terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Aberrações da Humanidade


28 de dezembro de 2013 | 2h 07 
Marcelo Rubens Paiva - O Estado de S.Paulo 

Sachê

Você sabe muito bem do que estou falando. Onde estão aqueles recipientes com mostarda e ketchup com que estávamos habituados, e aprendemos a espremer antes de escrever? E o saleiro, o açucareiro, a maionese no pratinho, com uma espátula apropriada? É mais raro encontrá-los do que guardanapos de linho. A Vigilância Sanitária, o lucro insano das corporações e o capitalismo selvagem nos obrigam a conviver com desagradáveis e minúsculos sacos plásticos não biodegradáveis que, dizem, contêm o condimento necessário para a nossa refeição. Como abrir? Com unhas? Dentes? Dentadas e unhadas? Imaginam que andamos com canivete suíço no bolso? Como abrir sem escorrer a metade do condimento? Como abrir sem espalhar pela mesa ou pelo colo ou, pior, espirrar no rosto do garçom, um saco que não fora planejado para ser aberto, mas para apenas armazenar uma porção que alguém arbitrariamente julgou a necessária. Bem, minhas fritas precisam de dezenas daqueles saquinhos. E tiveram a cara de pau de inventar sachê com azeite, vinagre e até shoyu. Queria que o inventor dessa barbaridade almoçasse numa cantina tradiça com a minha família italiana e tentasse temperar a salada, entre as polêmicas e discussões de sempre de domingo. Sem usar os dentes.

Protocolo de Atendimento

Outra aberração da humanidade. Já tive quatro protocolos de atendimento numa reclamação para o SAC de uma telefônica num telefonema de 30 minutos. Média: um protocolo a cada sete minutos e meio. No quarto, me perguntei o que foi feito com o coitado do primeiro, perdido, esquecido solitário no buraco negro que eles nomearam "sistema". E se precisamos de quatro, por que nos soletram três antes. Nossa vingança é quando fingimos que anotamos o protocolo de atendimento. "Senhor, por favor, anotar o protocolo de atendimento." Claro, querida, pode falar, estou anotando no meu álbum de protocolos de atendimento, que coleciono desde quando inventaram o protocolo de atendimento, meses depois de inventarem o atendimento. E repetimos em voz alta um número infindável, enquanto checamos e-mails, postagens nas redes sociais, confirmamos presença em eventos em que não daremos as caras... Se tivessem a mesma eficiência nos atendimentos que no exercício de dar protocolos de atendimento, o mundo seria com bem menos protocolos. E os consumidores ligariam bem menos para o atendimento.

Controle Remoto

Foi uma bela invenção. Que piorou a saúde da humanidade, aumentou o sedentarismo e nos deixou mais atordoados. Invenção que, com o tempo e o avanço tecnológico, piorou, como o relógio digital que está até em eletrodomésticos de linha branca, piscando teimosamente no 00:00, já que não sabemos programá-lo. Tá. Não bastam os botões de ligar, desligar, volume e canal. Existem dezenas deles, com números que não são parte de uma calculadora e símbolos que não fazem sentido, indicações e termos que só conseguem ser lidos com a ajuda de um microscópio. O controle da minha TV, comprada no Brasil, tem as opções power, source, ch, pre-ch, mute, ch.list, w.link, tools, return, info, exit, cc, mts, p.mode, e.mode, p.size, fav/ch, números e flechas... E, claro, um enter que, cuidado, se você apertar, a TV não funcionará por sete dias, até seu sobrinho geek fazer uma visita. Como se não bastasse, precisamos de três deles, às vezes mais, para assistir àquele filminho água com açúcar com a família. E sincronizar operações, como abaixar o volume da TV, aumentar o do Blu-Ray e mudar para modo HDTM3. Muitas vezes, quando acertamos e, milagre, o volume está OK e a legenda sincronizada, parte da família ronca ao lado. Mais fácil pilotar um caça sueco. Quer uma dica quando der pau? Uso aqui em casa: tira da tomada, conta até 15 e coloca novamente. Geralmente dá certo.

