A Greve, Stachka, 1925, Sergei Eisenstein
Maciste na Terra dos Gigantes, Maciste nella terra dei
ciclopi, 1961, Antonio Leonviola
Cais das Sombras, Le quai des brumes, 1938, Marcel Carné
Trágico Amanhecer, Le jour se lève, 1939, Marcel Carné
Trenque Lauquen, 2022, Laura Citarella
O Eternauta, El Eternauta, Série TV, 2025, Criação: Bruno
Stagnaro
Louis Theroux: The Settlers, Filme para televisão, 2025,
Direção Joshua Bake, Roteirista Louis Theroux
Noites Brancas, Le notti bianche, 1957, Luchino Visconti
O Conto da Aia, The Handmaid's
Tale, Série de TV-2017–2025 S06, Bruce Miller-
5 Homens Selvagens, The Animals, 1971, Ron Joy
Andor, Série de TV, 2022–2025
S02, Tony Gilroy
The Last of Us, Série de TV,
2023–S02, Neil Druckmann & Craig Mazin
O Barão Aventureiro, The Baron
of Arizona, 1950, Samuel Fuller
O Libertino, The Libertine, 2004, Laurence Dunmore Redação:
Stephen Jeffreys
José Lino Grunewald: Ingmar Bergman &
Robert Aldrich et cetera
30/04/25
A Greve, Stachka, 1925, Sergei Eisenstein
No iutubi aqui
Crítica | A Greve (1925) por Luiz Santiago 28 de abril de 2025
À luta!
Com um vasto elenco do Proletarskaia Kultura (Proletkult) e imbuído das
teorias dramatúrgicas de Meyerhold, Sergei Eisenstein,
aos 26 anos, dirigiu A Greve (1925), seu primeiro longa-metragem. Esta obra
visionária oferece uma perspectiva didática sobre a união dos trabalhadores
contra a exploração e as injustiças no ambiente fabril, ecoando as lutas que
precederam a Revolução de Outubro de 1917.
Com um vigor revolucionário, o filme captura o espírito de resistência
coletiva, utilizando o cinema como ferramenta de conscientização. Inspirado por
um evento real — uma greve brutalmente reprimida na Rússia pré-revolucionária
–, Eisenstein constrói uma trama universal, capaz de representar qualquer
movimento operário pressionado por forças patronais/governamentais/elitistas,
consolidando sua relevância atemporal.
Baseado em uma cessação coletiva do início do século XX, A Greve retrata
com fervor político e sofisticação estética o cotidiano fabril, as injustiças
impostas por empregadores e fiscais, a mobilização dos trabalhadores, os dias
de paralisação, a elaboração de demandas coletivas, a reação dos acionistas e o
trágico massacre dos manifestantes. Tudo isso é orquestrado por meio da
“montagem de atrações”, pilar da teoria de Eisenstein, que prioriza um herói
coletivo em vez de indivíduos destacados. A narrativa visual, experimental para
a época, reflete os primeiros passos do cinema soviético, mas também dialoga
com inovações globais, oferecendo uma visão crua e poética da luta de classes.
Essa abordagem, embora desafiadora, mantém a coesão temática, mesmo diante de
eventuais ambiguidades narrativas da fita, sobre as quais falarei adiante.
A singularidade de assistir A Greve décadas após sua estreia reside em
sua recusa em contar uma história convencional, optando por afirmar uma ideia.
Lançado quando o cinema narrativo já estava consolidado e o som era iminente,
o filme de Eisenstein não se curva às convenções. Ele é um “cine-punho”, um
chamado à luta que ressoava intensamente em um país recém-saído de uma
revolução e sob os primeiros anos da Nova Política Econômica (NEP). Apesar
disso, a obra gerou divisões: enquanto o Proletkult, o Partido Comunista e
parte da sociedade soviética questionaram sua abordagem, a imprensa celebrou a
inovação e a potência dramática de Eisenstein. Essa polarização sublinha o
impacto de um filme que, mesmo experimental, conseguiu transmitir sua mensagem
com clareza e ousadia.
