado dizer isso. Porque é provável que não desapareça toda a espécie e que as condições de vida vão ser muito mais difíceis do que elas foram nos últimos 10.000 anos, que é o tempo que se tem de história, o chamado Neolítico da história, essa fase climática dentro da qual todas as coisas das quais nós nos orgulhamos enquanto civilização surgiram: escrita, cidade, artes etc.
E essas condições vão, muito provavelmente, implicar um choque populacional na espécie que não se sabe exatamente quando, como e o que vai acarretar. Então, a frase do Lévi-Strauss é uma frase sombria, sobretudo, porque ganhou uma urgência, uma qualidade que talvez não tivesse em 1955, e pudesse ser vista como uma frase poética — sombria, mas apenas poética. O tempo verbal se tornou, de repente, mais complicado. Não é, talvez, “vai terminar”, mas “está terminando”.

P. Em algumas entrevistas, já vi o senhor declarar que é um pessimista, mas em que momento da sua trajetória o senhor foi menos pessimista? E como o senhor se caracterizaria hoje?

R. Acho que sou pessimista, sim, em vários níveis e de maneiras diferentes. Num certo plano, sou pessimista num sentido que o Lévi-Strauss era pessimista ao falar que a espécie estava colaborando com sua própria extinção, a partir dos representantes da espécie que se consideram os mais avançados, os mais evoluídos, na vanguarda, e que são justamente aqueles que estão contribuindo da maneira mais radical para a deterioração das condições materiais de sobrevivência da espécie.
Em outro sentido, sou pessimista pois não vejo com grande esperança a capacidade dos Estados-nação, dos Governos mundiais, de efetivamente mudar com a radicalidade que se impõem as condições de existência das sociedades avançadas — em particular, as tecnologicamente avançadas — para que você diminua a velocidade de deterioração do sistema termodinâmico da Terra.
Então, é um pessimismo num sentido de que não ponho muita fé na passagem da racionalidade individual, isto é, pessoas que são capazes de perceber que as coisas estão indo muito mal do ponto de vista das condições de existência, para a racionalidade coletiva e, portanto, para que movimentos sociais, governo, ONU, seja quem for, efetivamente tomem medidas que envolvam uma mudança drástica, radical, dramática, do modo de vida que nós consideramos como sendo o ideal e que, entretanto, é precisamente aquele que está produzindo a destruição do planeta.
Tô falando de carro, tô falando de petróleo, tô falando de uso de energia elétrica, tô falando do consumo de energia, seja ela fóssil, seja ela de outras fontes, o consumo em geral, per capita, de energia, o desperdício, produção de dejetos e assim por diante.
É nesse sentido que eu sou pessimista.
Além do que nós estamos vendo algo que ninguém imaginava, talvez, que é uma maré fascista mundial encabeçada pela principal potência mundial [os Estados Unidos], em breve, segunda potência mundial. A outra [China] sempre foi o que é, há 5.000 anos, sempre foi um regime autocrático, sempre foi um regime imperial, num certo sentido.
O Brasil, pra mim, é um grande motivo de pessimismo, desde o fato de nós jamais acertarmos as contas com a ditadura — é uma vergonha o Brasil não ter feito o que fez a Argentina, o Chile... — e o fato de que nós vivemos — e hoje está mais claro do que há dez anos — como uma democracia tutelada, consentida pelos militares até certo ponto. Desde a proclamação da República foi mais ou menos sempre isso que aconteceu. O que é mais patético ainda, porque saímos de uma monarquia estrangeira para uma República tutelada pelos militares. Então, realmente não temos muito o que comemorar.
De outro lado, esse é um país que continua marcado por uma estrutura profunda da sua natureza, a escravidão. Que continua, de certa maneira, girando em torno de um modo de ser, de pensar, de agir, que se contém à memória da escravidão. Não só o racismo, mas a relação do poder público do Governo com as populações negras, pobres, do Brasil, o genocídio entusiasmado praticado por governantes.
E agora a gente chegou numa situação no Brasil em que você tem que usar um vocabulário da psicopatologia para falar dos que estão no Governo. Esse governador [do Rio, Wilson Witzel] é um psicopata, esse presidente é louco, e coisa desse gênero. Cada vez mais você vê um vocabulário… “As pessoas estão loucas.” “Isso é loucura.” Então, o que que aconteceu para que de repente a política tivesse virado na psicopatologia?

P. É o que me pergunto todo dia.

R. Tem que chamar um psicanalista para fazer análise política hoje. É que nem o Reich [Wilhelm Reich, autor e psicanalista] fez do fascismo. Para analisar isso aqui, só uma pessoa que trabalha com questões de psicopatologia.
P.  Em 2013, eu tinha 23 anos e foi um momento de certa empolgação com o momento. E hoje se vê muito a análise — principalmente vindo da esquerda mais petista que estava no poder — de que, de alguma maneira, os protestos iniciaram uma onda de acontecimentos que resultaria no Governo que está hoje.

R. Você tinha uma situação em que o PT se comportou de uma maneira, no meu entender, completamente equivocada. Em vez de incorporar as bandeiras que estavam sendo levantadas em 2013, nas jornadas, ele soltou uma Garantia da Lei e da Ordem e começou a se comportar como se estivesse diante de baderneiros, terroristas, seja lá o que for. Com isso, ele jogou o movimento nos braços da direita. A direita se tornou revolucionária e a esquerda virou conservadora.
Entendendo-se o PT como um partido de esquerda, que eu sempre achei uma associação um pouco apressada; só no Brasil se diz que o Lula é um personagem da extrema-esquerda, quando na verdade o PT é um partido social-democrata, enquanto chamar o PSDB de um partido social-democrata é um absurdo, porque é um partido de centro-direita.
O projeto do PT era, na verdade, melhorar as condições de vida da população brasileira sem tocar nas chamadas relações de produção e, se possível — e ele até fez isso —, sem tocar nos lucros da classe dominante, do grande capital. Tanto é que a burguesia, os bancos, o agronegócio, todos eles lucraram muito, se deram muito bem durante o Governo do PT. Então, o que o PT queria era simplesmente que caísse mais migalhas da mesa no chão para que o povo pudesse comer mais dessas migalhas. Mas nunca pensou em pegar o bolo, dividir e entregar, redistribuir o bolo radicalmente. Você tinha uma redistribuição moderada e, sobretudo, sem meter a mão no bolso dos ricos.
Como é que se conseguiria fazer um projeto de melhorar as condições de vida da porção mais miserável da população brasileira sem mexer no bolso dos ricos? Tinha que tirar de algum lugar. Você tirou de onde? Da natureza. Das florestas, das águas. Aí aumenta desmatamento, aumenta a exploração da Amazônia, a devastação da Amazônia, aumentam os grandes projetos que vão destruir organizações sociais tradicionais, as populações tradicionais.
Eu acho que o PT cometeu um erro histórico, e acho que o principal foi o de não ter assumido o espírito das jornadas de 2013 e, ao contrário, ter se colocado do lado da polícia, literalmente, e com isso jogou o movimento na mão da direita oportunista e na mão da fração considerável da classe média, que é reacionária, que sempre foi admiradora da ditadura, que sempre saiu na rua levantando cruzes e bandeiras, na Marcha pela Família com Deus pela Liberdade, vestindo camisa do Brasil.
Isso só tirou esse pessoal do armário, no qual eles estavam desde o fim da ditadura e, sobretudo, depois que o PT ganhou a eleição em 2002. Ganhou, aliás, apenas porque o PT se obrigou a fazer concessões. A Carta aos Brasileiros do Lula, em 2002, falou: não vamos tocar no sistema. E, apesar disso, ele [o PT] foi apeado do governo por um golpe. Em parte por causa, evidente, da crise econômica mundial.
De fato eu não sou especialmente otimista, acho que a gente nunca esteve tão mal, do ponto de vista político, quanto agora. A situação é propriamente surreal. Eu há pouco tempo fiz uma brincadeira nas redes sociais dizendo que o sucesso nas fake news no Brasil se deve ao fato de que a verdade se tornou inacreditável. As notícias verdadeiras são inacreditáveis, então você acredita nas falsas.
O Senado chamou o Steve Bannon pra falar no Senado. Isso é inacreditável. O Bolsonaro fala que o garimpo é fantástico e tem que acabar com os índios e não sei o quê. Isso é inacreditável. Então, você tem que acreditar em mentiras. Está mais fácil acreditar em mamadeira de piroca do que no Steve Bannon.

