quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Tupi

Tupi: Uma história de coragem e determinação indígena

Frances Badia i Dalmares, EL PAIS
Santarém (Brasil) 28 agosto 2019

Assim como as cicatrizes se acumulam na casca das seringueiras por toda a Amazônia, os indígenas também carregam feridas profundas em seus corpos, cicatrizes muito antigas. A primeira ameaça industrial de dimensão catastrófica que caiu sobre a Amazônia foi a febre da borracha (1879/1912), que irrompeu nesses territórios remotos e quebrou um frágil equilíbrio entre o ser humano e a natureza exuberante da floresta, alcançada com o esforço de séculos de adaptação e simbiose. A extração maciça de borracha significou o abuso, a escravização e até o extermínio de aldeias indígenas inteiras.

https://www.youtube.com/watch?v=QAyqqL0q-w4 

Hoje, entre diversos povos tradicionais e demais populações que vivem nas margens do rio Tapajós e afluentes, pode-se observar o imenso dano que a extração industrial de seus ricos recursos naturais trouxe para seus modos de vida tradicionais. O modelo de desenvolvimento imposto pelo capitalismo causou o colapso de toda sua biodiversidade, afetando ao equilíbrio dessa terra fértil e sagrada.

Aqui nunca foi fácil viver. Apesar do massacre devastador da colonização, os povos indígenas manejaram sabiamente a sua relação com natureza, e conseguiram continuar a viver em assim por centenas de anos.

Tupi toma banho com seu filho de 10 anos. Foto de Pablo Albarenga

 A Cabanagem (1835-1840) no Grão-Pará, marginalizada por muitos ainda citados nos livros, pelo contrário foi um grande ato de resistência, onde hoje tentam aos poucos desconstruir essa narrativa negativa contra a luta popular, infelizmente terminou com a morte de muitos indígenas que guerrearam pelo ideal de retomar sua liberdade roubada pelo opressor, incluindo a extinção dos povos Murá e Mauê, sistematicamente ameaçou a sobrevivência de outros povos indígenas e os levou a abandonar suas culturas, suas línguas e suas tradições, especialmente devido à influência violenta dos missionários que representavam um terrível dilema: ou eles se convertiam ao cristianismo, negando sua cultura e suas raízes ancestrais, ou morriam.

O antropólogo Claude Levy-Strauss afirmou categoricamente, em sua obra-prima Tristes Trópicos(1955), que a modernidade violava toda a virgindade indígena, mesmo a mais remota. O mito do índio imaculado é um fantasma que apenas alguns antropólogos românticos e viajantes desinformados buscam. Ele desapareceu para sempre, há muito tempo atrás.


Tupi colhe flores e grandes folhas de palma para enfeitar a mesa 
durante uma jornada de discussão sobre gênero na aldeia San Francisco
Hoje, nas margens do rio Tapajós encontram-se os Tupinambás resistindo e protegendo, há mais de 519 anos, seu patrimônio ambiental, territorial e cultural, juntamente com outros diferentes povos na região, tendo como principal bandeira de luta a demarcação de seu território, hoje situado na Reserva Extrativista Tapajós Arapiuns, município de Santarém.

A resistência Tupinambá contra o processo de colonização a qual foram submetidos é evidenciada de diversas maneiras, desde a ligação com a natureza, crenças, costumes, até suas narrativas orais, ainda não contadas nos livros de história. É nesse território de ancestralidade que esse povo conta sua espiritualidade estabelecida com os Encantados do rio Tapajós. Onde a voz do seu povo ecoa em todos os espaços para terem o seu Protocolo de Consulta respeitado, defendendo que todos os povos tradicionais possam continuar navegando e se alimentando do rio, mantidos e protegidos pelos seus lugares sagrados.

A aldeia de São Francisco é um bom exemplo de tudo isso. É no percurso entre a aldeia e a cidade, onde a jovem indígena Tupi luta para se reconstruir, que algumas das feridas e violências que persistem entre as comunidades amazônicas às margens do rio Tapajós são explicadas de alguma forma. Dadas as circunstâncias em que Tupi cresceu, levantar-se sozinha e caminhar com passo firme requer coragem excepcional. E coragem Tupi tem muito.

Coragem para recuperar uma relação harmoniosa com o território, como aquela que tiveram seus avós e bisavós, mas que desabou há muito tempo.

Coragem para superar uma história de violência sexual, física e psicológica nas mãos de um companheiro abusivo, que morreu tragicamente em um acidente de moto.

