A necessidade de viver nossas dores
Mariliz Pereira Jorge, 24/ 07/ 2018, Folha de São Paulo
Há poucos anos perdi uma amiga para o câncer. Quando soube da notícia, levantei da minha mesa de trabalho, peguei minha bolsa e me dirigi ao velório. No caminho, recebo uma ligação do diretor da empresa onde trabalhava. Ele questionava minha ausência e a necessidade da minha ida ao cemitério.
Eu tinha acabado de perder uma amiga, estava devastada pela tristeza e me defrontei com um filho da puta, insensível, que acreditava que eu não precisava de um tempo para me despedir de uma pessoa amada. Não conseguia entender a simples necessidade de alguém de se sentir miserável e de sofrer em paz.
Não sei quando foi que as coisas tomaram esse rumo, mas o pior é que nos convencemos de que perda, morte, fim de relacionamentos, decepções, frustrações, e até mesmo doenças são problemas menores que precisam ser enfrentados com a praticidade com a qual resolvemos nossa vida doméstica. Coloca tudo em débito automático e não se preocupe mais com nada.
Não vivemos mais nossas dores porque a vida, com todas as suas atribuições, nos atropela com suas urgências. E o mundo está cheio de gente cruel e sem coração que nos convence de que não há outra forma. Com frequência a gente pega sentimentos como revolta, negação, raiva, tristeza, perda, falta, choque, desamparo, e soca bem socadinho no fundo do coração, toma uma banho frio e volta para a rotina se arrastando por dentro, com a alma amassada, mas com a coluna reta e as metas atingidas.
Tanto faz se não estamos em dia com as nossas angústias e nossas feridas. Não sofremos mais, não deixamos que o ciclo dos nossos sofrimentos se complete, que as cicatrizes fiquem sequinhas e bem fechadas para que voltar a viver não seja um tormento diário. O mundo em nossa volta, muitas vezes, faz de conta que perder um familiar, terminar um relacionamento, ser demitido do emprego, são apenas episódios corriqueiros que devem ser superados rapidamente.
Nesse mundo digital em que todos são felizes e perfeitos me causou desconforto enorme ver uma blogueira que desfilava seu relacionamento perfeito nas redes diariamente, desfazer o compromisso, apagar todas as fotos e agir como se nenhuma lágrima tivesse sido derramada por aquela ruptura. Cada amor desfeito levou de mim uma parte da alegria da qual fui feita. Lembro de ficar horas na cama, em posição fetal, com uma dor tão profunda, que parecia impossível voltar a respirar sem que o coração doesse.
Defendo que as empresas tivessem uma espécie de licença-coração-partido, para que as pessoas tenham alguns dias para sofrer, chorar e odiar a vida, antes de voltar e fazer de conta que não se importam. Mesmo que queiram nos convencer do contrário, sofrer por amor é das dores mais insuportáveis e difíceis de lidar. É preciso respeitar as aflições do traído, do largado.
Dias atrás, tive uma intoxicação alimentar tão terrível em que abracei a privada com amor e ódio durante três dias. Ao menor sinal de recuperação, olhava com desespero para minha agenda de trabalho para checar o que conseguiria dar conta sem causar muitos danos ao meu cronograma. Como se o fato de estar doente, e eu estava muito doente, me fizesse menos profissional, menos capaz, menos digna da confiança que haviam me dado. Sofri com o piriri e com o julgamento, que era muito mais meu do que de terceiros. Até que me dei conta de que as cobranças me deixavam ainda pior.
Poderia ser só salmonela, mas talvez fosse estresse, estafa mental, um sinal claro de pedido de socorro. Consegui ser menos louca por alguns minutos, deixar o celular de lado, fechar a cortina do quarto, dormir horas e horas seguidas e só, então, colocar o nariz para fora do meu mundinho particular quando o corpo já estava num ritmo tão sóbrio quando a cabeça. O mundo pode esperar, o que não pode é a nossa sanidade. A gente precisa respeitar nossas dores para que a vida não nos deixe mais doentes.
