sexta-feira, 22 de junho de 2012

Carlos Reichenbach: tradução cinema

Carlos Reichenbach, cineasta, faleceu no último dia 15 de junho aos 67 anos. Deixou órfãos cinéfilos a dar com pau. Dirigiu 22 filmes. Lembro-me de alguns: Anjos do arrabalde (1986), Alma corsária (1993), Dois córregos (1999) e Garotas do ABC (2004).

"Reichenbach parecia gostar dos marginais, dos inconformados. Sempre fez e defendeu um cinema autoral. Preferia um fracasso arriscado à mediocridade inofensiva. Para ele, cinema sem risco era cinema menor. Carlão foi uma figura fundamental do cinema marginal brasileiro e da Boca do Lixo. Depois, consagrou-se como um dos maiores autores de nosso cinema, dono de um estilo próprio que misturava erudição com uma busca constante pela comunicação com o público. Ele defendia que o bom cinema deveria ser para todos." André Barcinski (Folha de São Paulo, 15/06/2012).

Além de cineasta era um amante do cinema. Acompanhei de perto seus caminhos cinéfilos. Conheci algumas pérolas lendo seus blogs. Eis algumas: Dementia, John Parker (1955). Filme mudo, sem diálogos, mas com trilha sonora. Genial. Eraserhead (1977). A partir deste filme me interessei mais pela obra de David Linch.

Foi graças a Reichenbach que me tornei um conhecedor dos filmes de Anthony Hickox (a fina flor dos filmes de ação) tais como Knife edge (2009), Blast (2004), Marcados pela máfia (2002) e Invasion of privacy (1996). Idem para Cristhian Duguay de Caça ao terrorista (1997), Cilada (2002), Desafio radical (2002), Hitler: the rise of evil (2003), A ilha – uma prisão sem grades (2008) e os Scanners 2 e 3 (1991 e 1992).

E tem mais: os filmes de Samuel Fuller, Roger Corman e alguns faroestes spaghetti.

Das minhas últimas garimpagens no blog do Reichenbach conheci: Quando os Brutos se Defrontam (Faccia a Faccia, 1967), Sergio Sollima; Terror in Texas Town (1958), Joseph H. Lewis e Sick Nurses,2007, filme tailandez dirigido por Piraphan Laoyont.

Estamos órfãos, mas Carlos Reichenbach vive.

Veja lá em http://www.olhoslivres.com/links.htm

sábado, 9 de junho de 2012

Pai

Uma lembrança marcante que tenho de meu pai era a sua habilidade em datilografia. Ele era um exímio datilógrafo. Daqueles em que batia no teclado sem o ver; era capaz de escrever com os olhos fechados e usava os dez dedos da mão. Por outro lado era um escrevinhador de dar inveja. Tinha uma caligrafia de professora.

Meu pai foi um contador competente. Formou-se em ciências contábeis e trabalhava na serraria da família paterna, mas teve passagem, como contador, em outros locais. Finalmente passou a trabalhar como agricultor. Foi pai de oito filhos e filhas. Faleceu aos 66 anos, depois de 40 anos de casamento.

Convivi com meu pai em duas fases distintas. A primeira, na infância e adolescência. A segunda, como adulto. Na infância lembro-me das botinas e do corte de cabelo tipo meia tigela como o Cascão dos quadrinhos do Maurício de Sousa. Na adolescência e juventude tive os maiores conflitos com meu pai. Estávamos na década de 1960 e eu era Rolling Stones e não era Beatles. Era minha sedução primitiva pela guitarra, pelo rock.

Apesar da timidez já sabia na época o que eu não queria. E o que eu queria? Sei lá!

Meu pai sabia o que queria: o controle total sobre a formação dos filhos e filhas. Por isso o diálogo era zero. Era seu estilo. E para isto usava da violência. Levei surras homéricas do meu pai. Não tinha conversa: contrariado extravasava sua ira com um cinto ou laço de couro de boi.

Quando adolescente gostava muito de futebol. Numa manhã de domingo fui, na carroceria de caminhão, assistir o meu time de várzea num bairro distante de minha casa. Meu pai soube onde fui. Na volta tive que sofrer uma das surras mais inesquecíveis da minha vida. Por que, deuses! Gostava de futebol e torcia feliz pelo meu time.

Hoje me revolto quando presencio um pai usar de crueldade no tratamento com filhos. Este pai certamente não opta pela conversa, pelo convencimento e pela amabilidade. Usa o antigo método de domar cavalos. Antigo sim, pois atualmente existem métodos não violentos para treinar estes animais.

Talvez pelo que passei, um tema que me mobiliza muito hoje é a violência contra a criança. O Brasil é um dos campeões mundiais neste quesito. E mais de 60 % desta violência contra a criança ocorre no interior das famílias.