Coragem para se levantar e educar seu único filho. Coragem para construir uma vida autônoma e estudar na cidade. Coragem também para se olhar diante do espelho e assumir o trauma da opressão e da violação sistemática.

Coragem para finalmente enfrentar o silêncio que a oprimia, como o que oprime tantas outras mulheres, usando como arma a contínua humilhação.


Tupi conversa com suas amigas em uma das fontes próximas a sua casa.

Mas Tupi se reencontrou em suas raízes, redescobrindo a força necessária para fortalecer sua própria ancestralidade Tupinambá e afirmando, ao mesmo tempo, sua feminilidade. Passar por esse processo ao lado de outras mulheres que, com coragem semelhante, estão na luta para reconhecer o abuso, a violação e os maus-tratos através da solidariedade e da ação coletiva.

Fazer parte de um movimento, aprender a liderá-lo, aprender a construir um espaço de liberdade é o que faz dessas mulheres seres excepcionais para sua comunidade. Tupi busca na terra e nos valores de seus ancestrais uma narrativa de continuidade com uma origem, de resistência ancestral, e que traduz na sua transmissão para o filho (João) sua mais poderosa razão de existir.
João é o filho que dá a Tupi, ao mesmo tempo, a energia e a paixão necessárias para se situar em um tempo histórico mais longo, para se sentir como um elo de uma saga.

Mas enfrentar a luta diária e, ao mesmo tempo, colocar as coisas em contexto e olhar para frente, não é uma tarefa simples. Para tornar essa jornada possível, o apoio de outras mulheres da comunidade desempenha um papel fundamental. Isso faz com que a vulnerabilidade de ser uma mulher isolada, uma mãe viúva marcada pela tragédia, se torne uma força, uma resolução.

Como já é o caso em muitas cidades, ser mulher entre mulheres que apoiam umas às outras é cada vez mais frequente nas comunidades e aldeias ao longo do rio. Se organizar na luta representou para Tupi a âncora que lhe permitiu sair da opressão, e se tornar alguém. Participar ativamente das ações de conscientização e reivindicação, cada vez mais frequentes, dá sentido à luta individual e coletiva.

Tupi pertence ao coletivo de mulheres indígenas Suraras do Tapajós, que há alguns anos opera na vila de Alter do Chão, também aldeia Alter do Chão-Território Borari, do outro lado do rio a mais de duas horas de lancha. É uma viagem nem sempre amistosa ou segura, sujeita às inclemências do vento e da chuva, que às vezes se intensificam enormemente. Fazer parte desse grupo, afirmar-se como mulher entre mulheres, recuperar, por exemplo, fragmentos da língua indígena, muitas vezes através de cantos realizados pelo grupo de Carimbó (ritmo popular do estado do Pará) que elas formaram recentemente, acabou sendo para Tupi uma via de fortalecimento e libertação.

"Eu virei uma mulher que desabrochou", diz ela com emoção. "Eu não sabia a força que eu tinha armazenada aqui dentro. Entre tantas coisas, não tinha a coragem de falar, não sabia falar". O coletivo acompanhou Tupi, dando conforto e coragem para ela suportar a dor que carregava e para se sentir alguém de novo, ou talvez pela primeira vez.

E esse sentimento, Tupi vive com muita felicidade. Sentir-se útil, poder falar em nome de outras mulheres Tupinambá também vítimas de abusos, e poder fazê-lo em outros âmbitos, além da aldeia de origem, é uma missão que Tupi assume, mesmo com alguma insegurança.
Mas, além de garantir um futuro para João, Tupi aprende a treinar outras mulheres para lutar pela demarcação e conservação do território e reforçar a ancestralidade Tupinambá recentemente reconstruída. "Eu não consigo falar sobre mim, mas sim sobre nós. É daí que vem a minha emoção.

Nós temos uma voz, nós temos que defender o território". Para Tupi, há uma parte importante de aprendizagem na sua jornada em direção ao ativismo e à reivindicação.
Aprender com outras mulheres, consigo mesmo, com os anciãos, professores da aldeia. Seu interesse em reconstruir uma voz indígena para compartilhá-la com outras mulheres, mesmo que seja dos escombros de um mundo praticamente desaparecido, é fundamental no exercício da luta pela sobrevivência, pela resistência.

