Morte Sobre o Nilo, Death
on the Nile, 1978, John Guillermin
A Única Mulher na Orquestra,
The Only Girl in the Orchestra, 2023, Molly O'Brien curta
Anuja, 2024, Adam J.
Graves curta
Trem Italiano da Felicidade,
Il treno dei bambini, 2024, Cristina Comencini
A Ostra e o Vento, 1997,
Walter Lima Jr.
Les enfants du paradis,
Boulevard do crime, 1945, Marcel Carné
Viva Django! Preparati la
bara!, 1968, Ferdinando Baldi
O Dragão da Maldade contra o
Santo Guerreiro, 1969, Glauber Rocha
O Canto do Mar, 1953,
Alberto Cavalcanti
Brinquedo Proibido, Jeux
interdits, 1952, René Clément
Maria e o Cangaço,
Minissérie TV, 2025, Sergio Machado & Thalita Rubio & Adrian Teijido
Apocalypse Now,
Final cut, 1979, Francis Ford Coppola
Cavalgada
Trágica, Comanche Station, 1960, Direção: Budd Boetticher&Roteirista:
Burt Kennedy
Carioca era um Rio, 2013,
Simplicio Neto
Wyatt Earp and the Cowboy War,
Série de TV, 2024, Patrick Reams
A verdadeira
história de Ned Kelly, True History of the Kelly Gang, 2019, Justin Kurzel
Maria Montessori - La nouvelle
femme, La nouvelle femme, 2023, Léa Todorov
Obrigado a matar, A Lawless
Street, 1955, Joseph H. Lewis
Onde O Coruja Dorme,
2012, Marcia Derraik & Simplício Neto
Rebelião, Jôi-uchi: Hairyô tsuma shimatsu, 1967, Masaki Kobayash
Harakiri, Seppuku, 1962,
Masaki Kobayashi
Túmulo dos
Vagalumes, Hotaru no haka, 1988, Isao Takahata
Jornada Inesquecível, The
Ride Back, 1957, Allen H. Miner&Oscar Rudolph
Conclave, 2024, Edward
Berger
Memórias de um Médico,
Black Magic, 1949, Gregory Ratoff & Orson Welles
O Brutalista, The
Brutalist, 2024, Brady Corbet
Caros Camaradas -
Trabalhadores em Luta, Dorogie tovarishchi, 2020, Andrei Konchalovsky
Andor, Série de TV,
2022–2025, 2ª Temp. Criação: Tony Gilroy
Rogue One: Uma História Star
Wars, Rogue One, 2016, Gareth Edwards
Falstaff, o Toque da Meia Noite,
Campanadas a medianoche, 1965, Orson Welles
The Last of Us, Série de
TV, 2023, 2ª Temp. Criação: Craig Mazin & Neil Druckmann
02/04/25
Morte Sobre o Nilo, Death on the Nile, 1978, John Guillermin
No iutubi aqui
Crítica | Morte Sobre o Nilo (1978) por Luiz Santiago 11 de fevereiro de 2022
Tragédia no Egito
O grande sucesso de Assassinato no Expresso do Oriente (1974) https://www.planocritico.com/critica-assassinato-no-expresso-oriente-1974/ fez com que a EMI Films assumisse mais uma produção com grande elenco e locações históricas a fim de adaptar outra querida obra de Agatha Christie para as telonas. O livro escolhido para essa empreitada (demarcando uma iniciativa que se tornaria franquia, com mais cinco filmes pela frente) foi Morte no Nilo (1937), obra da Rainha do Crime com uma ambientação diferente e um enredo sangrento, trágico e de final inesperado. Entregue ao diretor John Guillermin — que vinha de dois longas bastante populares: Inferno na Torre e King Kong –, Death on the Nile teve uma produção relativamente tranquila, apesar de cansativa, com o grande elenco lidando muito bem com o diretor e entre si, a despeito do enorme calor e das sete semanas que filmagens que tiveram no Egito, sendo quatro delas no barco onde a maior parte da história se passa.
A EMI Films procurou escalar Albert Finney para repetir o papel de Hercule Poirot, mas o ator recusou a proposta porque não se via passando, no enorme calor egípcio, pelo longo processo de maquiagem para compor o personagem, algo que ele já tinha odiado fazer em condições climáticas muitíssimo amenas em Orient Express. A escolha seguinte do estúdio, porém, não deixou a desejar. O ator que daria vida ao famoso detetive belga em Morte no Nilo seria Peter Ustinov, que na década anterior ganhara duas vezes o Oscar de ator coadjuvante, uma por Spartacus (1960) e outra por Topkapi (1964). Como Poirot, Ustinov entregou uma performance menos séria/rabugenta que a de Finney, inserindo um pouco mais de ironia, cinismo e humor ácido na maneira de se expressar (confesso que me lembrou mais Padre Brown do que Poirot), de fazer observações e de interrogar as pessoas. É um Poirot mais leve e que me agradou bastante, pois o ator mantém a necessária postura séria quando necessário, assumindo o orgulho e a forma bastante objetiva de lidar com uma crise.
As duas primeiras coisas que o espectador observa com atenção aqui são a fantástica fotografia quente de Jack Cardiff (grande profissional britânico responsável por obras tão diferentes em exigência estética como Guerra e Paz, Os Sapatinhos Vermelhos e Sob o Signo de Capricórnio) e a trilha sonora romântica, aventuresca e levemente sombria de Nino Rota, compositor italiano bastante conhecido por sua longa parceria com Federico Fellini e por ter concebido a inesquecível trilha de O Poderoso Chefão. Com os olhos e os ouvidos imediatamente impactados pela excelência desses setores técnicos, notamos que John Guillermin procurou manter a necessária proximidade com a forma como o livro introduz os personagens antes de dar início à viagem ao Egito. Linnet Ridgeway (Lois Chiles) é retratada como alguém que desperta sentimentos mistos nas pessoas. Sua face aparentemente conciliadora e feliz rapidamente muda, assim como o seu tom de voz, toda vez que quer reafirmar autoridade ou exigir que algo aconteça.
A adaptação de Anthony Shaffer é bastante fiel ao livro na captura de sua essência, e o diretor reforça a atmosfera de hostilidade ou mesmo de tensão esperada em torno de Linnet, de modo que quando chega o segundo e mais longo bloco dramático do longa, os sorrisos e as promessas de uma “boa viagem” pelo Nilo simplesmente não nos convencem. Sabemos que não será uma boa viagem, sabemos o quanto de sangue está para verter e o tipo de problema que está para vir à tona. É aqui que a direção mantém a bela dinâmica visual de “preparação de viagem“. Todo o processo para a partida do vapor Karnak procura se assemelhar àquilo que Sidney Lumet https://www.planocritico.com/tag/sidney-lumet/ fizera antes de o famoso Expresso do Oriente sair da plataforma. Todos os personagens centrais ganham o mínimo de espaço para brilhar e rapidamente conseguimos destacar a chata e ao mesmo tempo cativante Jacqueline De Bellefort (Mia Farrow, numa interpretação muito boa), a implacável Mrs. Van Schuyler (Bette Davis https://www.planocritico.com/tag/bette-davis/ basicamente sendo ela mesma, o que é maravilhoso) e a absolutamente hilária Mrs. Salome Otterbourne (Angela Lansbury, em uma interpretação impagável da escritora voluptuosa).
O aproveitamento das locações é outro ponto que captura o olhar do espectador. A vista para as pirâmides, a visita dos templos de Abu-Simbel (especialmente o maior deles, dedicado a Rá-Harakhty, Ptá e Ámon), a movimentação da câmera, a captura dos personagens passeando por entre aquelas colunas gigantescas e o clima de tensão criado antes de a rocha ser deslocada de cima de uma das colunas é um dos grandes momentos da fita, que faz jus ao caráter turístico que Agatha Christie colocou em seu livro. Dessa forma, quando as coisas estranhas começam a acontecer, o espectador já tem todo o preparo possível para brincar de adivinhar reações e esperar como a obra irá mostrar os assassinatos. Embora eu não goste muito de algumas cenas de contexto e ache que o diretor faz Poirot perder tempo demais com banalidades, vejo o processo de criação do suspense nesse filme algo aplaudível, criando um fértil terreno para o terceiro ato, onde a violência entra em cena.
Os flashbacks e a integração deles com o método de investigação de Poirot são utilizados nos momentos certos e sem exageros de duração, dando a oportunidade de o espectador ver algumas cenas principais a partir de um outro ponto de vista. Na literatura isso é feito de modo mais tranquilo com a troca de um capítulo, de um parágrafo ou até mesmo de um período. No cinema, é necessário ter cuidado para que esse olhar mantenha o nosso interesse e tragam algo de novo para o andamento da história. O cineasta sabia disso, e tornou cada um desses olhares uma interessante peça de acusação, sempre seguida de um assassinado mais brutal que o outro, algo bem típico de obras europeias dos anos 1970 que tinham um trato bastante particular para com a violência, olhando todo o refino visual que esse tipo de abordagem tinha no giallo italiano.
Do elenco, o único ator de quem não gosto é Simon MacCorkindale, que interpreta Simon Doyle. Sua presença aqui faz sentido dentro daquilo que conhecemos da descrição do personagem, pois é um ator bonito, com um rosto marcante e uma presença que chama a atenção. Mas não consegui gostar da interpretação de MacCorkindale ao longo da obra, mesmo não achando que ele estrague os momentos em que aparece. Só o vejo bastante aquém do restante do elenco, onde todo mundo está fantástico, principalmente da segunda metade da obra para frente. Tenso, cheio de boas surpresas, humor ácido e ironias refinadas de uma classe social cheia de máscaras e podridão, Morte no Nilo nos traz um final implacável, mostrando que em determinadas situações, só alguém muito corajoso e muito insano para encontrar uma saída mortal após perder a tétrica e grande aposta de uma vida.
03/04/25
A Única Mulher na Orquestra, The Only Girl in the Orchestra, 2023, Molly O'Brien curta
Orin O'Brien
A Única Mulher na Orquestra’, uma obra repleta de inspiração e humanidade por Taynna Gripp 10/12/2024
Poucas histórias no mundo da música clássica são tão inspiradoras quanto a de Orin O’Brien, a primeira mulher a integrar a renomada Filarmônica de Nova York. O curta-metragem “A Única Mulher na Orquestra” (The Only Girl in the Orchestra), disponível na Netflix, explora a trajetória dessa talentosa contrabaixista que, em 1966, rompeu barreiras de gênero em um ambiente amplamente dominado por homens.
Dirigido por Molly O’Brien, sobrinha de Orin, o documentário não apenas celebra uma carreira marcante, mas também reflete sobre os desafios e as nuances de uma vida dedicada à música.
Sinopse do documentário A Única Mulher na Orquestra (2024)
Com apenas 34 minutos, o filme conduz os espectadores por uma jornada íntima na vida de Orin O’Brien. Através de imagens de arquivo e cenas contemporâneas, acompanhamos sua entrada na Filarmônica de Nova York sob a direção de Leonard Bernstein, sua visão única sobre a arte e sua transição para a aposentadoria após 55 anos de dedicação.
Orin, criada em uma família de estrelas de Hollywood, rejeitou os holofotes em favor da paixão pela música, encontrando na contrabaixo um meio de expressão e realização pessoal. O documentário revela tanto o contexto cultural e social da década de 1960 quanto a personalidade reservada e espirituosa de Orin.
Crítica do filme A Única Mulher na Orquestra, da Netflix “A Única Mulher na Orquestra” é um retrato tocante e elegante de uma pioneira que abriu caminhos para outras mulheres no universo orquestral. A direção de Molly O’Brien é discreta, permitindo que a história de Orin brilhe por si só. As cenas que mostram Orin ensinando seus alunos e compartilhando sua sabedoria são especialmente comoventes, destacando sua humildade e dedicação ao ofício.
O documentário acerta ao explorar as dificuldades de ser uma mulher em um espaço dominado por homens. A inclusão de recortes de jornais e depoimentos da época reforça o sexismo enfrentado por Orin, enquanto comentários como os de Leonard Bernstein, que a descreveu como um “milagre” na orquestra, sublinham sua genialidade.
No entanto, o filme poderia ter se aprofundado mais em sua carreira musical, talvez com recriações de performances ou depoimentos de colegas músicos, enriquecendo ainda mais o conteúdo.
Outro ponto alto é a relação entre Orin e sua sobrinha Molly, que captura momentos de vulnerabilidade e reflexões sobre o significado do sucesso e da vida. A abordagem de Orin de “tocar em segundo plano” e “não ser o centro das atenções” é uma filosofia de vida rara e admirável, que transcende o palco.
Conclusão
Delicado e envolvente, “A Única Mulher na Orquestra” é uma homenagem merecida a uma mulher que desafiou normas e redefiniu papéis. Apesar de seu curto tempo de duração, o documentário consegue transmitir a essência de Orin O’Brien, sua paixão pela música e seu impacto duradouro. Para aqueles que apreciam histórias de superação e arte, esta é uma obra indispensável, repleta de inspiração e humanidade.
03/04/25
Anuja, 2024, Adam J. Graves curta
Review by Barmilliv
O curta-metragem "Anuja", dirigido por Adam Graves, narra a história de uma menina de nove anos que trabalha em uma fábrica e se vê diante de uma escolha que muitas crianças na mesma situação jamais têm a oportunidade de fazer: continuar no trabalho ou buscar uma educação. O enredo acompanha Anuja (Sajda Pathan), que, ao ser questionada por um professor sobre sua idade, mente dizendo ter 14 anos. Ainda assim, ele lhe dá a chance de retornar à escola e fazer sua prova. Sua irmã mais velha, Palak (Ananya Shanbhag), tenta convencê-la de que a educação é o caminho para um futuro melhor – algo que ela mesma não conseguiu alcançar, mas que sempre foi o desejo de sua mãe.
No entanto, Anuja resiste. A escola, para ela, parece um conceito distante, quase abstrato, enquanto o trabalho é uma necessidade concreta. A pressão da sobrevivência pesa sobre seus ombros, tornando a escolha ainda mais difícil. Para piorar, o dono da fábrica percebe sua habilidade excepcional com números e lhe oferece um trabalho mais estável. Esse dilema expõe uma realidade cruel: para crianças como Anuja, crescer significa lidar com responsabilidades que deveriam ser de adultos.
Um dos aspectos mais importantes de Anuja está na forma como apresenta essa questão sem recorrer a dramatizações exageradas. A direção de Graves opta por um realismo sutil, sem cair na armadilha do melodrama, o que torna a história ainda mais impactante. Em vez de apelar para grandes reviravoltas ou cenas carregadas de emoção, o filme confia na força da simplicidade. Não há trilha sonora dramática para conduzir a emoção do espectador, nem diálogos expositivos para reforçar a mensagem, tudo se desenrola de forma natural, deixando espaço para que a realidade fale por si só. O filme não precisa de discursos grandiosos para provocar reflexões, ele apenas expõe a realidade de milhões de meninas que, desde pequenas, são forçadas a abrir mão da infância e das oportunidades que poderiam mudar suas vidas.
A autenticidade também se reflete nas atuações. Sajda Pathan não é atriz profissional, e talvez seja justamente por isso que sua interpretação soa tão real. Não há exageros ou gestos ensaiados – apenas uma presença de cena crua e natural, que reforça o impacto da história. Sua expressão carrega o peso de sua situação sem precisar de palavras. O mesmo pode ser dito sobre Ananya Shanbhag, que interpreta Palak com a sensibilidade necessária para demonstrar o carinho e a frustração da irmã mais velha. Ela personifica a esperança e o desespero simultaneamente, tentando convencer Anuja de algo que ela própria não conseguiu viver. O restante do elenco, incluindo Nagesh Bhosle como o dono da fábrica e Gulshan Walia em uma breve aparição, cumpre bem seu papel, mas o foco absoluto permanece em Anuja e sua jornada. Sem apelar para exageros emocionais, a obra se destaca pela forma sincera com que aborda uma dura realidade. Apesar da curta duração, seu impacto é significativo, levando o espectador a refletir sobre um problema social que ainda não foi superado.
A escolha de Anuja permanece aberta, sem um desfecho definitivo, e é exatamente isso que torna o filme tão forte. Ele não se preocupa em dar respostas fáceis, pois sabe que, na vida real, essas escolhas raramente são simples. Ao final, a sensação de incerteza não é um defeito, mas sim um retrato fiel da realidade enfrentada por milhões de crianças ao redor do mundo. Anuja pode não trazer soluções, mas coloca o espectador diante de um questionamento incômodo – e essa, talvez, seja sua maior qualidade.Letterboxd
04/04/25
Trem Italiano da Felicidade, Il treno dei bambini, 2024, Cristina Comencini

“O Trem Italiano da Felicidade” por Elza Campos, 09/12/2024
Uma comovente história de superação e solidariedade, mostrando as cicatrizes da guerra, o amor materno e a esperança no futuro pelo olhar sensível de uma criança.
Impossível não derramar lágrimas de enternecimento ao assistir ao filme “O Trem Italiano da Felicidade,” uma história real, baseado no livro “Crianças da Guerra: A História Sobre o Trem Italiano da Felicidade”, de Viola Ardone. Ele aborda as mazelas deixadas pela Segunda Guerra Mundial no sul da Itália. A sensível película, dirigida por Cristina Comencini, narra de forma singular a realidade de crianças pobres transferidas do sul para o norte da Itália, este mais desenvolvido economicamente, com o intuito de salvá-las da fome e da miséria extrema. O destaque do Trem e o adjetivo “felicidade” dão-se em função de Amerigo Speranza, interpretado com delicadeza por Christian Cervone e mais uma centena de crianças embarcarem, sob a orientação e a solidariedade de integrantes do Partido Comunista Italiano para serem acolhidos, no norte do país, derrotado na II Guerra pelos Aliados.
Amerigo, protagonista da história, após chegar de trem ao destino, é adotado por Derna (Barbara Ronchi), inteligente, culta, carinhosa e militante ativa do PCI. O menino, de 8 anos, passa a frequentar a escola local e em certa ocasião sofre bullying dos alunos locais, que zombam dele por sua origem no sul italiano pobre. Ele corre triste para casa e Derna, vendo como aquilo baixou muito a autoestima de Amerigo, lembra-lhe, citando Gramsci, que algumas bolotas (frutos) de carvalho podem originar árvores enormes, mas que muitas delas virarão apenas comida para porcos. A relação muito díspare entre o sul e o norte da Itália foi exaustivamente tratada por Antonio Gramsci, quando analisou suas estruturas econômicas, sociais e de classes, atrasadas no sul e bem desenvolvidas no norte. Constatou o fundador do PCI que não apenas as fronteiras nacionais se distinguem do internacional, dentro de um mesmo Estado, mas que nele podem existir várias formas de desenvolvimento.
Assim, o filme inicia em Nápoles, no Sul, arrasada pela guerra, com cena que lembra o belíssimo “Novo Cinema Paradiso (resenha publicada em outubro de 2021 – https://encurtador.com.br/TFEx7), pois, no começo deste, também o protagonista Totó, adulto e bem sucedido na vida, recebe a notícia da morte de Alfredo, e volta para sua cidadezinha Giancaldo (sul da Itália). Da mesma forma Americo Benvenutti, já adulto e um maestro renomado, recebe a informação da morte da mãe biológica Antonieta Speranza (Serena Rossi), no momento em que ele se preparava para se apresentar no Teatro Dell’Opera di Roma. Ele retorna a Nápoles, e reencontra a casa humilde em que viveu com sua mãe. É esse evento que desencadeia a viagem e às memórias do protagonista, transportando-nos para sua infância de privações e refazendo em flash-back de toda a trajetória do protagonista em dois momentos de sua vida, trazendo emoções e melancolia e uma nova e melhor compreensão do tipo de amor devotado pela mãe biológica (uma mulher muito pobre, sem maior instrução ou cultura, brutalizada pela dura vida no bairro pobre de Nápoles).
A maior parte do tempo passa-se com Amerigo, uma criança de 8 anos, muito magra com seus olhos grandes e questionadores, e em dois momentos: em Nápoles, em situação de penúria, com sua mãe se desdobrando para colocar comida na mesa, e em uma pequena cidade do norte, Módena. Nesta localidade, onde frequenta a escola e descobre seu talento para a música ao conhecer um artesão que fabrica violinos e o ensina nessa arte, que se mostra um menino dedicado e agradecido pelo acolhimento. A mãe adotiva, militante do partido comunista, aos poucos vai demonstrando o amor pelo menino e o estimula a continuar na arte da música.
Uma cena importante: em uma reunião das mulheres militantes comunistas, decidiu-se que uma delas faria um discurso em um ato na cidade. No entanto, Derna quando foi reivindicar esse espaço com um dos militantes do PCI, este não só proíbe a militante, ou qualquer outra camarada, de discursar na festa dos trabalhadores, como ainda lhe dá um tapa no rosto, evidenciando que no PCI dos partisans que derrotaram o nazifascismo de Mussolini ainda persistiam manifestações de machismo estrutural-cultural.
“O Trem Italiano da Felicidade” apresenta uma história única, singela, envolvente, repleta de memórias da infância e a exaltação não só dos amores maternos, como pela música, com destaque para o violino, com momentos tristes dos resquícios e cicatrizes deixadas pela guerra. A realidade de uma época e de um lugar gravados pelo sofrimento coletivo expõe feridas dificilmente apagadas ao longo do tempo. A atuação marcante de Amerigo e emocionante de suas duas mães, que, de forma diferenciada, demonstravam amor pelo filho e a solidariedade do PCI com seus conterrâneos do sul, ou seja, de cuidar da infância de seu país, suscita sentimentos de alegre reconforto e esperança. Esse filme, juntamente com o brasileiro “Ainda Estou Aqui”, já estão entre meus favoritos neste ano de 2024.
04/04/25
A Ostra e o Vento, 1997, Walter Lima Jr.
No iutubi aqui
A ostra e o vento
Romance de Moacir C. Lopes tem um cenário insólito da Ilha dos Afogados, onde há um farol, a fúria do vento, o grito dos mumbebos e três habitantes
Abril de 2013, Alberto Mussa, Edição 156, 01/04/2013
Apesar de estar seguramente entre as maiores, sempre achei a ficção brasileira um tanto conservadora, no que se refere a temas e cenários. Há muito pouco fantástico, há pouquíssima aventura, raros são os livros que tratam o popular com conhecimento de causa, e o romance histórico é ainda bastante incompleto.
Também são escassos os romances do mar: O brigue flibusteiro, de Virgílio Várzea, está hoje esquecido, e nem tão injustamente. O corsário, de Caldre e Fião, é um título que ilude, porque o livro trata mesmo é da Guerra dos Farrapos. Adolfo Caminha, com Bom-crioulo, e Jorge Amado, com Mar morto ou Os velhos marinheiros, são mais propriamente romancistas do cais.
Creio que tenha sido Moacir C. Lopes, com Maria de cada porto, quem nos deu a primeira grande aventura marítima, logo uma história de náufragos, que passam quatro dias perdidos no mar.
O romance tem passagens intensamente líricas (por exemplo, quando o narrador evoca o amor de Maria, filha da sua lavadeira), enredadas em conflitos de marujos, e em contraponto com a terrível descrição do naufrágio (a cena em que um deles, desesperado de sede, bebe da água do mar é de uma tragicidade impressionante).
Moacir C. Lopes a esquerda
Moacir C. Lopes, no entanto, atingiria um patamar ainda mais alto com A ostra e o vento. Entramos agora no cenário insólito da Ilha dos Afogados, onde há um farol, a fúria do vento, o grito dos mumbebos e três habitantes.
O romance começa com a chegada de Daniel à Ilha dos Afogados, onde foi por nove anos auxiliar do faroleiro. Vem acompanhando uma expedição da Capitania dos Portos, que vai investigar por que o farol fora apagado. A ilha estava deserta. José, o faroleiro, Marcela, sua filha, e Roberto, o ajudante recém-chegado, desapareceram.
Os fragmentos dos diários de quarto, anotados por José, revelam que ele estava se preparando para lutar contra um invasor. Pelos escritos de Marcela, Daniel descobre a surpreendente informação de que um certo Saulo se encontrava com a moça, na ilha, desde a época em que ele trabalhara ali. Daniel estranha tudo isso, pois teria sido impossível alguém desembarcar na Ilha dos Afogados sem ser visto. E assim se forma um clima de mistério.
A narrativa se concentra em Marcela, que chegou na ilha com 9 anos e agora tem 22. José — figura rígida, estranha, suspeito de ter matado a mulher e um pescador, amante dela — mantinha a filha sob um controle implacável.
Marcela, proibida de ir ao continente, inicia sozinha, na ilha, o processo de descoberta da própria sexualidade.
O pai a reprime, quando a surpreende nua, na praia; e protegê-la de um possível sedutor passa a ser a sua obsessão. O texto, no fundo, trata desse despertar, da explosão do sexo em Marcela, da impossibilidade de se tentar conter a sexualidade feminina.
As cenas em que Marcela se entrega ao vento são das mais belas da literatura universal. E o romance cresce, e arrebata, quando começamos a perceber a real identidade do protagonista oculto que narra a história. Aliás, é também essa arquitetura narrativa que faz do livro uma obra-prima.
A primeira edição de A ostra e o vento saiu em 1964, pela Civilização Brasileira. É a que se encontra com mais facilidade, com grande variação de preços (entre R$ 5 e R$ 25). Há também edições da Cátedra e da Quartet. Creio que algo entre R$ 15 e R$ 20 seja um
05/04/25
Les enfants du paradis, 1945, Marcel Carné
Marcel Carné
Le site hommage au réalisateur français Marcel Carné (1906-1996)
Análise do filme Les Enfants du paradis, de Philippe Morisson [tradução livre]
Atualizado em 28 de outubro de 2012 (aprimorei as informações sobre Trauner / Barsacq e Kosma / Thiriet)
1 - PREÂMBULO
Marcel Carné tinha 37 anos e seis filmes em seu nome, cinco dos quais são considerados clássicos, quando começou a filmar Les Enfants du paradis. Ele havia acabado de dirigir Les Visiteurs du soir, um dos maiores sucessos do cinema francês durante a Segunda Guerra Mundial. Tendo assinado contrato para três filmes com o produtor André Paulvé, ele pensou primeiro em filmar Nana, de Zola, depois La vie de Milord l'Arsouille (filmado em 1956 por André Haguet) e, por fim, La Lanterne magique, antes de conhecer Jean-Louis Barrault por acaso em Nice, a quem havia dirigido duas vezes em Jenny (1936) e Drôle de drame (1937). Barrault lhe contou sobre um famoso mímico do século XIX, Jean-Baptiste Gaspard Deburau, que havia dado uma nova vida à arte da pantomima no Théâtre des Funambules, um dos teatros mais conhecidos do Boulevard du Temple em Paris (um bulevar que foi desfigurado pela construção da Place de la République em meados do século XIX pelo Barão Haussmann). Deburau entrou para a história quando matou um bêbado que o estava incomodando.
Em seu julgamento, toda a cidade de Paris correu para finalmente ouvi-lo falar. Barrault lembrou que havia sentido a mesma empolgação com o primeiro filme falado de Charlie Chaplin, alguns anos antes.