P. Tem uma entrevista que o Celso Furtado deu para a revista Caros Amigos antes da primeira eleição do Lula [2002]. E ele disse que, da visão dele, seria uma tarefa fundamental do PT, se eleito, tentar impedir o processo de desagregação do Brasil. O senhor já discorreu um pouco disso, mas quais outros pecados o PT cometeu nesse caminho? E Belo Monte?

R. Primeiro, eu queria fazer uma ressalva. Não é nem dizer que não é o momento de fazer essas críticas, mas é questão de dizer que perto do que está aí o PT era o paraíso, em termos de qualidade das relações políticas, relações sociais. Aliás, com toda a picaretagem, a mamata, a propina, a negociação no Congresso, o mensalão e tudo, que o PT fez, não foi o primeiro partido de esquerda a fazer isso na história.
Ele fez um pacto com o diabo para poder governar, e o diabo cobrou a conta, como sempre cobra.
Com o impeachment foi isso. Ele fez um pacto com as forças mais reacionárias, mais corruptas do sistema político para poder governar, e conseguiu isso até certo ponto. Dali pra frente, a conta veio. E a conta vem da maneira mais atroz, mais absurda, essa prisão do Lula, essa exposição do fato de que o sistema jurídico é envenenado por pessoas de má qualidade ideológica, de má qualidade cultural e de má qualidade política.
Isso tudo, evidentemente, faz com que a gente tenha que criticar o PT, mas dizendo “olha, vejam bem”. Lula livre pra começar — essa eleição foi fraudada nesse sentido de que o Lula foi preso para evitar que ele ganhasse. Nem todo mundo que votaria no Lula — e ele teria ganho em primeiro turno — era petista, e todo mundo sabe. Assim como nem todo mundo que votou no Bolsonaro é bolsominion, mas muitas das pessoas que votaram no Bolsonaro teriam votado no Lula se o Lula estivesse solto.
Isso, em parte, passa por um certo imaginário brasileiro que envolve a figura do líder poderoso, do líder salvador, que foi transferida do Lula para o Bolsonaro, ainda que eles encarnassem figuras muito diferentes ao representar a esperança. O Lula era, essencialmente, o pai dos pobres, de alguma forma, o Bolsa Família, e o outro é, essencialmente, a figura do capitão, do policial que vai matar, prender e arrebentar, como dizia o Figueiredo. E foi o policial que ganhou.
Estou usando “o policial” para não usar outra palavra, dos amigos dele, pessoal que sai em fotografia com ele em tudo que é lugar. Então nós estamos numa situação de um regime criminoso. Não sei como definir de outra forma. Não estou falando da criminalidade clássica da política, que é a criminalidade dos contratos, dos grupos de favorecimento, que sempre houve e que o PT também praticou, mas numa criminalidade num sentido de porta de delegacia, criminalidade de assassinato, extorsão de populações pobres… Essa criminalidade está no poder. Isso é uma coisa inacreditável.
E está no poder, em parte, com o apoio e, em parte, com a perplexidade do Judiciário, que está aparelhando todo o sistema, toda a máquina pública, com as piores pessoas possíveis.
Você tem uma espécie de critério que é simples: dado um determinado ministério, alguma tal secretaria, quem é a pior pessoa possível pra colocar ali? É essa pessoa que vai.
Então, você tem uma espécie de perversidade, e perversidade quase no sentido psicopatológico mesmo, por isso que falei em psicopatia. É uma espécie de perversidade de você colocar exatamente a pessoa inimiga daquele tema para tocar a política de Estado sobre aquele tema.
Isso está acontecendo no meio ambiente, nos direitos humanos, o direito da mulher, da família, está acontecendo, de certa maneira, na economia.

P. E Belo Monte?

R. Bom, uma das grandes divergências, um dos grandes problemas que eu tenho com o PT é Belo Monte, que foi enfiada pela garganta adentro dos ribeirinhos, dos indígenas da região, pelo Lula, pela Dilma. Então, eu não consigo aceitar um partido, um governo que fez Belo Monte. Daí não se segue que eu tenha que aceitar o que está no poder agora, muito pelo contrário, mas Belo Monte não tem perdão.
Eu trabalhei lá, conheço lá, não tem perdão o que eles fizeram ali. Aquilo representa uma ideia de Brasil em que, num certo sentido, há uma continuidade em algum nível entre o projeto do PT e o projeto desse governo no que diz respeito à relação com a Amazônia, com os povos tradicionais, com o Brasil profundo.
Tem que modernizar, tem que civilizar, tem que industrializar, tem que derrubar, tem que gerar renda, tem que gerar valor, gerar emprego, e a gente ouve isso há séculos e só vê o pessoal se fodendo.

Lula livre, sim; Belo Monte, não. Belo Monte jamais.

P. O Governo Bolsonaro elegeu alguns inimigos diretos, seja territorialmente, seja de pessoas ou grupos sociais. Estou falando da Amazônia e dos indígenas. Por que este governo tem tanto medo dos índios?