Mas onde Tupi cresce e ganha força, onde ela acumula coragem suficiente para se sentir verdadeiramente útil para as mulheres de seu território, é na ação coletiva. Na aldeia de São Francisco, Tupi e um pequeno grupo de mulheres se organizaram para um exercício de voz ativa enquanto mulheres Tupinambás.

Ao cair da tarde, as mulheres da aldeia prepararam uma espécie de procissão sincrética. Em uma procissão ao longo da principal "avenida”, as mulheres levaram duas pequenas imagens de duas santas de devoção local. Confeccionaram também uma série de cartazes com frases contra a violência de gênero e feminicídio. Elas distribuíram velas entre os participantes e, ao anoitecer, com um ritmo lento, mas determinado, um grupo de mulheres e meninas caminhou ao longo da avenida, acompanhadas por alguns (poucos) homens.

Entre cantos da igreja, mistérios do rosário e pais-nossos, o grupo parou em várias ocasiões para lançar slogans de protesto e repetir denúncias. Com uma mistura de devoção e raiva reprimida, elas liam, uma a uma, passo a passo, os slogans dos cartazes. Os mistérios do rosário marcam a pausa, a petição. Os homens estão quase invisíveis e, à medida em que a procissão passava em frente à mercearia, num gesto ostensivo, com o que parecia uma mistura de surpresa e desdém, apenas olhavam.

Ao ritmo da marcha, portas e janelas se entreabrem e uma mulher, com um bebê no colo, olha de canto de olho timidamente. A procissão-manifestação-ritual avançava sem ter muito bem um rumo. Cada pausa se transformava em uma invocação. As mulheres estavam bem conscientes de que estavam envolvidas em um ato de transgressão de uma ordem há muito estabelecida.

O fogo das velas acrescentou drama, emoção e liturgia à procissão. Havia algo de evocação também, evocação essa de um mundo mágico e sagrado de ressignificação que em outros tempos reinou nestas terras indígenas. Acima de tudo, entre essas mulheres o que existe é determinação. Elas sabem que ninguém virá em seu auxílio, que sua aposta é alta, que a tarefa à frente requer uma força que só pode ser alcançada se elas se unirem. E se conseguirem se multiplicar.

Mas nada é fácil nesta castigada terra Tupinambá. Os povos indígenas há muito aprenderam que resistir é sobreviver. Também organizada por mulheres, uma ação simbólica encerra a procissão.
Desenhado na terra, um grande arco e flecha encarna muitas lutas pela sobrevivência. A luta dos indígenas. A luta das mulheres. A luta pela demarcação e conservação do território. A luta de Tupi.
As mulheres, adolescentes e meninas da procissão, vão colocando suas velas no desenho previamente traçado na areia da estrada: uma foto aérea dará a dimensão do símbolo.

No dia seguinte, em uma assembleia realizada na escola indígena da aldeia, as mulheres avaliam, conversam e decidem. A tarefa à frente será difícil, mas não há como voltar atrás. Conseguir que as feridas das violências cicatrizem em seus corpos, como curaram as feridas das seringueiras após a extração da borracha, é o objetivo final de tudo isso.
Dois dias depois, Tupi é reunida com seu filho em Alter do Chão, base também do movimento das Suraras do Tapajós. Naquele momento de comunhão mãe-filho, no banho no rio sagrado que tanto significa neste aquífero, Tupi já sabe que, protagonizando essa história, protagoniza junto com ela uma história de força e superação.

Ela espera juntar-se a tantas mulheres que, cada vez em maior número, decidem dar um passo à frente na reconstrução de sua própria luta como mulheres, como povos indígenas e como protagonistas da sua própria biografia. Em um mundo amazônico, devorado por múltiplas ameaças e violências, a história de Tupi é uma de coragem e determinação.

https://brasil.elpais.com/brasil/2019/07/03/actualidad/1562148915_640259.html

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

ANGUSTIA de Graciliano


Romance desagradável, abafado, ambiente sujo, povoado de ratos, cheio de podridões, de lixo. Nenhuma concessão ao gosto do público. Solilóquio doido, enervante. E mal escrito. A edição encalharia no depósito, roída pelos bichos. Não venderiam nem cem exemplares; repisei esta convicção, quis transmiti-la ao editor antes que ele se arriscasse.

A afirmação de Graciliano Ramos sobre o seu romance "Angustia" de 1936, está em seu outro livro: "Memórias do cárcere", publicado em 1953.

Contradizendo o autor, Angustia, se tornou o livro mais cult de sua bibliografia.