Surgiu a ideia de um filme que combinaria teatro falado e mímica, e no qual o famoso ator da época Frédérick Lemaître (elogiado por Victor Hugo e Alfred de Vigny) teria um papel a desempenhar. Jacques Prévert, que não gostava de pantomima, foi mais reticente. No entanto, ele aceitou a ideia quando percebeu que seria uma oportunidade de retratar outra figura histórica, Pierre-François Lacenaire, conhecido como "o dândi do crime", uma figura criminosa que o fascinava.
De fato, como Carole Aurouet relembra em um dos extras do DVD, Prévert é citado dizendo: "Eles não me permitem fazer um filme sobre Lacenaire, mas posso colocar Lacenaire em um filme sobre Deburau".
Depois de decidirem, a equipe de Carné começou a trabalhar no convento de Valette, perto de Tourrettes-sur-Loup (no sul da França), enquanto a França estava completamente ocupada pelos nazistas. Jacques Prévert escreveu o roteiro, Alexandre Trauner esboçou alguns dos cenários escondidos, incluindo o Boulevard du Crime, enquanto Léon Barsacq assumiu o desafio de projetar os outros (o camarim de Baptiste nos Funambules, por exemplo) e supervisionar toda a produção e construção dos cenários.
Também na clandestinidade, Joseph Kosma compôs um balé para as pantomimas, Pierrot Le Galant, pantomimas que foram assinadas por seu indicado durante a Ocupação: Georges Mouqué. E foi Maurice Thiriet, que havia escrito a música para Les Visiteurs du soir no ano anterior, que novamente cuidou do resto da música, misturando as duas brilhantemente. Enquanto isso, Carné supervisionava tudo e voltava regularmente de Paris com montanhas de documentação emprestada do museu Carnavalet, entre outros lugares. Desde o início, Les Enfants du paradis foi uma aventura coletiva, talvez até mais do que outros filmes de Carné, o que explica o sucesso do filme.
A ideia de um elenco excepcional foi logo cogitada, ajudada pelo sucesso de Les Visiteurs du soir. Além de Jean-Louis Barrault (que quase foi substituído, por motivos de agenda, por um desconhecido na época chamado Jacques Tati, que Carné havia visto em um salão de música) no papel de Baptiste Deburau, havia Pierre Brasseur, velho amigo de infância de Carné, de Batignolles, que já havia aparecido em Le Quai des Brumes, no papel de Frédérick Lemaître. Marcel Herrand, que acabou de aparecer em Les Visiteurs du soir, interpretará Lacenaire. Maria Casarès, que fez parte da trupe de teatro de Marcel Herrand no Théâtre des Mathurins, conseguiu seu primeiro papel nas telas como Nathalie. Os créditos também incluem Pierre Renoir, irmão mais velho de Jean Renoir, que interpreta Jericho e substitui Robert Le Vigan em curto prazo, que teve que abandonar as filmagens após o desastre de Vichy (esse notório colaborador e antissemita teve que fugir com Céline para se juntar ao Marechal Pétain em Sigmaringen, na Alemanha).
O elenco de apoio incluía Étienne Ducroux, antigo professor de mímica de Barrault, com quem Barrault havia se desentendido, um elemento biográfico explorado no filme por Prévert, Ducroux interpretando Anselme Deburau, o pai desesperado de Barrault-Baptiste; Fabien Loris, amigo de Prévert do grupo October, que interpretou Avril (ele também foi o primeiro marido da última esposa de Prévert, Janine); Jane (ou Jeanne) Marken, uma das personagens coadjuvantes mais regulares de Carné, que apareceu em todos os filmes do diretor, de Hôtel du Nord a La Marie du port (com exceção de Le jour se lève e Les Visiteurs du soir); e, o melhor de tudo, Arletty, a atriz favorita de Carné e Prévert, que atuou em cinco dos melhores filmes do diretor. Prévert inventou o personagem de Garance para ela, dando-lhe o melhor papel de sua carreira, como Arletty confidencia em um dos extras do DVD.
2 - FILMAGEM E LANÇAMENTO DO FILME
As filmagens começaram em meados do verão de 1943 em Nice, nos estúdios Victorine, de propriedade do produtor Paulvé. É fácil imaginar como foi difícil filmar um afresco como esse em meio à ocupação, o que exigiu um derramamento de energia e coragem sem precedentes. Margot Capelier, assistente de Prévert na escrita, conta: "Esse filme foi um milagre, faltou-nos tudo... havia muita energia motivada em torno de Les Enfants du paradis, também em reação à atmosfera da época". Ela relata o perfeccionismo raivoso de Carné no set. As travessuras do diretor são notórias. Com os meios à altura de suas ambições, Carné exigia o máximo de seus atores, um verdadeiro tirano com Maria Casarès, por exemplo. Marcel Herrand confidenciou que sua pior lembrança cinematográfica era "Marcel Carné em Les Enfants du paradis! Mas os colaboradores de Carné não ficaram para trás. Dizem que, durante uma cena, ele ficou surpreso com o fato de os músicos estarem fingindo tocar (eram apenas figurantes) e que causou um escândalo para que músicos de verdade pudessem ser encontrados para uma filmagem na qual, no final, só vimos o maestro! Léon Barsacq: "Carné é encantador, mas completamente hipnotizado por seu filme, nada mais importa para ele e é justo que ele não ache que as pessoas continuam a fazer guerra só para irritá-lo!"
É claro que estava na moda criticar Carné por essa atmosfera de filmagem, bem como pelo custo de um filme como esse ("Eu gasto, logo existo", disse Henri Jeanson), mas quando você vê o resultado deslumbrante na imagem, não pode deixar de pensar que Carné provavelmente estava certo. A pressão que ele estava exercendo sobre si mesmo tinha que ser atribuída aos outros, especialmente porque Carné sempre teve um complexo em relação ao seu pequeno tamanho. Não se pode fazer uma obra-prima como essa em tempos de guerra sem pedir a todos que façam o máximo e muito mais. Imagine só: os materiais de construção eram escassos, o filme era racionado e a eletricidade intermitente, sem mencionar todos os problemas associados à filmagem de um filme durante mais de um ano. Assim que as filmagens começaram, foram interrompidas por três meses devido ao desembarque dos Aliados na Sicília. Nesse momento, as autoridades alemãs proibiram o produtor Paulvé de trabalhar (por causa de um antepassado judeu distante) e o filme quase foi interrompido antes que a Pathé concordasse em assumi-lo. O cenário no Boulevard du Temple foi seriamente danificado por uma tempestade, resultando em despesas adicionais (um milhão de francos, enquanto a interrupção havia custado dez milhões de francos de um orçamento total de cinquenta e oito milhões de francos... no auge da guerra!)
O filme continuou por algumas semanas na primavera de 1944 em Paris, no estúdio Pathé, na rue Francœur, e depois nos estúdios de Joinville. Durante essas filmagens, o diretor de fotografia, Roger Hubert (que havia feito a aclamada iluminação de Carné para Jenny, Les Visiteurs du soir e Thérèse Raquin), ficou preso em outro filme (de Serge de Poligny). Ele foi substituído por outro grande diretor de fotografia, Philippe Agostini, que já havia filmado Le Jour se lève. Ele confessa que teve de estudar cuidadosamente o estilo de Hubert, porque "conectar as coisas causava problemas. Ele trabalhava com pouquíssima luz, assumindo riscos, em um estilo mais próximo do Schüfftan [Quai des Brumes] do que do meu... Acho que consegui uma boa imitação". Agostini filmou a cena no camarim com Brasseur e Arletty, quando ela voltou para admirar Baptiste em segredo, bem como a cena final na caravana, quando Arletty foi embora. Mas, infelizmente para ele, seu nome nunca aparecerá nos créditos de Les Enfants du paradis. Um descuido que não o impediria de iluminar mais tarde Les Portes de la nuit e Le Pays d'où je viens para Carné.
Quando o filme ficou pronto, Carné fez de tudo para garantir que ele fosse o primeiro a ser lançado na Libertação. Como escreveu Edward Turk, "o filme foi um antídoto patriótico para a derrota militar". Georges Sadoul explica que Les Enfants du paradis "representou um prodigioso ato de fé em 1943-1944, uma catedral erguida para a glória da arte francesa no momento mais terrível". Carné teve que lutar com os produtores para que seu filme fosse exibido na íntegra em dois cinemas exclusivos (o Madeleine e o Colisée) em vez de apenas um, com um intervalo (o filme tem mais de três horas de duração). Para conseguir isso, ele concordou em dobrar o preço dos ingressos. Ele também teve a ideia, pela primeira vez, de permitir que os espectadores reservassem seus assentos, algo tão comum hoje em dia. Assim que foi lançado, o filme foi um grande sucesso. Ficou em cartaz por mais de cinquenta e quatro semanas na Madeleine. No entanto, algo aconteceu para manchar a alegria de Carné. Na estreia no Palais de Chaillot, em 9 de março de 1945, Carné ficou triste ao ouvir seu mentor, Jacques Feyder, dizer um lacônico "Sim, não é ruim". Nem Feyder nem Rosay escreveriam sobre sua colaboração em suas respectivas memórias. Perdoe-me por esse longo preâmbulo, mas acho que é importante contextualizar um filme como esse e enfatizar que uma obra-prima como essa não acontece por acaso.
3 - "O melhor filme francês de todos os tempos
Vamos passar para o filme em si. Tudo já foi escrito sobre esse filme, que foi eleito "o melhor filme francês de todos os tempos" por mais de seiscentos profissionais do cinema em 1995, e que muitas pessoas em todo o mundo consideram o melhor filme de todos os tempos. Embora eu não chegue a esses extremos, é preciso dizer que esse filme continua a nos cativar mais de sessenta anos após seu lançamento. Essa história de amor entre o mímico Baptiste e a livre-espiritual Arletty nos fascina com sua poesia, sua graça e seu romantismo. A maneira como os personagens secundários e suas histórias paralelas se cruzam ao longo das três horas desse filme extraordinário é deslumbrante, assim como a reconstrução desse distrito de Paris por volta de 1840. Além do fato de o roteiro ser mais complexo do que parece, o diálogo mostra que Jacques Prévert foi transcendido por essa história e pela equipe que a tornou real. Não posso resistir a citar alguns trechos, começando com a frase de Garance (Arletty) para Frédérick Lemaître (Pierre Brasseur): "Paris é muito pequena para aqueles que se amam tanto quanto nós. Garance, que alguns anos depois diria a Baptiste: "Você me ajudou a viver por anos, impediu que eu envelhecesse, que me tornasse estúpida, que me estragasse... Eu disse a mim mesma: você não tem o direito de ficar triste, você ainda está feliz porque alguém o amou".
4 - BAPTISTE, GARANCE e NATHALIE
O relacionamento entre Baptiste e Garance é fascinante. É a crônica do amor louco de Baptiste por Garance, que é amada por Nathalie/Maria Casarès, com quem ele acaba se casando, mas que sempre carregará consigo o vislumbre de um amor sem esperança. Essa é a ocasião para algumas trocas maravilhosas entre os dois. Quando Baptiste está com Garance pela primeira vez, ele lhe diz: "Estou tremendo porque estou feliz e estou feliz porque você está aqui ao meu lado. Eu amo você e você, Garance, você me ama?" Garance contesta que ele fala "como uma criança, é assim que amamos nos livros e nos sonhos, mas não na vida! Um pouco mais tarde, ela é mais explícita: "Por favor, Baptiste, não seja tão sério, você está me congelando. Você não deve ficar com raiva de mim, mas eu não sou... como você sonha. Você precisa me entender, sou simples, muito simples. Gosto de agradar quem eu quiser, só isso. E quando tenho vontade de dizer sim, não sei como dizer não". Alguns momentos antes, Baptiste havia confidenciado a ela algo que está na raiz de um dos temas "Prevertianos" e "Carnesianos", como encontrado, por exemplo, em Juliette ou la Clef des songes: "Quando eu era infeliz, eu dormia, eu sonhava, mas as pessoas não gostam quando você sonha. Então elas batem na sua cabeça só para acordá-lo um pouco. Felizmente, eu tinha um sono mais pesado do que as pancadas e escapei delas dormindo. Sim, eu estava sonhando, esperando e aguardando."
Há um paralelo óbvio com Peter Ibbetson, de Henry Hattaway, outro grande filme sobre o amor louco. Nesse filme, o herói encontra seu amor em um sonho e acaba preferindo viver nesse sonho e, portanto, desistir da vida, assim como o personagem Michel interpretado por Gérard Philipe em Juliette, dirigido por Carné em 1950. Como Danièle Gasiglia-Laster escreveu em uma edição da CinémAction: "Baptiste, que respeita Garance, não a entende e não consegue adivinhar o que ela quer dele. Ele a imagina de acordo com os estereótipos da mulher ideal, complicando as coisas, enquanto a jovem, como ela mesma diz, é simples". Assim, na primeira vez em que ele poderia passar a noite com ela, ele foge.
Mas Baptiste, obcecado por esse amor, ainda mais porque faz de tudo para torná-lo inacessível, não percebe que ao seu lado está Nathalie (Maria Casarès), que é a encarnação da jovem simples e pura (alguns diriam transparente) encontrada em muitos dos filmes de Carné. Nathalie, cujo amor é tão puro e em quem ela deposita toda a sua confiança, como ela diz quando vê Baptiste e Garance juntos: "Não é só porque estou com ciúmes, mas porque estou muito confiante. Sim, tenho certeza de que Baptiste e eu fomos feitos um para o outro. Foi Nathalie quem viu a metamorfose de Baptiste quando ele conheceu Garance: "O que há de errado com você, Baptiste?... você tem algo! você é lindo... Você sabe que é lindo, porque você é lindo, mas hoje você está mais lindo do que em qualquer outro dia". Ela também disse esta outra frase linda: "Mas eu não me importo se você gosta de mim, o que eu quero é que você goste de mim". A história registrará que foi Marie Déa, a Anne de Les Visiteurs du soir, que faria o papel de Nathalie, mas que já tinha um compromisso no teatro.
É fato que a maioria dos críticos que escreveram sobre esse filme sistematicamente esquece (ou subestima) o personagem de Nathalie. Maria Casarès, em seu primeiro papel na tela, é profundamente comovente nas poucas cenas que Prévert escreveu para ela. Como aquela no final, em que ela surpreende Baptiste novamente com Garance, que estão se vendo pela primeira vez desde seus respectivos casamentos, e em que ela apostrofa seu rival: "Você está indo embora, sentimos sua falta. O tempo trabalha para você e você volta, com um novo rosto embelezado pela memória... Mas ficar e viver com apenas uma pessoa, compartilhando com ela as pequenas coisas da vida cotidiana, isso é outra coisa". Em seguida, ela pede uma explicação a Baptiste, mas ele não consegue responder: "Mas você diz muitas coisas quando fica calado, e eu as entendo". A cena termina com Garance fugindo, perseguida por Baptiste, com Nathalie gritando para ele em um choro de cortar o coração "et moi Baptiste, et moi? Deve-se observar que essa cena não estava no roteiro original e, de acordo com seu biógrafo Yves Courrière, Prévert se inspirou no fim de seu caso com a jovem Claudie Carter. Embora alguns tenham visto essa personagem como a personificação da dona de casa que aprisiona seu marido sonhador, isso é um erro. Garance e Nathalie são duas encarnações do amor romântico. Uma é idealizada por Baptiste, a outra, confiante e segura de si, uma realista, incompreendida em seu infortúnio.
O fato de Garance ser idealizada é irônico, pois ela é, ao contrário, a personagem mais liberada e emancipada de Les Enfants du paradis. Garance não usa máscaras, ela é quem é. Ela não trapaceia como Lacenaire, ela é "a mulher que não se importa com nada, que ri quando tem vontade de rir, que não se deixa dirigir pelos pensamentos dos outros", como Arletty explicou a Edward Turk em 1979. É claro que Prévert se inspirou na vida e no caráter da atriz: "Eu me recuso a ter ideias impostas a mim. Sou independente e corro os riscos da independência", disse ela na mesma entrevista. Arletty é a prova de que é muito difícil ser simplesmente quem você é, porque "a sociedade às vezes prende os indivíduos a papéis que eles não querem", como escreve Danièle Gasiglia-Laster. Isso traz à mente o conturbado caso de amor de Arletty com um oficial nazista, que a levou à prisão no final das filmagens e a dezoito meses de prisão domiciliar.
Em um dos extras, a atriz conta que tem boas lembranças de sua estadia em La Houssaye, em Seine-et-Marne, graças aos livros e ao ambiente natural: "Havia um pôr do sol maravilhoso. Ela ainda estará lá quando o filme chegar às telas. Na biografia de Denis Demonpion sobre ela, ela conta que só foi autorizada a sair para fazer uma passagem de som no outono de 1944. E foi justamente quando essa admirável mulher de 45 anos estava no auge de sua fama que ela foi expulsa (por "pessoas invejosas", como Michel Simon disse em um dos extras) e só fez filmes ocasionais.
5 - FRÉDÉRICK LEMAITRE
Les Enfants du paradis também é notável pelos personagens que cercam Garance e que estão todos apaixonados por ela. Frédérick Lemaître (Pierre Brasseur) interpreta o "ator romântico e rebelde por excelência", de acordo com Edward Turk. Ambicioso, ele é um falastrão, um presunto, seguro de seu talento, para quem tudo faz sucesso e que faz sucesso em tudo com humor. A cena em que ele interpreta Robert Macaire e deixa os autores da peça L'Auberge des Adrets em polvorosa, zombando da pobreza da história, é por si só eloquente. Esse ator, tão apaixonado por si mesmo, quando percebe que Garance continua a amar Baptiste enquanto está com ele, exclama: "E se eu gostasse? se fosse útil para mim ter ciúmes, útil e até mesmo necessário... Graças a você, finalmente poderei interpretar Otelo... Eu estava procurando o personagem, mas não o sentia. Ele era um estranho, agora é um amigo, um irmão". Ele triunfou no teatro no segundo semestre, enquanto Baptiste triunfou nos Funambules. No fundo, ele sabe que Baptiste "toca como um deus", e o inveja. Garance diz anteriormente que Baptiste "não tem uma profissão, ele não atua, ele inventa sonhos", e o fato é que as três pantomimas das quais vemos trechos no filme mostram Barrault com seu corpo elástico e sua flexibilidade felina. Não é impossível ver isso como uma homenagem a certos atores do cinema mudo, especialmente Chaplin e Keaton.
6 - LACENAIRE
Outro personagem emblemático do filme é Lacenaire (Marcel Herrand). Lacenaire é um assassino dândi, um personagem em eterna revolta contra a sociedade. Misantropo, ele explica algumas das razões para isso em sua primeira cena: "Quando eu era criança, já era mais lúcido e inteligente do que os outros, e eles nunca me perdoaram por isso. Queriam que eu fosse como eles. Lacenaire é um personagem problemático, fascinante pela maneira como se distancia do mundo ao seu redor. Recusando-se, como Garance, a jogar o jogo das aparências na sociedade, ele pergunta ao conde de Montray quem ele é: "O senhor não acha que é uma pergunta tola perguntar às pessoas quem elas são?... Elas escolhem o caminho mais fácil: nome, sobrenome, qualidades, mas o que elas realmente são... no fundo, elas mantêm isso em segredo, escondem-no cuidadosamente. Edward Turk enfatizou que Lacenaire representava "uma idealização" para Carné. Naquela época, Carné "sempre usava uma máscara que não correspondia à sua verdadeira identidade. Seu comportamento agressivo e autoritário no set era uma estratégia criada para desviar a atenção daqueles que tenderiam a estigmatizar seus desvios, fora do estúdio, dos critérios dominantes de masculinidade".
De fato, o verdadeiro Lacenaire era homossexual e é possível ver uma conexão com Vautrin, outro criminoso homossexual que Carné queria dirigir (o filme foi filmado em 1944 por Pierre Billon). Carné explicou em uma entrevista com Edward Turk em 1980 que estava muito claro para ele que Avril, interpretado por Fabien Loris no filme, era "seu amigo", mas que sob Vichy "não se podia ir muito além". Talvez isso fosse mais óbvio se Carné não tivesse cortado uma cena mais explícita entre Lacenaire e Garance, na qual Garance pergunta a Lacenaire: "O que as mulheres já fizeram com você", e Lacenaire se defende: "Nada, absolutamente nada! Garance: "E o que você fez com as mulheres, Pierre-François? Não muito, sem dúvida", Arletty sublinhando essa última frase com uma "pequena risada depreciativa". Em defesa de Carné, é preciso entender o que a moral desse filme, ambientado no meio da guerra sob o governo de Vichy, implica. Edward Turk aponta isso com razão quando escreve: "Ao desafiar a autoridade da família, a perseguição aos desvios sexuais e a obrigação de uma mulher ser dependente de um homem, Les Enfants du paradis ataca os próprios fundamentos da ordem social de Vichy".
7 - A EQUIPE DOS FILHOS DO PARAÍSO
Teria sido fácil para Carné acentuar o lirismo de tal história, um épico de fantasia que poderia ter se transformado em "grandiloquência hollywoodiana" à la E o Vento Levou, como Bernard Landry, o primeiro jornalista a escrever sobre Carné, observou em 1952. Em vez disso, Carné persistiu no estilo que havia criado, recusando todos os efeitos estilísticos. Sua câmera não era muito móvel e "todos os movimentos de câmera eram motivados pela necessidade descritiva". Em uma entrevista de 1972 com Marcel Oms, Carné confidenciou que preferia "os movimentos do coração" aos movimentos da câmera. Ele rejeitava o pitoresco e fazia seus filmes com o máximo de rigor, pois achava que "o virtuosismo da câmera muitas vezes prejudica a história e, acima de tudo, os atores". Isso leva a uma certa forma de sobriedade, um classicismo que alguns confundiram com secura ou frieza. Mas esse classicismo não significa que Carné estivesse fazendo filmes acadêmicos. Acadêmico no sentido de filmar de acordo com uma fórmula, com regras preestabelecidas, o que pode resultar em um filme bem feito, mas chato, sem alma, como o trabalho de Régis Wargnier ou Jean Delannoy, por exemplo. Les Enfants du paradis é todo alma, emoção e poesia!
Isso só foi possível graças a um esforço coletivo que foi tão notável quanto quase único na história do cinema francês. Prévert, Carné, Trauner, Barsacq, Kosma, Thiriet, Mayo e todos os outros trabalharam juntos desde o roteiro até a filmagem. Não há segredo sobre isso, é a única maneira. Também é interessante ler as ótimas críticas sobre o filme no site de referência IMDB, onde uma nova geração está descobrindo esse filme baseado em "um bom roteiro, bons atores, boa direção e uma boa equipe técnica". Coisas que são frequentemente esquecidas hoje em dia, quando se tornou moda, desde La Politique des auteurs, denegrir o roteiro (veja um artigo recente da Télérama sobre o assunto).
8 - CONCLUSÃO
Para concluir, vamos dar a palavra a François Truffaut, que, em 1956, junto com seus amigos da Cahiers du cinéma, tomou para si a responsabilidade de disparar um tiro certeiro contra Marcel Carné "que nunca soube avaliar um roteiro, nunca soube escolher um tema... Durante anos nos ofereceram filmes de Jacques Prévert com imagens de Marcel Carné". Em 1984, durante uma reunião em Romilly, Truffaut finalmente admitiu a Carné que havia feito vinte e três filmes e que "desistiria de todos eles para ter feito Les Enfants du paradis".
É compreensível.
Publicado em 6 de julho de 2010
Clássico do Dia: 'O Boulevard do Crime' está no topo dos melhores filmes franceses
Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estado', como este que marca o que é considerado o ponto alto da parceria entre Jacques Prévert e Marcel Carné
Luiz Carlos Merten 25 abr 2020
O Boulevard do Crime, por Antonio Moniz Vianna
Os Rapazes da Geral, 1945
Georges Sadoul, Dicionário de Filmes, tradução Marcos Santarrita e Alda Porto, pp. 61 e 62, L&PM, 1993
06/04/25
Viva Django! Preparati la bara!, 1968, Ferdinando Baldi
No iutubi aqui
Viva Django!(em italiano: Preparati la bara!) é um filme de faroeste italiano dirigido por Ferdinando Baldi e lançado em 1968.
Sinopse: O misterioso pistoleiro Django consegue com um político corrupto o emprego ideal: carrasco de inocentes proprietários de terras que não se submetem a seus desmandos. Em vez de enforcá-los, no entanto, Django os coopta para sua quadrilha guiada por sua vingança contra o proprietário, que causara a morte de sua mulher. wiki
06/04/25
O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, 1969, Glauber Rocha
No iutubi aqui
Crítica | O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro por Guilherme Coral, 18 de abril de 2014
Certamente não irá pegar de surpresa, a quem assistiu Deus e o Diabo na Terra do Sol, a presença de Antônio das Mortes nessa retratação do sertão nordestino e os resquícios do cangaço – O Dragão da Maldade se passa vinte e nove anos após a queda de corisco nas mãos de Antônio. Podemos considerar, portanto, este como uma continuação. O filme, contudo, vai muito além disso, nos mostrando, através de uma linguagem única, a história de um homem que desesperadamente (e silenciosamente) tenta recuperar seu propósito.
A morte de Corisco significou o fim do cangaço, ao menos é isso que Antonio das Mortes acreditava. Ao descobrir que um suposto cangaceiro apareceu pela região do Jardim das Piranhas, o jagunço, que agora vive sem motivo, sem ânimo, vai em busca desse homem, em busca dos velhos tempos. Somente pela sua trama, o filme de Glauber Rocha poderia ser visto como simples, pois está na forma como ela é contada o grande diferencial de Dragão da Maldade. Sua narrativa se desenvolve através de uma mistura de opera e cordel. Ora temos imagens paradas e uma música sendo cantada por uma única pessoa, mostrando-nos a história, ora vemos verdadeiras e potentes mostras da cultura brasileira, através da cantoria, dança e diversos elementos do folclore e religião. Em ambas é impossível não se deixar levar pela composição de cena que não só conta com uma direção de arte detalhista, como uma direção meticulosa.
Tal trabalho do diretor, em conjunto com a fotografia de Affonso Beato, compõem verdadeiros quadros cinematográficos que captam cada centelha de atenção do espectador, forçando-nos a contemplar em detalhes tais imagens. É a montagem não convencional que nos trás de volta à realidade, como uma vontade de Glauber de pedir dedicação do espectador que também. Deve trabalhar para entender este conto do nordeste.
O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro certamente é um filme que pede a atenção de quem assiste, porém que recompensa quem o faz. Conta com inesquecíveis imagens ao som da cultura brasileira que, como um quebra cabeça, monta este epílogo da história de Antônio das Mortes. É mais uma singular visão de Glauber Rocha de nossa história.
06/04/25
O Canto do Mar, 1953, Alberto Cavalcanti
O CANTO DO MAR, Alberto Cavalcanti, Brasil, 1953
Luciana Corrêa de Araújo, Contracampo Revista de cinema
Alberto Cavalcanti filma O Canto do Mar em Recife entre 1952 e 1953. Depois de deixar o cargo de produtor-geral da Vera Cruz, no início de 1951, e realizar a comédia Simão, o Caolho (1952), para a Maristela, liga-se a outra produtora paulista, a Kino Filmes, levando adiante um projeto já anunciado nos tempos da Vera Cruz de adaptar para o litoral brasileiro a história de En rade, produção francesa que dirigiu em 1927.