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marilizpereirajorge/2018/07/a-necessidade-de-viver-nossas-dores.shtml?utm_source=facebook&utm_medium=social&utm_campaign=compfb
quinta-feira, 26 de julho de 2018
segunda-feira, 16 de julho de 2018
Cão sem plumas
Cão sem plumas é o título do poema escrito por João Cabral de
Melo Neto em 1950. Cinco anos depois, em 1955, escreveu Morte e vida Severina.
O descaso e a miséria que assustou João Cabral estiveram em
transposições para o teatro dos dois poemas. Em 2017 Deborah Colker transformou
os versos de Cão sem plumas num espetáculo impactante. Assisti (14/07/2018) no Teatro
Carlos Gomes no Rio de Janeiro.
Abaixo o poema e considerações sobre o espetáculo concebido
por Deborah.
O cão sem plumas
|
João
Cabral de Melo Neto
|
I. Paisagem do Capibaribe
A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.
O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.
Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.
Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.
Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro.
Liso como o ventre
de uma cadela fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.
E jamais o vi ferver
(como ferve
o pão que fermenta).
Em silêncio,
o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávido de terra negra.
Em silêncio se dá:
em capas de terra negra,
em botinas ou luvas de terra negra
para o pé ou a mão
que mergulha.
Como às vezes
passa com os cães,
parecia o rio estagnar-se.
Suas águas fluíam então
mais densas e mornas;
fluíam com as ondas
densas e mornas
de uma cobra.
Ele tinha algo, então,
da estagnação de um louco.
Algo da estagnação
do hospital, da penitenciária, dos asilos,
da vida suja e abafada
(de roupa suja e abafada)
por onde se veio arrastando.
Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açúcares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde se veio arrastando.
(É nelas,
mas de costas para o rio,
que "as grandes famílias espirituais" da cidade
chocam os ovos gordos
de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões
de preguiça viscosa).
Seria a água daquele rio
fruta de alguma árvore?
Por que parecia aquela
uma água madura?
Por que sobre ela, sempre,
como que iam pousar moscas?
Aquele rio
saltou alegre em alguma parte?
Foi canção ou fonte
Em alguma parte?
Por que então seus olhos
vinham pintados de azul
nos mapas?
II. Paisagem do Capibaribe
Entre a paisagem
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
Como um cão
humilde e espesso.
Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
de casas de lama
plantadas em ilhas
coaguladas na lama;
paisagem de anfíbios
de lama e lama.
Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.
Um cão sem plumas
é quando uma árvore sem voz.
É quando de um pássaro
suas raízes no ar.
É quando a alguma coisa
roem tão fundo
até o que não tem).
O rio sabia
daqueles homens sem plumas.
Sabia
de suas barbas expostas,
de seu doloroso cabelo
de camarão e estopa.
Ele sabia também
dos grandes galpões da beira dos cais
(onde tudo
é uma imensa porta
sem portas)
escancarados
aos horizontes que cheiram a gasolina.
E sabia
da magra cidade de rolha,
onde homens ossudos,
onde pontes, sobrados ossudos
(vão todos
vestidos de brim)
secam
até sua mais funda caliça.
Mas ele conhecia melhor
os homens sem pluma.
Estes
secam
ainda mais além
de sua caliça extrema;
ainda mais além
de sua palha;
mais além
da palha de seu chapéu;
mais além
até
da camisa que não têm;
muito mais além do nome
mesmo escrito na folha
do papel mais seco.
Porque é na água do rio
que eles se perdem
(lentamente
e sem dente).
Ali se perdem
(como uma agulha não se perde).
Ali se perdem
(como um relógio não se quebra).
Ali se perdem
como um espelho não se quebra.
Ali se perdem
como se perde a água derramada:
sem o dente seco
com que de repente
num homem se rompe
o fio de homem.
Na água do rio,
lentamente,
se vão perdendo
em lama; numa lama
que pouco a pouco
também não pode falar:
que pouco a pouco
ganha os gestos defuntos
da lama;
o sangue de goma,
o olho paralítico
da lama.
Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem.
Difícil é saber
se aquele homem
já não está
mais aquém do homem;
mais aquém do homem
ao menos capaz de roer
os ossos do ofício;
capaz de sangrar
na praça;
capaz de gritar
se a moenda lhe mastiga o braço;
capaz
de ter a vida mastigada
e não apenas
dissolvida
(naquela água macia
que amolece seus ossos
como amoleceu as pedras).
III. Fábula do Capibaribe
A cidade é fecundada
por aquela espada
que se derrama,
por aquela
úmida gengiva de espada.
No extremo do rio
o mar se estendia,
como camisa ou lençol,
sobre seus esqueletos
de areia lavada.
(Como o rio era um cachorro,
o mar podia ser uma bandeira
azul e branca
desdobrada
no extremo do curso
— ou do mastro — do rio.
Uma bandeira
que tivesse dentes:
que o mar está sempre
com seus dentes e seu sabão
roendo suas praias.
Uma bandeira
que tivesse dentes:
como um poeta puro
polindo esqueletos,
como um roedor puro,
um polícia puro
elaborando esqueletos,
o mar,
com afã,
está sempre outra vez lavando
seu puro esqueleto de areia.
O mar e seu incenso,
o mar e seus ácidos,
o mar e a boca de seus ácidos,
o mar e seu estômago
que come e se come,
o mar e sua carne
vidrada, de estátua,
seu silêncio, alcançado
à custa de sempre dizer
a mesma coisa,
o mar e seu tão puro
professor de geometria).
O rio teme aquele mar
como um cachorro
teme uma porta entretanto aberta,
como um mendigo,
a igreja aparentemente aberta.
Primeiro,
o mar devolve o rio.
Fecha o mar ao rio
seus brancos lençóis.
O mar se fecha
a tudo o que no rio
são flores de terra,
imagem de cão ou mendigo.
Depois,
o mar invade o rio.
Quer
o mar
destruir no rio
suas flores de terra inchada,
tudo o que nessa terra
pode crescer e explodir,
como uma ilha,
uma fruta.
Mas antes de ir ao mar
o rio se detém
em mangues de água parada.
Junta-se o rio
a outros rios
numa laguna, em pântanos
onde, fria, a vida ferve.
Junta-se o rio
a outros rios.
Juntos,
todos os rios
preparam sua luta
de água parada,
sua luta
de fruta parada.
(Como o rio era um cachorro,
como o mar era uma bandeira,
aqueles mangues
são uma enorme fruta:
A mesma máquina
paciente e útil
de uma fruta;
a mesma força
invencível e anônima
de uma fruta
— trabalhando ainda seu açúcar
depois de cortada —.
Como gota a gota
até o açúcar,
gota a gota
até as coroas de terra;
como gota a gota
até uma nova planta,
gota a gota
até as ilhas súbitas
aflorando alegres).
IV. Discurso do Capibaribe
Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.
Um cão, porque vive,
é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.
O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.
Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso e real.
Como uma maçã
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem.
Espesso
como uma maçã é espessa.
Como uma maçã
é muito mais espessa
se um homem a come
do que se um homem a vê.
Como é ainda mais espessa
se a fome a come.
Como é ainda muito mais espessa
se não a pode comer
a fome que a vê.
Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.
E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas geléias de terra;
ao parir
suas ilhas negras de terra.
Porque é muito mais espessa
a vida que se desdobra
em mais vida,
como uma fruta
é mais espessa
que sua flor;
como a árvore
é mais espessa
que sua semente;
como a flor
é mais espessa
que sua árvore,
etc. etc.
Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu vôo).
A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.
O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.
Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.
Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.
Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro.
Liso como o ventre
de uma cadela fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.
E jamais o vi ferver
(como ferve
o pão que fermenta).
Em silêncio,
o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávido de terra negra.
Em silêncio se dá:
em capas de terra negra,
em botinas ou luvas de terra negra
para o pé ou a mão
que mergulha.