"Seu receio em relação à recepção do público vincula-se, por um lado, a sua notória autocrítica e às falhas de revisão e digitação decorrentes das circunstâncias da publicação do romance. Descarta a possibilidade de realizar algumas correções no texto, pois a hipótese de uma reedição futura lhe parece absolutamente descabida. No entanto, pode ser precipitado associar toda a apreensão do escritor alagoano à postura implacável diante de seus próprios textos. Sua preocupação com a opinião da crítica provavelmente está relacionada também ao alto teor moderno de seu romance, que poderia parecer excessivamente estranho no cenário literário nacional da década de 30... Outro testemunho do prestígio já desfrutado pelo livro narrado por Luis da Silva é um inquérito sobre os dez melhores romances brasileiros empreendido pela Revista Acadêmica entre 1939 e 1941. O resultado dessa pesquisa, na qual foram entrevistados aproximadamente cem intelectuais, é bastante surpreendente: Angústia foi considerado o segundo melhor romance de todos os tempos, perdendo apenas para Dom Casmurro. Dentro do quadro dos livros publicados na década de 30, sua primazia, entretanto, foi absoluta". (Ferreira, Carolina Duarte Damasceno)

Li Angustia recentemente (da Editora Record, 73ª edição, 2019). Impactante para quem já leu do mesmo autor Vidas secas, Memórias do cárcere, São Bernardo e Alexandre e seus heróis. Outra linguagem, outra estrutura de texto e outros temas. Presentes: memórias, paixão por uma mulher, ciumes, crime passional e culpa.

"O Brasil descrito pelas micronarrativas é o de República Velha (1889 - 1930). Ali estão plantadas as raízes sentimentais de Luis. Ele não é um citadino. Transportara-se do campo para a capital, transportando-se em representante típico da juventude tenentista, isto é, "molambo que a cidade puiu demais e sujou". Nas comunidades rurais alagoanas,o relacionamento entre os humanos é rude e áspero. São todos dominados pela vontade férrea do coronel, que toma assento no topo da pirâmide político - familiar." (Silviano Santiago).

Quanto à narrativa, Angustia tem pontos em comum com Crime e Castigo de Dostoiévski. Graciliano sempre negou esta influência. Mas a culpa pelo crime e a autopunição estão lá.

"Os defeitos de composição na frase e no discurso ficcional não empanam a alta qualidade do romance. Ponhamos abaixo o contrassenso. Dos casulos de redundância nascerão borboletas! O romance é excepcional porque recebeu a composição justa. A superabundância dos detalhes foi alimentada pela imaginação enraivecida do apaixonado. A compulsão à repetição foi impulsionada pela escrita do paranoico obsessivo. Marina e o assassinato de Julião, o crime e a autopunição - eis os pontos fulcrais da experiência de Luis da Silva em Maceió, narrada por ele próprio. Composto de outra forma, Angustia não teria sido tão exitoso. " (Silviano Santiago)

Quem ainda não leu Angustia está perdendo.

Citações
Ferreira, Carolina Duarte Damasceno,
O Lugar da ficção em Angústia, de Graciliano Ramos, Campinas, SP, 2005,
Orientadora : Maria Eugênia Boaventura.
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Estudos da Linguagem.

Silviano Santiago, posfácio no livro citado, da Record

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Elzita

João Valadares, Recife, Folha de São Paulo, 04/08/2019

Uma saga de 45 anos que envolve pistas falsas, visitas a quartéis, cemitérios, manicômio judicial, súplicas a presidentes e pedidos de ajuda a organizações internacionais. Ao seu lado, a companhia angustiante de uma mãe em busca de um filho: o silêncio oficial.
Até a morte, aos 105 anos, há pouco mais de um mês, Elzita Ramos de Oliveira Santa Cruz carregou como bandeira e razão de vida a pergunta sem resposta sobre o paradeiro do filho que repetiu enquanto tinha voz.

Morreu, em 2019, sem conseguir enterrar Fernando Santa Cruz, desaparecido em fevereiro de 1974, após ser preso em um sábado de Carnaval por órgãos de repressão da ditadura militar, numa esquina de Copacabana, no Rio de Janeiro.
No início da semana passada, o caso voltou à tona, quando o presidente Jair Bolsonaro (PSL) cutucou uma ferida que nunca sarou na família. De forma irônica, disse que poderia contar ao presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Felipe Santa Cruz, filho de Fernando, como seu pai havia desaparecido nos tempos de repressão.