Antes de chegar ao litoral, O Canto do Mar apresenta um prólogo documental no sertão pernambucano, com imagens da seca e uma solene voz over reforçando o drama dos retirantes que abandonam suas casas para procurar trabalho no sul do país. Viajando de caminhão, eles chegam a uma praia de Recife, onde começa o enredo. Ali perto mora uma família pobre, sustentada pela mãe lavadeira, desgostosa com a loucura do marido, o filho pequeno doente e a filha que só pensa em melhorar de vida, nem que para isso seja preciso se prostituir. Orgulho materno é o filho Raimundo, que sonha em pegar um navio para o sul, levando junto a namorada.
A certa altura, pelo meio do filme, reaparecem os retirantes do prólogo, embarcando para o sul e sendo observados por Raimundo e seu pai. Reaparece, inclusive, a voz over, o que reforça o estranhamento da cena documental que irrompe em pleno desenvolvimento do enredo, quando os personagens literalmente param para deixar o documentário passar. É curioso porque, se por um lado o filme pretende articular sertão e mar no mesmo processo de estagnação e desejo de fuga, por outro lado insiste em mantê-los como mundos distintos, desconectados até pelo gênero, cabendo a um o tratamento documental e a outro o ficcional. Mais eloqüente do que todo o discurso da voz over e de muitos diálogos, é a imagem de abertura, uma admirável fusão que associa as linhas do mapa de Pernambuco ao desenho formado pelas rachaduras na terra ressecada do sertão. A idéia de aprisionamento e fatalidade, que atravessa todo o filme, está aí traduzida à perfeição, com um impacto e beleza que não irão se repetir quando, com intenção semelhante, surgem imagens recorrentes de redemoinhos, gaiolas, grades e vigas que parecem aprisionar os personagens.
O precário entrosamento entre ficção e documentário não se limita à relação sertão-mar, desdobrando-se também ao longo do desenvolvimento da narrativa. O Cavalcanti documentarista não consegue deixar passar a oportunidade de inserir ao longo do filme uma série de manifestações artísticas e religiosas locais, incluindo o frevo, maracatu, bumba-meu-boi, procissão, carpideiras, terreiro de xangô. As inserções documentais comprometem o andamento da ação? Talvez, mas com uma história tão depressiva de frustrações e maldições (a miséria, a loucura) e a pouca expressividade do protagonista que em nada contribui para alcançar a densidade dramática desejada, o dinamismo das cenas documentais é mais que bem-vindo. Cavalcanti filma com visível empolgação, em especial as danças e o xangô (como é chamado o candomblé em Recife). Não só tira proveito dos elementos visuais, a exemplo da movimentação das sombrinhas durante o frevo, como empreende um notável trabalho de gravação das músicas, em histórica documentação audiovisual. Quando pai e filho visitam o terreiro de xangô, a seqüência é dominada pelo som dos instrumentos e da cantoria, valorizados ainda mais pela montagem. Os personagens funcionam como pretexto para filmar aquele ambiente, não há maior integração entre eles – para isso, será necessário esperar uns dez anos por Barravento.
A seu modo, O Canto do Mar procura se aproximar do neo-realismo. Pode-se perceber mesmo referências a Terra trema (Luchino Visconti, 1948), tanto pelo tema, envolvendo uma comunidade à beira-mar, como pelas imagens do baú onde o protagonista guarda panfletos de viagem e a figura da mãe, imóvel e toda vestida de negro, observando o mar à espera do retorno do marido. Embora o filme esteja atrelado à linguagem dos estúdios, nos aspectos mais convencionais como uma certa rigidez na mise-en-scène e a impostação dos atores, a escolha por filmar em locação traz o encanto e as surpresas da cor local. As fisionomias que vão surgindo na tela, especialmente na seqüência da morte do filho caçula, pouco ou nada costumavam freqüentar o cinema de ficção brasileiro. Também a fisionomia arquitetônica da cidade não poderia passar desapercebida a Cavalcanti, com sua formação de arquiteto e diretor de arte – as casas velhas, os becos e telhados do antigo bairro de São José, a disposição entre os coqueiros das casas de palha na praia, os sobrados da zona de prostituição, cuja escadaria ele aproveita para fazer um plano homenagem a A Morte Cansada, de Fritz Lang.
Construída em locação (com alguns planos filmados em um armazém que servia de estúdio), a casa da família deixa ver, pela moldura da porta e das janelas, a paisagem exterior. O vento entra pela casa, esvoaçando cortinas, roupas e cabelos. Carioca de família pernambucana, Cavalcanti não esquece de filmar a brisa recifense, documentando assim um dos patrimônios locais mais valiosos.
07/04/25
Brinquedo Proibido, Jeux interdits, 1952, René Clément
Paulette: “O que é um cemitério?”
Michel : “É onde eles colocam os mortos para ficarem juntos.”
Paulette : “Por que eles os colocam juntos?”
Michel: “para que eles não fiquem tristes”.
'Brinquedo Proibido' Por Luiz Carlos Merten, 04/12/2008
Beatriz, da BSC Assessoria, me manda regularmente suas sugestões de destaques para a coluna de filmes da TV no 'Caderno 2'. Beatriz divulga o canal 5 Monde e hoje não resisto a postar alguma coisa sobre 'Jogos Proibidos', de René Clément, que o canal da TV paga exibe às 21h30. Clément foi um daqueles diretores de 'prestígio' que a nouvelle vague, via 'Cahiers du Cinéma', teve de aviltar e desmontar da história como parte da afirmação programática do movimento de renovação do cinema francês por volta de 1960. Hoje em dia é fácil falar mal de Clément, que morreu em... e cuja última fase foi mesmo marcada por filmes, quase sempre policiais, de um gélido e artificioso profissionalismo. Mas nos anos 40 e 50, ele era o cara. Clément dominava tanto a técnica que Jean Cocteau chamou-o para 'compartilhar' com ele a realização de 'A Bela e a Fera'. Nos primeiros anos do Festival de Cannes, quando ainda não havia a Palma de Ouro, ele recebeu duas vezes o Grand Prix, em 1946 e 47, por 'A Batalha dos Trilhos' e 'Os Malditos'. Pelo primeiro, recebeu também o prêmio de direção, que repetiria em 1949, por 'Au-Delà des Griffes', e 1954, por 'Monsieur Ripois'.
Três prêmios de direção e dois Grand Prix em Cannes não são para qualquer currículo, mas Clément também foi fartamente recompensado em Veneza. Em 1952, ganhou o Leão de Ouro justamente por 'Brinquedo Proibido' - o título original é 'Jeux Interdits' - e quatro ou cinco anos depois ele voltou a ser premiado por 'Gervaise', sendo que a sua adaptação de 'L'Assomoir', de Émile Zola, valeu a Maria Schell a prêmio de interpretação feminina (e certamente deve ter contribuído para que Visconti contratasse a atriz para o seu Dostoievski, 'Noites Brancas', que no Brasil foi lançado como 'Um Rosto na Noite'). Numa entrevista que fiz com Claude Chabrol, ele admitiu que sua geração detestava nos chamados diretores de qualidade aquilo que faltava a Truffaut, Godard & Cia., ou seja, domínio técnico. Tudo bem que foi a ausência de conhecimento técnico que permitiu a muitos autores da nouvelle vague ousar (e revolucionar o próprio cinema), mas Chabrol, bonachão e com o distanciamento crítico, reconhece que o ódio foi excessivo e muitos daqueles cineastas eram mais interessantes do que rezava a Bíblia de 'Cahiers'. Seja como for, em 1959 Clément realizou a melhor adaptação de Patricia Highsmith, transformando Alain Delon no Ripley de 'O Sol por Testemunha'.

A própria escritora sempre achou Delon o melhor intérprete de seu escroque e eu me lembro da ironia de P.F. Gastal na 'Folha da Tarde' e no 'Correio do Povo', quando dizia que o veterano Clément e não a nova onda fazia o mais jovem cinema francês daquela época. Numa coisa eu acho que Clément deu de dez no próprio Visconti, meu mestre. Enquanto Visconti esculpia o mito da bondade e do idealismo de Rocco na epiderme de Delon, Clément foi o primeiro a perceber a dureza das linhas do rosto do ator, abrindo a via para que Jean-Pierre Melville fizesse com ele 'O Samurai'. Até hoje sou suscetível à força de 'Plein Soleil', onde não apenas Delon, mas tambem Maurice Ronet é excepcional e o filme ainda tem bela e sexy Marie Laforet no papel de Marge. Tenho também certo fascínio por 'O Passageiro da Chuva', que Clément adaptou de Sébastien Japrisot em 1969, com Marlène Jaubert como Mélancolie e com Charles Bronson num de seus primeiros papéis (o primeiro?) como astro. Marlène matava o homem que tentara estuprá-la e Bronson era o detetive que tentava extrair dela uma confissão, embora seu interesse maior fosse pela sacola cheia de dinheiro que o tal passageiro da chuva carregava. Toda essa conversa sobre Clément é para lembrar que o filme que será possível (re)ver hoje integra uma trilogia sobre a 2ª Guerra, fechando o que o diretor havia iniciado com 'A Batalha dos Trilhos' e 'Os Malditos'. A guerra vista pelos olhos de duas crianças, num testemunho lúcido e poético.
Nosso querido Jean Tulard chega a chamar Clément de 'poeta da Resistência' e a lendária crítica norte-americana Pauline Kael afirmava que este filme e 'A Culpa dos Pais' (I Bambini ci Guardano), de Vittorio De Sica, de 1942, são os que melhor expressam o antagonismo e a desolação que separam a infância da vida adulta. Sou forçado agora a admitir que conheço razoavelmente a obra de Rene Clément, mas nunca assisti a seu filme de hoje, o que significa que se trata de uma oportunidade excepcional para todos nós. Como curiosidade, em 1963, Clément fez outro policial com Delon, chamando duas atrizes norte-americanas para completar o elenco central de 'Les Félins', que aqui se chamou 'Jaula Amorosa'. Lola Albright foi uma atriz que fez furor na época, com um filme chamado 'Rajadas de Paixão', de Alexander Singer, mas foi a outra, a jovem Jane Fonda, que virou mito. Clément apresentou Jane Fonda à França (e vice-versa), ela se casou com Roger Vadim e o resto é história. A importância de Clément vai além dos próprios filmes que realizou, portanto.
Crítica | Brinquedo Proibido por Luiz Santiago 22 de novembro de 2023
Uma injeção de humanismo. Obra prima
Um dos melhores e mais famosos filmes de René Clément, a quem Truffaut chegou a chamar injustamente de cineasta de “caldos ralos”, Brinquedo Proibido (1952) é mais uma interessante representação da França (e por tabela, da Europa) durante a Segunda Guerra Mundial.
O filme conta a história de Paulette (Brigitte Fossey), que por ter seus pais mortos em um bombardeio, é abrigada na fazenda da família Dolle, onde conhece o garoto Michel (Georges Poujouly). A relação entre as duas crianças é a base central da obra e não só mostra uma emotiva história particular em tempos de crise, como também representa o espírito infantil de uma forma honesta e… impiedosa. O espectador pode mergulhar na relação conflituosa entre os Dolle e os Gouard, no amor à la Romeu e Julieta dos filhos dessas famílias e das pequenas histórias envolvendo as duas realidades (deserção, covardia, dificuldades financeiras, escassez, morte), mas a forma como o filme nos apresenta o drama infantil como uma camada da guerra irá se sobressair e, facilmente, nos impressionar.
Logo nas primeiras cenas temos um importante ingrediente típico da filmografia de Clément que é a precisa inserção dos personagens em seu espaço geográfico, com planos que priorizam o lugar, especialmente se estamos falando de espaços dominados pela natureza. O plano geral com os parisienses fugindo do bombardeio é uma bela imagem de um lamentável momento da guerra e o desespero do povo com os aviões rasantes atirando contra todos é um dos blocos mais bem filmados do longa, com forte poder de apelo junto ao público e uma maneira inteligente de apresentar Paulette como órfã.
Mesmo que tenhamos sempre as reticências quando se trata de elenco infantil, é inegável que os protagonistas aqui contornaram a pouca idade e se apresentaram com grande veracidade em seus papeis, mesclando a inocência com outras caraterísticas em desenvolvimento na infância, desde a capacidade de fazer chantagem, defender alguém ou guardar segredos, até a demonstração de amor, medo e carência que vemos principalmente em Paulette ao longo de todo o filme. É em torno dela que a família Dolle será mostrada e é também a partir de uma descoberta e um desejo seu que Michel irá fazer uma espécie de cruzada “herege” para conseguir as cruzes e fazer um cemitério de animais.
Neste ponto, a mensagem do filme recebe uma nova lufada de significados. A cruz, o mais totalizante dos símbolos, está aqui fazendo a sua ligação entre diferentes aspectos da vida, das diversas espiritualidades (ou falta delas) e da morte. As crianças estão expostas a cada um desses pontos e, mesmo a relação que têm com a morte — de contrição, sentimento de simpatia, talvez de admiração, um status que se pensado de forma evoluída, em um adulto, poderia nos levar para um filme como O Quarto Verde, por exemplo — se transforma naquilo que o título da película chama de “brinquedo proibido”. A morte, o símbolo religioso e a própria vida (através de mentiras, fugas e raivas infantis) não são coisas com que se brinquem. O resultado disso, mais ou final da obra, é um retorno à tristeza, ao abandono e à vontade de ter alguém que se ama por perto. E não há quem não se emocione com a última cena, com Paulette chamando por Michel em meio à multidão.
Sob o doce tema composto pelo espanhol Narciso Yepes, o espectador vê Brinquedo Proibido como uma pequena história de amor fraternal em um cenário onde o amor não era exatamente a palavra de ordem. Também se destaca aqui a fotografia de Robert Juillard, que sempre teve grande habilidade em filmar em ambientes externos e fazer belas tomadas noturnas com composições inteligentes de luz (aqui, um desses momentos mais bonitos é quando Michel pede para Paulette contar até 10 para que seus olhos se acostumem à escuridão. Há um truque simples, mas extremamente eficiente da fotografia que coroa a cena) e movimentos suaves de câmera, mesmo quando a situação pedia por algo mais intenso. Essa composição que mistura o realismo poético francês com ingredientes do neorrealismo italiano firma a presença da guerra, que sempre está lá e não nos esquecemos disso, mas não deixa escapar o caráter humano do enredo.
Merecidamente vencedor do Oscar Honorário em 1953 e indicado ao Oscar de Melhor Roteiro (História) em 1955, Brinquedo Proibido é um dos filmes franceses sobre a Segunda Guerra que deve constar na lista de qualquer cinéfilo. A obra é uma injeção de humanismo e delicadeza que certamente faria bem a muita gente em nossos dias.
Crtica sobre o filme "Brinquedo Proibido":
Brinquedo Proibido Por Eron Duarte Fagundes, 24/08/2005
Brinquedo Proibido (JEUX INTERDITS) ♫ (Narciso Yepes)
Brigitte Florence Fossey
Nascimento: 15 de Junho de 1946 (78 years)
Tourcoing - França
Brigitte Florence Fossey, é uma atriz francesa.
Filha de um professor, Fossey tinha cinco anos quando foi escalada pelo diretor René Clément, para estrelar seu filme, ''Brinquedo Proibido/Jeux interdits'' (1952). Fossey, desempenhou o papel de uma criança inocente órfã da Segunda Guerra Mundial. O filme ganhou prêmios em todo o mundo, incluindo o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
Cônjuge: Jean-François Adam (de 1966 a 1980)
Filha: Marie Adam
07/04/25
Maria e o Cangaço, Minissérie TV, 2025, Sergio Machado & Thalita Rubio & Adrian Teijido
O que é ficção e realidade na minissérie sobre Maria Bonita
André Bernardo DW, 14/04/2025 14 de abril de 2025
"Maria e o Cangaço" é inspirada em biografia da primeira mulher integrante de um grupo de cangaceiros. Movimento da virada do século 19 para o 20 ainda desperta fascínio e curiosidade.
O avião estava prestes a decolar quando Tânia Alves sentiu um cutucão no braço. Ela olhou para o lado e viu a mão de uma mulher segurando um pedaço de papel. "Ah, é pedido de autógrafo!", pensou, abrindo um sorriso. Não era. Era um bilhete carinhoso: "Muito prazer! Sua filha". Virou-se e viu, numa poltrona atrás da sua, Expedita Ferreira Nunes, hoje com 92 anos, filha do casal Lampião e Maria Bonita.
"Nos abraçamos aos prantos feito duas loucas", recorda a atriz que interpretou Maria Gomes de Oliveira (1910-1938), a mulher de Virgulino Ferreira da Silva (1898-1938), na minissérie Lampião e Maria Bonita, escrita por Aguinaldo Silva e Doc Comparato e exibida pela TV Globo entre os dias 26 de abril e 5 de maio de 1982. "Eu acordava todos os dias às 4h para maquiar o corpo todo. Maria Bonita era mais morena do que eu. Sou meio branquela", admite a atriz que, diferentemente da personagem, não nasceu na Bahia, mas no Rio de Janeiro. "Todo mundo acha que eu sou nordestina", solta uma risada.
Quarenta e três anos depois de Tânia Alves interpretar a protagonista da primeira minissérie da TV brasileira, Ísis Valverde é convidada para dar vida à primeira mulher a fazer parte de um bando de cangaceiros. "Bando, não; grupo de cangaceiros", corrige o cineasta Sérgio Machado, diretor e roteirista de Maria e o Cangaço, minissérie que estreou dia 4 deste mês no Disney Plus. "Lampião não gostava que chamassem seu grupo de bando."
A ideia de transformar a biografia Maria Bonita: Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço, de Adriana Negreiros, numa minissérie foi do ator Wagner Moura. Foi ele quem chamou Sérgio Machado para participar do projeto.
Para desenvolver a história, o diretor convidou os roteiristas Sandra Delgado, Armando Praça e Letícia Simões. "Quando você adapta uma obra literária ou biográfica, tem plena liberdade para adicionar elementos da ficção. O que não pode é obrigar este ou aquele personagem a fazer algo que ele não faria", explica Machado, que dirigiu a minissérie ao lado de Thalita Rubio e Adrian Teijido.
"Fio da peste"
Decidido a ser o mais fiel possível à história de Maria Bonita e Lampião, Sérgio Machado recrutou 52 atores nordestinos – apenas quatro, incluindo Ísis Valverde, mineira de Aiuruoca, a 423 quilômetros de Belo Horizonte, e Júlio Andrade, gaúcho de Porto Alegre, não são de lá.
Gravou as cenas em locações como Cabaceiras (PB), mais conhecida como a "Roliúde Nordestina", e Piranhas (AL), município onde foram expostas as cabeças degoladas dos cangaceiros. "Em suas andanças pelo Nordeste, Lampião percorreu sete estados", afirma o pesquisador Jairo Luiz Oliveira. "As únicas exceções são Maranhão e Piauí."
E contou com a consultoria de dois especialistas: o historiador Frederico Pernambucano de Mello, de 77 anos, e o pesquisador Jairo Luiz Oliveira, de 55. Além de ministrar um workshop para o elenco, onde ensinou os atores, entre outras habilidades, a montar a cavalo, Jairo leu os capítulos da minissérie e propôs ajustes no texto. "Nos combates entre cangaceiros e volantes [nome dado às tropas de policiais e civis que perseguiam os cangaceiros pelo Nordeste brasileiro], havia xingamento de ambos os lados. Sugeri alguns como ‘fio da peste' e ‘corno sem vergonha'", diz.
Heróis ou vilões?
Não é a primeira vez que Jairo presta consultoria para produções do gênero. Em seu currículo constam pelo menos mais duas: o filme Entre Irmãs (2017), de Breno Silveira (1964-2022), e a novela Guerreiros do Sol, de Rogério Gomes. Prevista para estrear este ano, a novela do Globoplay foi adaptada do livro Guerreiros do Sol: Violência e Banditismo no Nordeste do Brasil, de Frederico Pernambucano de Mello, e narra o romance fictício entre Rosa (Isadora Cruz) e Josué (Tomás Aquino). Frederico Pernambucano de Mello é autor de Estrelas de Couro: A Estética do Cangaço, Benjamin Abrahão: Entre Anjos e Cangaceiros e Apagando o Lampião: Vida e Morte do Rei do Cangaço.
Jairo também é guia turístico em Angicos (SE), a 174 quilômetros de Aracaju. Foi lá que, no dia 28 de julho de 1938, Lampião, Maria Bonita e nove cangaceiros perderam a vida numa emboscada. "As perguntas que mais ouço são: ‘Lampião era bandido ou herói?' e ‘Maria Bonita era tão má quanto Lampião?' ", comenta o turismólogo. "Nessas horas, respondo que Lampião tinha defeitos e virtudes, e que Maria Bonita era forte, mas não era violenta."
Pelos cálculos do diretor, 90% das cenas de Maria e o Cangaço são baseadas em histórias reais. Duas, admite, são pura invencionice: a cena do eclipse durante uma batalha, logo no primeiro episódio, e a visita de Lampião a uma ex-cantora de ópera, no quarto episódio.
"Não aconteceram, mas poderiam ter acontecido", despista. A cena do eclipse, inclusive, foi inspirada num "causo" que ele ouviu em 1998 quando era assistente de direção de Walter Salles no filme Central do Brasil. "As pessoas não acreditavam que aquilo [eclipse] pudesse acontecer", relata.
Outra "liberdade artística e poética" tomada por Sérgio Machado na minissérie é mostrar Maria Bonita pegando em armas. Quem afirma é a própria autora do livro, Adriana Negreiros. "Não era uma Joana D'Arc da caatinga", pondera a jornalista. "Tinha espírito aventureiro, mas não era a heroína que todos pensam. No cangaço, pegar em armas era prerrogativa masculina. Mas, imagino que, se precisasse, Maria era brava o bastante para combater. "
Na minissérie adaptada do livro de Adriana Negreiros, a história do cangaço é contada através da perspectiva feminina. "Há um fascínio histórico em construir narrativas que tornam as mulheres excepcionais apenas quando vinculadas a grandes homens. Em nossa abordagem, revelamos uma Maria protagonista de sua história. Uma mulher que não só participou do cangaço, mas que o transformou. Maria Bonita foi revolucionária. Não por ser perfeita, mas por ser humana. Era livre num mundo que a queria domesticada", exalta a roteirista Letícia Simões.
Uma rajada de balas
O livro de Adriana Negreiros não foi o único a ser publicado em 2018, por ocasião do aniversário de 80 anos da morte de Lampião e Maria Bonita – ou seria de Maria Bonita e Lampião? Houve outros, como Lampião e Maria Bonita: Uma História de Amor e Balas, do jornalista Wagner G. Barreira.
"Maria Bonita foi um produto de seu meio. Não era heroína, nem feminista. O que não se pode tirar dela é a potência de abandonar um casamento infeliz e buscar o amor, ainda que o objeto de sua paixão tenha sido o bandoleiro mais famoso de seu tempo", define Barreira.
Em suas pesquisas, Barreira investigou a influência do cangaço nos segmentos culturais brasileiros: da literatura de Graciliano Ramos (1892-1953) às pinturas de Cândido Portinari (1903-1962), da música de Luiz Gonzaga (1912-1989) à moda de Zuzu Angel (1921-1976). Isso, sem falar no cinema. De O Cangaceiro (1953) a Bacurau (2019), passando por Mazzaropi (O Lamparina, de 1964), pornochanchada (A Ilha das Cangaceiras Virgens, de 1976), Os Trapalhões (O Cangaceiro Trapalhão, de 1983) e retomada pós-Collor (O Baile Perfumado, de 1996).
"Lampião era um fora da lei que se apaixona por uma mulher casada. No entanto, esses personagens históricos projetaram uma sombra muito maior", analisa Barreira. "Lampião sobreviveu, sem paradeiro, pelo menos de 1922 a 1938. Quando morreu, deixou um rastro de violência e a fama de valente. Isso criou uma mitologia. Os mitos gregos também nasceram de histórias contadas e recontadas muito antes da escrita."
Se depender da roteirista Letícia Wierzchowski e do diretor Jayme Monjardim, o mito de Maria Bonita não vai desaparecer tão cedo. A dupla está preparando um longa-metragem sobre a rainha do cangaço, ainda sem título definitivo ou previsão de estreia.
O cineasta já se encontrou até com a filha do casal, Expedita Ferreira Nunes, que aprovou o projeto. "Não fez qualquer exigência", afirma Wierzchowski. "Apenas pediu que não disséssemos inverdades sobre a família dela, nem que a tratássemos com muita dureza."
No roteiro, a escritora gaúcha enfatiza o lado materno da personagem. As cangaceiras não podiam criar os filhos. Se chorassem, denunciariam o paradeiro do grupo. Eram obrigadas a entregá-los para adoção. No caso de Expedita, que tinha cinco anos quando os pais foram mortos, ela foi criada por um casal que tinha treze filhos.
"Os filmes de cangaço são o faroeste do cinema nacional", compara o roteirista Doc Comparato, um dos autores da minissérie Lampião e Maria Bonita, no catálogo do canal de streaming Globoplay.
"São uma espécie de Bonnie & Clyde do sertão nordestino", arremata o diretor Sérgio Machado, fazendo alusão ao casal de assaltantes de banco dos Estados Unidos que foram mortos pela polícia em uma emboscada no dia 23 de maio de 1934. "Jovens e indomáveis, Lampião e Maria Bonita são dois personagens absolutamente fascinantes e extraordinários."
MARIA E O CANGAÇO | CRÍTICA | 1702 vídeo
Lampião
Maria Bonita
Caminhos de Lampião & Maria Bonita em Maria e o cangaço
Raso da Catarina - Bahia e aqui
Baixa do Chico - Bahia
Piranhas - Alagoas
Canidé - Sergipe e aqui
Paço Redondo - Sergipe
Malhada da Caiçara - Bahia
Serra Negra - Bahia
Floresta - Pernambuco
Macuré - Bahia
Corrocochó - Bahia
Minuim - Bahia
Baixada do Buraco - Sergipe
Belo Monte - Alagoas
Angico - Alagoas
PERÍCIA NA GROTA DO ANGICO ONDE LAMPIÃO TOMBOU
08/04/25
Apocalypse Now, 1979, Francis Ford Coppola
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Apocalypse Now, um filme psicodélico
Fatmarlei Lunnaderlli 10/08/2020
É o filme mais impressionante já realizado sobre a guerra. Assim como o coronel Kurtz de Marlon Brando é tomado pelas circunstâncias e perde o rumo de sua vida, Francis Ford Coppola quase saiu dos trilhos para realizar esse monumental filme que de certa maneira ainda o assombra. Apesar do sucesso e do reconhecimento ao ser lançado em 1979 – ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes – em 2001 o cineasta lançou uma versão estendida chamada Apocalypse now redux, com 49 minutos de cenas inéditas e reedição da versão original e no ano passado apresentou a terceira versão Apocalypse now: final cut, no embalo do aniversário de 40 anos. O filme está na plataforma de streaming belasartesalacarte.com.br onde também podem ser vistos os documentários O Apocalipse de um cineasta (1991) e Dutch Angle: fotografando Apocalypse now (2019).

