terça-feira, 24 de setembro de 2019

Por que cortar gastos não é a solução para o Brasil


Por que cortar gastos não é a solução para o Brasil ter crescimento vigoroso?

Para grupo de pesquisadores, nova literatura econômica recomenda o inverso, mais investimento público

Vivemos a mais longa crise econômica da nossa história e o ritmo de recuperação segue muito lento, apesar da enorme capacidade ociosa da nossa indústria, mantendo um alto nível de desemprego, incertezas sobre o futuro do país e um processo de empobrecimento de amplos setores da população.
Nesse ambiente de demanda reprimida, o governo deveria estar agindo como a experiência internacional nos ensinou após a grande crise de 2008/2009, oferecendo estímulos fiscais para que o país volte a crescer de forma consistente.

Contudo, nossas autoridades e muitos economistas ortodoxos parecem continuar reféns de um diagnóstico que dominou a narrativa política nos últimos quatro anos: a ideia de que o desequilíbrio fiscal é a raiz dos problemas econômicos e o excesso de gastos públicos é a sua causa.
Além de tal diagnóstico não ser confirmado pelos números, ele tem sido usado para defender uma política de ajuste fiscal, que reduziu o investimento público ao menor nível em 50 anos e não obteve sucesso em controlar o déficit público.

Apesar do evidente insucesso dessa política e dos prejuízos sociais que dela decorrem, alguns economistas, dos quais deveríamos esperar menos dogmatismo, insistem em manter de pé o teto de gastos --a regra fiscal que congela por 20 anos o gasto público na esfera federal, uma regra que não encontra precedentes no mundo desenvolvido e que está ameaçando paralisar a máquina pública.
O que nos remete à seguinte pergunta: a insistência em um diagnóstico e uma política equivocada reflete apenas uma fé cega ou estaria a serviço de determinados interesses econômicos e políticos?

O DIAGNÓSTICO ESTÁ ERRADO: A CULPA NÃO É DO GASTO PÚBLICO

A ideia de que o governo precisa cortar gastos para voltar a crescer ganhou status de mantra. Argumentos falsos e mesmo um tanto infantis como "acabou o dinheiro" e "o Brasil quebrou", em conjunto com as frequentes comparações do Orçamento do governo com o orçamento de uma família têm promovido um ambiente que deixa pouco espaço para o debate qualificado.
Não, o país não quebrou. Não, o dinheiro não vai acabar enquanto o Estado puder exercer suas funções fiscais na sua própria moeda e alocar recursos a partir das escolhas da sociedade. No entanto, é fato que o Brasil enfrenta um déficit público considerável e houve um aumento da dívida pública desde 2014. Mas qual é a causa do aumento dessa dívida?

Entre 2007 e 2014, a dívida bruta se manteve relativamente estável em torno de 57% do PIB (Produto Interno Bruto). Nesse período, os juros nominais contribuíram em média com 5,7 pontos percentuais (p.p.) do PIB por ano para o aumento da dívida, enquanto o crescimento do PIB nominal contribuiu em montante semelhante (5,6 p.p.) para a redução da dívida.
O resultado primário, que se manteve positivo ao longo de quase todo aquele período, mesmo em um cenário de crescimento maior dos gastos públicos, teve um impacto de 2,2 p.p. na redução da dívida, que foi quase todo compensado por outros fatores, levando a contribuição das emissões líquidas para próximo de zero.
Já entre 2015 e 2018, o aumento da dívida bruta se deve a dois condicionantes principais: a péssima performance do crescimento econômico (2,8 p.p.) e o aumento do efeito dos juros nominais (cuja contribuição passa de 5,7 p.p. para 7,1 p.p.).
O resultado primário, por sua vez, passa a contribuir para o aumento do indicador da dívida, mesmo com a queda do crescimento dos gastos. Tal aumento foi compensado pelos demais fatores, fazendo com que as emissões líquidas respondessem por apenas 0,5 p.p. do PIB/ano do aumento da dívida bruta ao longo do período.
Portanto, o suposto excesso de gastos públicos não explica a evolução da dívida.