O grande trunfo de A Greve está na montagem, tanto nas comparações
metafóricas quanto no ritmo narrativo. Como obra política, o filme apresenta
caricaturas mordazes — o “capitalista gordo” equiparado a animais ou os espiões
e traidores ridicularizados visualmente. Essas imagens, justapostas a cenários
realistas, objetos, animais ou elementos naturais, revelam o meticuloso
trabalho de Eisenstein em criar paralelos visuais que reforçam sua mensagem sem
sacrificar a unidade estética. Apesar de uma sequência ocasionalmente confusa
(como a interação dos grevistas com a campainha da fábrica, que sugere uma
incoerência pontual), o filme mantém sua integridade ideológica. Essa riqueza
simbólica, aliada à plasticidade das cenas, demonstra a habilidade do diretor
em transformar ideias abstratas em imagens concretas e historicamente impactantes.
A inteligência na composição visual, o fluxo coeso de ideias e a
plasticidade das cenas — fruto do trabalho excepcional dos três diretores de
fotografia: Vasili Khvatov, Vladimir Popov e Eduard Tisse — elevam A Greve a um marco do cinema mundial. A edição confere sentido final à
obra, transformando o que poderia ser uma ideia simples demais numa experiência
cinematográfica poderosa. Embora haja exageros na representação dos “atores
históricos” de ambos os lados, esses elementos alimentam discussões críticas e
enriquecem a leitura do filme. A Greve não apenas inaugura um novo modelo de
fazer cinema, mas também estabelece a teoria de montagem de Eisenstein, que
influenciaria gerações de cineastas. Sua importância histórica, estética e
política permanece inegável, consolidando-o como uma obra obrigatória em
múltiplas dimensões.
A Greve (Stachka) – União Soviética, 1925
Direção: Sergei M. Eisenstein
Roteiro: Sergei M. Eisenstein, Grigori Aleksandrov, Ilya Kravchunovsky,
Valerian Pletnev
Elenco: Maksim Shtraukh, Grigori Aleksandrov, Mikhail Gomorov, I.
Ivanov, Ivan Klyukvin, Aleksandr Antonov, Yudif Glizer, Anatoliy Kuznetsov,
Vera Yanukova
Duração: 82
min.
OUTUBRO -Octobre - Oktobre (1928), Sergei Eisenstein aqui
O Encouraçado Potemkin (1925), de Serguei Eisenstein, aqui
....
A greve
Review by Neil Bahadur (tradução livre)
Mais moderno do que qualquer outro filme que vi em 2018: não basta
mostrar os abusos do sistema, ou simplesmente mostrar que ele existe - é
preciso ver suas complexidades e funções. Porque, caso contrário, você estará
apenas lutando contra o ar. Não obstante o fato de que é preciso ter um talento
quase sobrenatural para que um filme tão brilhante seja o primeiro (nesse
ponto, eu diria que Eisenstein é o único gênio que o cinema produziu, mas isso
é assunto para outro artigo), não é possível mostrar essas funções com o
sistema tradicional de protagonismo ocidental - o próprio cânone é parte da
opressão. Não que a manobra seja reacionária: ao abandonar o protagonista, ou
os personagens, ou a "história", podemos ter um acesso direto e
imediato ao funcionamento de um sistema ou programa - não há necessidade de
outras bobagens. Os "momentos" dos personagens são apenas um meio
para atingir um fim - o casal brigando, por exemplo, que retrata não apenas um
casal brigando, mas como o colapso do trabalho dentro de um sistema capitalista
ainda rompe seus relacionamentos básicos - OK, finalmente os trabalhadores
estão em greve. Mas agora não há dinheiro entrando e sua família está começando
a passar fome.