Bolsonaro relatou, na contramão do que evidenciam documentos históricos, que o militante político teria sido morto por integrantes da Ação Popular, grupo de esquerda contrário ao regime militar.
Um dia depois, o presidente ainda chamou de "balela" os documentos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), o único e pequeno alento que o Estado brasileiro conseguiu oferecer a Elzita na tentativa de reconstruir minimamente as circunstâncias do assassinato de Fernando.

Pernambucana de Água Preta, interior do estado, mãe de dez filhos, com 28 netos e 32 bisnetos, Elzita morreu sem ter em mãos o atestado de óbito retificado no fim de julho pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, vinculada ao governo federal.

Na última quinta-feira (1º de julho de 2019), o cartório liberou o documento para a família no qual aponta que Fernando foi vítima de “morte não natural, violenta, causada pelo estado brasileiro.”O sofrimento de Elzita, que serviu de adubo para sua conscientização política, começou em 1967, quando Fernando foi preso pela primeira vez, no Recife, após ter queimado uma bandeira dos EUA durante um protesto.

Foi levado a um juizado para menores e liberado em uma semana, após Elzita conseguir declaração de médicos do IML (Instituto de Medicina Legal) atestando que seu filho ainda iria completar 18.
Três anos depois, Marcelo Santa Cruz, o seu segundo filho, foi expulso da Faculdade de Direito do Recife. Por sua atuação política, teve os direitos estudantis cassados e foi estudar em Lisboa, Portugal.
No Brasil, Elzita, casada com o médico sanitarista Lincoln de Santa Cruz Oliveira, fazia contas para ajudar o filho a se manter no exterior.

Em 1971, logo após o retorno de Marcelo ao Brasil, sentiu o braço mais forte da repressão. Rosalina Santa Cruz, a filha mais velha, hoje professora da PUC-SP, foi presa no Rio de Janeiro ao lado do marido, o engenheiro agrônomo Geraldo Leite.

O episódio é retratado no livro “Onde Está Meu Filho?”, de Chico de Assis, Cristina Tavares, Gilvandro Filho, Glória Brandão, Jodeval Duarte e Nagib Jorge Neto. Rosalina integrava o grupo de extrema esquerda VAR-Palmares, que participou da luta armada contra o regime militar.
Após 55 dias sem nenhuma notícia, Elzita recebeu a ligação de um oficial do Exército dizendo que passaria às 6h em um carro descaracterizado para levá-la até a filha. “Vou sozinha. Estou disposta a correr todos os riscos”, disse na ocasião ao filho Marcelo.

Pouco tempo depois, encontrou a filha cheia de curativos e manchas roxas pelo corpo. Ela estava na sede do 1º Exército, no Rio de Janeiro. Diante dos agentes da repressão, perguntou a ela se eles haviam a torturado. A filha desconversou. Por causa das pancadas nos ouvidos, chutes e choques elétricos, teve um aborto na prisão.

Um oficial informou a Elzita que ela estava lá para convencê-la a colaborar. Retrucou e disse que não educou a filha para entregar ninguém. Na saída, recusou-se a assinar um termo para atestar que Rosalina estava bem fisicamente.
A filha só foi solta um ano depois, em 1972. E o pesadelo de Elzita que a acompanharia até a morte chegou dois anos depois.

O PESADELO

Militante da Ação Popular Marxista-Leninista, Fernando foi visto pela última vez por seus familiares no 23 de fevereiro de 1974. Desapareceu junto com o amigo de infância Eduardo Collier Filho.
A partir daí, teve início a busca que iria durar a vida inteira. Sem derramar lágrimas públicas, desafiou generais, questionou torturadores e escreveu cartas para autoridades.

Fazia peregrinações no Congresso para entregar pessoalmente cartas a deputados. No mercado, no açougue e nas filas de banco, falava abertamente que a ditadura militar havia sumido com seu filho.
A Armando Falcão, então ministro da Justiça de Ernesto ​Geisel (1974-1979), rebateu a informação recebida de que Fernando estava na clandestinidade. “Que clandestinidade seria esta, que transformaria um filho respeitoso, carinhoso e digno em um ser cruel e desumano, que desprezaria a dor de sua velha mãe, a aflição de sua jovem esposa e o carinho do seu filho muito amado?”, questionou.

