Frances Badia i Dalmares, EL PAIS
Santarém (Brasil) 28 agosto 2019
Assim como as cicatrizes se acumulam na casca das seringueiras por toda a Amazônia, os indígenas também carregam feridas profundas em seus corpos, cicatrizes muito antigas. A primeira ameaça industrial de dimensão catastrófica que caiu sobre a Amazônia foi a febre da borracha (1879/1912), que irrompeu nesses territórios remotos e quebrou um frágil equilíbrio entre o ser humano e a natureza exuberante da floresta, alcançada com o esforço de séculos de adaptação e simbiose. A extração maciça de borracha significou o abuso, a escravização e até o extermínio de aldeias indígenas inteiras.
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Hoje, entre diversos povos tradicionais e demais populações que vivem nas margens do rio Tapajós e afluentes, pode-se observar o imenso dano que a extração industrial de seus ricos recursos naturais trouxe para seus modos de vida tradicionais. O modelo de desenvolvimento imposto pelo capitalismo causou o colapso de toda sua biodiversidade, afetando ao equilíbrio dessa terra fértil e sagrada.
Aqui nunca foi fácil viver. Apesar do massacre devastador da colonização, os povos indígenas manejaram sabiamente a sua relação com natureza, e conseguiram continuar a viver em assim por centenas de anos.
Tupi toma banho com seu filho de 10 anos. Foto de Pablo Albarenga
O antropólogo Claude Levy-Strauss afirmou categoricamente, em sua obra-prima Tristes Trópicos(1955), que a modernidade violava toda a virgindade indígena, mesmo a mais remota. O mito do índio imaculado é um fantasma que apenas alguns antropólogos românticos e viajantes desinformados buscam. Ele desapareceu para sempre, há muito tempo atrás.
Tupi colhe flores e grandes folhas de palma para enfeitar a mesa
durante uma jornada de discussão sobre gênero na aldeia San Francisco
A resistência Tupinambá contra o processo de colonização a qual foram submetidos é evidenciada de diversas maneiras, desde a ligação com a natureza, crenças, costumes, até suas narrativas orais, ainda não contadas nos livros de história. É nesse território de ancestralidade que esse povo conta sua espiritualidade estabelecida com os Encantados do rio Tapajós. Onde a voz do seu povo ecoa em todos os espaços para terem o seu Protocolo de Consulta respeitado, defendendo que todos os povos tradicionais possam continuar navegando e se alimentando do rio, mantidos e protegidos pelos seus lugares sagrados.
A aldeia de São Francisco é um bom exemplo de tudo isso. É no percurso entre a aldeia e a cidade, onde a jovem indígena Tupi luta para se reconstruir, que algumas das feridas e violências que persistem entre as comunidades amazônicas às margens do rio Tapajós são explicadas de alguma forma. Dadas as circunstâncias em que Tupi cresceu, levantar-se sozinha e caminhar com passo firme requer coragem excepcional. E coragem Tupi tem muito.
Coragem para recuperar uma relação harmoniosa com o território, como aquela que tiveram seus avós e bisavós, mas que desabou há muito tempo.
Coragem para superar uma história de violência sexual, física e psicológica nas mãos de um companheiro abusivo, que morreu tragicamente em um acidente de moto.
Coragem para se levantar e educar seu único filho. Coragem para construir uma vida autônoma e estudar na cidade. Coragem também para se olhar diante do espelho e assumir o trauma da opressão e da violação sistemática.
Coragem para finalmente enfrentar o silêncio que a oprimia, como o que oprime tantas outras mulheres, usando como arma a contínua humilhação.
Tupi conversa com suas amigas em uma das fontes próximas a sua casa.
Mas Tupi se reencontrou em suas raízes, redescobrindo a força necessária para fortalecer sua própria ancestralidade Tupinambá e afirmando, ao mesmo tempo, sua feminilidade. Passar por esse processo ao lado de outras mulheres que, com coragem semelhante, estão na luta para reconhecer o abuso, a violação e os maus-tratos através da solidariedade e da ação coletiva.
Fazer parte de um movimento, aprender a liderá-lo, aprender a construir um espaço de liberdade é o que faz dessas mulheres seres excepcionais para sua comunidade. Tupi busca na terra e nos valores de seus ancestrais uma narrativa de continuidade com uma origem, de resistência ancestral, e que traduz na sua transmissão para o filho (João) sua mais poderosa razão de existir.
João é o filho que dá a Tupi, ao mesmo tempo, a energia e a paixão necessárias para se situar em um tempo histórico mais longo, para se sentir como um elo de uma saga.
Mas enfrentar a luta diária e, ao mesmo tempo, colocar as coisas em contexto e olhar para frente, não é uma tarefa simples. Para tornar essa jornada possível, o apoio de outras mulheres da comunidade desempenha um papel fundamental. Isso faz com que a vulnerabilidade de ser uma mulher isolada, uma mãe viúva marcada pela tragédia, se torne uma força, uma resolução.
Como já é o caso em muitas cidades, ser mulher entre mulheres que apoiam umas às outras é cada vez mais frequente nas comunidades e aldeias ao longo do rio. Se organizar na luta representou para Tupi a âncora que lhe permitiu sair da opressão, e se tornar alguém. Participar ativamente das ações de conscientização e reivindicação, cada vez mais frequentes, dá sentido à luta individual e coletiva.