Segue aqui um artigo que escrevi e está publicado no livro Tio Sam vai à guerra: os conflitos bélicos dos Estados Unidos através do cinema (Letra&Vida Editora, Porto Alegre, 2010), uma coletânea de textos organizada por Cesar Augusto B. Guazzelli e outros professores de história. Durante anos eles desenvolveram, na Sala Redenção da Ufrgs, um belíssimo projeto de cinema e história com exibição e debates de filmes aos sábados à tarde. As temáticas eram anuais e ao final da temporada de estudos eram publicados textos dos filmes debatidos.
Apocalypse now, um filme psicodélico
Era intenção manifesta do cineasta Francis Ford Coppola fazer de Apocalypse now (Apocalypse now, 1979) um filme psicodélico. A proposta desta análise é compreendê-lo submetido a esse objetivo, tematizando a guerra do Vietnã, no contexto da contracultura dos anos 60. Considerado obra-prima do cinema, o filme evoca uma atmosfera de horror e delírio para revelar a loucura do ser humano em seu impulso irrefreável de destruição.
Picodelismo, o que é isso? Houaiss nos ajuda a estabelecer que se trata de um adjetivo para o qual se apresentam três definições: 1) como fármaco é o que está associado à produção de efeitos alucinógenos, sendo LSD a principal referência; 2) diz-se da produção intelectual elaborada sob o efeito de um alucinógeno e; 3) por extensão, diz-se de qualquer produção intelectual que se assemelha ou procura imitar as obras criadas sob efeito de alucinógeno. Quanto à etimologia da palavra: psic(o) + delo (grego dêlos, e, on) significa visível, claro, manifesto, evidente e se conecta com o sânscrito didéti [ele mostra] + ico. Ou seja, tanto em sua forma como na proposta do conteúdo, podemos supor que uma obra de arte psicodélica tem por objetivo mostrar algo que não é evidente no nível natural, de uma realidade cotidiana.
O projeto de Apocalypse now surgiu em 1969, como roteiro escrito pelo norte-americano John Milius, que também era diretor, inspirado pelo livro O Coração das trevas (Heart of darkness) do escritor britânico Joseph Conrad. A obra final guarda apenas lembrança do original literário, cujo enredo se passa no Congo durante o império colonial inglês, no século 19. A história foi transposta para a guerra do Vietnã e a narrativa acompanha o capitão Benjamin Willard (Martin Sheen) designado pelo alto comando do exército norte-americano para uma missão perigosa e secreta na selva cambojana. Ele deve localizar e matar o coronel Walter Kurtz (Marlon Brando), que já pertenceu à elite militar, mas agora teria enlouquecido e desaparecido na selva.
A jornada de Willard se desenvolve seguindo o curso de um rio, que ele percorre num barco de patrulha. Os quatro soldados que o acompanham constituem um grupo humano peculiar. Tem o adolescente negro Mr. Clean (Larry Fishburne), o comandante Chief Phillips (Albert Hall) que prefere nem saber o teor da missão, mas intui o perigo em vista do rumo que deve tomar com a embarcação, o cozinheiro Chef (Frederic Forrest) de New Orleans que entrou para a marinha em busca de boa comida e o surfista da Califórnia Lance Johnson (Sam Bottoms) que pega onda nas pausas entre a troca de tiros no campo de batalha. No trajeto eles se deparam com situações que beiram o inacreditável e o absurdo que compõem o cenário onírico do filme.
A narrativa se dá em primeira pessoa (voz do ator Michael Herr), o espectador é levado a compartilhar as experiências, sensações e sentimentos do personagem principal. Acompanhamos o capitão Willard em sua missão, compartilhamos as dúvidas que surgem na medida em que vai percebendo as contradições das ordens que recebeu e a falta de sentido da guerra que vai se revelando cada vez mais brutal. Kurtz é um militar de carreira, cursou West Point e tinha tudo para ascender na hierarquia, o futuro lhe sorria com a possibilidade de um alto comando. Mas, por algum motivo inexplicável dentro da lógica militar, ele insistiu até ser designado para a frente de batalha e se perdeu. Os relatos contraditórios informam que executou agentes duplos e comanda um grupo paramilitar. O espectador vai sendo informado junto com o protagonista, se assombrando junto com o personagem, penetrando na selva e mergulhando na insanidade de uma violência arbitrária. Esteticamente o filme se apresenta como uma viagem tal qual é a narrativa, de “revelação” para o personagem principal.
Apocalypse now é um filme chapado, é como uma viagem lisérgica que embaralha a percepção, conduz a um outro nível de consciência. Imagens se sobrepõem, se fundem e se confundem ritmadas por um som inebriante. Algumas manifestações da crítica sobre o filme nos remetem a esse sentido. Nos Estados Unidos, onde foi muito mal recebido na estréia (agosto de 1979) Coppola foi acusado por Andrew Sarris (no Village Voice) – justamente o crítico que mais defendia o cinema de arte – de “agredir os sentidos do espectador seduzindo-o unicamente pelas vísceras” (apud AUGUSTO, 2001). Ao contrário da crítica estado-unidense, a internacional adorou o filme desde a exibição no Festival de Cannes de 1979, de onde saiu com a Palma de Ouro de melhor filme. O crítico Pascal Bonitzer escreveu em outubro de 1979 na Cahiers du Cinema: “É menos um filme sobre a guerra do Vietnã do que sobre a psicose americana” (apud AUGUSTO, 2001).
É possível que nos Estados Unidos se esperasse um épico realista, mas Coppola fez uma epopéia poético-onírica. O filme é um grande delírio, uma viagem de LSD, uma “trip surrealista”, nas palavras do diretor. E isto está perfeitamente sintonizado com o espírito da época, ainda que Apocalypse now tenha estreado somente no fim dos anos 70. O projeto surgiu no final da década de 60 e o fato de ter levado dez anos para ser concluído decorre de questões próprias à realização de filmes e, também, de questões específicos ao projeto de Apocalypse now.
A contracultura e o cinema
A época de concepção do filme é o contexto de vigência da contracultura, a cultura jovem que se tornou matriz da revolução cultural no sentido mais amplo de uma revolução nos modos e costumes, nos informa Eric Hobsbawm (1995). O termo ganhou notoriedade e relevância a partir de meados do século 20 em decorrência de movimentos artísticos, político-universitários e de comportamento dos jovens, sendo definido como:
O conjunto de comportamentos, valores e obras que, de maneira desafiadora e contestadora, opõe-se, de um lado aos códigos sociais, aos sistemas político-ideológicos ou às tradições artísticas vigentes e hegemônicas; e, de outro, reivindica novos modelos e formas expressivas não-convencionais no âmbito sociocultural ou mesmo à extinção de regras condutoras. (CUNHA, 2003, p.183).
O maio de 68 na França foi o evento-ápice desta revolução cultural jovem, estética e de comportamento, o poder jovem. No cinema essa transformação se caracterizou pela chegada de uma geração que se opunha ao sistema discursivo, estético e de produção vigentes. A Nouvelle Vague na França, da qual os nomes mais conhecidos são os dos cineastas Jean-Luc Godard e François Truffaut é apenas o movimento mais conhecido de uma onda que pegou todas as cinematografias no mundo: no Japão, na Tchecoslováquia, na Alemanha e no Brasil. Nos Estados Unidos configurou-se com o nome de Nova Hollywood, termo batizado pela imprensa ao identificar o surgimento de filmes realizados por uma nova geração de diretores. Foi somente nesta época, num período restrito de dez anos, que o cinema nos Estados Unidos foi comandado por diretores e não pelos estúdios.
Na era dos estúdios grandes, entre os anos 30 e 50, diretores como John Ford ou Howard Hawks, ainda que fossem geniais, eram apenas empregados, contratados dos estúdios para a realização de filmes. Na Nova Hollywood, quem dava as cartas eram os diretores, eram eles que diziam aos produtores e chefes de estúdios como os filmes deveriam ser feitos. Isso está muito bem explicitado no livro de Peter Biskind Como a geração sexo-drogas-e-rock’n’roll salvou Hollywood, que aborda os acontecimentos do período entre dois filmes emblemáticos, o inaugural Sem destino (Easy riders, de 1969), dirigido por Dennis Hopper e Touro indomável (Raging bulls, de 1980), assinado por Martin Scorsese.
Francis Ford Coppola faz parte desta geração que inclui nomes como os de Stanley Kubrick, Dennis Hopper, Woody Allen, Arthur Penn, John Cassavetes, entre outros. São aqueles nascidos no fim da década de 30 (Coppola nasceu em 7 de abril de 1939) e que vão atuar nesse cenário dos chamados baby boomers, nascidos após a Segunda Guerra Mundial. É a geração das escolas de cinema: Martin Scorsese, Steven Spielberg, George Lucas, Jonh Milius, Paul Schrader, Brian De Palma e Terrence Malick.
O que caracteriza a obra cinematográfica desse grupo? O conceito de autor. Essa ideia que havia animado os críticos franceses em torno da revista Cahiers du Cinema e os cineastas da Nouvelle Vague de que o diretor é como um escritor que imprime no filme sua estética e visão de mundo, foi levada para os Estados Unidos pelo crítico Andrew Sarris, que escrevia no Village Voice. Os diretores passam a ter um poder ilimitado que é decorrente de uma combinação: a crença dos diretores de que fazem uma obra de arte e não um produto de mercado e a crise do modelo dos estúdios como grandes aparatos, empresas rígidas com centenas de empregados. Nesse vão, são criadas algumas obras-primas do cinema moderno, arejadas por ventos de liberdade criativa que não havia até então.
Coppola entrou para a UCLA, a Universidade da Califórnia em Los Angeles em 1963. É interessante o que diz o cineasta Walter Murch, que iria revolucionar o conceito de som no cinema junto com George Lucas: “Íamos estudar cinema porque estávamos interessados no assunto, mas também era uma garantia de não ser convocado” (apud BISKIND, 2009, p.38). A guerra da Vietnã posiciona os sujeitos, esses jovens com espírito crítico.
Coppola foi o personagem de um gesto inédito na indústria do cinema até aquele momento: fez a transição de estudante diretamente para diretor de um filme. Dirigiu Agora você é um homem em 1966, a partir de um roteiro dele mesmo, o que não era comum. Um aspirante a diretor deveria passar por várias etapas dentro do estúdio até chegar a comandar um filme. Ele tinha 27 anos e isso representou uma ruptura no sistema que abriu caminho para o poder do artista. Pouco tempo depois, quando os executivos da Paramout não sabiam o que fazer com um roteiro que haviam recebido, baseado no livro O poderoso chefão do escritor italiano Mário Puzzo, chamaram Francis Ford Coppola. Nascido em Detroit, tinha origem numa família italiana e era um artista. O resultado foi um sucesso extraordinário, tanto de público quanto de crítica. Como roteirista e diretor da segunda parte, de 1974, ele alcançou sucesso espetacular num gênero comercial mantendo a criatividade pessoal. Com isso alcançou um poder, um sucesso e uma fama nunca antes experimentados. Ele tinha 35 anos e a juventude tinha tomado o poder. Foi nesse espírito que iniciou, em março de 1976, Apocalypse now, com o sentimento de um poder ilimitado, que se reflete no filme, enquanto capacidade crítica da realidade e no processo de realização.
Os bastidores do filme
Com o objetivo de controlar a produção e o processo artístico e, também ter mais lucro, Coppola decidiu filmar sem o dinheiro dos estúdios. Ele tinha sua própria produtora a Zoetrope criada em sociedade com George Lucas e Walter Murch, em 1968. Aliás, Lucas seria o diretor inicial de Apocalypse now…. bom, sabemos que ele foi por outro lado, fez na época Loucuras de verão (American graffiti, 1973) um filme saudosista: “Decidi que era hora de fazer um filme do qual as pessoas saíssem se sentindo melhor do que quando entraram no cinema” (apud BISKIND, 2009, p.246). Estava se referindo ao conteúdo contestador e crítico dos filmes realizados pela Nova Hollywood. O período de contestação daria logo sinais de esgotamento sinalizado pelo interesse do público em outro tipo de espetáculo, a saga Guerra nas estrelas (Star wars), que Lucas inaugurou em 1977 com bilheterias recordistas na história do cinema.
Coppola havia enriquecido em decorrência do sucesso da série O poderoso chefão, o que lhe havia permitido, inclusive, adquirir uma cadeia de cinemas para exibir os próprios filmes e ter, assim, mais autonomia em relação ao sistema. Vendeu os direitos de distribuição de Apocalypse now e conseguiu U$ 17 milhões para iniciar a produção [7 milhões de distribuidores europeus e outros 10 milhões da United Artists pelo território dos Estados Unidos]. O lançamento foi planejado para 7 de abril de 1977, dia de seu aniversário de 38 anos. O embarque para as Filipinas, onde foram realizadas as filmagens, aconteceu em 1 de março de 1976, com uma previsão de 14 semanas de filmagens, o que daria 108 dias. De verdade, ficaram por lá o dobro do tempo e o filme estreou apenas em agosto de 1979, dois anos depois do previsto com um custo final de 40 milhões de dólares, bem acima do orçamento inicial. Pagou-se em seis meses, foi indicado a oito categorias do Oscar, ganhando de melhor som para Walter Murch e para a estupenda fotografia do italiano Vittorio Storaro. Também recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes.
Uma parte significativa dos problemas enfrentados para a realização do filme pode ser atribuída a esse sentimento de poder do qual Coppola estava investido, que se manifestava como megalomania e arrogância. Contra todas as recomendações, decidiu filmar nas Filipinas onde a logística era dificílima e o deslocamento entre as locações só era possível de avião. Também recusou as advertências sobre o período que escolheu, o da estação das chuvas. A natureza cumpriu seu ciclo e um tufão que atingiu a ilha destruiu sets de filmagem encerrando de maneira lamentável a primeira fase das filmagens. De volta aos Estados Unidos, depois da primeira etapa, só tinha oito minutos de filme aproveitável.
Os atores também foram motivo de uma sucessão de problemas. Ninguém queria filmar na selva, em locações difíceis e péssimas condições. Foi difícil montar o elenco. Logo no início o ator Harvey Keitel, que interpretava o capitão Willard desistiu e foi substituído por Martin Sheen, obrigando a refilmagem de cenas. Marlon Brando foi convencido a viver o coronel Kurt por um cachê de um milhão de dólares por semana durante três semanas e 11% da renda bruta. Quando chegou, na segunda fase de filmagens, era evidente que não tinha lido nem o livro, nem o roteiro. Entre os relatos sobre as filmagens narrados por Biskind, está o de que Coppola teria se trancado com o ator num trailer e lido o livro e o roteiro em voz alta. Mesmo assim, no momento de filmar, Marlon Brando improvisou do seu modo. Outro problema com o elenco foi o ataque cardíaco sofrido por Martin Sheen, durante a cena de abertura, o que também obrigou uma parada geral nas filmagens.
Nesses intervalos, enquanto esperavam, diretor, atores e equipe passavam o tempo com o que então era vigente no contexto da contracultura: sexo e drogas. A liberação sexual dos anos 60 proporcionou um tipo de vivência sexual totalmente nova e descompromissada, mais do que isso, representava uma afirmação política: “Liberação pessoal e liberação social, assim, davam-se as mãos, sendo sexo e drogas as maneiras mais óbvias de despedaçar as cadeias do Estado, dos pais e do poder dos vizinhos, da lei e da convenção.” (HOBSBAWM, 1995, p.326). O consumo de drogas incluía LSD, maconha, anfetaminhas, álcool e cocaína. Essa geração do cinema é tão marcada pela droga que Dennis Hopper, o lendário diretor de Sem destino, não conseguia fazer nada sem o apoio de algum elemento químico. Não tendo mais conseguido dirigir, trabalhou como ator em projetos nos quais os roteiros eram assinalados com orientações sobre o tipo de droga que deveria ser ingerida para o desenvolvimento da cena. Em Apocalypse now a qualidade da composição de seu personagem tem a intensidade de um estado alterado. Ele é o fotógrafo que já não tem consciência dos limites da experiência da qual deveria atuar como testemunha. Transformou-se em mais um dos adoradores de Kurtz, é o bufão na corte de um rei anacrônico. Kurtz virou ídolo endeusado por uma tribo de montanheses no interior da selva de um país convulsionado pela guerra. O cenário é de horror, uma fantasmagoria formado por crânios e corpos em decomposição.
A terceira fase de Apocalypse now, da montagem, foi igualmente longa, com várias edições e reedições até o lançamento no ano de 1979 com uma duração de 155 minutos. Em 2001 o próprio Coppola lançaria nova versão, de 196 minutos, agregando ao título a palavra Redux, que em latim significa retorno. A versão original é um documento mais relevante para compreender a inserção do filme no contexto histórico do que a segunda versão, mais importante do ponto de vista da satisfação dos objetivos artísticos do cineasta. A experiência toda da realização do filme beirou o pesadelo e está registrada no documentário O Apocalipse de um cineasta (Hearts of darkness: a filmmaker’s Apocalypse), de 1991, idealizado por Eleonor, esposa de Coppola e assinado por Fax Bahr e George Hicknlooper.
A arte
Com toda a sofisticação visual que apresenta, Apocalypse now é reflexo do seu tempo. É um documento da época também em termos sonoros. O rock’n’roll nos anos 60 se tornou elemento fundamental no cinema. E isso aconteceu a partir de Sem destino com a emblemática abertura ao som de Born to be wild, interpretada pela banda Steppenwolf. Não foi menor o impacto da música em Apocalypse now. A seqüência de abertura apresenta o tom pela canção The end, de Jim Morrison, o vocalista e líder da banda The Doors que morreu aos 27 anos, em 1971, em Paris, possivelmente por overdose. Os versos de The end (O fim) fazem a transição entre o delírio e a realidade, confundem esses limites ao se misturarem com o som dos helicópteros que soltam napalm numa floresta em chamas.
A presença da música em Apocalypse now é elemento estético que contribui para acentuar a irracionalidade da guerra. Tornou-se antológica a sequência com o trecho retirado da ópera A cavalgada das valquírias, pertencente à tetralogia O ouro do Reno, composta por Richard Wagner. A música é utilizada pelo personagem de Robert Duvall, o tenente-coronel Bill Kilgore, para estimular os soldados durante os ataques aéreos. Provoca assombro no espectador, mesmo efeito que causa nas populações assustadas e arrasadas pela artilharia e pelo napalm jogado dos helicópteres. É a mesma sensação na seqüência do show das coelhinhas da Playboy. Ao som da canção Susie Q do grupo Creedence Clearwater Revival elas descem de helicópteros num palco improvisado para uma turba enlouquecida de soldados. É uma falsa promessa de prazer porque quando o inevitável acontece e eles se jogam sobre as moças elas são imediatamente resgatadas pelos mesmos helicópteros nos quais chegaram. A seqüência espetacular imprime ao filme uma adrenalina misturada com estranheza pelo paradoxo entre realismo e irrrealismo da situação.
Os versos de The end narram a história do garoto que mata a família. Começam demarcando a mudança cultural da época: This is the end (Este é o fim), Of our elaborate plans, the end (Dos nossos elaborados planos, o fim), No safety or surprise, the end (Sem salvação ou surpresa, o fim). Indicam a grande revolução cultural dos anos 60. Nas palavras do historiador Eric Hobsbawm, a melhor abordagem possível sobre a revolução que aconteceu naqueles anos é através da família e da casa, da transformação na estrutura de relações entre os sexos e as gerações (1995, p.314). Começava a dissolução do modelo de família nuclear, padrão da sociedade ocidental nos séculos 19 e 20, baseada no patriarcado, na autoridade superior dos pais em relação aos filhos e aos mais jovens de modo geral e no casamento formal com relações sexuais privilegiadas entre os cônjuges. Mais adiante na canção, dizem os versos do The Doors: Father? Yes son. I Want to kill you (Pai? Sim filho? Eu quero te matar) e Mother…. i want to… fuck you (Mãe… eu quero… te foder).
As palavras finais de Kurtz “O horror! O horror!”, na voz rouca de Marlon Brando remetem para a revelação de uma cena sem lugar na realidade cotidiana. É a intenção do filme, desde o título. A palavra apocalipse do grego apokalúpsis significa ato de descobrir, revelação. Diz respeito à literatura escatológica, especialmente ao último livro do Novo Testamento, no qual, pela profecia, revela-se a verdade por meio de imagens assustadoras.
Nas palavras de Herbert Marcuse, a arte é revolucionária numa dimensão estética em que a forma se torna conteúdo. Através do mundo irreal, da realidade fictícia que cria, a arte pode conter mais verdade do que se reconstituisse os fatos com fidelidade histórica. Para cumprir uma função crítica, no entanto, deve sempre partir da realidade, desse mundo cotidiano ao qual nos referenciamos, no caso de Apocalypse now o fato histórico da guerra do Vietnã. A arte se realiza quando essa realidade é transcendida para que se revele em sua essência, em sua verdade. A guerra do Vietnã representou para os Estados Unidos a quebra da uma estrutura psicológica. Mais do que falar sobre o Vietnã, Apocalypse now dá conta de uma ruptura, de uma quebra, de um retorno impossível. É o documento de uma época.
Referências
Apocalypse now. Direção: Francis Ford Coppola. Produção: Francis Ford Coppola. Roteiro: John Millius e Francis Ford Coppola. Intérpretes: Marlon Brando, Robert Duvall, Martin Sheen, Frederic Forrest, Albert Hall, Dennis Hopper e outros. Música: Carmine Coppola e Francis Ford Coppola. Los Angeles: Omni Zoetrope, 1979. 1 DVD (155 min), widescreen, color. Produzido por Universal Studios, 2009.
AUGUSTO, Sérgio. Um apocalipse como Zaratustra teria filmado. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 22 dez. 2001. Caderno 2, p. 3.
BISKIND, Peter. Como a geração sexo-drogas-e-rock’n’roll salvou Hollywood: Easy riders, Raging bulls. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2009.
CUNHA, Newton. Dicionário Sesc: a linguagem da cultura. São Paulo: Perspectiva/Sesc São Paulo, 2003.
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2009.
LURKER, Manfred. Dicionário de simbologia. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MARCUSE, Herbert. A dimensão estética. Lisboa: Edições 70, 1999.
MONTERDE, José Enrique y RIAMBAU, Esteve. Historia general del cine: nuevos cines (años 60). Madrid : Ediciones Cátedra, 1995.
Apocalypse Now Final cut
APOCALYPSE NOW: FINAL CUT (fotos)
11/04/25
Cavalgada Trágica, Comanche Station, 1960, Direção: Budd Boetticher&Roteirista: Burt Kennedy
Comentário de Heráclito Maia, 03/03/2005
Último filme de um ciclo de sete westerns dirigidos por Oscar “Budd” Boetticher e estrelados por Randolph Scott entre 1956 e 1960, Cavalgada Trágica conta a história de Jefferson Cody (Scott), um homem solitário cuja esposa foi raptada pelos Apaches e nunca mais encontrada. Cody toma como missão de vida libertar de acampamentos indígenas todas as mulheres sequestradas, esperando, quem sabe um dia, encontrar a sua.
Acompanhamos então o obstinado Cody libertar dos Comanches a esposa de um rico fazendeiro, Mrs. Lowe (Nancy Gates) e a trilhar um longo caminho para levá-la de volta a sua casa, sem saber que o marido oferecera um belo prêmio para quem a trouxesse. Durante a viagem, eles encontram três bandidos, Ben (Claude Akins), Frank (Skip Homeier) e Dobie (Richard Rust), que estavam a par de toda a situação e juntos combinam de ficar com a mulher para ganhar a recompensa. Surgem inúmeras confusões, tanto com os índios, que os perseguem e matam Frank, como principalmente entre eles, que disputam a mulher, resultando na morte de Dobie pelas mãos de Ben. Lowe se apaixona por Cody, até descobrir da recompensa que seu marido estava lhe oferecendo, o que a faz ficar com raiva, achando, irroneamente, que ele a tirou dos índios apenas para faturar um troco. Somente quando Cody leva a mulher até seu marido, é que ele compreende o porque do sujeito não ter tido a coragem de procurar sua esposa, pagando para que outros fizessem isso: ele era cego! Cody a devolve e vai embora, sem esperar para receber o dinheiro...
Vingança, amargura, desesperança (ou esperança, no caso de Cavalgada Trágica) foram elementos constantes e centrais no ciclo de Boetticher & Scott, antecipando bastante o spaghetti-western que surgiria poucos anos depois, porém ainda longe do grau de dramaticidade que os italianos atingiriam. Mas se tratam de verdadeiras pérolas do western americano, que deixam no chinelo qualquer outro exemplar do B-Western, principalmente de diretores completamente medíocres como John Sturges e Burt Kennedy (que era melhor escrevendo roteiros, sendo inclusive o responsável por este Cavalgada Trágica!). No gênero western, Boetticher está a altura de Anthony Mann e Howard Hawks, realizando um cinema "enganosamente simples", como definiu um de seus maiores fãs, Martin Scorsese. Os outros filmes que compõe o ciclo são: Sete Homens Sem Destino, O Resgate do Bandoleiro, Entardecer Sangrento, Fibra de Herói, Um Homem de Coragem e O Homem que Luta Só.
12/04/25
Carioca era um Rio, 2013, Simplicio Neto
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Carioca era um rio e Carioca era um rio - parte 2
História do Rio de Janeiro é assunto do Cine Encontro
Tales Augusto Felipe
13/04/25
Wyatt Earp and the Cowboy War, Série de TV, 2024, Patrick Reams
The True Story Behind Netflix's 'Wyatt Earp and the Cowboy War'
Baseada em história real, série documental da Netflix promete conquistar os amantes de ação, história e faroeste
13/04/25
A verdadeira história de Ned Kelly, True History of the Kelly Gang, 2019, Justin Kurzel
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A Verdadeira História de Ned Kelly (2019): biografia competente de figura icônica
Lívia Almeida
Apesar de conter pontos que poderiam ser melhor elaborados, a obra de 2019 consegue cativar pelo dinamismo da direção e seu protagonista marcante.
Ned Kelly foi um famoso fora-da-lei australiano de ascendência irlandesa, conhecido como uma figura controversa. Enquanto cometeu diversos crimes, o mesmo ganhou notoriedade e admiração de grande parte da população da Austrália nos seus anos ativo, por desafiar a lei e representar os imigrantes que eram comumente discriminados. E seu legado continua até hoje, com diversas obras cinematográficas dedicadas à sua figura. A mais recente delas, “A Verdadeira História de Ned Kelly”, foi baseada no livro best-seller “A História do Bando de Ned Kelly”, escrito por Peter Carey. Contado pelo ponto de vista do protagonista enquanto escreve uma carta para seu filho, acompanhamos sua vida da infância até a fase adulta, enquanto ele relembra os momentos que considera como os mais marcantes de sua trajetória.
Não é segredo que o gênero biográfico já está saturado há um bom tempo pela quantidade de obras que seguem o mesmo modelo e entregam resultados esquecíveis. Já o filme dirigido por Justin Kurzel (“Macbeth: Ambição e Guerra”) e roteirizado por Shaun Grant (“A Síndrome de Berlin”) consegue trazer elementos que tornam a história intrigante e até um pouco inovadora, a começar pela belíssima cinematografia de Ari Wegner, que chama atenção desde o início ao ressaltar e transmitir a desesperança presente no dia a dia do protagonista. A forma errática que algumas cenas são filmadas apresenta ao espectador o jeito caótico que a mente de Kelly funcionava. O filme retrata as cenas de grande tensão de forma envolvente, mas também sabe cativar na parte emocional, criando um vínculo entre o protagonista e a audiência, que visa mostrar a pessoa que ele realmente foi, apesar de todos os crimes que cometeu.