Os aumentos recentes da dívida pública decorrem principalmente dos gastos com juros e da queda do crescimento econômico, que não apenas reduz a contribuição do PIB para a queda do indicador da dívida pública, como impacta fortemente a arrecadação e afeta o resultado primário. Conforme veremos, a redução do crescimento é em parte explicada pelo corte de gastos públicos.
Não obstante, há outro mito que ronda o debate público: o mito do "crescimento acelerado dos gastos obrigatórios", pleiteado por Marcos Lisboa, Marcos Mendes e Marcelo Gazzano em artigo publicado na Folha no dia 8 deste mês (Por que o governo deve cortar gastos para o Brasil crescer?).

Um crescimento acelerado é uma referência ao aumento da taxa de crescimento. No entanto, ao contrário do que os autores argumentam, os dados mostram que a taxa de crescimento do gasto público caiu desde 2011, tanto os discricionários quanto os obrigatórios.
A taxa de crescimento real das despesas primárias do governo federal desacelerou de 5,2% ao ano no período de 2003 a 2010 para 3,5% no período de 2011 a 2014 e, finalmente, para 0,5% no período de 2015 a 2018. No entanto, a desaceleração das receitas nesses períodos foi maior, o que resultou na deterioração do resultado primário.

Ao analisar a evolução da composição das despesas entre 2002 e 2014, apontada por alguns como o período de "gastança", não se verifica um aumento substantivo dos gastos do governo federal em relação ao PIB, tampouco da proporção do gasto com pessoal, que se reduz em 0,7 p.p. do PIB.
As despesas que aumentam são as transferências para as famílias (0,6 p.p. do PIB), Educação (0,5 p.p.), investimentos (0,3 p.p.) e despesas correntes (0,3 p.p.). Portanto, o maior aumento relativo foi dos investimentos públicos. Os investimentos cresceram em média 8,5% ao ano entre 2003 e 2010 e caíram 31% em média por ano, entre 2015 e 2018.
 
REMÉDIO ERRADO: CORTE DE GASTOS NÃO GERA CRESCIMENTO

Para além dos mitos criados em torno do excesso de gastos públicos, o debate brasileiro também está preso à ideia de que o ajuste fiscal e o corte de gastos contribuem para o crescimento econômico, a chamada tese da "contração fiscal expansionista", formulada por Alberto Alesina e outros economistas italianos na década de 1990. Essa tese passou a ser desconstruída, desde 2012, pelos fatos e por novos estudos, até mesmo do FMI (Fundo Monetário Internacional), demonstrando as falhas da metodologia usada para embasar a conclusão.

Como argumentou Paul Krugman, a austeridade é um culto em decadência e a pesquisa que lhe dava suporte foi desacreditada. Há estudos que mostram que, além do efeito recessivo, a austeridade também provoca um aumento da dívida pública e uma piora da desigualdade social.
Mesmo autores como Alesina, Carlo Favero e Francesco Giavazzi, em texto publicado em 2018, reconhecem que a austeridade fiscal é contracionista no curto prazo e tem efeitos diferentes de acordo com as especificidades de cada país.

No Brasil, defensores da austeridade como Lisboa, Mendes e Gazzano têm argumentado que somos um caso especial em que a expansão do gasto "perdeu grande parte da sua eficácia" e o multiplicador fiscal é baixo. Entretanto, os autores tropeçam nos dados e usam uma variável de resultado para ilustrar um estímulo fiscal, misturando a dinâmica das receitas e das despesas.
Os pesquisadores Sérgio Gobetti, Rodrigo Orair e Frederico Nascimento Dutra, em texto publicado em 2018 no Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), mostram que no ano de 2015, por exemplo, os elevados déficits primário e nominal são consequências do movimento das receitas. Simultaneamente, ocorreu uma forte contração de despesas, implicando um impulso fiscal negativo de 1,5% do PIB.