Renovação do Passaporte

Na Europa é de 15 em 15 anos. Nos EUA, de dez em dez. No Brasil, de cinco em cinco anos. Gênio. E lá vamos nós, com fotos, DARFs pagas, digitais, enfrentar filas para pegar senhas que nos levam a outras filas. E rezarmos para o sistema, aquele labirinto obscuro de informações, o entorpecente do burocrata descontente, não cair. O que costuma acontecer justamente nas vésperas das férias. Quando a categoria não entra em operação tartaruga ou greve. Por que não uma renovação de 20 em 20 anos? Aí, sim, os policiais federais poderiam trocar o cabo de um carimbo pelo de um revólver e ocupar o tempo com operações contra o crime organizado. Sem se preocuparem em organizar filas de turistas, sacoleiros, crianças ansiosas pela Disney, gente do bem sem antecedentes criminais.

Insulfilm 

Serve para ocultar aquele barbeiro que nos fecha ou buzina sem parar. Protegido pelo anonimato, nos intimida. Caso contrário, xingaríamos quatro gerações da sua família. Se tivéssemos certeza de que dentro daquele carro popular com insulfilm não está a seleção brasileira de jiu-jítsu. O insulfilm aumenta a anarquia no trânsito. Incentiva a má-educação, a imprudência e o hábito tão cordialmente brasileiro de "não dar passagem". Tenho certeza de que, por trás daquele vidro escuro, está um fracote que desconta seu complexo de inferioridade no trânsito. Caso contrário, por que precisaria de um insulfilm? Pode apostar: no dia em que o proibirem, o buzinaço em todas as esquinas diminuirá.

Radiador

Aquilo que sempre esquecemos de checar se está completo. Como uma máquina tão evoluída, com computador de bordo, injeção eletrônica, radar traseiro, câmeras, que faz a baliza sozinha, GPS, MP3, freios ABS, airbag, precisa ser resfriada por um punhado de água engradada? A mesma água que esfriou as engrenagens de catapultas romanas e apaga as churrasqueiras do tiozinho do churrasco. Engradado que, a cada três anos, fura, e nos leva à loucura, aquecendo a máquina e nos deixando na mão e a pé. Tem mais computador num carro hoje em dia do que na Apolo 11, que levou o homem à Lua. Mas se ele aquecer... Houston, we have a big problem.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Contra o silício


Deu em O Globo de 04/01/2014.

A revolta contra o silício


Gentrificação em São Francisco e colaboração com a NSA tornam empresas de tecnologia alvo de protestos nos Estados Unidos

Rennan Setti (Email)

Publicado:4/01/14 - 12h00

Em novembro, manifestantes protestaram em frente à sede do Twitter, em São Francisco, EUA: contra despejos e incentivos fiscais a firmas de tecnologia David Paul Morris / Bloomberg

RIO - Os Estados Unidos pós-crise elegeram a plutocracia como alvo de um ódio comungado por todos, dos homeless à classe média hipotecada. Jovens armaram barracas em Wall Street em protesto contra o 1% de endinheirados com a ajuda de smartphones, Twitters e Facebooks. Nenhuma contradição no fato de essa parafernália ser responsável por uma inédita concentração de milionários no outro lado do país, uma vez que ela tornou possível o recente levante árabe. O Vale do Silício seguia blindado da fúria contra o capital. Mas a combinação de ofertas de ação extravagantes, arrogância, esbanjamento e um escândalo de espionagem começa a cobrar seu preço aos geeks.

O desconforto virou notícia no início de novembro de 2013, quando 150 pessoas protestaram em frente à sede do Twitter, em São Francisco. Naquele dia, a rede social estreava na Bolsa levantando US$ 2,1 bilhões e dando à luz 1,6 mil milionários. Por causa de empresas como aquela, denunciavam os manifestantes, a cidade que já foi morada de hippies e artistas tem hoje o metro quadrado mais caro do país. Apenas 10% dos imóveis cabem no orçamento de quem ganha o salário médio, e despejos se tornaram uma constante.

- Nem mesmo a Corrida do Ouro, no século XIX, produziu tanto lucro na região - lembra Kevin Starr, professor da University of Southern California. - Nenhuma economia do planeta suporta os efeitos negativos desse tsunami de riqueza instantânea. Para o bem ou para o mal, São Francisco desbrava um paradigma econômico nos EUA que refletirá em outros países em seu descasamento de salários e na diminuição da prosperidade da classe trabalhadora.