R. O problema dos índios, para esse governo e para as frações da sociedade brasileira que ele representa — em particular, o grande capital, o agronegócio —, é que as terras dos índios não estão no mercado fundiário. E o projeto desse governo é de privatizar 100%. Se possível, o Brasil inteiro.
Parque nacional, reserva ecológica, todas as terras que têm uso especial estão na mira desse governo. Daí a importância do Ministério do Meio Ambiente para destruir os sistemas de terras protegidas e para o ataque aos povos indígenas. Esse ataque, na verdade, exprime um desejo de transformar o Brasil inteiro em propriedade privada.
É um Estado cujo objetivo é retirar do Estado a sua soberania efetiva sobre seu território, ou melhor, transformar a soberania em apenas poder de supervisão, mas entregar as terras ao capital privado, seja nacional, seja estrangeiro.
Daí essa conversa para boi dormir dos militares: “Ah, a invasão da Amazônia pelos estrangeiros”. Eles estão vendendo as terras da Amazônia para um monte de proprietário estrangeiro, o problema deles não é esse. Isso é mentira.
O problema dos índios é que as terras dos índios são terras da União, e o objetivo do governo é privatizar. E mais do que do governo, das classes que o governo representa, das quais ele é o jagunço, porque é isso que ele é: o jagunço da burguesia.
O segundo motivo, acho, está numa declaração absurda que o Mourão, o vice-presidente, deu há pouco tempo, louvando as capitanias hereditárias e os bandeirantes, dizendo que aquilo é o melhor da nossa origem, o melhor da nossa história, empreendedorismo e tal.
Isso soa como uma provocação, uma provocação especificamente anti-indígena, porque ele está celebrando o genocídio ameríndio, celebrando o bandeirante, que é uma figura que foi transformada, evidentemente, a partir de São Paulo, em herói da nacionalidade, quando o que ele fez, efetivamente, foi arrancar o Brasil da mão dos seus ocupantes originais. Não conseguiu arrancar todos, ainda tem 13% aí de terra [indígena].
E o objetivo, agora, é completar o processo iniciado com a invasão da América pelos portugueses. Isso é muito claro.
Os militares, agora, estão se identificando com a Europa. É muito estranho, se você for olhar a composição racial das Forças Armadas brasileiras. Não vai achar muito louro. A começar pelo Mourão, que é mestiço de índio. Mas pelo jeito não gosta.
Então, você tem uma concepção que vê o Brasil como um país essencialmente europeu, num sentido assim, do que é o melhor da nossa formação, da nossa história. Como diz o Mourão, o melhor é a Europa. É isso que ele está dizendo.
Talvez o momento culminante do filme Bacurau, que está fazendo sucesso, é o momento do diálogo em que os gringos assassinos dizem pros dois puxa-sacos brasileiros que eles não são brancos coisa nenhuma. O Mourão, na verdade, estava falando como aquele motociclista: o melhor da nossa história são as capitanias. Aí vem o gringo: “Pra começar, português nem é branco. E, segundo, você não é nem português”. Então, bum!
E as celebrações do caráter mestiço, no meu entender, são pura demonstração de hipocrisia. O que se chama de mestiçagem no Brasil, o nome certo é branqueamento.
Então, você tem um ódio do não branco no Brasil, racismo contra os negros, e um racismo dobrado, de um racismo territorial, em relação aos índios. Essas são as razões principais, eu diria.

P. E a Amazônia?

R. A Amazônia é um objeto imaginário, complicadíssimo no Brasil. Primeiro que a gente precisa sempre lembrar: a Amazônia não é brasileira. A Amazônia é de nove países.
As cabeceiras, as formadoras do Solimões e de grande parte dos afluentes da Amazônia, estão fora do território brasileiro. Se o Peru, a Colômbia, a Bolívia resolverem fechar a torneira, seca.
Vão sobrar os rios que são formados no Cerrado, no Brasil central, o Xingu, Tocantins, Araguaia, Tapajós… Que estão sendo destruídos. O Cerrado está sendo arrebentado, esses rios também estão ferrados.
O escândalo sobre a França falando da Amazônia… A Guiana Francesa é francesa. A França é amazônica, o que vão fazer com isso? Podemos fazer nada. Podemos tentar invadir a França, que nem a Argentina fez com as Malvinas, vai dar super certo…
E a Amazônia tem essa coisa: você, ao mesmo tempo, utiliza aquilo como um cartão de visitas, como um orgulho — “Olha só o verde, o paraíso, muitas árvores…” — e, de outro lado, você quer destruir a Amazônia para os outros não pegarem.
Então você tem aquela atitude de um infantilismo absurdo: “A Amazônia é nossa, e eu faço dela o que quiser. Então vou tocar fogo nela porque ela é minha”. Eu posso fazer que nem a criança que vai quebrar o brinquedo porque o brinquedo é dela, entendeu?
É um pouco isso que os militares falam, que não tem que se meter com a Amazônia, a Amazônia é nossa. Nossa pra fazer o quê?
Por que as Forças Armadas não quiseram intervir em três denúncias recentes de ataque de garimpeiros ao Ibama? Porque eles estão do lado dos garimpeiros.
Não é só essa admiração ridícula do Bolsonaro pelo garimpo, que vem desde a amizade dele, em Serra Pelada, com o Curió, não. Isso é só a parte mais, digamos assim, grotesca. Mas a ideia de utilizar a população pobre, miserável, desesperada, como carne de canhão, pra entrar lá, pegar malária, matar índio, ser morto, destruir, ferrar e tudo, é uma ideia que na verdade está na cabeça dos militares.
Na verdade, isso faz parte da ideologia nacional. O garimpeiro é mais brasileiro do que o índio para o militar. Agora, quando você chega nesse pessoal que está fora, tipo os índios, a população tradicional, os ribeirinhos, os caboclos, os sertanejos, o pessoal cujo modo de vida é contraditório, no sentido forte da palavra, a esse projeto de país, aí a coisa pega.
O que está acontecendo, também, é que em parte esse genocídio que está sendo praticado no Rio de Janeiro em cima das favelas, com a polícia atirando de helicóptero, é porque, em larga medida, o chamado “proletariado” se tornou meio dispensável. Não é preciso tanto trabalhador assim, e você tem uma quantidade de pessoas, hoje, que são consideradas supérfluas dentro do sistema econômico. E essas pessoas estão sendo massacradas.

P. Um grande traço desse governo que me parece diferente dos anteriores é essa coisa de apresentar lideranças e populações como “ah, olha aqui, os Paresi [etnia do Mato Grosso] querem plantar soja”. Essa narrativa do índio do século 21.

R. De um lado, acho que nós estamos assistindo a uma espécie de ofensiva final contra os povos indígenas.
É a grande onda agora, e vai por todos os lados. Se não for comprando eles com dinheiro, vai ser metendo os evangélicos malucos lá pra quebrar, pra proibir pajelança, fazer o diabo, acusar os índios das coisas mais loucas.
Porque é o seguinte: índio não é santo. Ninguém é. Tem filho da puta entre os índios, não sei se tanto quanto, mas eles não estão excluídos, digamos, do hall da filhadaputice humana. Então sempre vai ter algum índio, alguma pessoa indígena, que vai servir de traidor, como é o caso dessa moça, essa mulher Kalapalo que o Bolsonaro arrastou pra lá e pra cá e que foi, inclusive, renegada pela sua aldeia, pelo seu povo.
Sem contar outra coisa: os povos indígenas raramente possuem uma estrutura política que tem um porta-voz, uma pessoa que fala em nome da população. Então, o que acontece é que se tem um cara que fala alguma coisa, vai chegar outro que vai dizer o contrário, porque tem as lutas políticas internas. Se não é luta política interna, o fulano de tal se alia com o agronegociante pra ferrar o outro. Ele vai fazer isso.
Pra começar, os povos indígenas são trezentos e poucos no Brasil. Chamar todos eles de indígenas não diz muita coisa sobre eles, diz muito mais sobre a Constituição brasileira, sobre legislação, que chama de indígena uma coisa. A noção de indígena, na verdade, é uma palavra, principalmente, de significado jurídico.
Daí a confusão: isso é índio, isso não é índio, não sei o quê. Quando, na verdade, índio é uma forma de relação com o Estado. É claro, tem uma dimensão histórica, são populações descendentes, remanescentes, e que se pensam como ligadas às comunidades pré-colombianas. Mas são também comunidades que têm uma certa relação de exterioridade em relação ao Estado nacional e à etnia dominante, que é uma relação muito particular. E essa relação passa, principalmente, por uma certa relação com a terra.
E que, na verdade, é o nó do problema, porque o que acontece é o seguinte: a Amazônia é a parte do Brasil que representa o que era todo o Brasil em 1500. Não que ela seja exatamente igual, longe disso. Mas essa é a parte que ainda não foi destruída, que ainda não foi civilizada, que ainda não foi “conquistada”. E agora é: “Temos que acabar os serviços começados em 1500”.
E como a Amazônia virou um foco de atenção internacional por conta do fato de que é a maior floresta tropical do mundo, porque tem uma importância grande no equilíbrio geoquímico e termodinâmico do planeta, evidentemente está todo mundo olhando pra ela.
Esse seria o momento em que o Brasil poderia, se tivesse uma diplomacia menos alucinada do que a desses malucos que estão no ministério… Ela estaria naturalmente faturando, no sentido positivo da palavra, utilizando isso como um trunfo importante na sua posição no cenário internacional. Mas, ao contrário, eles estão batendo o pé, fazendo uma birra absolutamente ridícula. E vão sofrer as consequências. Agora eles têm um inimigo importante, que é o papa, que, evidentemente, não tem tantas legiões, como dizia o Stálin, não tem um exército, mas exerce um poder grande sobre a opinião pública.