Como às vezes
passa com os cães,
parecia o rio estagnar-se.
Suas águas fluíam então
mais densas e mornas;
fluíam com as ondas
densas e mornas
de uma cobra.
Ele tinha algo, então,
da estagnação de um louco.
Algo da estagnação
do hospital, da penitenciária, dos asilos,
da vida suja e abafada
(de roupa suja e abafada)
por onde se veio arrastando.
Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açúcares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde se veio arrastando.
(É nelas,
mas de costas para o rio,
que "as grandes famílias espirituais" da cidade
chocam os ovos gordos
de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões
de preguiça viscosa).
Seria a água daquele rio
fruta de alguma árvore?
Por que parecia aquela
uma água madura?
Por que sobre ela, sempre,
como que iam pousar moscas?
Aquele rio
saltou alegre em alguma parte?
Foi canção ou fonte
Em alguma parte?
Por que então seus olhos
vinham pintados de azul
nos mapas?
II. Paisagem do Capibaribe
Entre a paisagem
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
Como um cão
humilde e espesso.
Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
de casas de lama
plantadas em ilhas
coaguladas na lama;
paisagem de anfíbios
de lama e lama.
Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.
Um cão sem plumas
é quando uma árvore sem voz.
É quando de um pássaro
suas raízes no ar.
É quando a alguma coisa
roem tão fundo
até o que não tem).
O rio sabia
daqueles homens sem plumas.
Sabia
de suas barbas expostas,
de seu doloroso cabelo
de camarão e estopa.
Ele sabia também
dos grandes galpões da beira dos cais
(onde tudo
é uma imensa porta
sem portas)
escancarados
aos horizontes que cheiram a gasolina.
E sabia
da magra cidade de rolha,
onde homens ossudos,
onde pontes, sobrados ossudos
(vão todos
vestidos de brim)
secam
até sua mais funda caliça.
Mas ele conhecia melhor
os homens sem pluma.
Estes
secam
ainda mais além
de sua caliça extrema;
ainda mais além
de sua palha;
mais além
da palha de seu chapéu;
mais além
até
da camisa que não têm;
muito mais além do nome
mesmo escrito na folha
do papel mais seco.
Porque é na água do rio
que eles se perdem
(lentamente
e sem dente).
Ali se perdem
(como uma agulha não se perde).
Ali se perdem
(como um relógio não se quebra).
Ali se perdem
como um espelho não se quebra.
Ali se perdem
como se perde a água derramada:
sem o dente seco
com que de repente
num homem se rompe
o fio de homem.
Na água do rio,
lentamente,
se vão perdendo
em lama; numa lama
que pouco a pouco
também não pode falar:
que pouco a pouco
ganha os gestos defuntos
da lama;
o sangue de goma,
o olho paralítico
da lama.
Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem.
Difícil é saber
se aquele homem
já não está
mais aquém do homem;
mais aquém do homem
ao menos capaz de roer
os ossos do ofício;
capaz de sangrar
na praça;
capaz de gritar
se a moenda lhe mastiga o braço;
capaz
de ter a vida mastigada
e não apenas
dissolvida
(naquela água macia
que amolece seus ossos
como amoleceu as pedras).
III. Fábula do Capibaribe
A cidade é fecundada
por aquela espada
que se derrama,
por aquela
úmida gengiva de espada.
No extremo do rio
o mar se estendia,
como camisa ou lençol,
sobre seus esqueletos
de areia lavada.
(Como o rio era um cachorro,
o mar podia ser uma bandeira
azul e branca
desdobrada
no extremo do curso
— ou do mastro — do rio.
Uma bandeira
que tivesse dentes:
que o mar está sempre
com seus dentes e seu sabão
roendo suas praias.
Uma bandeira
que tivesse dentes:
como um poeta puro
polindo esqueletos,
como um roedor puro,
um polícia puro
elaborando esqueletos,
o mar,
com afã,
está sempre outra vez lavando
seu puro esqueleto de areia.