Às vezes penso como será esta criança (violentada) mais tarde como pai. Nem todos têm uma crítica sobre a educação que teve do pai e mãe. Aqueles sem a crítica reproduzem, como pai, o que sofreu como filho. "Não sei, as coisas sempre foram assim por aqui..." é o que responderia mais tarde? É como na estória atribuída a Einstein (Como nasce um paradigma) que reproduzo no final deste texto. Será que meu pai está neste contexto? O que sei é que o seu pai (meu avô) tinha com os filhos uma relação marcada pela ira e pela violência.

Em tempo: meu bisavô paterno aos 13 anos, em Portugal, brigou com outro menino. Com medo de represália em casa fugiu e foi arrebanhado num porto e embarcado num navio com destino ao Brasil. Este meu bisavô homenageou seus descendentes com os nomes de seus avós maternos contrariando os costumes vigentes na época. Ele nunca voltou a Portugal. O que será que ele pensava do pai?

A negação ao estímulo fazia parte do estilo de meu pai. A ordem era exigir ao máximo do filho. Caso eu fizesse uma coisa boa lá vinha um desestímulo. Você fez pouco e fez errado. A tática era anular para se impor. É claro que isto me revoltava. Era visceralmente contra este comportamento dele. O ser do contra me marcou pelo resto da vida.

Na fase adulta o comportamento do meu pai mudou. Tínhamos alguns raros diálogos. Ele já tinha netos e netas com os quais se relacionava completamente diferente. Mudou da água para o vinho. Será que ele, na época, se autocriticou? Duvido! Para ele a relação com os filhos e filhas foi a correta. O ser severo fazia parte da educação que sempre aprendeu com seu pai e antepassados. Era o seu paradigma.

Somos humanos complexos. Veja esta. Lembro-me de uma passagem dele com um cunhado. Este fazia o gênero novo rico prepotente. Não sei por que, mas um dia ele ameaçou meu pai de forma quase humilhante. Não houve reação à ameaça. Meu pai não era covarde, apenas não gostava de briga. Muito tempo depois este cunhado estava à míngua, pobre, abandonado e doente. E quem o ajudou providenciando aposentadoria e outros auxílios? Meu pai. Uma de suas virtudes era sua capacidade de perdoar.

Outra lembrança que tenho de meu pai: sentado pensativo e imóvel em sua mesa de trabalho. Remoia seus papéis com as dívidas não pagas. E pior, sem como salda-las. Esta situação não se modificou até a sua morte. Como agricultor teve bons e maus momentos. Estes últimos fizeram com que vendesse as terras. Voltou a trabalhar com contabilidade.

A solidão era a marca que o acompanhava. Sofria só, consigo mesmo. A solidão o corroia, pois não dividia as responsabilidades com a família. Não tínhamos a menor ideia de seus negócios. Guardava a sete chaves todos os seus movimentos contábeis e não tinha a menor vontade em compartilhar com as pessoas próximas. A responsabilidade era só dele e mais ninguém.

Sinceramente não tenho mágoas congeladas em relação a meu pai. Apesar das lembranças ruins da adolescência e juventude guardo comigo boas heranças. A honestidade, o senso de responsabilidade e a humildade para com as pessoas foram legados adquiridos através da convivência em comum com meu pai. Ele tinha mais certezas do que dúvidas, mas também não congelava mágoas.



"Na época isso foi só um pequeno começo, mas esse sentimento de nulidade que frequentemente me domina (aliás, visto de outro ângulo, um sentimento nobre e fecundo) deriva, por caminhos complexos, da sua influência. Eu teria precisado de um pouco de estímulo, de um pouco de amabilidade, de um pouco de abertura para o meu caminho, mas ao invés disso você obstruiu, certamente com a boa intenção de que devia seguir outro".

(Franz Kafka, Carta ao pai)


Edson Pereira Cardoso
Junho de 2012


NB


Como nasce um paradigma

Um grupo de cientistas colocou cinco macacos numa jaula, em cujo centro puseram uma escada e, sobre ela, um cacho de bananas. Quando um macaco subia a escada para apanhar as bananas, os cientistas lançavam um jato de água fria nos que estavam no chão. Depois de certo tempo, quando um macaco ia subir a escada, os outros o enchiam de pancadas.

Passado mais algum tempo, nenhum macaco subia mais a escada, apesar da tentação das bananas. Então, os cientistas substituíram um dos cinco macacos. A primeira coisa que ele fez foi subir a escada, dela sendo rapidamente retirado pelos outros, que o surraram.
Depois de algumas surras, o novo integrante do grupo não mais subia a escada. Um segundo foi substituído, e o mesmo ocorreu, tendo o primeiro substituto participado, com entusiasmo, da surra ao novato. Um terceiro foi trocado, e repetiu-se o fato. Um quarto e, finalmente, o último dos veteranos foi substituído. Os cientistas ficaram, então, com um grupo de cinco macacos que, mesmo nunca tendo tomado um banho frio, continuavam batendo naquele que tentasse chegar às bananas.
Se fosse possível perguntar a algum deles porque batiam em quem tentasse subir a escada, com certeza a resposta seria:
"Não sei, as coisas sempre foram assim por aqui...".