Mesmo seguindo algumas batidas mais conhecidas, o longa aprofunda o personagem de Ned Kelly com bastante precisão, principalmente durante a sua infância. A relação de Ned com a mãe – que precisava se virar de qualquer jeito para cuidar dos filhos – é bem explorada por um roteiro que dá valor aos pequenos momentos. Filho de um pai que pouco se importava com a família, as dinâmicas que são criadas entre Ned e os homens que passaram pela sua vida enquanto ele era jovem também são bem representadas e complexas; quando mais velho ele hesita em confiar nos personagens masculinos que povoam a trama, o que é construído como algo completamente compreensível. A ótima atuação contida do jovem Orlando Schwerdt abre o caminho para o Ned mais velho e cada vez mais desequilibrado de George MacKay. Essie Davis também está formidável como a matriarca dos Kelly.
Apesar de construir uma primeira metade bastante eficiente, muito do filme não é tão bem desenvolvido na sua segunda parte. A narrativa começa a perder sua imprevisibilidade no terceiro ato, exatamente quando a obra deveria entregar aquilo que prometeu: a união e o caos causado pela gangue.
O título da obra em português realmente faz mais sentido do que o original “True History of the Kelly Gang” (traduzido livremente para “A Verdadeira História da Gangue Kelly”), já que a história do bando não chega nem perto de ser tão explorada quanto a jornada individual de Ned. O longa decepciona nesse quesito ao entregar um bando de forasteiros que, pela falta de desenvolvimento dos demais personagens e de sua dinâmica como grupo, não deixa um impacto marcante. Muito se fala sobre os crimes que o grupo comete, mas pouco disso é mostrado, o que pode dificultar a audiência na hora de entender a gravidade e o impacto que aqueles homens tiveram na história. Nem mesmo o personagem mais explicitamente vilanesco de Nicholas Hoult, introduzido no segundo ato, causa grandes emoções: ele é inescrupuloso a ponto de apontar uma arma para a cabeça de uma criança para conseguir o que quer, e mesmo assim as cenas com ele em sua grande parte são superficiais e não chegam no nível de tensão que o filme parece querer trazer com a sua presença em tela.
No final do último ato, se é falado sobre como talvez seja moralmente errado que os australianos admirem tanto um criminoso. Porém, além da cena parecer extremamente desconexa no contexto da produção, em nenhum momento vemos a opinião pública sobre a gangue na obra, o que faz parecer que esses poucos minutos existem em tela apenas para que a audiência entenda um pouco sobre o impacto deles sem ter que de fato mostrá-lo. O que, obviamente, seria infinitamente mais interessante.
Ainda assim, “A Verdadeira História de Ned Kelly” consegue desenvolver uma história cheia de relacionamentos complexos e significativos enquanto retrata a vida de uma personalidade que até hoje é reconhecida pelo papel que desempenhou na história dos imigrantes irlandeses da Austrália dos anos 1800. Trazendo boas reviravoltas, a narrativa também tem algo interessante a dizer sobre como a desigualdade e o preconceito podem levar as pessoas ao extremo, e tudo isso de forma notável. Mesmo com seus pontos negativos, não deixa de ser uma boa obra que merece uma chance.
15/04/25
Maria Montessori - La nouvelle femme, La nouvelle femme, 2023, Léa Todorov
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Maria Montessori – La nouvelle femme (2023). Bellezza e imperfezione in un biopic educativo
[Tradução livre] Maria Montessori - A nova mulher (2023). Beleza e imperfeição em um filme biográfico educacional
Crítica, enredo e elenco de 'Maria Montessori - La nouvelle femme', um filme biográfico que trata da educação de crianças com déficit psicomotor e dos desafios da maternidade
Stefano Del Giudice
O conteúdo do artigo:
1. Maria Montessori - La nouvelle femme (Maria Montessori - A nova mulher)
2. Trailer de "Maria Montessori - La nouvelle femme" (Maria Montessori - A nova mulher)
3. Enredo de "Maria Montessori - A nova mulher"
4. Crítica de "Maria Montessori - A nova mulher"
5. Em conclusão
Informações sobre o filme
Escritora, diretora e produtora nascida em Paris em 1982, Léa Todorov, filha do filósofo Tzvetan Todorov e da escritora Nancy Huston, estudou ciências políticas em Paris, Viena e Berlim antes de embarcar em uma carreira como documentarista, fazendo filmes como 'Sauver l'humanité aux heures de bureau' (2012) e 'Utopie russe' (2014) em colaboração com Joanna Dunis. Em 2015, junto com Lila Pinell, Chloé Mahieu, Gaëlle Boucand e Aurélia Morali, ela fundou a produtora Elinka Films, com a qual produziu vários documentários, incluindo "Révolution école: l'éducation nouvelle entre les deux guerres", dirigido por Joanna Grudzinska.
Esse documentário, com foco em métodos alternativos de ensino, inspirou Léa Todorov a fazer "La Nouvelle Femme" (2023), seu primeiro longa-metragem de ficção, um filme biográfico sobre a figura controversa da educadora e pedagoga italiana Maria Montessori. Nascida em Chiaravalle em 1870 e falecida em Noordwijk em 1952, Montessori foi uma das primeiras mulheres a se formar em medicina na Itália e ficou mundialmente famosa por ter fundado o "Método Montessori". Essa abordagem educacional, revolucionária para sua época, baseia-se na liberdade total da criança para experimentar os elementos ao seu redor, respeitando seu desenvolvimento físico, social e psicológico.
O objetivo é estimular o crescimento interior responsável e consciente, promovendo uma educação cósmica.
Apresentado em 5 de outubro de 2023 no Festival de Cinema de Zurique e vencedor do prêmio Emergence 2023, "Maria Montessori - La nouvelle femme" é lançado nos cinemas franceses em 13 de março de 2024, enquanto é distribuído na Itália a partir de 26 de setembro de 2024 graças à empresa de distribuição Wanted Cinema.
Maria Montessori - La nouvelle femme - 2024 - Film - Trailer italiano
Enredo de "Maria Montessori - La nouvelle femme" (Maria Montessori - A nova mulher)
Em 1900, Lili d'Alengy é uma das cortesãs mais famosas de Paris, uma mulher que busca fama e uma vida de riqueza econômica. Ela não está em busca de um amor verdadeiro, mas de um homem rico e abastado que possa lhe garantir uma vida de luxo e conforto. No entanto, ninguém conhece o passado vergonhoso que Lili tenta desesperadamente esconder. Antes de se tornar uma cortesã, ela foi casada com um homem com quem teve uma filha, Tina, que nasceu com uma grave deficiência física e mental. Por causa desse nascimento, o casamento foi anulado a pedido do marido, e Lili, incapaz de aceitar a criança, decidiu abandoná-la, entregando-a ao pai.
Maria também esconde um segredo: ela teve um filho fora do casamento, resultado de um caso secreto com seu colega Montesano. Apesar das diferenças abismais entre Lili e Maria, as duas mulheres acabam se ajudando mutuamente. Lili será forçada a refletir sobre sua vida e suas relações familiares, enquanto Maria, por meio de seu trabalho, deixará uma marca indelével na história.
Crítica de "Maria Montessori - La nouvelle femme" (Maria Montessori - A nova mulher)
"Maria Montessori - La nouvelle femme" é um filme profundamente terapêutico para Léa Todorov, que se vê lidando com um tema e uma narrativa intimamente ligados à sua experiência pessoal como mulher e mãe.
Em 2017, Todorov deu à luz uma criança neurotípica, Sofia, a quem ela dedicou o filme. Portanto, não é coincidência que a diretora decida contar a história de Maria Montessori, focando seu filme biográfico no início do século XX, quando a pioneira da educação trabalhava, junto com Giuseppe Montesano, em um instituto de fonoaudiologia, experimentando seu revolucionário método escolar em crianças que, na época, eram brutalmente descritas com termos grosseiros como "idiotas", "imbecis" ou até mesmo "macacos amestrados".
Essas conotações, mantidas no filme, são fortes para o ouvido contemporâneo, acostumado a uma linguagem mais suave e inclusiva, que prefere expressões como "déficit motor", "psíquico" ou "autismo". No entanto, a escolha de preservar essas expressões grosseiras se mostra adequada, pois restaura fielmente o léxico da época, sem adoçar a realidade histórica em nome da sensibilidade moderna. Essa abordagem, frequentemente evitada em muitos filmes pós-2020, evita o risco de reler a história por meio do filtro do contexto social e cultural atual, de uma sociedade que tende a tornar o espectador mais consciente de questões como o racismo ou a inclusão social em todas as suas formas.
É importante fazer com que o espectador entenda que a sociedade do passado era muito diferente da atual, possuindo uma sensibilidade diferente, e o cineasta consegue atingir esse objetivo com perfeição.
Além disso, Léa Todorov não pretende suavizar as bordas ou adoçar a narrativa da história de Maria Montessori sobre jovens pacientes que sofrem de déficits psicomotores. Pelo contrário, ela opta por abordar a história com um toque de realismo cinematográfico, a começar pela escolha dos atores: usar crianças que são realmente afetadas pelos problemas médicos abordados no filme.
Sem dúvida, teria sido mais fácil usar jovens atores sem essas dificuldades, mas o resultado teria sido completamente diferente e mais falso. A câmera observa esses jovens artistas com muito cuidado, proporcionando uma narrativa agridoce que permite ao espectador entrar em contato íntimo com esse mundo. As crianças são narradas em sua vida cotidiana, em um contexto de alegria de viver, onde o afeto ocupa o centro do palco, sobrepondo-se a todas as outras dificuldades, e onde essas crianças encontram seu próprio lugar para viver em paz com o mundo e com os outros.
Surpreendente é o desempenho da pequena Rafaelle Sonne-Ville-Caby, que interpreta Tina, mostrando de forma notável a evolução da personagem e nos ajudando a entender e observar o progresso que o método Montessori proporciona às crianças. No início do filme, vemos Tina incapaz de interagir com os outros ou de se mover facilmente no mundo; no final, Tina consegue comunicar, da maneira que pode, suas emoções em relação à mãe, a Montessori e ao mundo ao seu redor.
Rafaelle Sonne-Ville-Caby veio para o casting junto com as outras crianças e, em seguida, organizamos um primeiro workshop durante as férias de outono, onde algo especial aconteceu imediatamente. Sua intensidade reflexiva, sua maneira de se relacionar conosco e de se manter concentrada em si mesma literalmente nos dominou. Ela é uma criança incrivelmente inteligente, entende tudo o que acontece ao seu redor, está muito presente no mundo, mas tem uma maneira diferente de perceber os sinais sensoriais, uma peculiaridade cognitiva que despertou meu interesse.
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Durante as filmagens, trabalhamos muito com a distância entre seu papel e sua personalidade real, e ela realmente construiu a personagem conosco. Da Tina inicialmente muito inibida, à Tina que floresce no Instituto, à Tina do final do filme, Rafaelle conseguiu essa evolução com grande naturalidade. Também tivemos sorte porque Rafaelle nunca teve uma abordagem egoísta para atuar no filme. Hoje, entretanto, ela está mais consciente de como o mundo a percebe e teme que Rafaelle e Tina sejam confundidas uma com a outra aos olhos dos outros. Ao trabalhar com crianças, há sempre o medo de que elas se envolvam demais com a ideia de atuar em filmes. - Depoimento de Léa Todorov
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"Maria Montessori - La nouvelle femme", que aborda o tema da educação de crianças com déficits psicomotores, destaca-se por seu acentuado subtexto político, revelando uma profunda crítica à sociedade passada (mas também moderna) e sua dinâmica de exclusão. No centro dessa reflexão está a personagem Lili d'Alengy, mãe da pequena Tina, que personifica a tendência contemporânea de marginalizar os diferentes. A figura de Lili representa a sociedade que, em vez de abraçar e integrar as diferenças, tenta escondê-las ou transformá-las em algo abominável e perigoso, tornando essas pessoas vítimas de um sistema que não sabe como administrá-las e que lugar dar a elas na sociedade capitalista.
Nesse contexto, a batalha de Maria Montessori, que visa dar a esses "idiotas" um lugar no mundo real, torna-se uma luta contra a estigmatização social: sua visão educacional não apenas oferece uma abordagem revolucionária à pedagogia, mas também expõe uma denúncia da dinâmica de exclusão que permeia nossa cultura. Seu compromisso não visa apenas a melhorar as condições das crianças com dificuldades, mas também é um grito de rebelião contra uma sociedade que, em vez de aceitar e valorizar a diversidade, prefere reprimi-la, considerando-a uma ameaça à ordem e à normalidade. Lili d'Alengy, com sua dificuldade em administrar e aceitar o déficit de Tina, torna-se o símbolo de uma classe social que vive com medo do julgamento dos outros e da necessidade de se adequar a padrões rígidos.
Sua vergonha e rejeição iniciais refletem a hipocrisia de uma sociedade que coloca o sucesso e a perfeição acima da humanidade e da empatia, perpetuando a desumanização do diferente. Montessori, ao contrário, com sua abordagem inclusiva e inovadora, não apenas desafia esses preconceitos, mas demonstra como a educação pode se tornar uma ferramenta poderosa para quebrar barreiras e criar um futuro mais justo e inclusivo.
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Quando minha filha nasceu, estava escrito na página da Internet dedicada à sua doença que as pessoas que chegassem à idade adulta poderiam viver em instituições especializadas. Que perspectiva sombria quando se segura um bebê. Enquanto Maria Montessori e a medicina do século XIX ...
Maria Montessori e os médicos do século XIX que ela inspirou tinham a ambição de envolver as crianças confiadas a seus cuidados na vida social, para permitir que elas tivessem um emprego e uma vida independente! Foi também graças à leitura deles que recuperei minha coragem. Espero que o filme desafie a falta de ambição de nossa sociedade em ser mais inclusiva. Já está em andamento uma iniciativa para mudar a forma como essas crianças - e adultos - são retratados! Invisíveis por muito tempo, muitas vezes condenadas ao ostracismo, é hora de dar às pessoas com neuropatia ou deficiência seu lugar de direito no centro da sociedade. Nesse sentido, acredito que qualquer iniciativa que ajude a mudar a maneira como vemos as coisas é benéfica. - Declaração de Léa Todorov
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Lili d'Alengy, uma figura de pura invenção que provavelmente também incorpora as dúvidas pessoais da cineasta em relação à sua filha com déficit psicomotor (embora com as devidas diferenças), representa, portanto, uma mãe que inicialmente não sabe como se relacionar com a filha. Ela a rejeita, influenciada pelo condicionamento social e cultural de sua época, e depois se aproxima lentamente da filha, graças a Montessori, aprendendo a compreender sua beleza e suas nuances.
O sentimento de vergonha de Lili é o resultado de uma sociedade que não apenas desperta nela um sentimento de medo e tristeza, mas também a leva a viver com o fardo de que sua filha não é "normal" como as outras.
Não só isso, na verdade, a sociedade da época até a culpa, responsabilizando-a pelo nascimento de um ser "defeituoso", considerando-a, portanto, defeituosa por sua vez, e levando-a a esconder Tina do mundo burguês ao qual pertence, fingindo que ela não existe, em uma dinâmica que acaba fazendo com que a pequena Tina sofra profundamente, privada do amor da mãe, que a vê mais como um obstáculo do que como uma criança que precisa de amor.
Ao lado dessa figura feminina está Maria Montessori, interpretada com grande habilidade por Jasmine Trinca, em uma narrativa que, embora parcialmente ficcionalizada, permanece fiel aos fatos históricos. Para narrar essa figura crucial na história da pedagogia italiana e internacional, a cineasta se baseou em várias biografias, incluindo as de Rita Kramer, Valeria Paola Babini e Marjan Schwegman, bem como nos próprios escritos de Montessori, como seu diário de 1913, escrito durante uma viagem transatlântica, no qual ela mantém uma espécie de conversa interior com seu filho Mario, nascido fora do casamento e abandonado por ela por motivos de força maior. O roteiro constrói cuidadosamente a personagem Montessori, entrelaçando sua pesquisa pedagógica com crianças com deficiências e seu difícil relacionamento com Mario, mantendo um caráter fortemente feminista e trazendo à tona o tema da força das mulheres, ainda escravas de um sistema patriarcal dominado por homens.
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Tive a intuição de que o momento mais interessante da biografia de Maria Montessori foi o abandono de seu filho. Naquela época, ela ainda não havia fundado uma escola para crianças neurotípicas. Ela trabalhava em um instituto de fonoaudiologia com crianças que eram descritas como "idiotas" ou "deficientes", e foi com essas crianças, com necessidades especiais, que ela começou a experimentar o que viria a ser seu método educacional. Isso deu origem à personagem Lili no roteiro: uma mãe que tem vergonha de seu filho "diferente". Investi nessa personagem meu próprio sentimento de fracasso, quando, no nascimento da minha filha, percebi que havia dado à luz uma criança que não "funcionaria" de acordo com as expectativas comuns. A escrita do filme começou a partir dessa história, que forneceu a base dramática para a narrativa. - Depoimento de Léa Todorov
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Apesar da atenção aos detalhes do caráter da protagonista, a principal falha de "Maria Montessori - La nouvelle femme" está no roteiro, que não consegue dar força real às personagens femininas. A escrita, às vezes previsível e bidimensional, não é incisiva e tende a cansar o espectador. Embora o tema seja, sem dúvida, interessante, a narrativa é muito apressada, perdendo-se em sequências repetitivas que carecem da introspecção necessária, impedindo que o público sinta empatia tanto por Montessori quanto por Lili d'Alengy.
Até mesmo os personagens secundários, que poderiam enriquecer a história e oferecer novas perspectivas sobre os protagonistas, permanecem superficialmente esboçados, deixando o enredo focado quase que exclusivamente na amizade que se formará entre as duas mulheres, um relacionamento, no entanto, escrito de maneira muito apressada e sem profundidade dramatúrgica.
Do ponto de vista da direção, o filme é visualmente limpo, caracterizado por um tom suave e romântico. Essa abordagem aparece claramente nos movimentos de câmera, nas cores suaves usadas na fotografia, bem como nos figurinos e cenários. Entretanto, embora interessante, essa escolha estilística não consegue dar profundidade aos personagens. As atuações dos atores, embora boas, são vítimas de um roteiro e de uma direção que não são totalmente eficazes, privando o filme dos laços emocionais necessários para envolver o espectador. Na verdade, a emoção mais autêntica chega graças aos pequenos atores, cuja presença consegue dar ao público um sorriso agridoce.
Em conclusão
"Maria Montessori - La nouvelle femme" é um filme que aborda questões complexas e significativas relacionadas à educação de crianças com déficit psicomotor, mas infelizmente não consegue expressar plenamente o potencial de suas personagens femininas. Apesar da direção visualmente limpa e das atuações sinceras, o roteiro sofre com a falta de profundidade e incisividade, deixando os espectadores desejosos de uma narrativa mais rica e envolvente. Apesar disso, o filme consegue transmitir uma mensagem importante sobre a luta pela inclusão e a importância do amor incondicional, especialmente por meio das atuações dos jovens atores que trazem autenticidade e genuinidade à história.
Notas positivas
- Abordagem realista e autêntica com crianças reais
- Bom desempenho de Rafaelle Sonne-Ville-Caby
- Crítica social bem definida da inclusão
Notas negativas
-Roteiro previsível e superficial
- Personagens femininas mal desenvolvidas, especialmente em seu relacionamento de amizade
- Narração apressada e repetitiva
16/04/25
Obrigado a matar, A Lawless Street, 1955, Joseph H. Lewis
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Obrigado a matar (A lawles street), 1955 – Desafios para Randolph Scott - 10 de agosto de 2018
Randolph Scott atuou em dois westerns dirigidos por Joseph H. Lewis, o cultuado diretor dos policiais “Mortalmente Perigosa” (1950) e “Império do Crime” (1955). O outro filme de Scott com Lewis foi “O Fantasma do General Custer” (7th Cavalry), de 1956 e o veterano cowboy não teve muita sorte nessa parceria pois os melhores faroestes de Joseph H. Lewis são “Ódio Contra Ódio” (The Halliday Brand) e “Reinado do Terror” (Terror in a Texas Town), respectivamente de 1957 e 1958, sendo que este último marcou sua despedida como diretor de longa-metragens. Lewis se iniciou dirigindo os mocinhos ‘Wild’ Bill Elliott e Johnny Mack Brown em westerns da Columbia e Universal e aos 50 anos de idade, após ter sofrido um ataque cardíaco, se bandeou para a televisão, passando a dirigir séries de TV. Nada menos que 51 episódios de “O Homem do Rifle” foram por ele dirigidos. No entanto Joseph H. Lewis conseguiu neste “Obrigado a Matar” algo não muito comum que era ver Randolph Scott atuando com maior boa vontade e empenhado até mesmo em participar de uma luta corporal contra o gigante Don Megowan, numa das melhores sequências deste western.
Delegado marcado para morrer - A história original teve o título “The Marshal of Medicine Bend”, foi escrita por Brad Ward e roteirizada por Kenneth Gamet. Não confundir com “Shoot-Out at Medicine Bend” (No Rastro dos Bandoleiros), que Randolph Scott filmaria ao lado de James Garner em 1957. A ação deste “Obrigado a Matar” também se passa na cidade de Medicine Bend onde Calem Ware (Randolph Scott) é o delegado. Hamer Thorne (Warner Anderson) e Cody Clark (John Emery) são dois influentes comerciantes da cidade que com a iminente exploração de minério pretendem dominar Medicine Bend. Para isso precisam eliminar o íntegro delegado e contratam um pistoleiro que tenta matá-lo mas acaba morto pelo homem da lei. Chega então à cidade a artista Tally Dickenson (Angela Lansbury) a quem Hamer Thorne quer desposar sem saber que Tally ainda é casada com o delegado. Tally espera que seu marido abdique do cargo mas ao invés disso seu marido se vê obrigado a enfrentar Harley Baskam (Michael Pate), outro pistoleiro contratado para assassiná-lo. No confronto entre ambos Baskam é morto enquanto Thorne acidentalmente mata seu sócio Clark. A população da cidade se une e prende Thorne, com Calem e Tally indo embora de Medicine Bend.
Tramas amorosas - Um dos mais influentes westerns de todos os tempos foi “Matar ou Morrer” (High Noon) e este faroeste é mais um a mostrar um xerife acuado entre o dever e uma decisão pessoal. Para alterar um pouco o cenário a esposa agora é uma dançarina que insiste para que o marido mude de vida deixando o distintivo e o revólver de lado. A história se anuncia interessante porque há um triângulo amoroso formado pelo conquistador Hamer Thorne e a bela Cora Dean (Jean Parker) que com Thorne traía o marido. Forma-se então um segundo triângulo pois Tally, cortejada pelo mesmo Thorne perde as esperanças de reaver o marido delegado. Raros westerns entrelaçam temas como esses, mais comuns aos dramas urbanos, com a defesa da lei e da ordem. Porém, à medida que a trama se desenvolve prevalece a ação deixando de lado as intrigas amorosas. O que é aceitável pois este é um filme com meros 78 minutos, metragem típica dos ‘double features’, os complementos das sessões duplas dominantes à época. Mas a mudança brusca de rumo torna “Obrigado a Matar” um faroeste comum e é quando o homem da lei enfrenta o temível pistoleiro que o filme decai.
Duelos decepcionantes - Calem Ware é avisado do perigo pela cozinheira Molly (Ruth Donnelly) e a comunicação se faz de modo cômico com a simpática velha senhora batendo no teto com uma vassoura. O delegado já sabe que terá que enfrentar alguém que quer acertar contas com ele, coloca o cinturão, o lenço no pescoço, tudo num ritual e vai tranquilamente fazer a barba, deixando exposto seu revólver dependurado numa displicência imperdoável. O pistoleiro percebe e tenta atirar em Calem Ware que preparara a armadilha e é mais rápido com a Deriger que tinha escondida sobre a toalha. Essa excelente sequência contrasta com o segundo desafio que o delegado enfrenta, que tem início com as mesmas divertidas batidas de Molly no teto com a vassoura. Joseph E. Lewis se notabilizou pelo apuro cênico com enquadramentos diferentes mesmo em filmes de baixo orçamento. Ao colocar frente a frente o novo pistoleiro Harley Baskam e o delegado, este demora uma eternidade para sacar, chegando mesmo a dar a impressão de, propositalmente, permitir ser abatido, sequência que deixa bastante a desejar. Mesmo o segundo confronto entre os dois é inconvincente pois o pistoleiro que alardeava experiência e frieza esvazia o tambor de seu revólver mesmo sem ver o opositor. Aquelas que poderiam ter sido as grandes sequências do filme são frustrantes.
A cidade corajosa - Se em “Matar ou Morrer” o delegado Will Kane luta solitariamente contra o quarteto que quer matá-lo, em “Obrigado a Matar”, ao final, a cidade se enche de brio e impede a fuga de Thorne, num mal explicado pundonor. Isso não impede Calem Ware de deixar a cidade ao lado da esposa, não sem antes fazer um altruístico discurso louvando a coragem daqueles que até então não demonstravam bravura alguma. Calem entende que, agora sim, Medicine Bend está pronta para se defender sem sua ajuda e diferente de Will Kane não atira o distintivo no chão, apenas o devolve educadamente. O australiano Michael Pate é quem interpreta Harley Baskam, ele que em muitos filmes se mostrou bom ator. Mas chega a ser irritante como o afetado pistoleiro em mais uma cópia sofrível do Jack Wilson criado por Jack Palance em “Shane” (Os Brutos Também Amam).
Luta renhida - Chama a atenção também neste western a presença de três mulheres no elenco, excetuada a referida cozinheira Molly. A conhecida Jean Parker, de tantos bons momentos no cinema, é a esposa adúltera que afinal se arrepende e se reconcilia com o marido; a excelente Jeanette Nolan aparece em pequena participação e bem que poderia ser melhor aproveitada; a leading-lady de Randolph Scott é Angela Lansbury que consegue a proeza de ser beijada por ele no filme. Já fora da MGM onde esteve sob contrato por muitos anos, a atriz é acentuadamente mais jovem que Scott e interpreta uma esfuziante dançarina de saloon que quer a todo custo voltar a ser apenas dona-de-casa. Os roteiristas sempre constroem as histórias de forma a que Scott seja, quase sempre, um viúvo e desta vez pouco se preocuparam com a coerência. O ponto alto deste faroeste é a renhida luta travada entre Randolph Scott e Don Megowan, encenação extremamente convincente ainda mais levando-se em conta que em boa parte desse embate o veterano cowboy dispensa o dublê, o que é pouco usual. “Obrigado a Matar” é um filme que poderia ter sido muito melhor mas acaba sendo um faroeste mediano na extensa lista de westerns de Randolph Scott e nenhum brilho acrescenta à filmografia de Joseph H. Lewis.
17/04/25
Onde O Coruja Dorme, 2012, Marcia Derraik & Simplício Neto
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Bezerra da Silva, os compositores, os morros e favelas
Onde a Coruja Dorme por Amanda Aouad, 3 de novembro de 2012
"Não posso cantar amor, porque nunca tive", diz Bezerra da Silva em determinado momento. Ele diz que precisa cantar músicas que denunciem a situação dos pobres, do morro, dos excluídos, isso é que lhe traz verdade. E foi essa verdade que o deixou rotulado como cantos de bandidos, como uma apologia ao que é errado. E é para desmistificar isso e mostrar o que está por traz dessa voz é que surge o documentário Onde a Coruja Dorme.