O mar e seu incenso,
o mar e seus ácidos,
o mar e a boca de seus ácidos,
o mar e seu estômago
que come e se come,
o mar e sua carne
vidrada, de estátua,
seu silêncio, alcançado
à custa de sempre dizer
a mesma coisa,
o mar e seu tão puro
professor de geometria).
O rio teme aquele mar
como um cachorro
teme uma porta entretanto aberta,
como um mendigo,
a igreja aparentemente aberta.
Primeiro,
o mar devolve o rio.
Fecha o mar ao rio
seus brancos lençóis.
O mar se fecha
a tudo o que no rio
são flores de terra,
imagem de cão ou mendigo.
Depois,
o mar invade o rio.
Quer
o mar
destruir no rio
suas flores de terra inchada,
tudo o que nessa terra
pode crescer e explodir,
como uma ilha,
uma fruta.
Mas antes de ir ao mar
o rio se detém
em mangues de água parada.
Junta-se o rio
a outros rios
numa laguna, em pântanos
onde, fria, a vida ferve.
Junta-se o rio
a outros rios.
Juntos,
todos os rios
preparam sua luta
de água parada,
sua luta
de fruta parada.
(Como o rio era um cachorro,
como o mar era uma bandeira,
aqueles mangues
são uma enorme fruta:
A mesma máquina
paciente e útil
de uma fruta;
a mesma força
invencível e anônima
de uma fruta
— trabalhando ainda seu açúcar
depois de cortada —.
Como gota a gota
até o açúcar,
gota a gota
até as coroas de terra;
como gota a gota
até uma nova planta,
gota a gota
até as ilhas súbitas
aflorando alegres).
IV. Discurso do Capibaribe
Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele.
Um cão, porque vive,
é agudo.
O que vive
não entorpece.
O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.
O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens.
O que vive choca,
tem dentes, arestas, é espesso.
O que vive é espesso
como um cão, um homem,
como aquele rio.
Como todo o real
é espesso.
Aquele rio
é espesso e real.
Como uma maçã
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem.
Espesso
como uma maçã é espessa.
Como uma maçã
é muito mais espessa
se um homem a come
do que se um homem a vê.
Como é ainda mais espessa
se a fome a come.
Como é ainda muito mais espessa
se não a pode comer
a fome que a vê.
Aquele rio
é espesso
como o real mais espesso.
Espesso
por sua paisagem espessa,
onde a fome
estende seus batalhões de secretas
e íntimas formigas.
E espesso
por sua fábula espessa;
pelo fluir
de suas geléias de terra;
ao parir
suas ilhas negras de terra.
Porque é muito mais espessa
a vida que se desdobra
em mais vida,
como uma fruta
é mais espessa
que sua flor;
como a árvore
é mais espessa
que sua semente;
como a flor
é mais espessa
que sua árvore,
etc. etc.
Espesso,
porque é mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu vôo).
Do livro Poesias Completas (1940 –
1965) de João Cabral de Melo Neto, José Olympio, 3ª edição, 1979
O cão sem plumas de
Deborah Colker
No espetáculo a dança se mistura com o cinema. Os
bailarinos e bailarinas se cobrem de lama, alusão às paisagens que o poema
descreve, e seus passos evocam os caranguejos. “O espetáculo é sobre coisas
inconcebíveis, que não deveriam ser permitidas. É contra a ignorância humana.