A greve merece seu próprio ensaio - cada sequência é uma aplicação de uma nova
técnica para divulgar mais sobre cada conceito. Eisenstein não tem tempo nem
mesmo para saltos no tempo e no espaço, ou para colocar a modernidade na
história, como em Outubro - tudo é puro materialismo. Isso não quer
dizer que o filme seja completamente árido: muitas vezes é bastante engraçado,
e a sequência da eventual greve, com seus trabalhadores correndo pela fábrica,
está entre as coisas mais bonitas que Eisenstein já filmou. Mas além de suas
imagens e ritmos impressionantes, ou de suas ideias, A greve é, de certa
forma, inovador, não necessariamente apenas por sua política, mas porque
Eisenstein é o raro cineasta cuja compreensão da política e da filosofia é tão
rica quanto sua compreensão da técnica cinematográfica. Na maioria dos
cineastas, é o último dos três. É difícil escrever aqui - resumir o filme
rapidamente é um desserviço completo, dado o fôlego das ideias e dos momentos:
talvez com os maiores cineastas, não seja possível colocá-los de volta em
palavras e, se for possível, isso fala da fraqueza do próprio filme.
Com esses três primeiros filmes (A
greve, O Encouraçado Potemkin e Outubro), Eisenstein se dedicou a fazer uma
grande arte sobre a libertação da escravidão - e é revelador, no entanto, que
Eisenstein nunca mais revisitaria o tipo de derrotismo que vemos no final aqui.
O ponto (ou um ponto), finalmente, é que a posição tradicional dos
trabalhadores e patrões não é diferente da relação entre humanos e gado. Mais
tarde, veremos que a liberdade é possível, mas esse final ainda é incrivelmente
poderoso. Não há nenhum martírio cristão bobo aqui: seu sofrimento não tem
sentido, portanto, siga o programa e entre na modernidade.
E é claro que o trabalho não é romantizado: romantizá-lo não seria
romantizar os trabalhadores, mas as funções em que eles servem à burguesia.
Você estaria romantizando a maneira como eles servem a <você>, não
demonstrando nenhum respeito por eles. É por isso que é miserável, e é por isso
que eles se revoltam. Letterboxd
01/05/25
Maciste na Terra dos Gigantes, Maciste nella
terra dei ciclopi, 1961, Antonio Leonviola
No iutubi aqui
O Povo de Sadok é
aterrorizado por um terrível canibal e gigante Ciclope. Atlas chega a Sadok com
a intenção de derrotar o monstro e salvar a população, mas enfrenta uma outra
batalha.A cruel rainha Capys deseja conquistar atlas e tentará com todo o seu
poder toma -lo para si, agora ele deve derrotar os dois inimigos e resgatar um
bebê descendente de Ulysses, das garras do faminto Ciclope. Filmow
02/05/25
Cais das Sombras, Le quai des brumes, 1938,
Marcel Carné
Crítica | Cais das Sombras por César Barzine
25 de janeiro de 2023
Num diálogo com o noir, Carné cria uma obra
romântica sobre o pessimismo e pessimista sobre um romance.
O andarilho à beira da estrada que pega carona
com um caminhoneiro desconhecido é o primeiro sinal de pura amargura que há em
cada instante e componente de Cais das Sombras. Esta produção de Marcel Carné é
daquelas que abraça a tristeza por completa, destilando sem parar a melancolia
na atmosfera do filme e toda uma perdição na composição dos personagens. A
história é a de um casal cuja principal marca é essa angústia, e, através de um
desenvolvimento circular, faz com que todo o percurso deles gire em torno
disso: o momento antes de se conhecerem, o início da relação, a consolidação da
paixão e o desfecho dela – que finaliza seu arco da única maneira possível: com
ainda mais angústia e perdição.