P. O senhor falou da questão da liderança indígena, que não tem uma voz que fale por todos, mas a gente tem a figura do Raoni, por exemplo. Eu queria que o senhor comentasse o papel dele nesse processo da resistência indígena atualmente. E, sobre a questão da terra, queria que o senhor falasse do papel que tem a reforma agrária.

R. A reforma agrária é um caso especialmente importante. O Brasil não fez reforma agrária, e tudo o que acontece no Brasil, em parte, se explica por isso. Se optou por jogar a população rural nas cidades e entregar o campo à agricultura mecanizada e concentrada. O que acontece na Amazônia é que você ainda tem uma porção grande de população tradicional, ribeirinhos, que não sei o que vai ser dela, porque a soja já chegou na Amazônia faz tempo. A fronteira econômica está subindo e, à medida que ela sobe, vai expulsando gente, jogando fora árvore, colocando boi — o Brasil tem mais boi do que gente. E esse boi, evidentemente, não vai todo para a barriga da população brasileira. Então nós estamos, na verdade, alimentando o mundo. E o engraçado é que vejo, frequentemente, o governo se orgulhar de que o Brasil está alimentando o mundo. Devia estar alimentando os brasileiros, né? Pra começar.

P. A fome voltou…

R. É, a fome voltou, e nós nos orgulhamos de que estamos alimentando a China. Que orgulho é esse? Se a população brasileira inteira estivesse, de fato, em saúde nutricional espetacular, você poderia se dar ao luxo de se orgulhar de também estar alimentando outros países, né?
Na verdade, nós estamos queimando os móveis da casa para nos aquecermos, digamos assim. A gente está destruindo o Brasil, exportando água, exportando solo para fora do Brasil, e estamos mais ricos por causa disso? A desigualdade diminuiu depois de anos de destruição do Cerrado, da Amazônia? O ciclo do ouro, o ciclo do café, o ciclo da borracha, o ciclo da soja, todos esses ciclos com a mesma estrutura, a saber: o Brasil como exportador de produtos primários para as metrópoles capitalistas. Estamos na mesma posição em que estávamos em 1500. É uma colônia de exportação de commodities.
Agora é commodities high-tech, né? Não é mais o braço escravo, não é mais o índio amarrado, agora é a colheitadeira, é o grande trator, é a feira de Barretos.
O Brasil continua sendo uma colônia que consegue o prodígio de ser uma autocolônia, colônia dos outros e a colônia de si mesmo.
Enfim, e a reforma agrária, o que aconteceu com o MST? Acho que o MST se deu mal no Governo Dilma. Ele perdeu o fôlego, perdeu o pique, perdeu a capacidade política, em parte porque ficou nas mãos da sua relação com o governo do PT.
Eu sou otimista numa coisa: acho que o Trump não vai ser reeleito. Mas eu falei que o Bolsonaro não ia ser eleito, e ele foi, né? Eu falei que, se ele fosse eleito, eu saía do país. Eu não saí, né?
Mas, se o Trump não for reeleito, a situação do Brasil vai mudar muito, porque não tem mais um outro maluco. Essa aposta total da Presidência numa relação carnal com os EUA do Trump é bem arriscada.

P. Essa extrema-direita mundial aflorando assim parece que é algo cíclico, né?

R. O fato é que isso está ligado, evidentemente, a uma crise econômica mundial, a crise do capitalismo. Não por acaso teve a crise de 1929, em seguida tem o fascismo. E hoje você tem a crise que começou em 2008 e que, na verdade, não acabou. Esse é um ponto de mudança: estamos numa crise econômica mundial, que está se manifestando no Brasil de uma maneira particularmente dramática — não se sabe o que vem depois dela. Essas reações de extrema-direita são claramente reações, parece que são movimentos reativos diante de uma crise, de uma precarização, em relação às condições de vida, e também uma reação à crise ambiental.
Boa parte dos refugiados que estão saindo dos seus países de origem estão saindo por causa de questões de destruição das condições materiais: secas brutais, enchentes. Então, são refugiados do clima, em larga medida. Esse pessoal que está indo para os Estados Unidos, tentando pular o muro de qualquer jeito, em grande medida, é refugiado do clima.
O que me preocupa mais de tudo é a crise ecológica. O problema é que ela atinge o que a gente pode chamar de condições realmente materiais de existência. Não é o salário; é o ar. Não é o emprego; é a água.
Então, são coisas que atingem um nível de fundamentalidade para animais reais, pessoas reais, como nós somos, que precisam de ar, de água, de uma porção de coisas materiais. É nesse nível que a crise se manifesta. No esgotamento dos recursos pesqueiros, na acidificação dos oceanos, na subida no nível do mar, no aquecimento da temperatura, que provoca secas, que provoca enchentes, que provoca furacão, que provoca refugiados.
Esse tipo de crise é uma crise que, para que se possa sobreviver a ela, você precisa de uma radicalidade nas mudanças da forma que se tornou hegemônica no mundo.
Mudanças muito radicais, que não vão ser três torres eólicas que vão resolver. Vai precisar de muito mais que isso, vai precisar de uma mudança radical nos padrões de consumo, das sociedades desenvolvidas, de uma redistribuição radical dos recursos pela população do planeta.
Mas é mais fácil, em vez de acontecer isso, que aconteça outra coisa, guerras genocidas, extermínios maciços de população, destruições gigantescas de meio ambientes inteiros… É por isso que eu não sou muito otimista, né?

P. No seu livro "Há mundo por vir?", que você escreveu com a Débora [Danowski, filósofa e companheira de Viveiros de Castro] se fala que essa catástrofe climática impõe ao ser humano uma mudança metafísica de não pensar o mundo inteiro a partir de si mesmo, com uma centralidade no homem.