Destruir a natureza, as crianças, o que é cheio de vida”, diz Deborah (http://www.ciadeborahcolker.com.br/release-csp)
O roteiro (do libreto do espetáculo) tem oito cenas entrelaçadas dança – filme:
I Aluvião (dança chama chuva)
II Rio ribeirinho (o rio e seus ribeirinhos)
III Caranguejão
IV Canavial (“se a moenda lhe mastiga o braço”)
V Rio cão (“como um cão /humilde e espesso”)
VI Mangue (“onde a pele / começa da lama / one começa o homem”)
VII Garças (onde a elite se nutre do Capibaribe)
Referências
em vídeo
CÃO SEM PLUMAS
http://www.ciadeborahcolker.com.br/ficha-csp 15/07/2018
Criação, Coreografia e Direção DEBORAH COLKER
Direção Executiva JOÃO ELIAS
Direção de Arte e Cenografia GRINGO CARDIA
Direção Cinematográfica CLÁUDIO ASSIS e DEBORAH COLKER
Dramaturgia CLÁUDIO ASSIS
Direção Musical JORGE DÜ PEIXE e BERNA CEPPAS participação especial LIRINHA
Desenho de Luz JORGINHO DE CARVALHO
Figurino CLAUDIA KOPKE
Fotografia CAFI
Elenco ALINE MACHADO, BIANCA LOPES,
DILO ALBERTO, FILIPI ESCUDINE, ISADORA AMORIM, JAIME BERNARDES, LEONY BONI,
OLIVIA PUREZA, PHELIPE CRUZ, PILAR GIRALDO, ROSINA GIL, UÁTILA COUTINHO, VICTOR
VARGAS
Direção de Produção GLEDSON TEIXEIRA
Produtora Assistente GABRIELA NEWLANDS
Direção de Palco THIAGO MERIJ
Operador de Luz RODRIGO BELAY
Assessoria de Imprensa FACTORIA COMUNICAÇÃO
Vídeo PAULO SEVERO
Projeto Gráfico PEU FULGENCIO -
FRITO STUDIO
Textos LUIS FERNANDO VIANNA
Revisão MALU RESENDE
Assistente de Direção e Coreografia JACQUELINE MOTTA
Ensaiadores JACQUELINE MOTTA, FERNANDA
CAVALCANTI e JOSÉ RAMOS
Consultor e Professor de Danças Urbanas FELIPI MOURA
Professores de Ballet Clássico ERIC FREDERIC, ELIZABETH ALEXANDRE, NORA ESTEVES, ALINE MACHADO,
JOSÉ RAMOS
Professores de Dança Contemporânea DEBORAH COLKER, JAIME BERNARDES, EDNEI D’CONTI
Participação na Criação Coreográfica BAILARINOS e ASSISTENTES
Cenógrafa Assistente e Efeitos de Maquiagem RENATA PITTIGLIANI
Assistente de Iluminação CÉSAR RAMIRES
Assistente de Figurino TERESA ABREU
Camareira ELIUMA SILVA
Ortopedista DANIEL RAMALLO
Consultoria Jurídica ERNESTO PAULOZZI JR. ADVOGADOS
ASSOCIADOS, SIQUEIRA CASTRO ADVOGADOS
Financeiro e Administrativo MIRIAM FURTADO
Arquivo e Enquadramento de Projetos ISRAEL OLIVEIRA
Manutenção ISAÍAS LAGO BASTOS
Serviços Gerais ROMÁRIO SOUZA
Realização JE PRODUÇÕES LTDA.
Duração 1h10 MINUTOS (sem
intervalo)
Classificação LIVRE
sábado, 14 de julho de 2018
As minhas seleções
José Eduardo Agualusa, O Globo, 13/07/2018
Continuarei torcendo pelo que a seleção francesa representa: diversidade e integração de culturas.
Já se sabe quem vai perder — aliás, quem já perdeu — quando amanhã a seleção francesa defrontar a Croácia: perdeu a extrema-direita racista e anti-imigração.
Há décadas que a seleção francesa irrita os racistas. O atual time, por exemplo, só tem cinco futebolistas filhos de pais franceses. A maioria dos jogadores é de origem africana. Blaise Matuidi, por exemplo, nasceu em Toulouse, filho de imigrantes angolanos (nós, angolanos, gostamos de pensar que, através dele, também chegamos à final). Já na seleção belga havia oito futebolistas de origem africana. Também as seleções inglesas costumam ter, como voltou a acontecer este ano, uma percentagem muito elevada de jogadores de raiz africana e asiática.