Antes, por intermédio de dom Paulo Evaristo Arns, havia estado pessoalmente, junto com mais 12 famílias de desaparecidos, com então ministro-chefe do Gabinete Civil Golbery do Couto e Silva. Quando começou a falar do seu filho, foi interrompida de imediato. Golbery afirmou que, sobre aquele caso, tinha mais informações. A resposta que, num primeiro momento deu ânimo e esperança, nunca veio.

Em outubro de 1974, enviou cartas a Ernesto Geisel e à primeira-dama Lucy Geisel. "Por que, senhor presidente, se nega em um país democrata o direito de defesa, o respeito à vida de uma pessoa? Por quê?", escreveu.

Foi recebida no terraço da casa do conhecido general do Exército Antônio Bandeira, que comandou as tropas empregadas na Guerrilha do Araguaia. Voltou sem resposta. Escutou apenas que ele não poderia fazer nada. Em 2012, no livro escrito pelo jornalista Marcelo Netto “Memórias de uma Guerra Suja”, o ex-delegado Cláudio Guerra disse que os corpos de Fernando, Collier e outros dez desaparecidos foram incinerados em fornos numa usina de açúcar de Campos de Goytacazes (RJ). Para familiares, Elzita reagiu como ainda quem guardava esperança de enterrar o filho. “Vocês vão acreditar na palavra de um torturador?”, disse.

Por meio do então arcebispo do Recife e Olinda dom Helder Câmara, com quem sempre se encontrava, fez chegar a Rosalynn Carter, ex-primeira dama dos EUA, casada com Jimmy Carter, uma correspondência em que pedia ajuda.

Marcelo Santa Cruz relembra que dom Helder dizia para Elzita: “A senhora tome cuidado. Eu sou como fogo. As pessoas quando chegam aqui saem todas queimadas”, num alerta sobre a repressão. Ela respondia: “Eu já estou no inferno faz muito tempo”.

A cada pista nova, surgia uma esperança. Meses depois do desaparecimento, chegou a informação de que Eduardo Collier estaria na França. Logo em seguida, verificou-se que não era verdade.
Em seguida, Elzita foi atrás de uma pista que dava conta de que Fernando estaria no Hospital Psiquiátrico do Juqueri, em Franco da Rocha, na região metropolitana de São Paulo.
Levou fotografias, distribuiu com os funcionários e voltou ao Recife sem encontrar o filho. Há 12 anos, esteve no IML (Instituto Médico-Legal) do Rio de Janeiro porque ficou sabendo que um homem muito parecido com Fernando foi enterrado como indigente. Olhou as fotografias e viu que não era seu filho.
Perdeu as contas de quantos quartéis visitou no Recife, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Também esteve em inúmeros cemitérios na tentativa de achar as ossadas do filho.
Até morrer, Elzita mantinha o mesmo número do telefone fixo, na esperança de que o filho desaparecido pudesse ligar para casa ou que qualquer pista pudesse chegar a ela. Em um dos quartos de sua casa, guardava fotos, documentos e roupas de Fernando.

No aniversário de 102 anos, já bastante debilitada de saúde em razão da idade avançada, conseguiu completar, estimulada pelos filhos, o poema de autor desconhecido que repetiu a vida inteira.
“Hei de vê-lo voltar, ela dizia, o meu doce consolo, o meu filhinho. Passam-se anos, e o véu do esquecimento baixando sobre as coisas tudo apaga. Menos da mãe, no triste isolamento, a saudade que o coração esmaga."

QUEM FOI FERNANDO SANTA CRUZ DE OLIVEIRA

Fernando desapareceu em fevereiro de 1974, após ser preso por agentes do DOI-Codi, órgão de repressão da ditadura militar, no Rio de Janeiro. Ele era pai do atual presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, na época um bebê de dois anos.

Nascido no Recife, se juntou no fim dos anos 1960 à Ação Popular Marxista Leninista, grupo dissidente da Ação Popular, da juventude católica.
Nenhum documento escrito sobre ele pela própria ditadura o vincula a qualquer ato violento ou da esquerda armada. Fernando não era processado quando desapareceu, aos 26 anos. Ele usava seu nome e sobrenome reais e era funcionário público de uma empresa de água e energia de São Paulo.
No Carnaval de 1974, foi visitar seu amigo Collier, que morava no Rio. Desapareceu quando se dirigia ao encontro, em Copacabana.

https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/08/elzita-teve-saga-de-45-anos-em-busca-de-filho-alvo-de-sarcasmo-de-bolsonaro.shtml  05/08/2019

ELZITA SANTOS DE SANTA CRUZ OLIVEIRA (1913 - 2019)

Elzita buscou respostas de regime após desaparecimento de filho

Artur Rodrigues, 27/06/2019, Folha de São Paulo

A vida da pernambucana Elzita Santa Cruz se transformou no Carnaval de 1974, quando um dos filhos saiu e nunca mais voltou. O estudante de direito e funcionário público Fernando Augusto Santa Cruz, com 26 anos, desapareceu no Rio de Janeiro, a caminho de um encontro com militantes da Ação Popular Marxista-Leninista.