Jean, um desertor do exército, conhece Zabel
em condições aleatórias numa modesta casa de um conhecido em comum. A união dos
dois não possui maiores contextualizações, e Jean já deixa claro sua atração
por ela, o que, sem um extenso desenvolvimento, logo se torna um caso amoroso
entre eles. Ambos evidenciam em vários momentos o principal ponto de
compartilham: a falta de perspectiva para com a vida, de se sentirem isolados e
carentes. E é aqui que fica nítida a escola cinematográfica a qual Cais das
Sombras pertence, que é o Realismo Poético Francês. A questão do realismo se dá
por um aspecto psicológico que se cruza com a condição externa em que os
personagens se encontram. Os dois não se sentem inseridos na sociedade, estão
de alguma forma deslocados, mas não por serem marginais (embora Jean seja um
desertor) ou indigentes, e sim por simplesmente não terem algo a se apegar
(família, casa ou trabalho).
Já o viés poético está no formato com que esse
realismo se concretiza, que é através do romantismo e do subjetivismo. Apesar
da frieza que existe nos personagens, não há frieza no olhar de Carné; sua
abordagem é enfática e sentimental, o que transparece de maneira sublime toda a
dureza que os personagens enfrentam. Temos, assim, a união de realismo e poesia
que colocam o longa dentro de seu movimento cinematográfico. Porém, mais do que
isso, Cais das Sombras abre diálogo com outro campo do cinema, que é o filme
noir.
Evidentemente, não dá para encaixá-lo nessa
categoria, pois o noir é um subgênero americano que só viria a existir alguns
poucos anos depois. Mas as semelhanças entre essa produção francesa e tal
estilo são evidentes, e podem ser vistas tanto no enredo quanto na estética de
Cais das Sombras. A história envolve conflitos do casal com um gangster que faz
com que o filme flerte com o suspense em seu ato final, levando a situações
exaltantes dignas de qualquer thriller. Além disso, o vazio e a amargura dos
personagens é outra forte característica compartilhada com o noir, em que o
extremo pessimismo é um dos pontos chaves. Por fim, a fotografia e a atmosfera
soturna são outros locais de encontro. Cais das Sombras é um trabalho em que a
noite é uma peça essencial, predominando um clima de quase sempre aflição e com
planos que possuem o típico jogo de luzes e sombras tão presentes no noir – e
aqui, um plano que contrasta as faces de Jean e Zabel em seus momentos finais é
o mais belo exemplo dessa tendência.
Mas não só de tristeza vive o casal, ao passo
que o romance se desenvolve, Zabel descobre a felicidade e toma Jean como o
porto seguro da qual ela tanto necessitava. Uma lindíssima sequência no final
do segundo ato demonstra isso de maneira vibrante, o casal está presente num
quarto de hotel e, através de closes entre planos e contraplanos, a beleza de
Zabel é capturada desta vez de modo claro, e ela, expressa de forma radiante a
alegria em que se encontra. Zabel afirma que na noite anterior Jean disse que
ele a amava; ele, mais frio do que a moça, alega que ela deveria ter sonhado. A
jovem rebate e pergunta se seu parceiro também sonhou. “Eu não sonho’’, diz
ele; “todo mundo sonha’’, reage ela. Apesar de Zabel se entregar à paixão, Jean
não faz o mesmo; e as interpretações opostas de ambos exprimem isso.
Logo em seguida, o protagonista olha o
exterior do hotel pela janela, e um contraplano apresenta o navio do qual ele
irá viajar para a Venezuela sem sua amada. É reforçado o futuro desligamento do
casal, e percebemos mais uma vez que a angústia é o único caminho para aqueles
dois personagens. A história do longa ganha um caráter fatalista: tudo já está
determinado, e a infelicidade é intrínseca à existência daquelas pessoas. O
filme em instantes retorna ao seu clima melancólico e, pouco depois, a mera
contemplação da tristeza chega em seu estágio trágico, fazendo com que o
fatalismo se consolide de vez naquele desfecho – o que é antecipado por uma
trilha sonora com ares etéreos, como se Jean estivesse caminhando para a morte.