R. Não basta ficar dizendo: “Ah, a culpa é do cristianismo, a culpa é de quem botou o homem acima de outras criaturas”. Isso tudo não deixa de ser verdade, mas acho que o fundamental não é isso.
Acho que o que marca a modernidade ocidental é uma certa confiança de que o homem, através da tecnologia, é capaz de resolver qualquer problema que surja, de que sempre haverá uma solução. O pessoal está cada vez mais aceitando que há uma crise ecológica, mas [pensa que] alguém vai dar um jeito nisso. E se não der? Por que tem que dar? Nem tudo tem solução.
Acho que a crise ecológica não tem solução no sentido de manter o status quo atual. Isso é fora de questão. E todo mundo sabe: se o mundo inteiro consumisse a quantidade de energia per capita que consome um cidadão americano, você precisava de cinco planetas Terra para sustentar a humanidade inteira. Qual é a alternativa?

P. Você falou que a gente deveria perguntar aos índios a respeito do fim do mundo porque o mundo deles está acabando desde 1500. Que lições concretas os povos indígenas podem nos dar a respeito dessa convivência com esse fim do mundo, que é gradual, não acontece de uma vez?
R. É evidente que os 7 bilhões de pessoas humanas que vivem no planeta Terra não podem viver como vivem, hoje, uma população de 500 pessoas na Amazônia. Mas os povos indígenas, em geral no mundo inteiro, e não só os povos indígenas brasileiros, têm uma relação com o resto da realidade, particularmente com a realidade biológica, viva, outros seres vivos, que é muito diferente daquela que está implícita no nosso modo de vida e explícita em várias doutrinas religiosas, filosóficas etc.
Qual é essa relação? Essas populações se veem como parte de um universo no qual elas estão no mesmo nível que os demais seres. Não quer dizer que eles preferem ser outros seres. Eles só se percebem como no mesmo nível, como sujeitos às mesmas condições metafísicas de existência, digamos assim.
O que acontece na modernidade ocidental é que o homem se considera como um ser de exceção. Ele é um animal, mas ele tem alguma coisa que os animais não têm. Antigamente chamava de alma, agora é cultura, ciência, tecnologia… Mas é alguma coisa que torna o homem metade animal, metade anjo, alguma coisa assim. E o lado extra-animal, superanimal do homem, compensa, cancela, libera a espécie dessa imanência terrestre — transcende a realidade material.
Já os povos tradicionais, porque a história os conduziu a outra direção, não se veem acima das demais criaturas. Eles podem achar que os homens são mais inteligentes do que os jacarés, mas eles não acham que essa diferença é uma diferença de grau, não é uma diferença de natureza.
Para nós, é uma diferença de natureza. É uma espécie de hipocrisia. Porque a gente tem essa sensação de que a gente é dotado de alguma coisa que nos tira de qualquer problema, que as outras espécies vão se extinguir, mas a nossa não — quando a gente sabe que vai se extinguir também.
É como se a espécie humana fosse o único animal que, porque ela sabe que é um animal, ela não é um animal. Porque, como ela sabe que é um animal, isso a torna diferente de todos os outros animais e, portanto, não é animal.
O que é uma contradição em termos. Ao saber que é um animal, devia torná-la mais atenta às condições que a aproximam dos outros animais: da necessidade de um ambiente tolerável pela espécie.

P. O senhor até usou a expressão de que a espécie humana está se suicidando.

R. Num certo sentido. Talvez toda espécie se extinga porque se suicide, a menos que caia um meteoro na cabeça dela, é claro. Quando a gente fala “espécie”, também precisa ter cuidado, porque, quando a gente fala “espécie”, nove vezes em dez está falando é dos países superdesenvolvidos, seu modo de vida superdesenvolvido.
Essa é outra palavra que eu gosto de usar, que é superdesenvolvimento. O que a gente chama de [país] desenvolvido, na verdade, é superdesenvolvido, no sentido de excessivamente desenvolvido. No sentido de que consome muito mais do que é necessário, muito mais do que é razoável e muito mais do que é possível, dadas as condições materiais deste planeta. Então, esses países são países superdesenvolvidos.
Eles têm que se “desdesenvolver” para que outros países, outros povos, possam se desenvolver um pouco mais, de modo a equalizar um pouco as condições de existência de Bangladesh com a Califórnia.
Quer dizer que Bangladesh tem que virar a Califórnia? Não. Quer dizer que a Califórnia tem que virar Bangladesh? Também não. Mas tem que haver um meio-termo aí, tem que haver uma certa aproximação entre esses dois povos, entre o camponês de Bangladesh, a favela carioca e os condomínios de luxo de Miami e de Los Angeles. Porque, se não aproximar, o planeta vai explodir.
O Brasil é um país que está sendo usado pelo sistema econômico mundial para fazer um experimento científico, que é: o quanto você pode ferrar uma população sem produzir uma insurreição sangrenta? Até quando você pode ir tirando direitos, ferrando, explorando, expropriando, matando, jogando na informalidade, sem que isso produza um motim, uma revolução, uma explosão de violência popular? É quase como se fosse um experimento científico: o quanto eu posso torturar esse bicho antes dele morrer, sem que ele morra?
E a gente sabe que a humanidade aguenta muita coisa, então é difícil imaginar… Tem a famosa ideia de que um dia o morro vai descer… Mas e se não descer?

P. E tem a resistência indígena…

R. Você me perguntou do Raoni, esqueci de responder a isso. O que acontece é o seguinte: sim, o Raoni se tornou um símbolo, esse símbolo é capaz de catalisar a luta indígena, ele é um símbolo essencialmente para fora, um símbolo para os não índios, sobretudo. Em parte, por causa do visual que é muito marcado, em parte porque ele é um senhor, já está há muito tempo na luta, literalmente. E os índios estão se vendo obrigados a construir alianças, causas comuns. Eu me lembro de uma frase do Daniel Munduruku, que é um escritor: “Eu não sou índio, eu sou Munduruku. Índio é uma coisa de vocês, eu sou Munduruku”. Tem toda a razão.
Mas os Munduruku agora estão se juntando com, sei lá, Kayapó, com os Araweté, com os Parakanã… Para que todos esses povos, que não são uma coisa só, possam apresentar uma frente só diante de um outro lado, que, esse sim, é uma coisa só, nós, o Estado brasileiro, a etnia dominante, que é branca.
Por que eles nos chamam de brancos? Inclusive, palavra que, muitas vezes, pode ser aplicada a um negro? Porque o problema não é de cor. Uma metonímia, branco pra falar de brancos, negros, amarelos e azuis, mas ao mesmo tempo é porque o branco é de fato a figura central. O branco é uma coisa só pra eles: é o Estado.
As sociedades indígenas situadas no Brasil sempre foram sociedades com grande potencial anárquico. No sentido de que, dadas as condições demográficas e ecológicas do Brasil pré-colombiano, numa sociedade indígena, se você não está satisfeito com a aldeia, com o teu pessoal, você pega as tuas coisas, pega a rede e vai embora, faz a aldeia do outro lado. Ou seja, eram sociedades que não tinham necessidade de produzir sistemas políticos piramidais com um líder fundamental. Porque, se não está contente com o líder, vai embora e faz outra aldeia. Isso permanece nas sociedades indígenas como um impulso refratário a qualquer pessoa que fale em nome do todo, que, ao mesmo tempo, é contraditório com o que eles precisam agora, que são nomes que possam falar em nome deles todos contra esse Estado etnocida.
Os índios estão, de fato, numa situação complicada. Eles têm ao mesmo tempo que produzir lideranças, às vezes até supraétnicas. O Raoni, por exemplo, que é um Kayapó, mas não está falando ali em nome dos Kayapó. Ele está falando em nome dos índios, de todos os povos indígenas, e, ao mesmo tempo, isso é uma coisa que vai um pouco na contramão da própria sensibilidade política indígena. E eles têm que negociar isso, não vai ter outro jeito, porque eles estão enfrentando um inimigo que os obriga a se unir. Eles só estão unidos por causa dos brancos. São os índios que estão segurando a Amazônia da força destrutiva do agronegócio, do grande capital e desses malucos militares que acham que Brasil bom é criar um deserto, que governar é criar um deserto.