Diversos trabalhos empíricos têm adotado diferentes metodologias para estimar os multiplicadores fiscais, dos quais se destacam os trabalhos acadêmicos de Alan Auerbach e Yuriy Gorodnichenko.
Essa literatura indica que esses multiplicadores são relativamente elevados, apontando para a possibilidade de que a expansão fiscal seja eficaz para estimular a demanda agregada e a produção, principalmente na situação de altíssima capacidade ociosa como existe atualmente no Brasil.
Os resultados empíricos não deixam dúvida de que os multiplicadores variam ao longo do ciclo econômico. Na fase recessiva, com desemprego e capacidade ociosa, o multiplicador fiscal é maior.
Além disso algumas categorias de despesas públicas tendem a ter um efeito sobre o gasto agregado muito maior do que outras.

Para o caso brasileiro, Orair, Fernando Siqueira e Gobetti, em estudo premiado pelo Tesouro Nacional em 2016, estimaram que, nas recessões, o multiplicador das despesas com investimentos, benefícios sociais e com pessoal assumem valores da ordem de 1,68, 1,51 e 1,33 respectivamente.
Diante do exposto, a interpretação de que a crise brasileira é decorrente de excessos de gastos não faz nenhum sentido, assim como cortar gastos não contribuirá para a retomada do crescimento. Não se quer com isso dizer que o desempenho macroeconômico, a partir de 2015, esteja relacionado exclusivamente ao corte das despesas públicas, pois a crise brasileira deve ser estudada a partir de suas múltiplas determinações. Entretanto, todas as evidências mostram que a virada na política econômica para a austeridade em 2015 contribuiu para o aprofundamento da recessão.

CONSEQUÊNCIAS E ASPECTOS POLÍTICOS DA AUSTERIDADE

Em quase todos os países do mundo, mas especialmente nos países avançados, o Estado exerce um papel distributivo importante, por meio da política fiscal. Nos países da OCDE e na União Europeia, a desigualdade medida depois do efeito na renda dos impostos, das transferências sociais e dos serviços públicos como saúde e educação é muito inferior à desigualdade da renda bruta de mercado. Isso é fruto da atuação redistributiva do Estado.

O Brasil é o país da América Latina que mais reduz a desigualdade por meio de seu gasto social, de acordo com os estudos da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) e de Fernando Gaiger Silveira. Essa redução ocorre, principalmente, via transferências às famílias e gastos sociais em educação e saúde.

Já o sistema tributário é concentrador de renda, pois há grande participação de impostos sobre bens e serviços, que penalizam os mais pobres. Portanto, o ajuste fiscal pelos gastos é uma estratégia que desmonta justamente o lado progressivo da política fiscal.
Como mostrado no livro "Economia para Poucos", os efeitos sociais da austeridade já podem ser notados na restrição de acesso a saúde, educação, moradia e à deterioração do ambiente. Dada a sua seletividade, tais políticas impactam mais fortemente alguns grupos, especialmente negros e mulheres.

Mas há alternativas. Uma nota para discussão publicada pelo corpo técnico do FMI aponta que, nos últimos dez anos, houve diversas reformas nos regimes fiscais, constituindo as chamadas regras fiscais de "segunda geração".
As principais mudanças foram o aumento da flexibilidade (como novas cláusulas de escape para períodos de baixo crescimento) e aprimoramentos em sua aplicabilidade.
Os que se opõem à mudança nas regras fiscais brasileiras argumentam que isso levaria à fuga de capitais, com consequente crise cambial e aumento da taxa de juros, em situação similar à da Argentina.

Contudo, apesar de os dois países terem dívida pública em patamar semelhante, a dívida brasileira é predominantemente denominada em moeda nacional e as reservas internacionais (US$ 380 bilhões) superam em muito a dívida de curto prazo.
Na Argentina, o percentual da dívida do governo denominado em moeda estrangeira é cerca de 80% e tem curto prazo de maturação. As reservas internacionais da Argentina (US$ 65 bilhões) não são suficientes para liquidar sua dívida em momentos de diminuição da liquidez internacional, ao contrário do Brasil.