Neste final, o mesmo cachorro que havia aparecido na primeira sequência de Cais
das Sombras e acompanhado Jean ao longo de sua jornada reaparece. Ele é o
símbolo da circularidade desta narrativa, o que, ao lado do navio prestes a
partir, de Zabel caindo em desgraça e da neblina reinante naquele ambiente,
demonstra mais uma vez a tristeza como um caminho inevitável naquele mundo.
Cais das Sombras (Le Quai des Brumes, França,
1938)
Direção: Marcel Carné
Roteiro: Jacques Prévert (roteiro), Pierre
Dumarchais (romance)
Elenco: Jean Gabin, Michel Simon, Michèle
Morgan, Pierre Brasseur, Édouard Delmont, Raymond Aimos, Robert Le Vigan, René
Génin, Marcel Pérès, Jenny Burnay, Roger Legris, Martial Rèbe
Duração: 91 minutos.
César Barzine
Redescobri o cinema aos 13 anos, e passei a (tentar) escrever sobre ele
aos 14. Percebi que a escrita era um complemento da experiência fílmica, um
modo de concretizar e externalizar minhas ideias e sentimentos. Venho encarando
o cinema como um instrumento de espiritualização, sendo ele uma forma de viver
as vidas que não vivi. Sou entusiasta da década de 1950, mas também abro o meu
coração para a Hollywood Clássica por completa - sem dispensar as demais
nacionalidades. Tenho Luis Buñuel em primeiro lugar, e mais uns seis diretores
em segundo.
03/05/25
Trágico Amanhecer, Le jour se lève, 1939,
Marcel Carné (Intervalo de um dia)
"Trágico amanhecer" por José Lino
Grunewald
Realizado em 1939, à partir de um script
original de Jacques Viot, "Trágico Amanhecer" (Le Jour se Lève) se
inscreve entre os maiores filmes de Marcel Carne .
Assistido novamente, hoje, apresenta-se vivo,
atuante, evidenciando poucos sinais de desgaste pelo tempo. Deve-se isso,
principalmente, ao rigor de sua elaboração artesanal, um trabalho de
perfeccionista que, quando deseja, poucos sabem ser como Carné. Um exemplo do
empenho do diretor, segundo o relato do crítico Jean Queval, é a cena em que
Jean Gabin, simplesmente, sai da janela, apanha o ursinho e volta para o mesmo
lugar, o que foi obrigado a repetir durante cinco horas.
Esse rigor artesanal não está apenas
caracterizado palmo a palmo, com cada sequência. Ele cumpre severamente as
coordenadas de um planejamento estrutural, um sentido de organicidade
enfeixando os diversos efeitos de uma vigorosa linguagem visual, oferecendo ao
mesmo tempo, uma contida participação das opções de Prèvert, o grande colaborador
de metteur-en-scène.
O desenvolvimento da fita compreende duas
ações – uma no presente outra no passado - entrecruzadas à base de três
flash-backs, sendo o último o trecho inicial da primeira cena do presente. A
evolução dramática é rálpida e direta, cumprindo um fluxo ascendente simples,
despido de maiores interpolações. No caso da ação na atualidade, o crive é o da
tensão, que tem seu desenlace com o suicídio do protagonista no instante em que
a polícia atira no quarto uma bomba de gás lacrimogênio.
Não deixa de ser válida a constatação de uma
certa primazia de algumas soluções de "Trágico Amanhecer" com relação
a muitos filmes norte-americanos posteriores no gênero. Pelo menos, até a epoca
da realização de Carné, não havia nenhum que obtivesse idêntica qualidade de
impacto.
"Le Jour se Lève" não está tão
adstrito à filosofia pessimista de "Cais das Sombras". Se, neste, o
ponto de partida já é a marginalidade, a ausência de um ponto de apoio para
seus personagens, em "Trágico Amanhecer" os protagonistas saem do
equilíbrio, da estabilidade social para, com a intervenção do acaso, serem
vítimas de um destino adverso. Consubstancia-se, assim, em tragédia pura, num
estrito desdobramento fatalista que não comporta maiores indagações, a não ser
aquelas de caráter objetivo, prêsas à conjuntura dramática.