P. Hoje a gente vê um obscurantismo que chegou ao ponto de se questionar o formato da Terra.

R. Acho que tudo está naquela frase do Darcy Ribeiro, que todo mundo cita com razão, que é: a má educação no Brasil, a destruição, o péssimo sistema educacional no Brasil, não é um defeito, é um projeto. Acho que existe, sim, um projeto de deseducar a população brasileira, exceto quando se trata de formar mão de obra qualificada para certas funções específicas do mercado de trabalho capitalista. Mas, do ponto de vista do que a gente chama de cultura em geral, acho que existe um projeto de impedir o povo de aprender.
Por que esse ataque às universidades está se dando agora que a política de cotas entrou para valer? Tem cursinho de pré-vestibular na Maré, aprovando todo mundo no vestibular das universidades públicas. “Não pode isso. Se esse povo começar a pensar, vai dar um problema.” Tem que manter a população sob controle.
E agora você tem essas coisas loucas, tipo terraplanismo, revisionismo histórico, negacionismo climático. De onde é que vem isso? Principalmente dos Estados Unidos, vem do [Steve] Bannon, vem do alt-right, vem da nova direita. E vem junto com o quê? Com uma certa fantasia da Idade Média, cruzados e Deus-vult e não sei o quê. Então acho que existe uma espécie de projeto de regressão histórica alucinada, mítica.
Acho que não é por acaso que chamam o Bolsonaro de “mito”, porque existe aí uma mobilização de certas estruturas míticas que são politicamente reacionárias e que estão sendo difundidas, no meu entender, deliberadamente, por uma elite que, evidentemente, não acredita nisso. Você acha que o Olavo de Carvalho acha que a Terra é plana? Claro que não.
Acho que em parte tem um projeto deliberado de introduzir a confusão, o terraplanismo, negacionismo e tal, e que passa por um projeto político mais amplo, de regressão cultural antiliberal, antidemocrático.

Colaborou: Carolina Zanatta


Eduardo Batalha Viveiros de Castro (Rio de Janeiro, 19 de abril de 1951) é um antropólogo brasileiro, professor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Formado em ciências sociais pela PUC-Rio, concluiu em 1977 o mestrado em antropologia social no Museu Nacional e em 1984 o doutorado, na mesma instituição.[1] Publicou inúmeros artigos e livros, considerados como importante contribuição para a antropologia brasileira e a etnologia americanista, entre eles: From the enemy's point of view: humanity and divinity in an Amazonian society, Amazônia: etnologia e história indígena e A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia.
Lecionou na École des Hautes Études en Sciences Sociales, na Universidade de Chicago e na Universidade de Cambridge. Uma de suas mais significativas contribuições refere-se ao desenvolvimento do conceito de perspectivismo amazônico.
Sobre ele, diz Claude Lévi-Strauss, seu colega e mentor: "Viveiros de Castro é o fundador de uma nova escola na antropologia. Com ele me sinto em completa harmonia intelectual".


segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Coringa

'Coringa' mostra crueldade do homem de gostar de rir dos outros

INÁCIO ARAUJO

O horror não está no horror -repetia Júlio Bressane nos anos 1970, no Brasil. O horror não está no horror- parece insistir Todd Phillips em seu "Coringa". Ali ele nos fala da origem do mais célebre e temível inimigo de Batman, como se sabe. Mais do que isso, porém, é da passagem de psicótico a psicopata de um jovem que vive na Gotham City (ou Nova York) de 1981, ano de "Um Tiro na Noite", mas também da tomada do poder por Ronald Reagan.


É uma cidade suja, infestada por ratos, tomada por despossuídos, habitantes de rua e prédios sujos. Lembra até certos filmes de John Carpenter. Mas lembra, mais do que tudo, que Reagan foi o instaurador da política neoliberal nos EUA. Quisesse ou não, foi essa a política econômica que tem propiciado o crescimento abissal das desigualdades sociais no mundo.

Não por acaso, pouco depois de o filme começar sabemos que o serviço social onde o jovem Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), o futuro Coringa, trata de seus problemas mentais teve a verba cortada. Vai-se assim a terapia e, junto, os remédios que recebia gratuitamente. Resta-lhe cuidar da mãe, exercer sua profissão de palhaço (do tipo que atrai pessoas para lojas, visita hospitais etc.), assistir televisão e sonhar em tornar-se astro de comédia stand-up e apresentador de talk shows.

É então que entra em cena outro elemento-chave do filme: a televisão (o primeiro, claro, sãos as HQs). Ali trabalha Thomas Wayne, um dos mestres do talk show. Aquele que veio de baixo e teve oportunidade de subir, de chegar ao sucesso. Aquele que, de passagem, não hesita em humilhar os "freaks", os desajustados como Arthur Fleck. Ok, as piadas de Arthur não fazem rir, mas fazem com que riam dele. Dá audiência, faz a fortuna dos Thomas Wayne (pai do futuro Batman, para os distraídos) ou Murray Franklin (outro rei dos talk shows).
Ok, eles não são os únicos culpados. Nem Ronald Reagan. Nem só a doença que faz o futuro Coringa rir nos momentos mais inconvenientes. Há também uma crueldade inerente ao homem: gostamos de rir dos outros. Então ou fazemos os outros rirem, ou os outros rirem de nós.

Será que na visão de Todd Phillips não somos uma espécie perversa? Ou que a televisão seja uma parte central dessa perversidade? (a TV está no centro de tudo neste filme). Ou que a tendência à ganância a qualquer preço esteja dentro de uma tendência natural ou, pelo menos, de uma decadência civilizatória? Pode-se ver as coisas assim. Elas não estariam tão longe do olhar de um Tim Burton (autor dos Batman já feitos). O certo é que os fãs de Batman nunca mais poderão olhar o Coringa com os mesmos olhos. Junto com a imagem do incompreensível, insuportável vilão de outros filmes, veremos também a de um jovem triste, torturado, sem pai conhecido. Em suma, revoltado. E é impossível não compreender sua revolta.

Uma palavra sobre Todd Phillips, que fez carreira sobretudo em comédias sarcásticas, em especial a muito bem-sucedida "Se Beber Não Case" (a primeira), onde manejava elementos de absurdo e crueldade com desenvoltura. Mas é aqui que, aparentemente, obteve a independência para fazer um trabalho pessoal.

Por fim, "Coringa" não seria o mesmo sem Joaquin Phoenix. Seu Thomas Fleck parece ter-se inspirado em Antonin Artaud ( 1896-1948 ), no Artaud do fim da vida, pós-hospício, o de "Artaud le Momo", dessa máscara que ri, faz rir, zomba e geme ao mesmo tempo.
Pode ser que não, mas quem quiser fazer um filme sobre Artaud já sabe onde encontrar o ator. É um gênio, também.