Tupi pertence ao coletivo de mulheres indígenas Suraras do Tapajós, que há alguns anos opera na vila de Alter do Chão, também aldeia Alter do Chão-Território Borari, do outro lado do rio a mais de duas horas de lancha. É uma viagem nem sempre amistosa ou segura, sujeita às inclemências do vento e da chuva, que às vezes se intensificam enormemente. Fazer parte desse grupo, afirmar-se como mulher entre mulheres, recuperar, por exemplo, fragmentos da língua indígena, muitas vezes através de cantos realizados pelo grupo de Carimbó (ritmo popular do estado do Pará) que elas formaram recentemente, acabou sendo para Tupi uma via de fortalecimento e libertação.
"Eu virei uma mulher que desabrochou", diz ela com emoção. "Eu não sabia a força que eu tinha armazenada aqui dentro. Entre tantas coisas, não tinha a coragem de falar, não sabia falar". O coletivo acompanhou Tupi, dando conforto e coragem para ela suportar a dor que carregava e para se sentir alguém de novo, ou talvez pela primeira vez.
E esse sentimento, Tupi vive com muita felicidade. Sentir-se útil, poder falar em nome de outras mulheres Tupinambá também vítimas de abusos, e poder fazê-lo em outros âmbitos, além da aldeia de origem, é uma missão que Tupi assume, mesmo com alguma insegurança.
Mas, além de garantir um futuro para João, Tupi aprende a treinar outras mulheres para lutar pela demarcação e conservação do território e reforçar a ancestralidade Tupinambá recentemente reconstruída. "Eu não consigo falar sobre mim, mas sim sobre nós. É daí que vem a minha emoção.
Nós temos uma voz, nós temos que defender o território". Para Tupi, há uma parte importante de aprendizagem na sua jornada em direção ao ativismo e à reivindicação.
Aprender com outras mulheres, consigo mesmo, com os anciãos, professores da aldeia. Seu interesse em reconstruir uma voz indígena para compartilhá-la com outras mulheres, mesmo que seja dos escombros de um mundo praticamente desaparecido, é fundamental no exercício da luta pela sobrevivência, pela resistência.
Mas onde Tupi cresce e ganha força, onde ela acumula coragem suficiente para se sentir verdadeiramente útil para as mulheres de seu território, é na ação coletiva. Na aldeia de São Francisco, Tupi e um pequeno grupo de mulheres se organizaram para um exercício de voz ativa enquanto mulheres Tupinambás.
Ao cair da tarde, as mulheres da aldeia prepararam uma espécie de procissão sincrética. Em uma procissão ao longo da principal "avenida”, as mulheres levaram duas pequenas imagens de duas santas de devoção local. Confeccionaram também uma série de cartazes com frases contra a violência de gênero e feminicídio. Elas distribuíram velas entre os participantes e, ao anoitecer, com um ritmo lento, mas determinado, um grupo de mulheres e meninas caminhou ao longo da avenida, acompanhadas por alguns (poucos) homens.
Entre cantos da igreja, mistérios do rosário e pais-nossos, o grupo parou em várias ocasiões para lançar slogans de protesto e repetir denúncias. Com uma mistura de devoção e raiva reprimida, elas liam, uma a uma, passo a passo, os slogans dos cartazes. Os mistérios do rosário marcam a pausa, a petição. Os homens estão quase invisíveis e, à medida em que a procissão passava em frente à mercearia, num gesto ostensivo, com o que parecia uma mistura de surpresa e desdém, apenas olhavam.
Ao ritmo da marcha, portas e janelas se entreabrem e uma mulher, com um bebê no colo, olha de canto de olho timidamente. A procissão-manifestação-ritual avançava sem ter muito bem um rumo. Cada pausa se transformava em uma invocação. As mulheres estavam bem conscientes de que estavam envolvidas em um ato de transgressão de uma ordem há muito estabelecida.
O fogo das velas acrescentou drama, emoção e liturgia à procissão. Havia algo de evocação também, evocação essa de um mundo mágico e sagrado de ressignificação que em outros tempos reinou nestas terras indígenas. Acima de tudo, entre essas mulheres o que existe é determinação. Elas sabem que ninguém virá em seu auxílio, que sua aposta é alta, que a tarefa à frente requer uma força que só pode ser alcançada se elas se unirem. E se conseguirem se multiplicar.
Mas nada é fácil nesta castigada terra Tupinambá. Os povos indígenas há muito aprenderam que resistir é sobreviver. Também organizada por mulheres, uma ação simbólica encerra a procissão.
Desenhado na terra, um grande arco e flecha encarna muitas lutas pela sobrevivência. A luta dos indígenas. A luta das mulheres. A luta pela demarcação e conservação do território. A luta de Tupi.
As mulheres, adolescentes e meninas da procissão, vão colocando suas velas no desenho previamente traçado na areia da estrada: uma foto aérea dará a dimensão do símbolo.
No dia seguinte, em uma assembleia realizada na escola indígena da aldeia, as mulheres avaliam, conversam e decidem. A tarefa à frente será difícil, mas não há como voltar atrás. Conseguir que as feridas das violências cicatrizem em seus corpos, como curaram as feridas das seringueiras após a extração da borracha, é o objetivo final de tudo isso.
Dois dias depois, Tupi é reunida com seu filho em Alter do Chão, base também do movimento das Suraras do Tapajós. Naquele momento de comunhão mãe-filho, no banho no rio sagrado que tanto significa neste aquífero, Tupi já sabe que, protagonizando essa história, protagoniza junto com ela uma história de força e superação.
Ela espera juntar-se a tantas mulheres que, cada vez em maior número, decidem dar um passo à frente na reconstrução de sua própria luta como mulheres, como povos indígenas e como protagonistas da sua própria biografia. Em um mundo amazônico, devorado por múltiplas ameaças e violências, a história de Tupi é uma de coragem e determinação.
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