sábado, 24 de fevereiro de 2018

Para sempre fiel

Vira-se para uma pequena:
— Quer saber de uma coisa?
E ela:
— Quero.
Estavam tomando refrigerante, com um canudinho, num bar da Quinta da Boa
Vista, ao ar livre. E, então, meio sério, meio brincando, ele baixa a voz:
— Não acredito que você goste de mim.
Admirou-se:
— Sério?
— Palavra de honra!
— Por quê?
Puxa um cigarro:
— Porque não acredito em mulher nenhuma, compreendeu? Olha: eu tive, até
agora, digamos, umas dez namoradas. Dez ou doze ou treze. Muito bem. Todas,
absolutamente todas, sem exceção, me passaram pra trás. Às vezes eu penso que
 minha sina, minha vocação é ser traído.
Impressionada, Odaléia mexeu com o canudinho no fundo do copo vazio. Ergue
o rosto:
— Posso falar?
— Claro!
Por cima da mesa, ela apanha a mão do namorado:
— Não há no mundo um amor que se compare ao meu. Você é meu primeiro
amor e será o último! 

COMPLEXO

Saíram da Quinta da Boa Vista mais enamorados do que nunca. No ponto do
bonde, Odaléia, comovida da cabeça aos pés, pergunta:
— E agora? Você acredita em mim? Acredita no meu amor?
Respira fundo:
— Acredito.
Quando Odaléia chegou em casa, a mãe aparece na porta da cozinha, com um
prato e um pano de enxugar: “Como é? Tudo bem?”. A garota põe a bolsa em cima da mesa e suspira:
— Mamãe, parece que o negócio engrenou.
A velha quis saber:
— Falou em casamento?
E a filha:
— Falou, mamãe, pela primeira vez. Ah, mamãe, eu sou a mulher mais feliz do
mundo!
— Deus te abençoe, minha filha, Deus te abençoe!
No dia seguinte, encontraram-se novamente. Mas a euforia de Odilon extinguirase
até o último vestígio. Taciturno, um jeito cruel na boca, quase não falava. Súbito,
Odaléia: “O que é que há? Está aborrecido?”. Encaram-se. Odilon baixa a vista:
— Você pode achar que é complexo, mas o fato é o seguinte: eu não acredito em
você. Não consigo acreditar. Pergunto: você acha que eu posso me casar, sabendo que vou ser traído?
Ergueu-se, atônita:
— Mas assim você até ofende!
Odilon levanta-se também. Pisa o cigarro no chão; e ri, amargo:
— Viu? Você já está ofendida! E a mulher que ama no duro, que ama batata,
começa por não ter amor-próprio. Com amor-próprio não há amor!
Odaléia agarra-se ao namorado:
— Você quer que eu faça o que para provar o meu amor? Eu faço o que você
quiser! 

PROVA DE AMOR

Separaram-se, tristíssimos. Antes de largar a pequena no ônibus, ele dissera:
“Quer um conselho meu? Quer? Então, ouça” Suspira e continua:
— Você deve me chutar enquanto é tempo. Eu não interesso nem a você, nem a
mulher nenhuma. Agora mesmo, neste momento, eu estou pensando que você há de
me trair um dia. Isso deve ser doença. Eu sou um doente mental. — Num esgar de
choro, pede: — Arranja outro namorado, arranja um sujeito que acredite em ti!
Responde, chorando:
— E se eu provar que te amo? Se eu provar que te serei fiel, até morrer?
Ele balança a cabeça:
— Provar como? Você pode jurar pelo futuro? Hoje você gosta de mim. Muito
bem. E amanhã? Gostará ainda?
— Evidente! Eu não mudo!
Odilon segura a pequena pelos dois braços:
— Foge de mim! Eu sou um caso perdido, completamente perdido!
Vinha chegando o ônibus. Odaléia queria ficar ainda, mas ele insistiu: “Vai, vai!
Amanhã conversaremos!”. Ela entrou no ônibus. Da janelinha, dava adeus.

TRISTEZA

A mãe, que era uma senhora gorda e cheia de varizes, acompanhava, passo a
passo, aquele romance. Viu a filha chegar chorando e tomou um susto: “Mas o que foi
que houve?”. Pela primeira vez, Odaléia contou o romance inteirinho, inclusive com os detalhes que vinha omitindo. A velha pôs as mãos na cabeça:
— Mas esse homem é maluco, minha filha!
Odaléia assoou-se no lencinho:
— Não sei, nem interessa, mamãe. O fato é que gosto dele e pronto!
— Ora veja!
A pequena continuava:
— Já pensou como Odilon deve sofrer? Imagine um homem que não acredita em
mulher nenhuma. Deve ser tristíssimo. E eu tenho de arranjar um jeito, um meio de
provar que eu serei fiel sempre, que serei fiel até morrer, que eu não trairei nunca! E 
provarei.