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O CORINGA: PRODUÇÃO EUA, 2019; DIREÇÃO Todd Phillips; ELENCO Joaquin Phoenix, Robert De Niro, Zazie Beetz


(Inácio Araujo - FolhaPress)

Bacurau e o Brasil brutal

Bacurau e a síntese do Brasil brutal

Ivana Bentes

Há algo de profundamente perturbador em Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, talvez o mais importante filme contemporâneo sobre o Brasil distópico da era Bolsonaro. Mesmo tendo sido filmado antes das eleições de 2018 e da catástrofe política em andamento, Bacurau é um filme visionário e violento, uma ficção científica e política que não tem nada de alegórica. Ao contrário, é explicita e brutal, de uma lucidez aterradora.

Silvero Pereira como Lunga em Bacurau (Foto: Victor Jucá/Divulgação

Um filme em que os gêneros faroeste, ficção científica, filme de terror, filmes de ação hollywoodianos, rambos e exterminadores se encontram com um rural contemporâneo que explode clichês.

Bacurau é um extraordinário remix do imaginário hollywoodiano com a tradição do Cinema Novo brasileiro: a estética da fome, a estética do sonho e a pedagogia da violência de Glauber Rocha com banhos de sangue prêt-à-porter vindos dos filmes de ação e reality shows. Um filme de crítico de cinema, de cinéfilo e de um diretor que chegou ao auge da destreza narrativa.

Cinema Transgênero

Com Bacurau Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles fazem uma espécie de faroeste transgênero, no sentido dos gêneros do cinema, mas também ao explodir os clichês dos comportamentos. Um cangaço trans em que cada espectador projeta suas referências e desejos.
Mas o que o aproxima do Glauber de Deus e o diabo na terra do sol, de 1964, ou de O dragão da maldade contra o santo guerreiro, de 1969? Estamos falando de filmes de invenção de um imaginário rural brasileiro catártico, que inventam uma mística política vinda do povo. Vinda dos oralistas, dos interioranos, do inconsciente explodido das periferias rurais do Brasil.

Mas são muitas as referências: o Godard de Weekend à francesa (1967) ou de Alphaville (1965), ficção cientifica godardiana profundamente distópica. Com a diferença que não há mais nenhum romantismo em Bacurau, apenas um sarcasmo ou riso vingador ou irônico. Como na cena das execuções públicas no Anhangabaú, exibidas na TV, cenas que ecoam os linchamentos midiáticos que são as novas formas de execuções públicas.

Mad Max sertanejo

O filme trata de questões urgentes: crise da água e do meio ambiente, empresas e políticos com ethos milicianos, forças paramilitares ou mercenários globais. Atravessada por essas forças, uma nova Canudos na beira da estrada ou uma cidade Mad Max sertaneja. Uma Canudos genérica, pronta para explodir. Tudo filmado como uma espécie de reality show perverso e alucinatório, com jogos violentos e extremos e com personagens estranhamente familiares e “normais”.
Mas do que se trata o filme? Antes de mais nada de um rural contemporâneo. Um Brasil das cidadezinhas do interior completamente conectadas com o urbano. Atravessadas por redes de celular, tecnologias de vigilância e controle, telas de LED, drones, carros e motos possantes, distribuição de psicotrópicos e remédios que controlam o humor, uma cidade rústica, mas que poderia protagonizar um episódio de Black Mirror e que querem apagar do Google Mapa.

O que fazer diante do capitalismo gore?

A segunda questão é exatamente essa. O que podem (como agir, resistir, se governar) as comunidades que estão sendo atacadas e apagadas pelo capitalismo das “tripas e sangue”? E aqui tomo emprestado o conceito da mexicana Sayak Valencia para descrever a vida nas fronteiras de Tijuana, em que comunidades inteiras têm que lidar com o que nomeia de “capitalismo gore”, um capitalismo mafioso, da narcocultura, milícias, assassinatos.

Esse capitalismo gore, com suas tripas e sangue, é também uma construção cultural. O termo tem origem no gênero cinematográfico splatter, com o uso gráfico e extremo da violência, o grotesco e a violência explícita como linguagem. O assujeitamento e ações predatórias, onde se pode infligir dor e violência contra os corpos, mas também pensar a violência como necroempoderamento.
Diante de um neoliberalismo que fracassou na sua utopia de mercado, diante de uma democracia em agonia, os sujeitos, os cidadãos, a comunidade também quer partilhar e participar da violência como forma de resistência e sobrevivência.

As fronteiras, as cidade das bordas e periferias, as periferias, as comunidades apelam para um autogoverno e ações extrajurídicas. Como em Canudos amotinada, novos laboratórios do pós-colonialismo, mas também das insurreições contemporâneas. Enclaves, tribos, comunidades distópicas e utópicas se inventando.

Os insurgentes em uma democracia em agonia

Diante de fantasias de poder ultraconservadoras, diante de figuras ultraviolentas como Witzels e Bolsonaros, seres “endriagos”, demolidores, que surgem produzindo a gestão da morte, as comunidades se apropriam da violência como ferramenta de empoderamento e de resistência. Uma saída possível do lugar de vítima para a de vingadores.

Sonia Braga como Domingas em Bacurau (Foto: Victor Jucá/Divulgação)

Bacurau traz de volta o imaginário das guerrilhas dos anos 70 sem fazer qualquer menção, sem qualquer discurso político ou panfletário, simplesmente a narrativa empurra os personagens às armas!
Mas quem são esses novos heróis de uma Canudos revisitada? O Brasil que emergiu no ciclo democrático dos últimos 13 anos, as minorias que se tornaram sujeitos do discurso, os ex-quecidos do Brasil rural, ribeirinho, periférico, as figuras fronteiriças, como a extraordinária cangaceira trans, encarnada por Silvero Pereira.

Uma Canudos remixada que traz também personagens de uma dor extrema, como a mãe diante do filho executado no escuro, com o uniforme do colégio, uma cena arrepiante que vai entrar para a história do cinema brasileiro. E toda a comoção da cidade diante das mortes seriais.
Os personagens de Bacurau trazem nos corpos, nos cabelos, na cor da pele, um Brasil que emergiu e ganhou visibilidade. Homens e mulheres, negros e negras, trans, putas, os caboclos e povos originários. Magníficas as cenas de um devir índio dos personagens que andam e vivem nus nas suas casas de barro, falando com as plantas, vivendo em uma temporalidade estendida, donos de poderes mágicos e de uma cosmovisão.

Impossível não ver neste faroeste caboclo sideral os banhos de sangue, as Marielles assassinadas, a potência das mulheres, todo um novo cangaço das lutas de maiorias, minorias e transgêneros.

Hiper realismo alucinatório

Não há nada de fantasioso em Bacurau, o filme é de uma clareza e brutalidade alucinantes, uma espécie de documentário sobre o imaginário em que estamos. O que poderia ser traumático, o jorro de sangue, a violência gore, todos os corpos dilacerados, cabeças decepadas, os requintes de crueldade e o gozo e erotismo diante da morte se tornam elementos catárticos e redentores ao final do filme.

