Criaturas sem lembrança da sua meia-vida humana, jamais podem se tocar.
Apenas a angústia de um átimo, na aurora ou no poente quando estão por se
tocar. Sempre juntos, eternamente separados. Enquanto o soI Ievantar e se pôr. Enquanto
houver o dia e a noite, enquanto estiverem vivos. Do filme “Feitiço de Áquila” (1985), Richard Donner.
O enredo do filme
“Feitiço de Áquila” é mais ou menos assim: Europa, século XII. O Bispo de
Áquila (John Wood) toma consciência que sua amada, a bela Isabeau (Michelle
Pfeiffer), está apaixonada por Etienne Navarre (Rutger Hauer), um cavaleiro.
Áquila fica possuído de raiva e ciúme e lança uma maldição sobre o casal: de
dia ela sempre será um falcão (falcão peregrino ou falcão real) e de noite
Navarre toma a forma de um lobo (lobo cinzento), sendo que desta forma fica o
casal impedido de se entregar um ao outro. Lembro que estas espécies de falcão
e lobo são monogâmicas.
Com este prólogo
contaremos a seguir a estória de Alice.
Alice morava em Campinas.
De família trabalhadora ela sempre teve uma vida agitada. Aos 18 anos estudava
e trabalhava para se virar nos estudos e ajudar a família. Já nesta idade
arriscava na música. Tinha boa voz e começou a cantar com a turma da faculdade.
Gostava de Chico Buarque, Lupicínio Rodrigues, Dominguinhos e o sempre Noel
Rosa. Alice sabia todas as músicas do Noel.
O sol da Vila é triste / Samba não assiste / Porque
a gente implora: / Sol, pelo amor de Deus, / não vem agora / que as morenas /
vão logo embora / Eu sei tudo o que faço / sei por onde passo / paixão não me
aniquila / Mas tenho que dizer / modéstia à parte / Eu sou da Vila. (Feitiço da Vila)
Aos 30 anos Alice
morava em São Paulo. Já formada em Ciências Sociais trabalhava no IBGE como
pesquisadora. Mas ela fazia outras coisas. A música não saiu de sua vida. No
início paulistano cantava na noite e aprendeu piano. Como cantora sabia que não
sobreviveria, mas era o que mais gostava. E a noite era dela. Por isso adequou
seu horário de trabalho no IBGE para depois do meio-dia. Seguia a máxima do
Noel: Sol, pelo amor de Deus, não vem
agora...
E Alice namorava?
Claro, a noite é também para as paixões. Teve o Mário (músico), teve o Fábio
Aurélio (analista de sistemas), teve o Clayton (sociólogo) e outros namoricos.
Estas paixões foram boas, mas não aniquilaram Alice.
Aí entra a segunda
personagem desta estória: o Silvio.
O Sílvio quase
aniquilou Alice. Quando se conheceram numa noite ela estava nos 30 e ele nos
40. Ele era um empresário bem sucedido com uma vantagem: culto, bonito, sexy e um
senão: era casado. Tinha esposa (Clara) e filhos. Empresário bem sucedido
significa morar com a família numa casa própria espaçosa, ter outros imóveis,
jogar na bolsa de valores, viajar em férias a Paris, Nova Iorque, Istambul etc.
Sílvio era da noite. Quando jovem foi da turma do sexo, drogas e rock. Estava
bem quando estava na noite acompanhado de um uísque, amigos e amigas. E com a
música nos bares da vida melhor ainda.
Clara era do tipo de
mulher que tinha uma sensualidade especial, era reservada de
um jeito que a fazia diferente das demais mulheres e o segredo de sua
atratividade, para Sílvio, era uma mistura de passividade e distinção. E nesta
maré o casamento Clara-Silvio seguiu em frente por muito tempo. Nunca se
dissolveu. Sempre juntos.
Alice e Sílvio viveram muito tempo juntos, muito juntos, porém apenas a
noite. De dia tinham suas vidas separadas. Cada um num canto, cada um na sua. À
noite Alice vivia. De dia trabalhava. Vivia porque cantava e ficava com seu
homem querido.
Esta rotina dual como no filme “Feitiço de Áquila” até que no início não
desgastava Alice. Mas depois ela reclamou.
Vamos ficar neste
chove não molha até onde, Sílvio? Disse um
dia ela para ele.
Você quer que eu
seja sincero, Alice: não sei se sei até onde.
Ah é seu cafajeste,
então vai a merda! Respondeu Alice.
Depois desta conversa não se viram por um tempão. Acabou a dualidade.
Mas não teve jeito, exatos 90 dias após, se reencontraram na noite.
Alice se lixou para o aniquilamento. Venceu a paixão.
E continuaram como na música do Chico: O
nosso amor é tão bom. O horário é que nunca combina. Eu sou funcionário, ela é
dançarina. Quando pego o ponto, ela termina.
Sílvio faleceu aos 60 anos e deixou, agora sim, Alice aniquilada. Ela
curtiu - no mal sentido - a ausência dele por muito tempo. Demorou a Alice
considerar Silvio morto, mas com o tempo decidiu oferecer ao seu ego continuar
a vida. E continuou vivendo (à noite) e trabalhando (de dia).
Decorrido um ano da morte do marido Clara chamou Alice para uma
conversa. Combinaram o encontro no Terraço Itália na Avenida Ipiranga, centro
de São Paulo. Era a primeira vez que se encontraram. Alice, tensa, pensou “que
diabo esta mulher quer de mim”. Mas que nada. Foi uma conversa tranquila.
Falaram de trivialidades e num certo momento Clara disse:
“Você foi a
única mulher honesta que Silvio encontrou na vida”.
Alice quase
caiu da cadeira quando ouviu a declaração e Clara continuou
“Sabe o que
penso Alice, nós mulheres vivemos períodos na vida em que nos portamos como idiotas.
São os momentos em que nos apaixonamos por um homem.
Aconteceu comigo e com
você em relação ao Sílvio, aquele cafajeste que nos seduziu”.
Clara e
Alice se encontraram outras vezes até o falecimento da primeira.
Hoje Alice
vive num bom apartamento de 200 m2 que Clara deixou como herança
para "a única mulher honesta que Silvio encontrou".
NB: Qualquer relação das personagens desta estória não é mera coincidência
com a vida de Tatiana Leskova que foi bailarina, coreógrafa e professora de
balé do Municipal do Rio de Janeiro.