A manutenção do teto de gastos representa um entrave à retomada do crescimento econômico, amplia a crise social e aprofunda o desmonte dos serviços públicos. Situação que tende a se agravar com a ameaça do fim da garantia de recursos para áreas prioritárias como saúde e educação.
É preciso urgentemente repensar a política fiscal, considerando seus impactos econômicos, distributivos e na garantia dos direitos humanos. As evidências da literatura nacional e internacional, além dos dados da realidade brasileira, clamam por uma mudança imediata na condução da política fiscal.

Autoria:
Esther Dweck é professora do IE-UFRJ e ex-secretária de Orçamento Federal, Fernando Maccari Lara é professor da Unisinos, Guilherme Mello é professor do IE-Unicamp, Julia Braga é professora da Faculdade de Economia da UFF, e Pedro Rossi é professor do IE-Unicamp

Ver o debate com Esther e Pedro em O desmonte dos gastos com saúde e educação

Erramos: o texto foi alterado
20.setembro 2019
Estava incorreta a afirmação publicada no artigo “Por que cortar gastos não é a solução para o Brasil ter crescimento vigoroso?”, dos economistas Esther Dweck, Fernando Maccari Lara, Guilherme Mello, Julia Braga e Pedro Rossi, de que o resultado primário de 2007 a 2014 teve impacto próximo de zero sobre a dívida bruta do governo geral. Dados do Banco Central mostram que a contribuição foi de 2,18 pontos percentuais na média anual para a redução da dívida. Também estava incorreta a informação de que os déficits primários registrados de 2015 a 2018 responderam por apenas 0,5 ponto percentual do PIB/ano para o aumento da dívida bruta. A contribuição foi de 1,9 ponto percentual. Na arte “O que contribuiu para aumentar a dívida brasileira”, que ilustra o artigo, os dados incorretamente apresentados como impacto do resultado primário se referem, na verdade, à contribuição da emissão líquida.

Diversionismo

Há soluções que conciliam equilíbrio fiscal, crescimento e redução de desigualdades 

Laura Carvalho, Folha de São Paulo, 26/09/2019    

O artigo “Por que cortar gastos não é a solução para o Brasil ter crescimento vigoroso?”, publicado nesta Folha em 14/9 por Esther Dweck, Fernando Lara, Guilherme Mello e Pedro Rossi, interpretou de forma equivocada os dados disponibilizados pelo Banco Central quando argumentou que os déficits primários registrados de 2015 a 2018, por exemplo, teriam respondido por apenas 0,5 ponto percentual (p.p.) do PIB/ano para o aumento da dívida bruta do governo.

Na verdade essa contribuição alcançaria 1,9 p.p.

Nem mesmo a alteração significativa desses números invalidou os argumentos centrais do artigo, como pode ser verificado na versão já corrigida do site da Folha. Mas o erro tem de ser lamentado por ensejar uma enxurrada de reações virulentas nas redes sociais e veículos de mídia de quem parece
querer jogar areia sobre:
1) a falta de evidência empírica para a tese de que o crescimento desenfreado de despesas causou a crise econômica.
2) as sucessivas frustrações nas projeções de crescimento dos que defendiam que a agenda implementada no país nos últimos quatro anos traria de volta a confiança dos investidores.
3) a percepção crescente entre economistas e sociedade civil de que o corte de gastos sociais pode agravar nosso grave quadro de estagnação concentradora de renda.

Quanto ao primeiro ponto, cabe sempre lembrar que um erro não invalida o outro.
Marcos Lisboa, Marcos Mendes e Marcelo Gazzano em “Por que o governo deve cortar gastos para o Brasil crescer”, publicado também nesta Folha em 8/9, com o qual os autores buscavam debater, afirmam por duas vezes que as dificuldades orçamentárias no país derivam de um “crescimento acelerado de gastos obrigatórios”.Ora, os autores certamente sabem que o termo “aceleração” se refere à segunda derivada da variável, ou seja, só se aplicaria nesse caso a uma situação em que as despesas obrigatórias crescem a um ritmo cada vez maior.