Ela, então, iniciou uma peregrinação por prisões, quartéis e órgãos de repressão, em busca de resposta.

Elzita Santa Cruz em frente à foto do filho Fernando, desaparecido durante a Ditadura Militar - Reprodução

"É justo, é humano, é cristão que um órgão de segurança encarcere, depois de sequestrar, um jovem que trabalhava e estudava, sem que à sua família seja dada qualquer informação sobre o seu paradeiro e as acusações que lhe são imputadas? Que direi ao meu neto quando jovem for e quando me indagar que fim levou o seu pai, se ele não tiver a felicidade de ver seu regresso?", escreveu, em carta ao marechal Juarez Távora, em 1974.

Filho de Fernando e neto de Elzita, o advogado Felipe Santa Cruz, hoje presidente do conselho federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), afirma que a avó fazia o confronto às autoridades com destemor. "Mas ela era doce e poética, representava a coragem das mães e o direito da mãe ter o corpo do próprio filho."

Elzita, que teve ainda dois outros filhos perseguidos pela repressão, virou um símbolo da luta contra a Ditadura. Após a redemocratização, continuou buscando por uma resposta para a pergunta que repetiu por 45 anos: "Onde está meu filho?". Documentos públicos revelariam que ele foi preso pelas forças da repressão, mas não seu paradeiro.

O caso de Fernando foi um dos analisados pela Comissão da Verdade e Elzita venceu o Prêmio Nacional de Direitos Humanos em 2010.

Ela, que vivia em Olinda (PE), morreu aos 105 anos na terça-feira (25), sem as respostas que queria. Deixa sete filhos, 28 netos e 24 bisnetos.

https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/06/mortes-mae-destemida-virou-simbolo-contra-ditadura.shtml  05/08/2019

sábado, 3 de agosto de 2019

Altamira e Belo Monte

Altamira é um município brasileiro localizado no estado do Pará, na Região Norte do país. Sua população estimada em 2018 era de 113 195 habitantes. Fica a uma altitude de 109 metros, latitude 03º12'12" sul e longitude 52º12'23" oeste.

Altamira foi notícia no dia 29 de julho de 2019. Péssima notícia: 58 presos foram mortos em uma rebelião no Centro de Recuperação Regional em Altamira. 16 deles decapitados. No dia seguinte foram assassinados mais 4 detentos que sobreviveram ao massacre do dia anterior e que seriam transferidos para outro presídio.

A Pastoral Carcerária Nacional / CNBB divulgou em 31/07/2019 a seguinte nota:
NOTA DA PASTORAL CARCERÁRIA NACIONAL SOBRE O MASSACRE EM ALTAMIRA
Por Pastoral Carcerária
Postado em 31 de julho de 2019
Em Combate e Prevenção à Tortura, Notícias

Diante de um dos maiores massacres ocorridos no sistema prisional, que tirou a vida de 62 presos, a Pastoral Carcerária se posiciona na nota abaixo.

“As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo”.
(Constituição Pastoral – Gaudium Et Spes)

Nesta segunda-feira (29), pelo menos 58 pessoas foram mortas no Centro de Recuperação Regional de Altamira, no Pará. Mais quatro presos, que haviam sobrevivido, foram assassinados durante a transferência de Altamira para Marabá, totalizando, até o momento, 62 mortes.
Diante de mais um episódio de mortes no sistema carcerário, ocorrido dois meses após os massacres em Manaus, a Pastoral Carcerária Nacional vem a público se posicionar e afirmar, mais uma vez, que esses episódios de mortes massivas não são casos isolados: são consequências diretas do funcionamento do sistema prisional.
Após o massacre, a Superintendência do Sistema Penitenciário do Pará (Susipe) expôs a versão oficial de que a tragédia teria sido resultado de um ataque de uma facção à outra. Essa narrativa afasta a responsabilidade do Estado sobre as mortes, que são consequência inevitável do sistema prisional, cujo funcionamento leva a produção de dor e sofrimento, como afirmamos em nota pública acerca do recente massacre ocorrido em Manaus[1]
A tentativa de retirar o Estado dessa equação também serve para tornar um fato tão estarrecedor quanto a morte de 62 pessoas em um acontecimento banal, como fez o presidente da república quando questionado sobre o ocorrido [2].