Nada simboliza tanto o conflito quanto os ônibus da Google, que levam funcionários de São Francisco à sede da empresa, em Mountain View, com direito a wi-fi e ar-condicionado. Há algumas semanas, um dos veículos foi bloqueado durante meia hora por manifestantes que acusavam a frota de usar indevidamente os pontos da cidade e de privar o sistema de transportes de receita importante.

Em fevereiro, Rebecca Solnit escreveu no “London Review of Books” que os ônibus são a prova de que, “diferentemente de mega-empregadores em outros tempos e lugares, as corporações do Vale não estão muito interessadas em melhorar o transporte público.”

Essa é uma face do dogma libertário que reina no Vale, aquele que, segundo críticos, está no cerne de uma ideologia corrompida. Para Evgeny Morozov, que deu aulas em Stanford, o que ele chama de “solucionismo” faz start-ups acreditarem que seus apps e gadgets, não governos, podem resolver os problemas do mundo.

“Eles pensam que tudo o que ajuda a contornar instituições lhes dá, por definição, poder e liberdade. Você pode não conseguir pagar seu plano de saúde, mas se um app alerta para o fato de que você precisa de exercícios, eles acham que estão resolvendo um problema”, contou Morozov à revista “New Yorker”.

Em novembro, Morozov publicou o ensaio “Por que temos permissão para odiar o Vale do Silício”, em que advoga a necessidade de combater a “linguagem banal mas eficiente” de empresas como Google e Facebook e reexaminar sua “história furada”.

Ele argumenta que é urgente “reinjetar política e economia no debate”, pois sua ausência permite às corporações refutar como luditas e retrógrados todos os que se opõem aos rumos da “tecnologia” e da “internet”. O próprio vernáculo “digital” esvaziaria a discussão escondendo os reais interesses em jogo: seduzir nossas ansiedade e privacidade com produtos “gratuitos”, engendrados agora em um modelo de negócios monolítico baseado em anúncios.

“Por que tudo o que pode ‘destruir a internet’ também arrisca quebrar a Google? Coincidência?”, escreveu. “Permitir à Google organizar toda a informação do mundo faz tanto sentido quanto deixar a petrolífera Halliburton organizar todo o petróleo do mundo.”

Morozov é um crítico contumaz, mas mesmo a liberal “The Economist” previu que 2014 será o ano em que “a elite tecnológica se juntará a banqueiros e petroleiros na demonologia pública.” Um dos motivos é a colaboração de gigantes da tecnologia com a Agência de Segurança Nacional (NSA) na espionagem de internautas. Outro está nas manobras de firmas como Apple para deixar de pagar bilhões em impostos nos EUA. Há ainda o esbanjamento de milhões em ocasiões como o casamento de Sean Parker, ex-Facebook, que contratou a figurinista de “O Senhor dos Anéis” e Sting.

“Os geeks se transformaram nos capitalistas mais impiedosos. A nova economia já foi uma fronteira aberta. Hoje ela é dominada por um punhado restrito de oligopólios”, observou a revista.

O gosto pelo controle se manifesta em muitas formas. O maior investidor da Exxon Mobil controla 0,04% das ações, mas 29,3% do Facebook estão nas mãos de Mark Zuckerberg. Apps, considerados jardins murados por tecnólogos, estão substituindo a web aberta. Coincidência ou não, as principais empresas do setor estão entre as mais secretas que já existiram: a Apple organiza eventos para a imprensa onde é proibido fazer perguntas.

Para Alex Soojung-Kim Pang, consultor na Strategic Business Insights, a transição de uma economia baseada em fabricação de hardware para outra de negócios de internet acelerou a acumulação de riquezas a uma velocidade inédita, alterando o DNA do Vale:

- Testemunhei a mudança quando ensinei em Stanford, em 2000. Os alunos desenvolviam atitude do tipo “Por que tenho que ler suas baboseiras se ganharei US$ 50 milhões no ano que vem?”.

Para Pang, o Vale se tornou um culto à “disrupção”, cuja meta não é apenas o sucesso, mas a destruição de modelos estabelecidos:

- O sofrimento de velhos modelos se tornou a métrica do sucesso. Quanto mais os outros perderem, mais eu ganho. Se desenvolvo software de educação, não é o bastante chegar às crianças na África. Preciso que professores sejam demitidos nos EUA.