Não se pense, contudo, que a boa influência dos imigrantes, em particular daqueles de origem africana, se restringe ao desporto. Não, caros leitores, vai muitíssimo além. Se existisse uma Copa do Mundo de Literatura a seleção inglesa seria tão colorida quanto no futebol: além de dois ou três veteranos inquestionáveis, como V. S. Naipaul, Salman Rushdie, ou Zadie Smith, teria de incluir uma série de jovens estrelas em rápida ascensão, como a anglo-nigeriana Helen Oyeyemi, 33 anos, considerada pela “Granta” “uma das melhores jovens romancistas britânicas”.
Uma das grandes sensações da seleção francesa de literatura seria, sem dúvida a romancista franco-marroquina Leïla Slimani, autora do best-seller mundial “Canção de ninar” (Tusquets/Planeta, 2018) e que será este ano a principal atração da Flip. Na Flip estará um outro autor francês de origem africana: o meu amigo Alain Mabanckou, nascido no Congo-Brazzaville, e que em 2015 viu um dos seus romances, “African psycho”, chegar à short-list do Man Booker International. Também na Flip merece destaque a escritora italiana de origem somali Igiaba Scego.
Se existisse uma Copa do Mundo da Música Popular, as seleções de França, Bélgica, Inglaterra e Portugal teriam ainda mais afro-descendentes do que no futebol. Começando por Portugal, o destaque seria para as fadistas Mariza e Ana Moura, a primeira nascida em Moçambique, neta de uma famosa curandeira local; a segunda com raízes nas terras altas da Huíla, no sul de Angola. A seleção musical lusitana teria de incluir ainda craques como Mayra Andrade, Lura, Sara Tavares ou Tito Paris — todos eles de ascendência cabo-verdiana —, ou os angolanos Bonga, Paulo Flores e Anselmo Ralph. Suspeito que nessa seleção um dos raros portugueses sem ascendência africana próxima seria António Zambujo.
Stromae brilharia na seleção belga — tanto quanto o atacante Romero Lukaku no futebol, mas ainda com mais ginga. Em França a cena da música popular tem sido, desde há muitas décadas, dominada por imigrantes e seus descendentes: Josephine Baker, Serge Reggiani, Georges Moustaki, Léo Ferré, Charles Aznavour, entre tantos outros. Nos últimos anos o que mudou foi sobretudo a cor da pele desses cantores imigrantes, ou filhos de imigrantes. Hoje são, na sua maioria, de ascendência africana. Numa seleção musical francesa atual teriam de alinhar veteranos como Manu Dibango, Henri Salvador e Ray Lema, juntamente com uma mão cheia de outros grandes talentos mais jovens, dos rappers MC Solaar e Maitre Gims até Imany. No caso da França, o difícil é escolher entre tantos nomes excelentes.
Mesmo a Espanha, que há séculos se mantém de costas voltadas para a África, teria como principal goleadora da sua seleção musical uma mulher negra: esse extraordinário prodígio de paixão e energia chamado Concha Buika — com raízes na Guiné-Equatorial, o único país africano onde se fala espanhol.
Amanhã estarei torcendo pela França. Depois de amanhã, independentemente do resultado do jogo, continuarei torcendo por tudo aquilo que a seleção francesa representa: um exemplo de sucesso da diversidade e da integração de culturas. Uma demonstração clara de como as correntes migratórias provenientes da África estão revitalizando a Europa, através do rejuvenescimento da sua população, trazendo uma nova energia e dinamismo a um organismo velho e cansado.
Chorem, racistas: vocês perderam!
https://oglobo.globo.com/cultura/as-minhas-selecoes-22883060#ixzz5LEKHger4 stest
Continuarei torcendo pelo que a seleção francesa representa: diversidade e integração de culturas.
Já se sabe quem vai perder — aliás, quem já perdeu — quando amanhã a seleção francesa defrontar a Croácia: perdeu a extrema-direita racista e anti-imigração.