Existe, sem dúvida, uma grau de discrepância
entre a parte do presente e a dos flashbacks, tendo muito maior vigor a
primeira. O que elide uma desigualdade maior é o aspecto funcional dessa
diferença. Os trechos desenrolados no passado, além de mais prévertianos,
detendo maior proeminência dos diálogos, apresentam-se arrefecidos em sua fôrça
puramente visual. Aqui está a comparação feita através de medidas e recursos
diretamente artesanais. A atualidade equivale à tensão, ao clímax dos eventos;
o passado é algo que apenas interessa na medida em que explica e modula a
crise. Daí, sómente aquêle leve fluir descritivo, entrecortado pelos retornos
ao quarto do protagonista ou às tomadas da pequena multidão, aguardando na rua
o desfecho dos acontecimentos. Todavia, essa opção que, se não chega a
representar um desleixo, impõe uma linear neutralidade para o sentido do ritmo
nos três retornos, coloca alguns senões na quase perfeita unidade compacta da
fita.
De qualquer maneira, "Le Jour se
Lève" marca um ponto forte para Carné, especialmente em paralelo com os
outros grandes diretores de sua época, na luta entre os filmes e a erosão do
tempo.
Duas colaborações valiosas ao êxito da
realização: os cenários de Trauner, criando uma ambiência adequada à tonalidade
dramática e permitindo a fixação de um clima denso; a fotografia de Agostini,
Curt Courant e André Bac, de admirável riqueza plástica, principalmente nas
cenas decorridas no presente.
Entre os intérpretes, há Jean Gabin em um dos
seus grandes papéis, rendendo bastante. Jules Berry, muito mais contido do que
de hábito, vai bem num tipo que lhe assenta. Arletty, ótima atriz, não tem
muita chance de brilhar num personagem de atuação mais passiva dentro da trama;
suas grandes oportunidades, excelentemente aproveitadas, chegariam, também
pelas mãos de Carné, logo depois, em "Les Visiteurs du Soir" (Os
Visitantes da Noite) e "Les Enfants du Paradis" (O Boulevard do
Crime): Dominique é a inesquecível Garance.
Tribuna da Imprensa 09/10/1959
04/05/25
Trenque Lauquen, 2022, Laura Citarella
O rádio é um meio cego até você olhar com os
ouvidos.
Trenque lauquen resenha filme de Laura Citarella (2022) - Tradução livre
O novo filme de Laura Citarella, “Trenque Lauquen”, lança uma rede
ambiciosa sobre seus temas vagos e sedutores, formando um mistério onipresente
que incha com uma superabundância exuberante. Embora seu tempo de duração seja
de mais de 4 horas, ele é dividido em dois filmes separados, dando aos cansados
de tal compromisso de tempo uma maneira mais acolhedora de assistir ao filme em
sua totalidade. É um dos talvez meia dúzia de filmes aos quais dei 5 estrelas
em 2023 e, coincidentemente, o segundo da Argentina e com a atriz Laura Paredes
Resenha feita por: Aaron Jones | Arquivado em: Críticas de filmes ,
April 16, 2024
Muitas vezes me peguei desejando ter mais um par de olhos e ouvidos para
poder absorver tudo e apreciar a riqueza de ideias que o filme evocava dentro
de mim, desde sua partitura peculiar e contagiante até o uso do tempo e as
longas tomadas de tempo observando o insignificante. Começamos a nos comunicar
mais profundamente com o trabalho de Citarella e a questionar até mesmo a mais
vaga insignificância com olhos atentos e pensamentos curiosos, assim como os
próprios sujeitos parecem estar fazendo, e entramos em uma consciência
espelhada à medida que o filme começa a espelhar suas próprias histórias dentro
da narrativa. Foi nesse momento que percebi que, a cada novo conceito que eu
agarrava nesse filme e o levava adiante, havia dezenas de outros que me
ultrapassavam, movendo-se em todas as direções perceptíveis.