Pois bem. De acordo com a Tabela 1.1-A da Secretaria do Tesouro Nacional, as despesas obrigatórias do governo central—benefícios previdenciários, despesas com pessoal e encargos sociais, e outras— cresceram em média, em termos reais, 6,6% ao ano entre 1998 e 2002; 7,4% ao ano entre 2006 e 2010; 4,9% ao ano entre 2011 e 2014, e apenas 2,1% ao ano entre 2015 e 2018.
Ou seja, de fato essas despesas cresceram um pouco mais rápido entre 2003 e 2010 —período em que o Brasil acumulou superávits primários graças ao crescimento também acelerado das receitas—, do que no segundo governo FHC.

Só que o primeiro ano de déficit primário em 2014 veio justamente após um período de desaceleração no crescimento dessas despesas. Em nenhum dos anos do período 2011-2014, a taxa foi superior à média do período 2003-2010.

Em vez de exigir outro Erramos, interessa mais à sociedade trazer o debate para o terreno das soluções que sejam capazes de conciliar equilíbrio fiscal, crescimento econômico e redução de desigualdades.

Abrir espaço para investimentos sociais por meio de medidas que eliminem subsídios e as famigeradas desonerações que é um excelente ponto de partida. As propostas recentes de Arminio Fraga, por exemplo, vão nessa direção.


Laura Carvalho
Professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, autora de "Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico".



sábado, 7 de setembro de 2019

O Narciso de Caravaggio

O meme do Caravaggio
Tela em museu próximo à capital alemã faz jogo de espelhos com museu italiano — e interpela o nosso narcisismo de celular


Narciso (1597-9), pintura de Caravaggio

Nos últimos meses, o Narciso de Caravaggio e seu espectro têm flutuado em pôsteres nas estações de trem em Berlim. Nas plataformas, diante da reprodução da pintura que guarda um duplo de si mesma, sempre há alguém de pé encarando o celular, colocando entre si e o mundo um outro tipo de espelho. 

Emprestado até outubro pela Galeria Nacional de Arte Antiga, sediada no Palácio Barberini, em Roma, o quadro é o carro-chefe da exposição Caminhos do Barroco, no Museu Barberini — o Barberini local. Cópia opaca, baseada num modelo em bronze do palácio romano de mesmo nome, o Barberini de Potsdam é um enclave de arquitetura italiana à beira do Havel. Construído no século 18 por Frederico, o Grande, e bombardeado nos estertores da Segunda Guerra Mundial, foi reerguido entre 2013 e 2016 para abrigar a coleção privada do proprietário da multinacional de software sap, Hasso Plattner.

O site do instituto com o nome de Plattner tem cinco fotos suas e um vídeo estrelado por si próprio, um altruísta que gosta de holofotes. A outro mecenas dado a erguer palácios com obras de arte é reservado semelhante destaque no primeiro andar do museu, onde vemos o papa Barberini posar na tradição francesa dos enormes retratos oficiais a óleo. Ao longo dos séculos, monarcas, papas e, hoje, capitalistas grisalhos mantêm a pretensão de se imortalizar ao abrir fundações, atuar como curadores e construir (ou copiar, ou reformar) palácios.

A sala onde está o Narciso não é a central e tampouco das maiores; estas estão ocupadas com uma seleção de discípulos e imitadores de Caravaggio, obras também vindas do Museu Barberini original em Roma. Trata-se de evidente espelhamento: o destaque da exposição é um quadro sobre um reflexo, os outros quadros são todos de reprodutores de Caravaggio e o próprio prédio é a cópia do principal museu que os abriga. O labirinto barroco e seu jogo de espelhos, máscaras e simulacros é representado pela própria estrutura que recebe a exposição.