Diante do trauma político em que estamos. Diante da percepção cotidiana de que “estamos sendo atacados” em nossos valores, em nossos impulsos vitais, em nossas vidas, em nossas sexualidades, Kleber Mendonça apresenta uma guerrilha de bolso. Um laboratório na cidadezinha do interior de Pernambuco. Bacurau é meio Dogville de Lars Von Trier. Bacurau é Dogville, Alphaville, Canudos, um território separado geográfica e temporalmente do resto do país. O Brasil, São Paulo, são ficções distantes. Como a República era uma ficção para o arraial sertanejo. Como em Os sertões de Euclides da Cunha, Kleber Mendonça nos apresenta a Terra, o Homem e a Luta.

E que emoção ver o cinema glauberiano e o imaginário euclidiano vivos, reinventados em um presente urgente que atualiza personagens como Antônio das Mortes, Corisco, Lampião, a mística política presente em um mesmo filme sem fim que estamos fazendo, uma brasiliana contemporânea.
Bacurau traz uma linguagem impactante. Um remix de Glauber com Tarantino e Godard, e ainda revisita o tropicalismo cinematográfico de filmes como Brasil ano 2000, de Walter Lima Jr .,que proclamava em 1969 que “aqui é o fim do mundo”.
Uma ficção científica apocalíptica que é um retrato do Brasil em 2019. Não identificado, a música de Caetano cantada por Gal Costa, que abre o filme, vem diretamente deste espaço sideral, anos 60/70, nossos “negros verdes anos”, de ditadura militar e do auge de invenções na cultura, uma explosão criativa de cinemanovismo, tropicalismo etc. Kleber Mendonça revisita o lado B do tropicalismo solar: distopia, anarquia, um tropicalismo underground e sombrio que não chegou na cultura de massas.

Bárbara Colen como Teresa em Bacurau (Foto: Victor Jucá/Divulgação)

Efeitos colaterais

Bacurau produz efeitos colaterais e sensoriais imediatos. Seja um estupor melancólico frente ao cenário político que estrebucha na tela, seja o efeito catártico. Ouvi pessoas que gritam e aplaudem, urram diante das mortes horríveis, cabeças decepadas e castigos infligidos aos vilões. Outras despertam eufóricas com as imagens, a montagem, como se fosse um soco ou um pegar pelos ombros que nos sacode por inteiro. Ou ainda um choro, uma comoção, não se sabe bem por que, mas que o filme desata, como esses nós que se desfazem sozinhos depois que já ferimos os dedos da mão tentando abrí-los.

São muitas as referências ao cangaço, ao sertanejo, aos jagunços, aos beatos, aos pré-revolucionários de Glauber, os condenados da terra de Frantz Fanon, os resistentes de um Brasil que luta pela terra, pela água, pela comunidade, pela Amazônia, pela vida. Em Bacurau, o mais importante é a comunidade e o comum. As lideranças são múltiplas, descentralizadas: a cangaceira trans, a médica Domingas, o professor, as lideranças espirituais. Muitas cabeças e um só corpo. Ao final uma luta, um duelo, um acertar de contas entre essa diversidade, esse Brasil, esses personagens insurgentes e disruptivos e o militarismo corporativo, o capitalismo miliciano, o empreendedorismo gore. Vai faltar caixões?

As comunidades, os enclaves, os indígenas, a juventude periférica, as esquerdas, os estudantes universitários, os negros e negras, até o momento desconsideraram o discurso radical, de pegar em armas, usar a força física, se armar para fazer a disputa política. Mas o que esperar diante de um Estado que age extra judicialmente e fora da lei?
Quando um governante diz que tem “que mirar bem na cabecinha” e matar seus “inimigos” como em um filme hollywoodiano ruim, ou chega de helicóptero sobre um corpo abatido pela polícia e comemora como um gol, esse imaginário e esse desejo de justiçamento não produzem um imaginário sem controle e perverso?

Se o Estado pode ter drones fatais que atiram para matar, não veremos em um futuro imediato um Rio de Janeiro pilotando drones de autodefesa e ataques? Uma ficção política plausível e aterradora que mostra como se produz Marighellas, Conselheiros e Zumbis, mas também Mitos, Witzels, ultra-extremistas de todos os matizes.

Diante de um humanismo que fracassou, Bacurau sintetiza o Brasil brutal, distópico em que a partilha da violência e a posse de armas e de justiçamento passa a ser feita não apenas pelo “cidadão de bem” conservador, mas surge, como na década de 70 – com as guerrilhas urbanas e ligas camponesas – como uma saída possível, uma reação coletiva, diante de uma democracia e de um Estado colapsados.
Kleber Mendonça Filho não faz uma leitura piedosa de tudo o que está ai. Faz um manifesto cinematográfico, com uma linguagem sofisticada, um apuro estético, uma destreza em conduzir a narrativa. Deixa uma pergunta. Qual a saída diante da necropolítica? O necroemponderamento? A resistência vital? A violência como uma linguagem e um poder de transformação?

Mas também uma saída mágica, uma mística política. Porque “precisamos de todos os santos e orixás, amém” para atravessar o deserto e esse imaginário adoecido. Precisamos acreditar na política e no cinema, na cultura e na arte, na educação, nas resistências cotidianas, nos enclaves e motins.
Afinal o que é um cinema disruptivo? E aqui volto a Glauber e a toda a radicalidade da arte em tempos de barbárie, “deve ser uma mágica capaz de enfeitiçar o homem a tal ponto que ele não suporte mais viver nesta realidade absurda”.

Podemos também invocar outro grito de guerra das lutas contemporâneas, uma guerrilha rural e urbana que se alastra: “As putas as bi, as travas e as sapatão tão tudo preparadas pra fazer revolução”.
Nesse sentido, Bacurau também tem um forte protagonismo feminino. Lia de Itamaracá como a liderança política e mística da comunidade e Sonia Braga, uma médica de pés no barro. Bacurau despe Sonia Braga de todo um imaginário de glamour construído nos filmes brasileiros e estrangeiros ao mostrá-la com todas as marcas da idade, cabelos brancos, um corpo nu, uma mulher na sua maturidade, quase uma “médica cubana” na sua abnegação e cola comunitária, uma atriz excepcional que se reposiciona desde Aquarius e, em Bacurau, transcende e se reinventa. Fazer “desaparecer” uma atriz como Sonia em uma comunidade de atores incríveis e pouco conhecidos é um feito.

Os invasores

Afinal quem são os invasores de Bacurau? “Estamos sob ataque”, percebem os moradores. A chave não está apenas no grupo de gringos predadores da água e assassinos, do prefeito corrupto, mas também na dupla de brasileiros sulistas (em oposição aos moradores nordestinos) que se identifica com esses grupos ultra conservadores. São os primeiros a serem sacrificados. Os que se acham “brancos”, superiores à comunidade local, os que se identificam com seu próprio opressor. Esses são os descartáveis. A classe média de extrema-direita é a primeira a ser sacrificada pelos ultraconservadores. Ousem questionar e virem os inimigos também. Trágico e sarcástico, mas a cena dessa revelação no filme vale por todo um tratado sociológico. O cinema faz ver!

IVANA BENTES é ensaísta, professora Titular da UFRJ, pesquisadora do Programa de Pós Graduação em Comunicação da UFRJ e da Pro Reitoria de Extensão da UFRJ. Autora de Midia-Multidão: estéticas da comunicação e biopolítica (Sulina), entre outros.