Realizado pelas favelas cariocas e na Baixada Fluminense, Simplício Neto e Márcia Derraik vão buscar os compositores das músicas que se tornaram famosas na voz do sambista carioca. Pessoas simples, porém muito atentas e inteligentes que se utilizam da música para falar de sua própria realidade. Pessoas do povo, trabalhadores braçais em atividades diversas. Tem bombeiros, carteiros, técnicos de refrigeração, pedreiros, cobrador de ônibus, e claro, muitos trabalhadores informais, como camelôs. Mas, todos ligados pela possibilidade de estravasar através da música.
É interessante a forma como Bezerra da Silva se relaciona com todos eles. O documentário mostra um pouco dessa rotina de busca por música e as diversas formas delas chegarem ao cantor. Por vezes, o compositor é tão simples, que é semi-analfabeto e não tem noção de partitura, notas ou como registrar seu invento. Eles vão à casa de Bezerra, cantam, ele grava em um gravador simples e decodifica a obra que poderá ser gravada por ele. Como ele mesmo diz, é de se admirar pessoas assim, mais do que aquele que estudou para isso.
Mas, o documentário não se centra no cantor, e sim nesses compositores quase anônimos, a estrutura é construída a partir de seus discursos. Assim, Onde a Coruja Dorme vai discutindo também a própria situação daquelas pessoas. É interessante ver as letras das músicas transpostas de alguma maneira para as falas diversas. Os temas como o malandro vs o vagabundo, na visão deles. Ou o desprezo pelo cagoete (dedo-duro), a relação com as drogas lícitas ou ilícitas, a questão do proibido e a dificuldade de viver de música.
O jogo das editoras musicais que ficam com a maior parte do lucro é cruel e, visto pelo ângulo daqueles trabalhadores simples, é ainda mais complexo. Eles que vêem suas canções ganharem mundo, tocarem nas rádios, ficarem na boca do povo, mas que continuam sendo tratados como artistas menores. Músicos de baixa-renda como define o ECAD. E que estão sempre devendo às editoras que adiantaram algo para que eles editassem a música ali.
A questão das drogas também é outro ponto interessante. Sempre presentes de forma subliminar ou não nas canções, principalmente a maconha. O discurso é o mesmo do visto em várias rodas de intelectuais. O proibido gera interesse e como saber se é bom ou não, se não pode experimentar? Eles questionam também a questão das drogas lícitas, como um sujeito que bebe e fica violento, enquanto aquele que fuma um baseado não arruma confusão. E que a legalização da maconha poderia, por exemplo, resolver o problema do tráfico e da violência.
A consciência deles do mundo em que vivem chama a atenção, derrubando de vez a visão do compositor bandido cantado por Bezerra da Silva, se é que alguém algum dia acreditou realmente nisso. Uma estratégia para diminuir aquele que não é interessante para os grandes grupos, mas que está sempre lá, com seu púbico fiel. São essas manifestações espontâneas que perduram. Não são criadas pela mídia, vão ao encontro dela, com sua verdade.
Onde a Coruja Dorme é, então, um documentário instigante. Com uma construção simples, mas repleta da verdade que povoa as letras das músicas que estão presentes em todo o filme. Uma expressão bela, genuína e que só ganha o nosso respeito.
18/04/25
Rebelião, Jôi-uchi: Hairyô tsuma shimatsu, 1967, Masaki Kobayashi

Crítica | Rebelião (1967) por Kevin Rick 26 de julho de 2021
Obra-prima
Existem filmes que evocam determinadas emoções a partir de seus contextos temáticos, principalmente por como foram trabalhados ao longo da obra, que deixam uma marca profunda no espectador. Dependendo da proposta, podem ser formas de aprendizado, comoção, entre outras dezenas de sentimentos proporcionados pela Arte. Mas existem alguns, ainda mais raros, que deixam verdadeiras cicatrizes. Filmes que perturbam o interior, remexem o âmago e incomodam nosso senso. Rebelião (1967), dirigido por Masaki Kobayashi, https://www.planocritico.com/tag/masaki-kobayashi/ é uma dessas obras-primas.
O filme do lendário cineasta japonês, conhecido globalmente por Harakiri, nos leva ao ano de 1725, durante o período Edo do Japão, para acompanhar a história do vassalo Isaburo Sasahara (Toshirô Mifune), o mais habilidoso samurai do território dominado pelo clã Aizu. Um dia, seu lorde emitiu uma ordem para que o filho de Sasahara, Yogoro Sasahara (Gô Katô), casasse com uma de suas mulheres, chamada Ichi (Yôko Tsukasa), após a moça contrariar os desejos do governante. Ainda que resistentes à decisão injustificada, Isaburo e Yogoro aceitam a mulher e o matrimônio em prol da obediência e proteção do nome familiar. Surpreendentemente, Ichi é uma esposa, mãe e ser humano exemplar, resultando no casal verdadeiramente se apaixonando e vivendo felizmente, até que a morte de um herdeiro faz com que o senhor do clã reverta sua ordem, requerendo o retorno de Ichi a seu castelo. Frente a isso, pai e filho se rebelam contra a injustiça.
No início de Rebelião, vemos Isaburo junto de seu amigo/adversário Tatewaki Asano (Tatsuya Nakadai), participando de um típico exercício samurai. A câmera de Kobayashi evidencia a espada, os cortes e o rosto enérgico dos personagens. Vemos o icônico Bushido. Entretanto, logo em seguida, Isaburo afirma para Asano que é dominado pela família da sua esposa há 20 anos, resignado ao papel de proteção familiar acima do caminho do guerreiro. Com poucos minutos, Kobayashi subverte o subgênero, continuando sua abordagem de crítica à tradição samurai de Harakiri, mas, ao longo da fita, procura caminhos mais, digamos, domésticos, para fazer o tratamento de desnudação da mítica do samurai. É, na verdade, uma obra voltada para o âmbito do drama familiar buscando a experiência da indignação.
Toda a estrutura narrativa e a imagem do filme são voltadas para a construção tijolar do ódio causado pelo aprisionamento da rígida e injusta ordem social. Kobayashi inicia com a já dita exposição da verdade trágica de um grande guerreiro subjugado pelos deveres familiares, e vai colocando camadas de desigualdade oriundas do autoritarismo, sempre escalonando um sentimento de repulsa com os costumes e a honra deturpada de uma sociedade baseada no enclausuramento de vontades e emoções. Narrativamente, grande porção da obra ocorre através de manobras diplomáticas da família Sasahara para escapar da autocracia, mantendo o espectador atento com as negociações, o desejo de independência e a maneira que sofrem com mentiras e golpes de todo um coletivo fundamentado em opressão. O enredo do abuso de poder é desenvolvido em um progresso de vínculo entre a audiência e os reprimidos que se veem cada vez mais engajados em protesto, raiva e rebelião.
Visualmente, Kobayashi cria o mesmo sentimento de prisão social e cultural. Os cenários, seus planos e até a forma de andar dos personagens, é simétrica e organizada. Ameaças e ordens são proferidas com educação. Sentimentos humanos são colocados de lado de maneira descompromissada em prol da proteção de nome familiar ou aceitação de ordens ridículas. Notem como os personagens raramente se expressam além de formalidades, mas Kobayashi sempre dá close-ups nesses momentos, evidenciado explosões de emoção como algo raro e notável. Superficialmente, tudo é harmônico e proporcional, mas existe uma podridão interior, a distância entre o dever social e o humano – percebam como o casal apaixonado nunca se toca até o desfecho da obra.
É um filme construído imageticamente e narrativamente para proporcionar revolta. As interpretações contidas e cativas emocionalmente, especialmente a performance do semblante derrotista ao sentimento de libertação rebelde de um abrangido Toshirô Mifune, vão sendo soltas pela vontade de autonomia. Como Mifune diz: “finalmente me sinto vivo“. Quando o clímax da rebelião chega, o espectador anseia junto de seus personagens o prazer da desobediência. O desfecho trágico mantém a obra pragmática e frustrante, mas a sensação de alívio da independência de escolhas mantém um sorriso emocional no rosto do espectador que embarca junto com esses personagens em uma experiência de indignação e a força do querer da mudança.
19/04/25
Harakiri, Seppuku, 1962, Masaki Kobayashi

Honor, morality, and ritual suicide, Roger Ebert, February 23, 2012
[Tradução livre] Os filmes de samurai, assim como os westerns, não precisam ser histórias de gêneros conhecidos. Eles podem se expandir para conter histórias de desafios éticos e tragédias humanas. "Harakiri", um dos melhores filmes, é sobre um samurai errante mais velho que dedica seu tempo a criar um dilema sem resposta para o ancião de um poderoso clã. Jogando estritamente dentro das regras do Código Bushido, que rege a conduta de todos os samurais, ele atrai o poderoso líder para uma situação em que a lógica pura e simples o deixa humilhado diante de seus seguidores.
A época é 1630. Samurais desempregados, chamados de ronin, vagam pela terra. Há paz no Japão, e isso os leva ao desemprego. Seus corações, mentes e espadas foram prometidos a seus mestres, e agora eles estão à deriva, incapazes de alimentar e abrigar suas famílias. Seria muito parecido com uma empresa hoje em dia, quando um funcionário leal com longo tempo de serviço é "reduzido". A lealdade só existe de baixo para cima.
No portão da mansão oficial do Lorde Iyi, um ronin maltrapilho chamado Tsugumo Hanshiro solicita uma audiência com o ancião do clã, Saito Kayegu (Rentaro Mikuni). Ele foi solto pelo Lorde Geishu e não tem emprego. Ele pede permissão para se matar no pátio do clã. O ato ritual é conhecido como harakiri, ou seppuku (que é o título do filme em japonês). Ele envolve o uso de uma lâmina curta para a estripação de si mesmo. Depois que a lâmina entra e corta da esquerda para a direita, um mestre espadachim designado fica a postos para decapitar o samurai com um golpe poderoso.
Tsugumo deseja se matar por causa da vergonha de ser um samurai desempregado. Saito lhe conta uma história para desencorajá-lo. No distrito, houve muitos apelos como esse e, em alguns casos, os samurais desesperados tiveram suas vidas poupadas e receberam trabalho do clã ao qual apelaram. Na verdade, eles não queriam cometer harakiri. No entanto, diz Saito, muitos clãs perceberam essa tática. Ele conta a história de Chijiwa Motome (Akira Ishihama), outro rejeitado do Lorde Geishu.
Ele apareceu há pouco tempo aqui neste mesmo pátio, diz ele, pedindo a mesma permissão. Saito a concedeu, mas somente se ele realizasse o ritual imediatamente. Motome deu sua palavra como samurai de que de fato se mataria, mas pediu permissão para fazer uma breve visita pessoal. Saito viu isso como uma tática de atraso e ordenou a Motome que se estripasse ali mesmo. Isso não foi fácil, pois Motome havia penhorado sua espada curta e tinha uma substituta barata de bambu. Como um homem de honra, ele caiu sobre essa lâmina romba e causou grande dano e dor antes de ser decapitado.
Então, como você vê, Saito diz a Tsugumo, é melhor que você seja sincero. "Garanto que sou muito sincero", diz Tsugumo, "mas primeiro peço sua permissão para contar uma história" - uma história que será ouvida por Saito e pelos empregados da casa, que estão sentados solenemente nas bordas do pátio.
"Harakiri" foi lançado em 1962, obra de Masaki Kobayashi (1916-1996), mais conhecido por "Kwaidan" (1965), uma montagem de histórias de fantasmas que está entre os filmes mais bonitos que já vi. Ele também fez o épico de nove horas "The Human Condition" (1959-1961), que criticava a maneira como o Código Bushido permeava a vida japonesa e ajudou a criar o estado de espírito que levou à Segunda Guerra Mundial. E fez "Samurai Rebellion" (1967), sobre um homem que se recusa a oferecer sua esposa a um superior.
Seu tema recorrente, visto claramente em "Harakiri", é que a adesão fanática a códigos de honra, ao atribuir-lhes um valor maior do que a própria vida, cria uma situação em que os valores humanistas são proibidos. A classe samurai acabou criando a classe militarista japonesa, cujos membros foram tão doutrinados a adorar seus superiores que as mortes de pilotos kamikazes e o massacre de soldados em ataques desesperados sob fogo eram vistos não como atos militares, mas como uma busca por uma morte honrosa.
O romancista japonês moderno Yukio Mishima era tão devotado ao código que via sua decadência como a vergonha do Japão, e ele mesmo cometeu seppuku em 1970 depois de liderar seu pequeno exército particular em um levante imprudente para restaurar a honra do imperador. O escritor e diretor americano Paul Schrader contou sua história em "Mishima: A Life in Four Chapters" (1985).
Abrindo de forma semelhante a "Rashomon", em que um homem chega a um portão e começa a contar uma das quatro versões da mesma história, Kobayashi faz um filme em que há apenas uma versão correta da história, mas seu significado depende inteiramente do ponto de vista de quem a interpreta. Quem está certo? Saito, que está determinado a não permitir que a caridade do clã Iyi seja explorada, ou Tsugumo, que está determinado a que Saito e sua família ouçam toda a história de Motome que o levou a cair sobre sua patética espada de bambu.
Não seria correto da minha parte revelar os detalhes da história contada por Tsugumo. O que posso dizer é que ela é de partir o coração. Ele explica que Motome não era um homem que tentava evitar a morte com a desculpa de pedir um adiamento. Ele era um homem cuja honra real humilha Saito e outros burocratas autoritários. Às vezes, é preciso mais coragem para fazer a coisa certa do que para fazer a coisa tradicional. Seguir o Código Bushido libera seus adeptos da necessidade de chegar a suas próprias conclusões morais. "Harakiri" é um filme que reflete a ética situacional, na qual quanto mais você conhece um homem, mais profundamente você entende seus motivos.
A narração da história envolve uma sensação de ritual. Por três vezes, Tsugumo tem o privilégio de escolher o mestre espadachim que o decapitará. Três vezes um mensageiro é enviado para buscar o homem. Três vezes o mensageiro retorna sozinho, com a notícia de que o homem escolhido está se sentindo muito mal para sobreviver. Tsugumo, que obviamente está familiarizado com os servos do clã Iyi, não parece muito surpreso. Ele acabará explicando a ausência dos homens "doentes" produzindo no pátio símbolos dramáticos de sua falta de força interior. Esse é um dos grandes momentos dramáticos de todos os filmes de samurai.
É importante observar como a própria vida do diretor Kobayashi reflete os ideais de Tsugumo. Ele foi um pacifista por toda a vida, mas sua maneira de agir de acordo com suas crenças não foi evitar o serviço militar, mas recusar a promoção para a classe de oficiais, de modo que ele se arriscaria junto com outros recrutas.
Esse filme em preto e branco é elegantemente composto e fotografado para refletir os valores nele contidos. A câmera geralmente assume o ponto de vista de Saito, no topo da escada que leva do pátio à residência oficial, olhando com autoridade para Tsugumo, o humilde peticionário. Em seguida, o ponto de vista inverso de Tsugumo olha para cima, para o homem com poder. As tomadas angulares incorporam os espectadores, que se sentam impassíveis e ouvem o discurso de seu líder e do ronin sem poder. É preciso ter um coração de pedra para não se comover com a história de Tsugumo, mas esses homens nasceram e foram criados para ter esse coração.
A primeira imagem do filme levantará questões na mente dos espectadores. Estamos vendo o símbolo do clã Iyi, o repositório de suas tradições e ancestrais - uma armadura vazia. Eventualmente, esse símbolo será desonrado e exposto como o homem oco que é. E quando ouvimos o raciocínio insensível de Saito, é fácil traçar paralelos com debates políticos mais recentes, em que teorias econômicas rígidas, tanto de esquerda quanto de direita, são citadas como um bom motivo para desconsiderar o sofrimento humano.
21/04/25
Túmulo dos Vagalumes, Hotaru no haka, 1988, Isao Takahata
Crítica | Túmulo dos Vagalumes por Luiz Santiago 26 de janeiro de 2021
[Obra-prima] Akiyuki Nosaka foi um dos milhares japoneses que perderam entes queridos por causa da desnutrição, durante a 2ª Guerra Mundial. Os bombardeios aéreos, o desaparecimento das fábricas e os incêndios nas mais diversas cidades faziam a vida no país cada dia mais difícil, e muitas crianças, adolescentes e jovens tornaram-se órfãos, tendo que se virar sozinhos num contexto de guerra. Em 1967, Nosaka procurou exprimir o seu sentimento de pesar por esse momento histórico no conto Túmulo dos Vagalumes, e foi com base nesse texto que Isao Takahata escreveu o roteiro de Hotaru no Haka, um dos mais icônicos e emocionantes filmes do Studio Ghibli.
O ponto de vista da obra é o da vida em meio ao inferno, partindo de um ponto estético sutil, inclusive com traços originais dos desenhos sendo feitos em tons térreos e não em preto, justamente para filtrar melhor a aplicação de cores e tornar mais difusa a aparência da animação como um todo. Muitas análises trazem à discussão uma possível posição antibélica do enredo, mas o diretor do filme sempre foi muito categórico ao rejeitar esse tipo de visão e chamar a atenção para o cotidiano de todas as pessoas que precisavam sobreviver em um país no meio de uma guerra. O filme faz um recorte específico para o Japão, mas o contexto e a discussão proposta são Universais e, infelizmente, cada vez mais atual. Aqui o cineasta não está apenas interessado em discutir elementos políticos ou morais de um conflito bélico. A guerra é vista como um monstro apartado, lá nos céus, mas capaz de causar extermínios diários. O interesse do artista é discutir o estado físico e psicológico de todos aqueles que transitam entre abrigos, que buscam algum tipo de trabalho, que fazem de tudo para conseguir o que comer e… permanecer vivo.
O filme começa com uma sequência solene, fechando o ciclo de misérias que se seguem à guerra. A trilha sonora já mostra o seu grande poder de construção atmosférica e este é só o primeiro impacto que ela nos trará ao longo de toda a projeção. Em contraste ao menino miserável sentado no chão, vemos pessoas passando apressadas, reclamando “de mais um vagabundo” nas ruas. Esse estágio comportamental endurecido recebe uma linha coesa de construção no filme, numa espécie de “prova de fogo” do caráter e da alma humanas. Ninguém sabe que pessoa sairá de um momento de crise. Alguns indivíduos tornam-se mais sombrios. Outros mais humildes e compassivos. Outros enlouquecem. Outros ainda são dominados pelo seu lado egoísta, utilizando esse sentimento como a maior arma para sobreviver ao inferno e deixando de se importar com qualquer um que não seja ele mesmo. É esse tipo de transformação que Túmulo dos Vagalumes discute, opondo as necessidades de duas crianças às mais diversas posturas dos adultos ao seu redor.
Além desse fator externo, o filme adota como linha central a relação entre os irmãos Seita (Tsutomu Tatsumi) e Setsuko (Ayano Shiraishi). A beleza amarga do reencontro dos dois logo no início da película nos prepara para o que vem adiante, mas, ainda assim, a obra consegue nos destruir pouco a pouco, elencando uma série de necessidades, doenças e tentativas de sobreviver a mais um dia que a dupla adota. E mais ainda: o amadurecimento rápido dos dois não é feito de forma brusca e desalmada. Por mais que Seita procure ser forte e cuidar da irmã, seu choro e sua tristeza vêm à tona aqui e ali, e ele compartilha o luto e a paupérrima vida com a garota, sempre com algum tipo de ingrediente que ganha ares simbólicos, constantemente apontando para o fim. Os vagalumes morrem poucos dias depois de começarem a brilhar. As balinhas de fruta acabam. O arroz acaba. Tudo o que pode trazer algum tipo de conforto e felicidade para esses dois pequenos é repentinamente retirado deles, que mais uma vez são lançados a um estágio de busca, ficando cada vez mais fracos e desesperançados.
Antes da destruição da vida, Takahata nos mostra a destruição dos sentimentos, a destruição da empatia e da forma humana no tratamento entre as pessoas. A tristeza aumenta porque muitas dessas relações são pautadas exatamente pela falta, como na cena em que Seita tenta convencer um lavrador que não tem arroz nem para si próprio. Já a tia dele representa um outro tipo de pessoa nessa equação, aquelas endurecidas e ressecadas pela guerra, enxergando em cada um apenas um instrumento em favor do país e, se este alguém não puder ser um instrumento, então não merece nada. Como disse antes, as discussões trazidas pela obra tornam-se mais tocantes quando traçamos um paralelo delas com a realidade de milhares de pessoas, em todas as idades, que não apenas morrem pela ação direta do fogo das muitas guerras em andamento, mas também por todos os outros males que elas trazem consigo.
EUA no Japão: Crime contra a humanidade
Lista: 3 Filmes para Entender o Japão pós Segunda Guerra
Mortos na Segunda Guerra Mundial
Festa de lágrimas nos olhos Civis mortos no Japão: 350 mil
Os Mortos na Segunda Guerra Mundial – Civis e Militares Civis mortos no Japão: 670 mil
21/04/25
Jornada Inesquecível, The Ride Back, 1957, Allen H. Miner&Oscar Rudolph
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Um xerife vai ao México em busca de um homem procurado nos Estados Unidos. Encontrando-o, ele começa a recuar. Mas é um longo caminho a percorrer, ele tem um cativo relutante e há índios hostis ao longo do caminho. O xerife admite que sua vida foi um fracasso, mas ele planeja cumprir esta missão.
22/04/25
João Sem Medo, 2009, Luís da Matta Almeida
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João Sem Medo, um rapaz como todos os rapazes, que ultrapassa os seus próprios medos através de um fantástico mundo-de-faz-de-conta, ensinando-o a crescer e a lutar pela felicidade
Numa chuvosa tarde de Domingo Gui descobre um livro de aventuras debaixo do pé da sua cama. Colorindo os cenários, vai avançando na história com a ajuda do seu novo amigo João Sem Medo. Fadas, Homens Sem Cabeça, Feiticeiras Com 2 Faces, Dragonas, Homens de Mãos no Chão, metáforas da vida que confrontam Gui para crescer. No futuro de Gui quem sairá vitoriosa: a vida de cabeça erguida ou uma metáfora dela?
Baseado num argumento de Virgilio Almeida e na obra homónima de José Gomes Ferreira. RTP
23/04/25
Conclave, 2024, Edward Berger
“Conclave” é utópica visão sobre a Igreja Católica em bom suspense de Edward Berger
Por Alexandre Cunha 23 de janeiro de 2025
Baseado em livro homônimo, filme tem plot twist que exige muita fé - ou inocência - para considerá-lo crível
Indicado ao Oscar 2025 em oito categorias, Conclave (2024) é um suspense protocolar: ótimas atuações, trilha sonora eficiente, reviravoltas no roteiro e um final que, no mínimo, suscita discussões. Aqui não há inventividade artística ou busca por uma linguagem cinematográfica de vanguarda; o diretor Edward Berger bebe de fontes seguras e conhecidas para conceber seu thriller religioso. Doses de Sidney Lumet, servidas com ingredientes bem experimentados por Costa-Gavras e Roman Polanski. Estas notáveis referências não querem dizer, entretanto, que o cineasta alemão produziu uma obra-prima.
Fundamental entender que o filme é baseado no best seller homônimo de Robert Harris, publicado em 2016. O autor britânico ficcionaliza o enigmático processo de eleição de um novo papa, após o falecimento do último Santo Padre. Restritos à Casa Santa Marta, no Vaticano, para evitar qualquer influência externa, cardeais de todos os cantos do mundo devem decidir o nome daquele que irá liderar os cerca de 1,4 bilhão de católicos no planeta.
O texto de Harris se avizinha dos aspectos literários encontrados nos romances de Dan Brown, escritor conhecido primordialmente por O Código da Vinci e Anjos e Demônios, livros também adaptados para o cinema. Meu entrave com tais obras reside talvez na evidente sensação de embuste destas narrativas; utilizam-se do potencial polêmico de temas como religião para criar, com detalhes fidedignos à realidade, histórias hipotéticas que vendem milhões de exemplares.
A direção de Berger é eficiente na execução de sua premissa básica: consolidar o vórtice de tensão permanente que acomete os personagens. Cineasta hábil na composição cuidadosa dos planos (até aqueles aparentemente banais), o realizador acerta também nas decisões sonoras da produção. Desde os primeiros momentos, a respiração ofegante do decano Lawrence (Ralph Fiennes) é audível e torna-se, durante todo o longa, elemento que favorece a imersão do espectador ao sentimento de intensa aflição do protagonista.
Excelente como o religioso em conflito com a própria fé, mas fiel ao ideal de viver a serviço do povo, Fiennes comprova mais uma vez a sua estatura dramática (principalmente quando atua em silêncio, através de minudências gestuais admiráveis).
O magma sonoro instituído por Volker Bertelsmann – que retoma a parceria com Edward Berger, após assinar a trilha vencedora do Oscar de Nada de Novo no Front (2022) – é mais um ponto de destaque do filme. As tonalidades dos instrumentos de corda servem à premência da situação, tencionando adequadamente os momentos mais enfáticos da trama. Assim como a música, a fotografia de Stéphane Fontaine enaltece a tessitura sufocante das circunstâncias vivenciadas pelos cardeais. A decisão de direcionar os pontos de luz às paredes – relegando os personagens à sombra – é uma escolha narrativamente apropriada.
Como qualidade estética não salva filme, Conclave se fragiliza, paulatinamente, à medida que o roteiro insufla acontecimentos esquemáticos, a partir de diálogos tão desnaturais. A violação do quarto do papa morto, a discussão com a freira (interpretada por Isabella Rossellini, indicada ao Oscar) e suas consequências, o suposto caos social com ataques terroristas e até o simbolismo forçado de parte da capela explodindo; resoluções narrativas que me distanciam do cerne realista do filme. A noção da altipotente igreja católica como uma rinha entre progressistas e conservadores é engraçada; na ânsia pela perpetuação de seu poder no mundo, a escolha do papa seria regida por valores como diversidade e justiça social? Difícil de engolir.
E então, o derrisório plot twist final. Ainda que faça sentido ao modo como o filme valoriza questões de gênero, o desfecho de Conclave me parece tão crível quanto uma mulher ser criada a partir da costela de um homem. Ingenuamente utópico, o fato inverossímil pode ser defendido para quem o considerar apenas uma metáfora a favor dos novos tempos. Incomodaria-me menos se o filme, abraçando explicitamente a ficção, se despisse de qualquer pretensão realística. Não é o caso. Atado aos acontecimentos descritos no material de origem, o filme de Edward Berger é interessante enquanto thriller, mas jamais se desvencilha da trivialidade comum às obras medianas.
24/04/25
Memórias de um Médico, Black Magic, 1949, Gregory Ratoff & Orson Welles
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Review by Disgustipated
[tradução livre] Para fins de seu desenvolvimento profissional contínuo como psicóloga, minha esposa certa vez participou de um seminário sobre hipnoterapia. Quando chegou em casa naquela sexta-feira à noite, ela tentou me enfeitiçar com seus novos poderes de hipnose. Pelo que pude perceber, todo o exercício resultou em um fracasso abjeto. No entanto, talvez por coincidência, acho que fiz mais tarefas domésticas no fim de semana seguinte do que jamais havia feito antes ou jamais fiz desde então.