Pintado entre 1597 e 1599, o Narciso é do início da carreira de Caravaggio em Roma, e só foi redescoberto  no século 20, pelo historiador Roberto Longhi em 1916 — apenas dois anos após o ensaio de Freud “Sobre o narcisismo”, que define o conceito psicanalítico como organizador do ego. Freud ou Longhi seriam incapazes de prever tamanha popularização do conceito — e muito menos o sofisticado aparato que carregaríamos no bolso para projetar versões de nós mesmos um século depois.

Teatro

O chiaroscuro é luz de teatro e aqui vemos o Narciso iluminado por um refletor de palco que apenas mostra o que devemos ver — o resto é um bloco negro sobre as costas do personagem, refletido mais abaixo em tons lavados. Caravaggio retrata o jovem agachado com as mãos na beira d’água numa composição que o aprisiona numa dança consigo mesmo: o braço esquerdo, imerso na água até o pulso, se prolonga no reflexo. Igualmente, a mão direita encontra o seu duplo na superfície da água — ele então parece um oroboro humano, uma figura antropomórfica presa num círculo.

Narcotizado de si mesmo, o personagem inclina a cabeça para baixo num movimento em direção ao próprio reflexo. Pelos músculos do pescoço e do braço direito, vemos que Narciso faz um esforço descendente e gradual. Um dos aspectos mais impressionantes é esse movimento: quando nos distraímos e voltamos a ele, a impressão é de que Narciso está um pouco mais perto do espelho. Quanto aos olhos, talvez seja o esforço, talvez o êxtase, mas ele os fecha em dois traços negros. A imagem no reflexo, de traços expressionistas, monstruosos, remete a um Goya das Pinturas negras (1819-23), lapso pré-moderno que ultrapassa os séculos nas águas turvas de Caravaggio.

Ao mesmo tempo que o Narciso de Caravaggio é um daqueles memes que atraem milhões de turistas, o termo originado pelo personagem mitológico atravessou o tempo de Ovídio e Pausânias, passando por Dante e Petrarca, até os dias de hoje. Já nos anos 1970, sociólogos começaram a tratar nossa era como narcísica e, desde então, à medida que escalamos as últimas fases do capitalismo tardio, o tal ethos só se fez mais presente. O cardápio é infinito: individualismo, consumismo, autopromoção, busca por fama, cocaína, cirurgias plásticas, obsessão pelo corpo, reality shows, redes sociais.

A depender, psicanalistas normatizam a condição — ou a tratam como epidemia no consultório. Se a presença de traços de caráter narcisista é aceita como um denominador comum entre os seres humanos, os extremos do espectro são classificados como distúrbio de personalidade pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), da Associação Americana de Psiquiatria (APA).

Não se trata simplesmente de vaidade desmedida ou de um Instagram cheio de selfies. Grosso modo, uma pessoa com distúrbio de personalidade narcisista é definida pela necessidade parasitária de se alimentar dos outros ao mesmo tempo que possui um senso de autoimportância desproporcional. Ao contrário do que poderia acontecer com narcisistas menos patológicos, sua necessidade de admiração não acompanha empatia alguma a sentimentos alheios e tampouco algo que psicólogos chamam de constância de objeto.

Muitos dos adultos que guardam o mecanismo de defesa de uma criança abandonada podem virar abusadores tóxicos, envolvendo familiares e parceiros em jogos de manipulação, controle via dissonância cognitiva e ciclos de sedução, desvalorização e descarte.

O que faz do Narciso de Caravaggio em Potsdam mais trágico do que belo em 2019 é pensar que tal processo pode ser coletivo. Sociedades que elegem narcisistas patológicos como Trump ou Bolsonaro se tornam perversas — ou vice-versa, uma vez que eles são espelhos perfeitos do éthos narcisista. Projetos de poder baseados em onipotentes sonhos de grandeza e em falta de empatia são gerados por traumas coletivos mal resolvidos (pense na escravidão ou na Lei de Anistia) e criadores de traumas ainda piores no futuro.

Quando o passado jamais se transforma em História, parecemos fadados a repeti-la — como um reflexo.

J. P. Cuenca
01 setembro 2019