Os fatores que levaram ao massacre desta semana não são naturais. Altamira, antes da construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, era uma cidade com baixos índices de violência. A chegada das empreiteiras na cidade, no entanto, somado ao aumento vertiginoso da população por conta da obra, mudou a cidade por completo.
No ano 2000, a cidade registrava apenas oito homicídios e média de 9,1 mortes por 100 mil habitantes. Em 2015, e após a construção da usina, Altamira era cidade mais violenta de todo o Brasil[3].

O consórcio Norte Energia, responsável pela construção de Belo Monte, está custeando um novo complexo prisional na cidade, como “uma das contrapartidas pela construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte em Altamira”[4]. Ou seja, o consórcio responsável por tornar Altamira a cidade mais violenta do país financia a construção de um complexo prisional que vai, como todas as outras prisões, servir para descartar essas vidas tidas como indesejáveis e marginalizadas.
Essa também não é a primeira vez que ocorrem mortes no sistema carcerário de Altamira. Em setembro de 2018, uma rebelião deixou sete mortos. Os presos reivindicavam celeridade processual e melhoria das condições de aprisionamento[5]. Em outubro do mesmo ano, houve fuga no Centro de Recuperação de Altamira [6].

O Centro de Recuperação Regional de Altamira é uma unidade superlotada. Com capacidade para 163 presos, comportava 343. Relatório divulgado nesta segunda-feira pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) classifica as condições do presídio de Altamira como “péssimas”.
A Susipe também alegou que não tinha como saber que o massacre iria ocorrer, mas uma notícia no próprio site da Superintendência mostra que, no dia 20 de maio deste ano, familiares fizeram um protesto em frente à porta do órgão, pedindo a transferência de presos desta unidade, evidenciando a preocupação das famílias com a garantia da vida de seus entes queridos. [7]
A Susipe afirmou que estaria “acompanhando em tempo real todo o movimento da massa carcerária”. Desse dito acompanhamento refletiu-se o maior saldo de mortos dentro de um presídio na história do estado do Pará.

Mais uma vez, a solução requentada de abertura de novas vagas é apresentada pelo Estado, reforçando um ciclo infindável de construção de presídios e aumento da violência.
No entanto, tal medida em nada combate os efeitos mortíferos da política de encarceramento em massa, nem reduz a violência. Como afirmamos desde os massacres ocorridos em 2017 em Manaus, Roraima e Rio Grande do  Norte, não se trata de uma crise no sistema prisional, e sim de um projeto, que está se intensificando. Isto é, a máquina de moer gente está em pleno funcionamento[8].

Os ataques no Ceará no início do ano, o massacre em Manaus e as dezenas de mortes em Altamira, além das torturas e mortes diárias nas celas pelo país, são resultados desse projeto.
Se guardamos qualquer resquício de humanidade, a reversão do processo de encarceramento em massa é urgente. À luz da campanha da fraternidade de 2019, reforçamos nosso compromisso com a busca por políticas de desencarceramento.

A Pastoral Carcerária Nacional se solidariza com todas as vítimas, com os presos de Altamira e com seus familiares, e, enquanto massacres, mortes e torturas continuarem ocorrendo atrás das grades, estaremos denunciando e lutando contra o sistema prisional.

Pastoral Carcerária Nacional
Comissão Episcopal Pastoral para a Ação Sociotransformadora/CNBB

As consequências das hidroelétricas na Amazônia

Três grandes hidrelétricas na Amazônia foram concebidas e construídas sob protestos de ambientalistas e defensores dos povos originários, principalmente indígenas. Jirau e Santo Antônio no rio Madeira, Monte Belo no Rio Xingu. De 2011 a 2014 escrevi neste Blog sobre o tema. Terra inacabada, Terra inacabada 2, Terra inacabada 3 e Terra inacabada 4. As consequências destes projetos realizados ignorando suas consequências e desrespeitando alertas marcam a ganância aliada a tragédias.

Eliane Brum, “Belo Monte: a anatomia de um etnocídio” de dezembro 2014 e Dom Erwin Kräutler recentemente atestam as tragédias anunciadas.