Em Black Magic (Magia Negra), Orson Welles assume o papel de Joseph Balsamo, um charlatão cigano itinerante com olhos extraordinários e a capacidade incipiente de dominar mentes com o poder da sugestão. Quando a figura histórica do médico do século XVIII, Dr. Mesmer, um fervoroso defensor do conceito de magnetismo animal, se depara com o jovem cigano, ele lhe revela o verdadeiro poder de seu talento. Por mais que o bom médico o exorte a usá-lo como curandeiro para o benefício das pessoas, Joseph vê nisso a oportunidade perfeita para se auto-engrandecer e se vingar de erros cometidos contra ele no passado. Assim, nasceu Cagliostro, o grande e poderoso hipnotizador.
A partir daí, inicia-se uma trama um tanto complicada que acaba sendo um pouco desconcertante no final. A história subjacente é um pouco piegas, mas sólida, só que o fio narrativo do filme tem algumas falhas. De certa forma, um dos principais fatores que contribuem para isso é que o roteiro parece ser, às vezes, apenas um veículo para Orson Welles entrar em cena parecendo embriagado com sua própria importância e exibindo seu magnetismo animal como ator. Na verdade, tem-se a impressão de que não importa o quanto o filme tenha sido mal construído ou o quanto a atuação e o diálogo dos atores coadjuvantes tenham sido risíveis. Assim que Welles agracia a tela com sua presença, o público fica absolutamente hipnotizado pela intensidade de seus olhos, pelo molde de aço de sua mandíbula e pela extraordinariedade de seu físico imponente entre o resto do elenco.
Assim como seu personagem Cagliostro, Welles prende nossa atenção na tela a cada segundo em que aparece. Assim, à medida que o filme avança, uma peça da grandeza de Welles de cada vez, isso é tanto o ponto forte do filme quanto sua fonte de confusão disjuntiva. Isso certamente lhe dá uma noção do carisma que o homem deve ter tido na vida real. Sua carreira excepcional deve ter sido impulsionada por sua capacidade de convencer as pessoas a acompanharem sua jornada enquanto ele perseguia sua visão singular. Não é difícil perceber que Welles pode ter se identificado fortemente com seu próprio personagem nesse filme; na verdade, esse pode ser o filme "autobiográfico" mais esclarecedor que temos de Welles, em seu próprio e estranho estilo.
Essencialmente, ele ainda parece um filme B, o que só é notável pelo fato de que se tem certas expectativas de prestígio quando se assiste a algo ligado ao nome de Welles. Na verdade, quase parece que estamos assistindo a um protofilme de martelo. Basta adicionar cor, avançar cinco anos, espalhar algumas gotas de sangue vermelho vivo aqui e ali e é exatamente isso que você terá. Sem mencionar que, pensando bem, o desempenho de Welles está a um passo de um esforço de Vincent Price.
No geral, esse filme é uma pequena joia exagerada, mas divertida. Eu não sabia que ele existia, então foi uma surpresa agradável para mim. Vale a pena dar uma olhada só por curiosidade e, quando começar a assisti-lo, não conseguirá parar, apesar de sua eficácia um tanto quanto fraca. Talvez não olhe diretamente para a tela se tiver medo do poder que esse filme pode exercer sobre sua vontade. Letterboxd
O Brutalista, The Brutalist, 2024, Brady Corbet
Crítica | O Brutalista (2024) por Luiz Santiago 25 de fevereiro de 2025
Só tem tamanho.
O brutalismo, em sua essência arquitetônica, firma-se como metáfora para a condição humana em O Brutalista, de Brady Corbet. Nascido do concreto aparente — material que desafia a delicadeza ao exibir solidez e fissuras com igual crueza –, o estilo é usado pelo diretor para encarnar um paradoxo: a busca por reconstruir, sobre escombros históricos e pessoais, não somente edifícios, mas identidades dilaceradas. Assim como o béton brut pós-guerra, que rejeitava ornamentos em favor da honestidade construtiva, o protagonista László (interpretado com densidade por Adrien Brody) ergue-se como um edifício em permanente estado de construção, onde cada rachadura expõe a tensão entre a angústia íntima e a necessidade de funcionalidade social. Corbet, ao entrelaçar a estética brutalista à narrativa, não apenas evoca a aspereza do concreto, mas a transforma em linguagem: as linhas brutas da arquitetura cercam a topografia de uma alma traumatizada e em colapso, enquanto as janelas estreitas e o teto alto de um prédio cultural, que tomará a maior parte do filme, sugerem a claustrofobia de quem tenta, em vão, escapar de seus próprios alicerces. No primeiro bloco do longa, o diretor estabelece um diálogo entre a monumentalidade do estilo e a fragilidade do indivíduo, questionando até que ponto a exposição da estrutura — seja de um prédio, seja de um homem — pode ser, ela própria, um ato de resistência ou de autodestruição.
Ambientado no pós-guerra, período de ebulição urbana, explosão demográfica e influxo migratório europeu aos Estados Unidos, O Brutalista entrelaça a jornada do protagonista à estética arquitetônica, usando-a como metáfora sociohistórica ao explorar as contradições de um “sonho americano” que, embora erguido sobre promessas de liberdade, mantém-se aprisionado a estruturas segregadoras de ordem étnica, cultural, de classe e gênero. As formas geométricas austeras e a paleta monocromática do estilo, aqui, se unem a um sistema que oscila entre a utopia modernizadora e a decadência ética, dualidade que Brady Corbet explora através de cenas que se desdobram em alguns bons diálogos. O rosto angustiado de Brody, marcado por sombras duras, denuncia o custo humano por trás de ideais grandiosos. Cada close-up do protagonista e cada linha reta do cenário convergem para uma pergunta: até que ponto a integridade pode resistir à corrosão do poder?
A opção do cineasta pelo VistaVision — tecnologia que amplia a escala da imagem com muita precisão — reforça a ambição de traduzir o brutalismo em linguagem fílmica: as composições simétricas, de rigor geométrico obsessivo, ecoam a frieza do estilo, enquanto planos incomuns como os da Estátua da Liberdade (símbolo irônico em meio a narrativas de exclusão), buscam imprimir um peso histórico às expressões de Adrien Brody, cuja ascensão é marcada por xenofobia, classismo, antissemitismo e pelo trauma do estupro. Entretanto, a obsessão formal, aqui, revela-se uma faca de dois gumes: cada enquadramento impecável, cada alusão a pilares e fissuras, acaba por soterrar a dimensão humana sob camadas de grandiosidade estéril. A trama, já fraturada por uma montagem abrupta e personagens relegados a esboços textuais, vê seus diálogos mais contundentes sumirem no vácuo entre o monumental e o íntimo, como rachaduras preenchidas por uma argamassa visual. Corbet, ao priorizar a arquitetura da imagem sobre a fundação dramática, entrega uma obra cuja força plástica, inegável, não compensa a sensação de que, sob o concreto, faltam alicerces narrativos — e o filme, como um prédio inacabado, exibe mais promessas do que moradias habitáveis.
Coube a Daniel Blumberg a tarefa de edificar uma trilha sonora que dialogasse com a aspereza do brutalismo sem ceder ao peso literal; e, em boa parte do filme, seu trabalho é notável. Partindo de acordes metálicos que evocam o impacto de um cinzel sobre concreto, o compositor edifica uma partitura que mostra opressão e libertação dissonantes, onde as batidas ritmadas repetem a cadência de uma construção. Na primeira metade do filme, cada compasso arrastado e cada silêncio abrupto funcionam como extensões coerentes: os ruídos estridentes, as modulações bruscas, o jazz experimental, o piano sincopado e melancólico, tudo ecoa a bruta materialidade do estilo arquitetônico que inspira a fita. No entanto, à medida que as 3h34 desse brutamontes avança, o “mais do mesmo” se instala e a trilha perde sua afiada precisão. O que antes era um contraponto inventivo transforma-se em padrão previsível, amortecendo o impacto emocional e reduzindo-se a uma textura sonora que, embora ainda bela em sua coesão estilística, cansa pelo excesso.
Encarnando um protagonista cuja jornada se entrelaça à ascensão profissional e às tensões sociais, Adrien Brody esculpe uma performance tão contida quanto uma estátua: precisa em seus contornos, mas fria na superfície. O espectador decifra a dor, mas não a internaliza, como se o personagem estivesse eternamente confinado atrás de paredes de cimento armado. Guy Pearce e Felicity Jones cumprem funções narrativas com a eficiência de colunas estruturais: Pearce, com sua postura hierárquica, e Jones, com uma fragilidade calculada, sustentam seus momentos, mas não os transcendem. Até mesmo as cenas de sexo são executadas com uma frieza que nega o caos do desejo, reduzindo-o a coreografias mecânicas — isso poderia ser uma crítica à baixa libido e à consequente condução da energia do indivíduo para a arte/trabalho, mas o diretor não realiza esse trajeto, de modo que os dois momentos íntimos e consensuais da película são patéticos, seja na intenção, seja na maneira como foram filmados.
Denunciando o preço do sonho americano, o longa analisa a ascensão e a queda de alguém preso entre a redenção pessoal e as exigências de um sistema que constrói esperança e desilusão — refletindo, em tese, as contradições históricas e culturais de imigrantes do século XX. Mas é aqui que desaba o prédio mal calculado. Pensamos na cena do estupro em Carrara: um golpe baixo narrativo. Não por ser brutal (o tema exige brutalidade), mas por ser narrativamente desprezável. A violência de classe e o abuso de poder já estavam firmados na história, portanto, inserir aquela sequência não criou ou revelou nada novo, apenas repisou o óbvio com algo infame. Como consequência, há a cena em que Erzsébet revela a verdade para a família Van Buren, um momento que não leva a lugar algum porque Corbet o reduz a pó, cortando a cena na hora de sua compensação, como se tivesse medo de encarar as consequências do que ele mesmo criou. E daí passamos para um epílogo de tom professoral, com uma estética fora de lugar e uma reticência que não é ambígua, é simplesmente preguiçosa. Parece que o filme, após horas cavando fissuras sociais, resolve tapar tudo com a pior argamassa do marcado.
A obra até tenta atravessar tempo e espaço com simbolismos, mas não passa de um esqueleto arquitetônico que se gaba de sua grandiosidade. Seus acertos estão lá: imponência visual, reflexões sobre poder, arquitetura, identidade, e um pequeno ensaio sobre contradições humanas. No entanto, seus vergalhões tortos chamam ainda mais atenção, começando pelo roteiro, que oscila entre querer ser um manifesto emocional e um tratado estético e social, que, infelizmente, perde o equilíbrio. As referências históricas e culturais, embora potentes (junto com a direção de arte), são enterradas sob camadas de didatismo (aquele epílogo, gente…) e o pior: parecem mais fascinadas por exibir suas próprias estruturas do que por dar-lhes sentido. O Brutalista prometia ser um edifício fílmico onde dor e reconstrução coexistiriam, mas preferiu ser um showroom de técnicas que pincelam momentos interessantes e nunca permite que avancem. O concreto brutalista não mostra um retrato das nossas contradições; apenas as repete. E quando a estrutura desmorona, restam entulhos de ideias: pedaços de blocos porosos erguidos sobre a mesma fragilidade que quiseram denunciar.
27/04/25
Caros Camaradas - Trabalhadores em Luta, Dorogie tovarishchi, 2020, Andrei Konchalovsky
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Crítica | Caros Camaradas – Trabalhadores em Luta por Frederico Franco 1 de agosto de 2021
Cabeça fria, coração quente. Endurecer, sem jamais perder a ternura. Lemas que marcam adeptos de correntes comunistas desde os anos de ouro URSS até às décadas mais recentes de nossa história. Essa ideia parte de um ponto central da gênese marxiana que busca se distanciar da dicotomia razão versus emoção; sem paixões irracionais ou a racionalidade escrava dos desejos. A dialética apresenta uma versão dos fatos na qual dever e desejo são elementos indissociáveis. Tese e antítese, posteriormente dando origem à síntese: uma combinação de existência na qual razão e emoção existem por suas diferenças, sem propósito de se anular. Mais curioso, ainda, é trazer esse debate para uma obra com viés abertamente anti-comunista, mas que encontra no tensionamento razão versus emoção seu principal calcanhar de Aquiles. Caros Camaradas é, antes de qualquer coisa, vazio: sem cabeça e sem coração.
O sistema nervoso do filme de Andrei Konchalovsky é constituído de uma aberta crítica ao governo comunista da União Soviética em sua totalidade. A forma que isso se dá, no entanto, beira a um pastiche mal feito. O discurso em si é raso, uma caricatura ocidental dos anos 1960 no leste europeu: a clássica representação de uma atmosfera fria, composta por adeptos comunistas despidos de alma, como máquinas cuja única função é a defesa do partido. O modo como o diretor inaugura suas cenas é um retrato específico de sua preguiça discursivo-narrativa; algum cidadão critica o governo (ou até mesmo o já falecido Stálin) para, logo em seguida, sofrer uma dura e agressiva represália de algum “fanático” comunista. A mise en scène também não se faz muito útil, nem criativa. Sua única função é expor a diferença entre revolucionários frios e árduos combatentes do regime. Caros Camaradas parece não ter autoria: é aquilo que Truffaut, em seu célebre Certa tendência do cinema francês, chamaria de “filme falado”, um realismo psicológico que parece não ter domínio total do veículo cinematográfico; é apenas um meio discursivo.
A caricatura do militante comunista estende seus tentáculos até a protagonista do filme, Lyudmilla. Forjada como uma escultura da cortina de ferro, sua vida é o Partido. A articulação formal de Konchalovsky é uma grande incógnita no que diz respeito à personagem principal. O começo é promissor, quando toda a encenação é entregue às vontades de Lyudmilla, tornando-se o centro das atenções do filme. É um artifício decente, mas que não se mantém nem até o fim da primeira metade da película. Existe uma clara barreira formal entre uma ideia que torna Caros Camaradas uma fenômeno intragável: o diretor claramente não decide entre um retrato personalista ou uma abordagem de maior caráter histórico. No primeiro caso, não consegue criar sequer uma atmosfera de interesse, ou até mesmo intimidade, com o núcleo central dos personagens; no segundo, utiliza-se de uma câmera insípida, que não se propõe a uma abordagem ampla do tema, mas sempre, através do viés liberal, tenta dar dimensões maiores àquilo que retrata. É uma câmera que julga? Que oprime? Que denuncia algo? Não é nada. Som e imagem não são nada mais nada menos que uma estagnação de ideias. A mistura público/privado, não funciona, é um tiro que sai pela culatra. Parece tentar emular Cidade da Vida e da Morte, de Lu Chuan, mas não agride, nem afaga: apenas tenta um pouco de tudo e acaba por ser coisa nenhuma.
Não cabe a esse texto se tornar uma ata sobre os incontáveis usos de desonestidade intelectual de Konchalovsky utilizados para desmoralizar as várias conquistas do proletariado durante o período do governo socialista soviético. A cabeça do filme é um ambiente oco, banhada por ares comuns à ofensiva neoliberal do século XXI. As caricaturas não se perdem ou são subvertidas, são assumidas como o ponto de partida de seus personagens. A própria rigidez da mise en scène perante a inexpressividade das figuras em cena é um recurso óbvio, que se esgota e rapidamente entedia. A paixão que falta, aqui, é a presença do autor. Bebe muito da fonte do também reacionário George Orwell para construir seu texto, porém deixa de lado a câmera. A direção engessada de Konchalovsky transforma o filme em uma experiência pouco agradável, construindo um universo genérico.
Existe um momento no qual o diretor consegue, finalmente, dar alma a seu filme. A cena central de Caros Camaradas, uma repressão de protesto por alguns agentes do governo: é coração. Ao invés de exibicionismo, o diretor acerta em trazer a tensão da sequência para dentro de um pequeno café. Durante a atuação policial, vemos Lyudmilla perdida até encontrar refúgio em um pequeno estabelecimento. E é de uma pequena janela, em um enquadramento nada convencional, que acompanhamos o desenrolar do protesto. Alguns corpos caem, outros correm. O ambiente causa estranhamento e uma sensação de claustrofobia. A questão da perspectiva em profundidade que marca a referida cena é surpreendente e só transforma esse momento em mais caos. Estamos longe do acontecimento, mas vemos de perto seus reflexos. O grande problema: dura muito pouco. O espectador nem ao menos tem chance de aproveitar o único instante de controle de Konchalovsky sobre a mise en scène.
Caros Camaradas é esquecível. Um filme que não consegue se manter enquanto filme, apenas como discurso raso. Sua síntese é um vazio estético, que só é capaz de brilhar aos olhos de alguns através do apelativo anticomunismo. Imprecisões históricas, artificialidade do texto e desinformação; durante a década de 1960, a URSS viveu um de seus últimos grandes momentos econômicos oriundos da política de industrialização stalinista e não vivia envolta de pobreza e fome, como afirmam os personagens de Konchalovsky. Por outro lado, não há coração. Tudo é tão engessado e artificial que nem ao menos consegue criar um pathos decente. Não há catarse, não há identificação. Caros Camaradas é um fiel retrato, isso sim, do insustentável discurso neoliberal que domina os meios de comunicação, que busca bloquear uma solução revolucionária para o caos social instaurado na fracassada sociedade capitalista.
28/04/25
Andor, Série de TV, 2022–2025, 2ª Temp. Criação: Tony Gilroy
ANDOR - Resumo da 1a Temporada vídeo
ANDOR 2: Parte 1 - Vida instável | Análise 2x01 2x02 2x03
ANDOR 2: Parte 2 - Rebeldia x Revolução | Análise 2x04 2x05 2x06
29/04/25
Rogue One: Uma História Star Wars, Rogue One, 2016, Gareth Edwards

Crítica | Rogue One: Uma História Star Wars (Com Spoilers) por Ritter Fan 16 de dezembro de 2016
Depois de assistir Rogue One, a sensação que tive é que esta foi a primeira vez depois que a Trilogia Original foi encerrada em 1983, que algum filme da franquia realmente conseguiu recapturar aquilo que fez de Star Wars Star Wars. George Lucas tentou fazer algo diferente e destruiu os prelúdios. A Disney tentou fazer algo igual e… bem, fez algo igual que é bacaninha e tal, mas que, convenhamos, é apenas mais do mesmo lá no fundo.
Gareth Edwards (Monstros e Godzilla), com roteiro de Chris Weitz (Formiguinhaz, Um Grande Garoto e Cinderela) e Tony Gilroy (o grande nome por trás da franquia Bourne), conseguiram entregar um filme que tem a ousadia que O Despertar da Força evitou a todo custo e o respeito ao cânone que Lucas desprezou com os intragáveis Episódios I, II e II em um pacote cheio de personalidade e, principalmente, diferente de tudo que já vimos nessa galáxia muito, muito distante sem ser algo completamente à parte e divorciado de tudo que veio antes. Um feito que por si só já merece aplausos.
O filme, para começar, assim como foi o Guerra nas Estrelas original de 1977, é completamente autocontido. Ele conta uma história clara com começo, meio e fim (com direito a prólogo), apresentando um grupo de personagens quase que completamente inexistente até esse momento, fazendo-nos simpatizar com eles – ainda que não totalmente, como abordarei mais para frente – e, depois, liquidando-os mais do que completamente, sem dó nem piedade, no melhor estilo Os Sete Samurais e outras obras no estilo “grupo improvável se reúne em prol do bem comum e morre um a um na missão”, algo completamente inédito, nessa escala, em toda a franquia.
E o melhor é que o filme, assim como o primeiro, pode efetivamente funcionar como ponto de partida para todas as três ou quatro pessoas do mundo que ainda não assistiram os demais filmes, algo que nem mesmo O Despertar da Força permite completamente. Claro que assistir Rogue One conhecendo a Trilogia Original permite outra camada de apreciação, mas, em um sinal de roteiro bem escrito, nenhuma referência ao universo já conhecido dos fãs é intrusiva ou de alguma forma atrapalha a narrativa, algo que é um verdadeiro alívio para o mundo em que vivemos hoje, em que roteiros são praticamente escritos ao redor de referências. E o melhor dessa constatação é que Rogue One, se pararmos para pensar, nada mais é do que uma imensa referência única, mas que, de tão bem estruturada e desenvolvida, funciona de maneira independente.
Rogue One, no entanto, não é um filme sem problemas, como, aliás, nenhum filme da franquia realmente é (ou, mais genericamente, nenhum filme é). Como justificar então as cinco estrelas? Muito simples. Assim como acontece em Uma Nova Esperança, O Império Contra-Ataca e O Retorno de Jedi, os defeitos existentes ficam soterrados debaixo da sinfonia regida por Edwards em um trabalho hercúleo de “criação e destruição” de universo como raramente se vê por aí.
Como falei dos defeitos, talvez seja interessante, então, começar por eles.
Prefiro beijar um Wookiee!
A Trilogia Original e, até certo ponto, – com ressalvas – a Trilogia Prelúdio têm como grande característica quebrar o molde pelos quais se fazem efeitos especiais. A Industrial Light & Magic praticamente estabeleceu as “regras” da nova geração de efeitos práticos e estabeleceu as bases para os hoje useiros e vezeiros efeitos em computação gráfica, tão diluídos por mau uso. Em Rogue One, o trabalho dos efeitos em geral volta a nos dar uma forte impressão de “mundo vivido”, mesclando muito eficientemente efeitos práticos com computação gráfica.
Diversos alienígenas são criados unicamente com o uso inteligente de maquiagem e próteses e quando há fusão de efeitos digitais, eles funcionam de maneira transparente. Mesmo os efeitos exclusivamente digitais são bem utilizados aqui, sem exageros artificiais (talvez com exceção do monstro cheio de tentáculos que brevemente vemos torturando Bodhi Rook) e todos bem costurados com as imagens capturadas em “película”. As batalhas espaciais merecem particulares aplausos, por oferecerem fluidez e uma sensação de “peso” a cada nave, seja pequena, grande ou gigantesca, algo que fica patente nas aparições da Estrela da Morte – em sensacionais ângulos inéditos – e na manobra que a corveta Hammerhead faz ao “empurrar” um Destróier espacial à deriva para cima de outro, resultado na espetacular destruição mútua e, por consequência, do escudo de força ao redor do planeta Scarif.
E, contrastando com os pontos negativos que abordarei em seguida, a captura de performance de Alan Tuddyk – e seu trabalho de voz – para a criação do impagável androide imperial reprogramado K-2SO, é um tour de force magnífico tamanha é sua “realidade” ao contracenar com os atores e lidar com os cenários físicos ao seu redor.
Mas não há como deixar de fora os dois elefantes digitais que torpedearam a imersão no filme: o Grão Moff Tarkin e a Princesa Leia. E eles merecem análises separadas.
Tarkin foi vivido magnificamente por Peter Cushing em Uma Nova Esperança. O ator, que se notabilizou por suas atuações em clássicos do horror, faleceu, porém, em 1994 e sua volta – extremamente necessária para que Rogue One pudesse ser “encaixado” na mitologia já estabelecida – poderia acontecer de três formas: por meio de um novo ator e uso de maquiagem prática, por meio de truques de câmera e um roteiro que permitisse o uso de personagem em momentos cirúrgicos e apenas na penumbra ou – o mais arriscado e o que foi feito – por meio do uso pesado de CGI.
A não ser que o espectador não faça ideia que Cushing faleceu ou que tenha percepção visual prejudicada, é impossível não reparar que há algo errado com o personagem. Por mais que esforços tenham sido empregados para dar vida ao “boneco digital”, ele ainda parece o que é. A tecnologia talvez ainda não tenha chegado ao ponto para que seja possível trazer de vota à vida atores falecidos (imaginem as possibilidades!) e o uso relativamente extenso de Tarkin em Rogue One deixa isso à mostra. A própria Disney, ao rejuvenescer Michael Douglas em Homem-Formiga e Robert Downey Jr. em Capitão América: Guerra Civil, já havia impressionado com a tecnologia, mas o que é feito aqui ainda não tinha paralelo na Sétima Arte: a reconstrução total de um ator falecido e sua inserção efetiva em uma produção cinematográfica de peso. O resultado fica aquém do que se poderia esperar – personagens fictícios e não exatamente humanos como Gollum funcionam melhor justamente por não tentarem espelhar a realidade -, mas, tenho certeza, foi o melhor possível.
Mesmo, porém, com esse “elefante digital quebrador da quarta parede”, o caso de Tarkin é perfeitamente justificável e, muito sinceramente, prefiro sua presença assim do que sua ausência ou de seu uso limitado. Tarkin é o comandante da Estrela da Morte em Uma Nova Esperança, hierarquicamente ocupa a mesma posição de Darth Vader, contando com amplo respeito pelo Imperador, como vimos no livro canônico de James Luceno. Mesmo que o foco seja no Diretor Orson Krennic (Ben Mendelsohn) em Rogue One, era vital que o vilão que viria a destruir Alderaan fosse explorado, gerando tensão e um senso de conforto aos espectadores. Portanto, a troca, aqui, foi justa.
Já no caso de Leia, ainda que seu rosto seja visto por apenas uns três segundos e ao final da projeção, o momento é como um trem sendo descarrilado (com o espectador como passageiro). Nesses três segundos, um nome me passou pela cabeça: Robert Zemeckis. Várias vezes provando-se um grande diretor, ele tentou desbravar o mundo da captura de performance criando, no processo, pavorosos personagens digitais em filmes como O Expresso Polar e A Lenda de Beowulf. A Princesa Leia parece saída de um desses pesadelos cartunescos de Zemeckis…
E o pior é que, diferente de Tarkin, sua presença era desnecessária à trama. Sua presença de frente, digo. Bastava termos visto a heroína de costas para que toda a mensagem fosse passada. Quando a câmera foca em seu rosto, porém, todo o esforço de se conectar Rogue One com Uma Nova Esperança (com a repetição da palavra “esperança” umas 500 vezes ao longo da projeção…) quase vai por água abaixo. Quase.
Novamente, porém, o resultado do conjunto me impede de tirar pontos do filme por esse problema (Leia especificamente), ainda que eu o reconheça e o execre.
Aquilo não é uma lua…
Weitz e Gilroy trabalharam em cima de uma história criada por John Knoll e Gary Whitta que, francamente, nada mais é do que um amontoado de clichês clássicos constantes de um sem-número de filmes desde a invenção do cinematógrafo. Mas clichês, quando bem usados, podem ser uma dádiva e isso é exatamente o que acontece aqui.
Quantos filmes já vimos que reúnem um bando de desajustados que, de forma hesitante, formam uma equipe em uma missão suicida? Essa é premissa básica de Rogue One, com Jyn Erso (Felicity Jones) sendo recrutada pelo comandante rebelde Cassian Andor (Diego Luna) para ajudar em um plano que envolve seu pai que não vê há 15 anos, um rebelde extremista que cuidou dela como se filha fosse e o ponto fraco de uma estação espacial mortífera do Império cuja construção está chegando ao fim, ameaçando toda a Aliança Rebelde.
O que separa o roteiro do filme da temática batida é como ela é abordada e como seus personagens são construídos. Vão pela janela o didatismo extremo e as conveniências do tipo “ele é especialista em facas, ela é especialista em demolição” e, em seu lugar, entra uma organicidade muito elegante para cada um dos membros da equipe rebelde de um lado e do Império de outro.