SOLUÇÃO

Ainda se viram três ou quatro vezes. Foram encontros penosíssimos; ele a
atormentava, sem dó nem piedade: “Quando me trairás? Quando?”. Odaléia, que o
amava muito, que o amava cada vez mais, respondia:
— Guarda as minhas palavras. Ainda hei de provar que nunca, nunca trairei você!
E ele:
— Duvido!
Cessaram os encontros. Quinze dias depois, Odilon, numa amargura tremenda,
faz os seus cálculos: “No mínimo, arranjou outro e deve andar se esbaldando por aí!”.
Uma manhã, porém, aparece, esbaforido, na casa de Odilon, um amigo. Diz-lhe:
“Corre, rapaz, corre, que tua pequena está morrendo!”. Vestiu-se às pressas e voou para a casa da garota. E, lá, soube de tudo: Odaléia matara-se durante a noite, tomando não sei que veneno. Varando os grupos de parentes e vizinhos, Odilon chega ao quarto da pequena. Espia da porta o cadáver na cama. Entra, dá dois passos no interior do quarto e estaca. Via, na parede, o que Odaléia escrevera a lápis, antes de morrer. Eram estas palavras: “As mortas não traem”. Apavorado, Odilon cai de joelhos, diante da cama. Apanha a mão da mulher que seria para sempre fiel e a cobre de beijos e lágrimas. 

Rodrigues, Nelson, 1912-1980.
A vida como ela é — : O homem fiel e outros contos
Nelson Rodrigues ; seleção Ruy Castro. — São Paulo
Companhia das Letras, 1992.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Bondade cruel - Tuiuti

Vale a pena mostrar o samba enredo da Paraíso de Tuiuti Rio 2018

Samba Enredo 2018 - Meu Deus, Meu Deus, Está Extinta a Escravidão?
Compositores: Claudio Russo, Moacyr Luz, Dona Zezé, Jurandir e Aníbal.
G.R.E.S Paraíso do Tuiuti

Não sou escravo de nenhum senhor
Meu Paraíso é meu bastião
Meu Tuiuti, o quilombo da favela
É sentinela na libertação

Irmão de olho claro ou da Guiné
Qual será o seu valor? Pobre artigo de mercado
Senhor, eu não tenho a sua fé, e nem tenho a sua cor
Tenho sangue avermelhado
O mesmo que escorre da ferida
Mostra que a vida se lamenta por nós dois
Mas falta em seu peito um coração
Ao me dar a escravidão e um prato de feijão com arroz

Eu fui mandiga, cambinda, haussá
Fui um Rei Egbá preso na corrente
Sofri nos braços de um capataz
Morri nos canaviais onde se plantava gente

Ê, Calunga, ê! Ê, Calunga!
Preto Velho me contou, Preto Velho me contou
Onde mora a Senhora Liberdade
Não tem ferro nem feitor

Ê, Calunga
Preto Velho me contou
Onde mora a Senhora Liberdade
Não tem ferro nem feitor

Amparo do Rosário ao negro Benedito
Um grito feito pele do tambor
Deu no noticiário, com lágrimas escrito
Um rito, uma luta, um homem de cor

E assim, quando a lei foi assinada
Uma lua atordoada assistiu fogos no céu
Áurea feito o ouro da bandeira
Fui rezar na cachoeira contra a bondade cruel

Meu Deus! Meu Deus!
Se eu chorar, não leve a mal
Pela luz do candeeiro
Liberte o cativeiro social

Meu Deus! Meu Deus!
Se eu chorar, não leve a mal
Pela luz do candeeiro
Liberte o cativeiro social



Vídeos da Tuiuti






domingo, 18 de fevereiro de 2018


Pouco
       a
                pouco 
                                fui
                                         ficando
                                                                só

Imperceptivelmente:
Pouco
         a
                pouco.

É triste a situação
De quem gozou de boa companhia
E por algum motivo a perdeu.

Não me queixo de nada: tive tudo
Mas
          sem
                       me
                                dar
                                         conta
Como uma árvore que perde uma a uma das suas folhas
Fui
       ficando
                        só
                               pouco
                                              a
                                                  pouco


NB: este poema (tradução de Joana Barossi) é de Nicanor Parra (1914 – 2018) falecido em 23 de janeiro de 2018 aos 103 anos. É o irmão mais velho de Violeta Parra. (publicado no livro “Canções Russa” de 1967) fará parte de um livro “Antologia Poética” de Nicanor Parra a ser lançado pela Editora 34 no segundo semestre de 2018. Nicanor, um matemático de formação, revolucionou a poesia hispano-americana nos anos 1980 e criou a antipoesia (O Globo, 10/02/2018 - Marcelo Balbio)