Há décadas que a seleção francesa irrita os racistas. O atual time, por exemplo, só tem cinco futebolistas filhos de pais franceses. A maioria dos jogadores é de origem africana. Blaise Matuidi, por exemplo, nasceu em Toulouse, filho de imigrantes angolanos (nós, angolanos, gostamos de pensar que, através dele, também chegamos à final). Já na seleção belga havia oito futebolistas de origem africana. Também as seleções inglesas costumam ter, como voltou a acontecer este ano, uma percentagem muito elevada de jogadores de raiz africana e asiática.
Não se pense, contudo, que a boa influência dos imigrantes, em particular daqueles de origem africana, se restringe ao desporto. Não, caros leitores, vai muitíssimo além. Se existisse uma Copa do Mundo de Literatura a seleção inglesa seria tão colorida quanto no futebol: além de dois ou três veteranos inquestionáveis, como V. S. Naipaul, Salman Rushdie, ou Zadie Smith, teria de incluir uma série de jovens estrelas em rápida ascensão, como a anglo-nigeriana Helen Oyeyemi, 33 anos, considerada pela “Granta” “uma das melhores jovens romancistas britânicas”.
Uma das grandes sensações da seleção francesa de literatura seria, sem dúvida a romancista franco-marroquina Leïla Slimani, autora do best-seller mundial “Canção de ninar” (Tusquets/Planeta, 2018) e que será este ano a principal atração da Flip. Na Flip estará um outro autor francês de origem africana: o meu amigo Alain Mabanckou, nascido no Congo-Brazzaville, e que em 2015 viu um dos seus romances, “African psycho”, chegar à short-list do Man Booker International. Também na Flip merece destaque a escritora italiana de origem somali Igiaba Scego.
Se existisse uma Copa do Mundo da Música Popular, as seleções de França, Bélgica, Inglaterra e Portugal teriam ainda mais afro-descendentes do que no futebol. Começando por Portugal, o destaque seria para as fadistas Mariza e Ana Moura, a primeira nascida em Moçambique, neta de uma famosa curandeira local; a segunda com raízes nas terras altas da Huíla, no sul de Angola. A seleção musical lusitana teria de incluir ainda craques como Mayra Andrade, Lura, Sara Tavares ou Tito Paris — todos eles de ascendência cabo-verdiana —, ou os angolanos Bonga, Paulo Flores e Anselmo Ralph. Suspeito que nessa seleção um dos raros portugueses sem ascendência africana próxima seria António Zambujo.
Stromae brilharia na seleção belga — tanto quanto o atacante Romero Lukaku no futebol, mas ainda com mais ginga. Em França a cena da música popular tem sido, desde há muitas décadas, dominada por imigrantes e seus descendentes: Josephine Baker, Serge Reggiani, Georges Moustaki, Léo Ferré, Charles Aznavour, entre tantos outros. Nos últimos anos o que mudou foi sobretudo a cor da pele desses cantores imigrantes, ou filhos de imigrantes. Hoje são, na sua maioria, de ascendência africana. Numa seleção musical francesa atual teriam de alinhar veteranos como Manu Dibango, Henri Salvador e Ray Lema, juntamente com uma mão cheia de outros grandes talentos mais jovens, dos rappers MC Solaar e Maitre Gims até Imany. No caso da França, o difícil é escolher entre tantos nomes excelentes.
Mesmo a Espanha, que há séculos se mantém de costas voltadas para a África, teria como principal goleadora da sua seleção musical uma mulher negra: esse extraordinário prodígio de paixão e energia chamado Concha Buika — com raízes na Guiné-Equatorial, o único país africano onde se fala espanhol.
Amanhã estarei torcendo pela França. Depois de amanhã, independentemente do resultado do jogo, continuarei torcendo por tudo aquilo que a seleção francesa representa: um exemplo de sucesso da diversidade e da integração de culturas. Uma demonstração clara de como as correntes migratórias provenientes da África estão revitalizando a Europa, através do rejuvenescimento da sua população, trazendo uma nova energia e dinamismo a um organismo velho e cansado.
Chorem, racistas: vocês perderam!
https://oglobo.globo.com/cultura/as-minhas-selecoes-22883060#ixzz5LEKHger4 stest
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