Quando o filme começa, vemos um prólogo que estabelece a separação de Jyn de seu pai, Galen Erso (Mads Mikkelsen) e a morte de sua mãe Lyra (Valene Kane). A informação que recebemos em seguida, já no presente, é que Galen, agora, depois de recrutado por Krennic, é o engenheiro responsável pela construção da Estrela da Morte e que um piloto imperial desertor tem uma mensagem que possivelmente vem de Galen endereçada a Saw Gerrera (Forest Whitaker), rebelde de táticas radicais que não compactua com a Aliança Rebelde.
Com isso, a missão é bipartida, como em uma caça ao tesouro. Primeiro uma hesitante Jyn, um frio Cassian e um sarcástico K-2 precisam localizar a tal mensagem, algo que é usado de forma dramática para reunir os demais “membros” da equipe: os Guardiões dos Whills Chirrut Îmwe (Donnie Yen, da franquia Ip Man), cego e “ninja” e Baze Malbus (Wen Jiang), a versão humana do Rocket Raccoon, além do piloto desertor Bodhi Rook (Riz Ahmed, de The Night Of). Reparem como a coisa é feita de maneira orgânica e precisa, sem qualquer artifício narrativo clássico como recrutamento ou coincidências exageradas. Ao contrário, há uma confluência natural e costurada em cima de um ataque contra o Império orquestrado por Gerrera.
O grupo é diverso e cada um tem seu objetivo particular. Na verdade, não é ainda um grupo e eles precisam aprender a lutar como um. Ao mesmo tempo, vemos em Saw Gerrera uma visão de futuro, alguém que, ao longo das décadas, literalmente sacrificou partes de seu corpo, tornando-se uma versão cospobre de Darth Vader, para uma causa que ele sabe tem poucas chances de dar em algo. Seu sacrifício, sua resignação diante da destruição de Jedha é, de certa forma, uma passagem de bastão para Jyn Erso e as ideias da Aliança Rebelde que ele mesmo desgosta em um sinal de que seus métodos no estilo “terrorista” são equivocados.
Encerrada a construção da equipe, a segunda missão começa: a captura (para Jyn) ou assassinato (para Cassian) de Galen em Eadu. Essa sequência funciona como o ponto de virada, como a efetiva formação da equipe. Cassian revê sua vida a serviço da Aliança somente obedecendo ordens sem discutir, Chirrut e Baze tornam-se protetores de Jyn, Bodhi, conforme K-2SO deixa claro, torna-se um rebelde e Jyn, finalmente, tem seu breve, trágico e revelador reencontro com seu pai, Galen, quando ela finalmente percebe quem ela realmente é. Ou melhor, quem ela sempre foi. Afinal, ela foi treinada a vida toda para lutar contra o Império e apenas não ligou os pontos. É como se sua vida começasse ali, na plataforma de pouso chuvosa e escura, segurando o corpo inerte de seu pai.
Com o prólogo e as duas missões iniciais tomando praticamente pouco mais da metade do tempo de projeção, Edwards calibra a narrativa a partir desse ponto para trazer questões políticas de ambos os lados do conflito. A hierarquia imperial é abordada, com o Diretor Krennic entrando em conflito com o Grão-Moff Tarkin (espiritualmente Peter Cushing) e sendo convocado por Lorde Vader para explicar-se, o que inteligentemente já insere o grande vilão da franquia na história de forma a evitar que seu triunfal aparecimento ao final pareça aleatório ou um mero e jogado fan service (que fique claro: é fan service, mas do melhor tipo, já que é um script service também, pois serve à narrativa de forma redonda). Do lado dos Rebeldes, descobrimos exatamente o porquê que eles se chamam Aliança Rebelde, algo que nunca paramos para pensar de verdade, com diversas facções em constante conflito sobre que estratégia tomar e quase completamente se fragmentando diante da ameaça da Estrela da Morte.
A pegada adulta do roteiro se faz presente já aqui, com o esfacelamento daquela imagem clássica dos mocinhos maiores que a vida e sempre certos e resolutos. Cassian é um assassino – quando ele mata seu informante a sangue-frio no entreposto comercial, isso já fica mais do que claro – e os vários membros da Aliança pensam mais de forma egoísta do que no bem de todos e tudo depende da coragem demonstrada pela novata Jyn tentando homenagear a memória do pai para que a maré volte a beneficiar o grupo. E é depois desse “interlúdio” que, então, há o ingresso na terceira e suicida missão: uma ataque à base imperial em Scarif, onde os planos estruturais da Estrela da Morte estão arquivados.
Aqui, a fluidez é de uma sinfonia. Toda a longa e complexa sequência que vai eliminando os personagens um-a-um e caminhando para um desfecho que esperamos, mas não sabemos exatamente como acontecerá, mostra a equipe de Jyn pela primeira vez trabalhando 100% em prol de um único objetivo. Cada personagem tem sua função e ninguém é simplesmente esquecido pela câmera de Edwards. Seja a fé de Chirrut ou a lealdade de Baze ou ainda a vontade de se redimir de Bohdi, cada elemento que fora apresentado em “pedaços” antes ganha sua forma final aqui, tornando relevante cada morte, cada gota de sangue derramada em nome da Rebelião.
O “posfácio” com Darth Vader (voz do octogenário James Earl Jones) é como a proverbial cereja no bolo. Em última análise, lá no fundo, a costura que é feita com Uma Nova Esperança é desnecessária sob o ponto de vista dramático e narrativo, mas ela é tão perfeita, tão fluida e tão bem estruturada que não há como não prender a respiração esperando ver exatamente aquilo que Edwards entrega: ação que vai até poucas horas antes da perseguição da Tantive IV pelo Destróier Imperial de Vader. Um coup de grâce inesquecível da produção.
Boa garoto, mas não fique convencido!
O elenco mais diverso de um blockbuster nos últimos anos e que não precisou se valer de estratégias de marketing para que essa questão fosse abordada, como muitos gostam de laurear por aí, entregam um fabuloso conjunto harmônico que convence a cada momento diante das câmeras. É como ver improváveis escalações para um filme da franquia encaixando-se milimetricamente em um jogo de Tetris. Cada personagem é cuidadosamente composto na medida do necessário para fazer a narrativa avançar e envolver o espectador nessa versão “micro” do vasto universo já criado ao redor, sem que o investimento sentimental atrapalhe a compreensão das funções de cada.
Peguem o veterano Forest Whitaker, por exemplo. Seu personagem é fisicamente fascinante e chama atenção sem que ele precise esboçar qualquer tipo de reação, mas, nos pouquíssimos minutos que ele tem de tela, o ator entrega toda a dor, a paranoia, o peso de uma vida inteira cercada de mortes, fugas e sacrifícios pessoais. Sua dedicação por Jyn fica patente apenas com seu olhar no primeiro quadro do reencontro dos dois. Sua voz alquebrada entrega a emoção na dose necessária para que entendamos o recado sem que Gerrera perca sua figura lendária. Reparem só: um parágrafo inteiro para uma participação de três, talvez quatro minutos, caros leitores…
Ben Mendelsohn, excelente ator que ainda não tivera seu grande papel no cinema o tem aqui em Rogue One. Talvez alguns possam dizer que ele é o vilão unidimensional da história, mas eu diria que esse adjetivo se encaixaria mais para Tarkin e até mesmo Vader. O Krennic de Mendelsohn tem um coração negro, sem dúvida, mas ele, em seu âmago, muito provavelmente age movido pela efetiva crença de que os fins justificam os meios. Se ele tiver que destruir uma meia dúzia de planetas para alcançar a paz na galáxia, ele assim o fará. Por isso sua frieza ao tratar com seu amigo Galen, ao mandar matar Lyra e ao ordenar que seus Death Troopers executem os engenheiros em Eadu. Ele só perde sua compostura quando sua posição na hierarquia imperial é ameaçada, algo que é mais caro a ele do que qualquer outra coisa e que Mendelsohn deixa claro com sua inflexão de voz que mistura deboche com arrogância, seu olhar perfurante e seu perturbador sorrisinho depois de ser enforcado por Vader.
A protagonista, Jyn Erso, vivida por Felicity Jones é uma espécie de anti-Rey. Não há inocência em sua atitude ou sua voz, apenas mágoa, tristeza e conformidade com o status quo, algo que ela reputa como inevitável até a grande virada com a morte de Galen. Seu arco dramático é, sem dúvida, o mais completo, ainda que, possivelmente por direção de Edwards, Jones não componha a personagem de maneira a torná-la alguém com quem o espectador simpatizará automaticamente como acontece com Daisy Ridley e sua Rey. Se duvidar, o objetivo não é fazer o espectador simpatizar com Jyn, mas sim respeitá-la e no mesmo passo que Cassian passa a respeitá-la. Como não tirar o chapéu para uma escolha arriscada como essa, que Jones tira de letra, hein?
Eu poderia dizer o mesmo de Diego Luna e seu Cassian. Sua curva de crescimento é bem menor que a de sua parceira de luta, mas ela existe e é catalisada pela percepção de Chirrut sobre a “prisão interna” que ele carrega consigo para onde quer que vá. Ele é um homem preso às suas convicções e à uma estrutura de comando rígida. Ele não foi feito para duvidar de ordens recebidas. Luna, ainda que tenha de certa forma pouco espaço para trabalhar seu personagem, consegue estabelecê-lo já cedo na narrativa, com a química dele com Jones funcionando muito bem e convencendo-nos da inevitável união pré-incineração ao final.
Mads Mikkelsen é a intensidade em pessoa nos pouquíssimos minutos que tem para mostrar seu trabalho. Seu semblante de dor o acompanha em cada frame e nos identificamos e sofremos com isso a partir dos primeiros segundos dele em câmera no prelúdio. É interessante como o mistério sobre seus propósitos só fica realmente escondido do alto comando rebelde, já que, para nós – e para Jyn – é claro que ele sempre atuará tendo a Rebelião (ou o melhor para Jyn, como ele diz ao deixá-la ainda jovem) em mente.
De forma muito semelhante a Mikkelsen, mas de um lado mais iluminado, temos Donnie Yen que nos mesmeriza com suas habilidades com artes marciais (reza a lenda que ele criou um estilo de luta específico para Rogue One) e cria um Chirrut que é ao mesmo tempo alívio cômico e consciência, em uma mistura de Grilo Falante com “bobo da corte” travestido de ninja-quase-Jedi-mas-mais-Jedi-que-muito-Jedi que rouba toda as cenas em que aparece.
Quando eu o deixei, era apenas um aprendiz; agora sou o mestre.
Mais intensamente do que em O Despertar da Força, Rogue One emula com muita proximidade – e mais realismo ainda – o “espaço vivido” que é marca registrada da franquia (se descontarmos a Trilogia Prelúdio, que mais parece a versão sanitizada desse universo, com seus efeitos especiais de desenho animado). O design de produção é extremamente cuidadoso ao retomar praticamente tudo o que vemos em Uma Nova Esperança sem adicionar invencionices.
O quartel-general rebelde em Yavin-4 é a maior prova disso. As tomadas interiores parecem que foram filmadas com props do filme original. Os computadores, as telas, os botões, os figurinos, tudo ali presente nos transporta de volta a 1977 e nos coloca no exato mesmo universo sem qualquer quebra de continuidade. O mesmo vale para os interiores das naves e bases imperiais que acompanham o desenho já conhecido da Estrela da Morte do primeiro filme. O que é acrescentado – naves diferentes de um lado e de outro do conflito, criaturas inéditas, novas armaduras de tropas imperais e assim por diante – não quebra a impressão original, não nos desloca para fora da narrativa. Muito ao contrário, o que é criado aqui acrescenta ao que já está estabelecido de forma transparente, como se sempre tivesse estado lá.
A fotografia de Greig Fraser é um mundo à parte. Ou vários mundos à parte. Suas experiências como diretor de fotografia em A Hora Mais Escura, Foxcatcher: uma História que Chocou o Mundo e O Homem da Máfia, ajudam na sua composição dos diferentes planetas pelos quais passeamos ao longo da projeção. De um planeta verdejante no prelúdio para um entreposto comercial apinhado de gente em um cinturão de asteroides, passando por um planeta semi-desértico, outro com rochedos e chuvas torrenciais, culminando com um paraíso caribenho, vemos seu trabalho mudar completamente e adaptar-se às demandas da narrativa. Planos gerais são contrapostos a planos médios e americanos usados para trabalhar o tom de ameaça e a proporção do poder bélico do Império vis-à-vis a pequenez corajosa da Aliança Rebelde. Super wide-shots com a Death Star-rise no horizonte de Scarif ou em proximidade a um Destróier criam a desesperança necessária para criar a urgência das missões de Jyn e equipe, algo amplificado pela maestria na composição das sequências de batalha em terra, o grande foco da fita.
No mesmo diapasão, a montagem de John Gilroy, Colin Goudie e Jabez Olssen coloca o espectador no meio do conflito, mas sempre mantendo-o ciente do que o cerca, sem que cortes velozes demais façam as sequências perderem sua lógica narrativa quando isto não é necessário. Até mesmo a clássica montagem paralela final, com ações dentro da torre, no solo e em órbita de Scarif mantém uma estrutura compassada e perfeitamente distinguível a todo momento. Nesse aspecto, basta comparar com a confusão do final de A Ameaça Fantasma para notarmos rapidamente como um bom trabalho de planejamento prévio faz diferença sempre e isso considerando que Rogue One passou por extensas refilmagens e alterações da montagem na pós-produção.
Você não é um pouco baixo para um Stormtrooper?
Rogue One é o primeiro longa-metragem de cinema da franquia Star Wars que não conta com trilha sonora composta pelo mitológico John Williams. Uma escolha arriscada, mas correta. Assim como houve a eliminação dos famosos letreiros de abertura que marcam os filmes, séries, quadrinhos e games neste universo (algo que, confesso, trouxe-me estranhamento ao mesmo tempo que admiração), a substituição de Williams era importante para quebrar a “linha melódica” dos filmes “numerados”. Rogue One é para ser diferente e a manutenção da linguagem musical deste grande compositor poderia engessar o filme.
Alexandre Desplat (O Grande Hotel Budapeste, Godzilla) foi o escolhido para compor a música do filme, mas as refilmagens atrasaram a montagem e ele precisou seguir seu próprio caminho com outros compromissos. Um grande nome se foi, mas outro grande nome entraria no barco já próximo de ser atracado: Michael Giacchino, compositor de carreira meteórica e responsável pelas trilhas de Lost, Up – Altas Aventuras, Ratatouille, os três filmes do reboot de Star Trek e Doutor Estranho.
Mesmo assim, dois fatores conspiraram contra ele: tempo e expectativa. Afinal, ele foi chamado para “tapar buraco” e teve que correr com seu trabalho em um espaço de tempo menor do que o já costumeiramente curto tempo que os compositores têm para entregar suas obras para filmes. Mas a expectativa era seu maior inimigo talvez e é muito fácil descartar o que Giacchino fez por não ter nenhuma composição bombástica como a faixa título de Star Wars ou a Marcha do Império. E, de fato, não há.
A trilha de Giacchino, aqui, faz algo corajoso. Teria sido um caminho mais simples se eles simplesmente retrabalhasse temas clássicos de Williams, dando seu toque. Mas, assim como ele fez com o reboot de Star Trek, ele escolheu partir substancialmente do zero. Pode ser que ele não tenha alcançado a mesma qualidade do que ele fez na franquia rival, mas uma nova música tema não era necessária aqui. Suas notas primam pela sutileza, pelo silêncio quebrado por uma trilha de cunho utilitário que ele constrói em cima dos conceitos musicais de Williams.
Mas ele faz sim sua própria marcha, uma que é específica para Rogue One e que perpassa toda a trilha depois de apresentada na faixa inicial do prelúdio sobre o título em tela. Esse tema, que se confunde – propositalmente – muitas vezes com o de Jyn, carrega o peso de um drama militar e de uma história que sabemos que não pode acabar bem. Ecos de Marcha Imperial aqui, de tema de Luke Skywalker ali e o resultado é um conjunto harmônico que, se não ficará na memória, certamente é um trabalho mais do que digno para receber o selo John Williams de qualidade.
Esses não são os droides que vocês procuram…
Rogue One é Star Wars em seu coração, mas algo completamente novo em sua execução. A obra de Gareth Edwards faz extenso uso de uma biblioteca de clichês cinematográficos e de referências ao universo criado por George Lucas em um pacote de narrativa cirúrgica repleta de personagens interessantíssimos, ação, drama, momentos inesquecíveis e, sim, um profundo – diria inigualável – senso de respeito a tudo o que veio antes, que consegue apenas ampliar a urgência da Trilogia Original, visto que agora o sacrifício de todos que vieram antes de torna mais palpável.
Este é o filme de Star Wars que esperávamos de verdade. E ele automaticamente se torna o padrão pelo qual todos os próximos serão medidos.
29/04/25
Falstaff, o Toque da Meia Noite, Campanadas a medianoche, 1965, Orson Welles
No iutubi aqui
Crítica | Falstaff – O Toque da Meia-noite por Luiz Santiago 27 de julho de 2011
Com locações na Espanha, Jeanne Moreau no elenco e a junção de episódios das peças Henrique IV, Henrique V e As Alegres Senhoras de Windsor, Falstaff – O Toque da Meia Noite é um filme deslumbrante, mais uma obra inestimável dirigida por Orson Welles.
A paixão do diretor pela Espanha e por Shakespeare trouxeram para a tela uma vitalidade tão simples, tão bela, que é impossível não se emocionar. Essa epifania, no entanto, não é algo barato, é uma consequência gerada pelo grande apuro estético, pela angulação e planificação belíssimas do diretor, pela atuação do próprio Welles e pelo toque cômico dado a diversas situações em que aparece no filme. A oposição entre esse mundo de súditos pobres de um reino corrupto, constantemente em guerra interna e mesquinho trazem-nos não só o núcleo das obras shakespearianas quanto da própria sociedade naquele momento da História.

A montagem é uma aula de cinema rápida, precisa, global, trazendo o máximo de ângulos inspiradores para as sequências, formando uma linha narrativa que está sempre em movimento (externo e interno), assim como a vida do nobre, covarde, boêmio e aproveitador Falstaff. A história do filme, narrada em diversas partes (e sendo ela mesma uma junção de diversas histórias), consegue se estruturar e resolver-se plenamente, além de trabalhar com os temas mais caros à obra de Welles e de Shakespeare.
Uma das melhores sequências de batalhas já filmadas no cinema encontra-se nesse filme. A criação do suspense quanto a visão do avanço das tropas junto a uma decupagem de atrações aumentam a expectativa do público, ao passo que a violência da guerra toma conta da narrativa. É um paradoxo ver beleza no horror da guerra, mas este é um sentimento que nos surge em dado momento da batalha. A semelhança com o embate final de Alexander Nevsky é um deleite à parte.
Orson Welles recria em Falstaff um mundo de cobiça, soberba e traições. Sua atuação no papel principal é lendária, entregando um filme que todo admirador de Shakespeare, Welles e Idade Média deveria ver.
Falstaff – O Toque da Meia-noite (Campanadas a Medianoche, França, Espanha, Suíça, 1965)
Direção: Orson Welles
Roteiro: Raphael Rolinshed (adaptação de obras de William Shakespeare)
Elenco: Orson Welles, Jeanne Moreau, Margaret Rutherford, John Gielgud, Marina Vlady, Walter Chiari, Michael Aldridge, Jeremy Rowe, Fernando Rey
Duração: 113min.
Luiz Santiago
Sou especialista em Cronoanálise Aplicada e Metanarrativas Interdimensionais. Formado em Jadoo de Clio (Casa Corvinal) e pós-doutorado em Psicohistória Avançada (Fundação Seldon), sou portador do Incal e atuo como historiador-chefe em Astro City, mapeando civilizações críticas. Hoje, em exílio interdimensional, desenvolvo protocolos de resistência psíquica e coordeno operações linguísticas em Torchwood, decifrando sistemas de comunicação audiovisual e pluri-literárias. Utilizo minha TARDIS como base operacional para simulações estratégicas da Agência Alfa, convertendo crises cósmicas em modelos previsíveis sob o ponto de vista Mystère. Também coordeno a transição para Edena em colaboração com o Dr. Manhattan, mudando o eixo ontológico universal para ascender ao encontro definitivo com a Presença.
30/04/25
The Last of Us, Série de TV, 2023, 2ª Temp. Criação: Craig Mazin & Neil Druckmann

Crítica | The Last of Us – 2X03: O Caminho por Kevin Rick 29 de abril de 2025
Preparação de rota.
Depois da balbúrdia de Através do Vale, era de se esperar que o episódio seguinte fosse um pouco mais de transição e preparação, lidando com as consequências do ataque à Jackson e a morte trágica de Joel. Apesar disso, sei que muitas pessoas não vão gostar da cadência de O Caminho, que, sim, tem alguns problemas que abordarei mais à frente, mas que de maneira geral é um capítulo de fundação importante para o restante da temporada, inclusive na mudança de tom que traz para a história do segundo jogo. O começo do episódio até que lida de maneira direta e imediata com a reação dos personagens, em especial Tommy e Ellie, com destaque para a fotografia de um universo em chamas e para a cena de Ellie gritando no hospital junto de uma edição cruel ao relembrar o golpe final de Abby.
O bloco, porém, é rápido, dando seguimento com um salto temporal de três meses. Por um lado, sinto que a elipse rouba um pouco do sentimento de raiva do momento, do que os personagens passaram ali e do próprio caos que foi estabelecido na semana passada. Mas por outro lado, gosto bastante do encaminhamento dramático que o texto de Craig Mazin cria aqui, dando uma tônica de melancolia e luto que talvez não fosse possível sem o salto temporal. Não vou entrar demais em detalhes e comparações com o segundo jogo, mas o material original é agressivo e mergulha de cabeça na trama de vingança, algo que a adaptação parece querer evitar, pelo menos nesse momento inicial, com um capítulo que é praticamente um funeral, dando tempo para os personagens e a audiência absorverem a perda, bem como para organizarem suas emoções antes de saírem para a selvageria.
Nesse sentido, O Caminho foca bastante na questão da comunidade. Como pessoas se reconstroem depois da destruição e como o dilema entre justiça e vingança ganha a frente temática aqui, com a discussão do grupo realçando a problemática entre o coletivo e o indivíduo, algo que está na essência das situações impossíveis da série, com sugestões dos sentimentos egoístas de Ellie similares aos de Joel que dão início ao seu novo arco, com destaque para a presença de Gail, uma espécie de radar moral que joga pequenas bombas verbais na sua falsa despretensão. Peter Hoar faz um trabalho visual singelo e adequado para o direcionamento dramatúrgico, apresentando um senso de normalidade para Jackson, ao mesmo passo que não nega os diálogos soturnos e complicados do roteiro denso. O diretor chega a propor algo quase minimalista, com destaque para a montagem e para a fotografia belíssima da viagem de Ellie e Dina, uma jornada que, de início, se esquiva de um tom de urgência ou de um drama sombrio para dar palco à vulnerabilidades, piadas e flertes românticos (gosto muito da cena da tenda, desenvolvendo com paciência os questionamentos e sentimentos ocultos das duas).
Entendo que o ritmo dilatado frusta um pouco e até vejo que falta um certo rigor da edição para algumas cenas, mas O Caminho é um episódio bem humano e bem intrínseco em seu olhar para relacionamentos, dinâmicas e laços, seja da comunidade de Jackson, seja entre Dina e Ellie. O escanteamento do terror nem sempre desce comigo, mas a falta de infectados ou de antagonistas humanos aqui não é um problema, até considerando a abordagem narrativa de expansão de universo e preparações com outras facções. Se falta tensão, temos intriga com a apresentação de uma comunidade religiosa que é brutalmente assassinada pelo grupo paramilitar que Dina e Ellie estão perseguindo. Entre um sentimento de desolação e de exploração pelas grandes paisagens do episódio, a jornada até Seattle começa a mostrar suas garras em uma rota de colisão com um perigo bem maior do que a dupla de Jackson acredita ser, no que é um baita episódio de estabelecimento.
Diria que meus problemas com O Caminho são de outra ordem. Primeiro que tenho sentimentos mistos com o trabalho feito com Tommy. Diferente do jogo, Gabriel Luna injeta ternura ao irmão de Joel, o que faz sentido considerando sua posição de líder e o fato do mesmo não ter estado no chalé, mas não sei se compro completamente a passividade do personagem, tampouco a falta que seu papel de catalisador da ação no jogo fará na série (não entrarei em detalhes para evitar spoilers). De qualquer forma, quero ver o que irão fazer com Tommy antes de formar um pensamento completo. Agora, meu problema principal com o episódio é na forma como Ellie é representada como uma espécie de coadjuvante para Dina, com a Isabela Merced roubando completamente os holofotes com seu carisma e sua malícia para preencher a ausência do Pedro Pascal.
Diferente do que parece ser a opinião geral, não acho que a performance de Bella Ramsey seja horrível (nesse episódio mesmo, ela lida muito bem com todas as cenas emocionais), mas o texto de Mazin puxa o tapete dela, que aqui é mais burra, mais infantil e quase sem carisma se perto do que o texto oferece à Merced, que é esperta, tem as melhores frases sarcásticas e ganha a frente da simpatia narrativa na minha visão. Se o restante da temporada quer colocar a produção nas costas de Ramsey – como deve ser -, o roteiro vai ter que suar e veremos se a intérprete consegue entregar. Um detalhe menor é a falta de fisicalidade e de presença de Ramsey se comparada até com a frágil Ellie dos jogos, o que me preocupa um pouco para as cenas de ação (aquela sequência do boxe, por exemplo, é risível…), então me pergunto como a coreografia vai passar isso ao público com um teor verossímil.
Vale pontuar que essas ressalvas são questões mais pontuais e facilmente podem ser resolvidas nos próximos episódios, quando tivermos uma dimensão melhor do papel de Tommy na adaptação e de como lidarão com o arco principal de Ellie. Se o que vemos sendo construído no núcleo de Jackson é um indicativo, podemos ter uma derrocada digna do material de origem no destino selado da protagonista, melhor descrito na frase de Gail: “Algumas pessoas não podem ser salvas”. Um episódio quieto, O Caminho conquista por seu drama íntimo e cadenciado que filtra os temas sobre vulnerabilidade, companheirismo e, claro, egoísmo da série, mas também prenuncia outro caos coletivo pelas mãos da natureza humana que muitas das vezes deixa a crueldade e o rancor vencer, principalmente quando ideias de ódio ganham fardas e símbolos. A jornada de vingança da Ellie está só começando, então para os mais ansiosos, vamos lembrar que quando a tempestade chegar, são episódios importantes como esse aqui que dão base para o clímax.
The Last of Us – 2X03: O Caminho (The Path) | EUA, 27 de abril de 2025
Criação: Craig Mazin, Neil Druckmann
Direção: Peter Hoar
Roteiro: Craig Mazin
Elenco: Pedro Pascal, Bella Ramsey, Gabriel Luna, Isabela Merced, Young Mazino, Rutina Wesley, Kaitlyn Dever, Robert John Burke, Spencer Lord, Tati Gabrielle, Ariela Barer, Danny Ramirez, Catherine O’Hara
Duração: 57 min.