A narrativa assume sua própria forma e fluxo serpentino por meio de
correspondências em camadas que cruzam períodos de tempo que nos levam a
caminhos que não necessariamente devem ser resolvidos, mas que, em vez disso,
questionam seus métodos. Questionando os caminhos que escolhemos, por que
perseguimos fantasmas e procuramos indivíduos e sujeitos que não querem ser
encontrados? É pelo ego deles ou pelo nosso? Nossas obsessões nos impulsionam?
Elas são motivadas pela paixão ou por nossa necessidade de controle? E será que
somos tão inconscientes do que nos atrai que não temos ideia do porquê? Uma
jornada desconcertante sobre as diferenças entre homens e mulheres, nutrição e
controle, e tão compensadora quanto enigmática.
Embora muito possa ser filtrado por meio de sua decodificação, muito é
deixado em aberto para interpretação. Embora tenha sido muito claro ao abordar
nossas próprias obsessões e nossa necessidade de respostas por meio de nosso
próprio objetivo habitual de sensacionalizar aquilo para o qual não conseguimos
encontrar respostas, em vez de sermos pragmáticos, o filme é um exemplo de
nosso eu irracional e grande parte da postura do filme parece ecoar a
psicanálise, dando uma pausa no retrato de Freud que aparece na parede, mesmo
que seja visto por um vislumbre momentâneo.
Ele se recusa a ser sobrecarregado por um gênero ou um estilo
específico, carregando uma transferência elusiva em sua sedução enigmática que
nega ao público qualquer senso de formalidades cíclicas ou encerramento. Ele
não se preocupa em amarrar as pontas soltas para a satisfação de fechar as
portas para chegar à conclusão; em vez disso, ele nos oferece camadas ricas de
pretexto e temas metafóricos no meio, onde cada desvio e toca de coelho em que
ele se encontra intoxica o público com uma espécie de amnésia cinematográfica,
onde cada nova virada e revelação temática é mais enriquecedora do que a anterior.
E quando olhamos para trás e avaliamos nossos passos, nos damos conta de que a
passagem em que acabamos de embarcar tem seu próprio ritmo e gramática que,
como um todo, rima com cada elevação e descida.
Laura Citarella é um nome que reservarei para sempre em meu Rolodex
mental a partir de agora, pois ela criou um filme tão rico e intrigante em
termos temáticos e visuais que sei que havia muito mais a ser explorado, mas
fiquei tão fascinado e atraído por essa alegoria visual que me deixei levar pelo
momento. Deixando tantos detalhes de lado devido à sua superabundância
temática, ao vernáculo enigmático que envolve o gênero e ao comprimento de onda
totalmente tangencial, precisarei rever este filme apenas para compreender sua
enormidade.
.....
Review by Cristhian Flores
Como é injusto e difícil sair para o mundo depois de Trenque Lauquen.
Voltar a falar de problemas cotidianos, voltar ao movimento utilitário de um
lugar para outro, voltar a falar de coisas que não são conspirações, que não
envolvem mapas, cartas escondidas, bibliotecas esquecidas ou criaturas
misteriosas. Isso pode ser questionado exatamente como isso, uma evasão da
realidade ou um entretenimento fútil, mas essa é a visão opaca da realidade que
os filmes de El Pampero questionam. Citarella, Llinás e companhia buscam
obstinadamente restaurar à própria vida o efeito profundo da ficção, ou melhor,
seu caráter eminentemente ficcional e, portanto, arbitrário e mutável. Não é
essa também a operação de Borges? Não há aqui reminiscências do El Sur de JLB?
Para que essa saída para o mundo seja menos injusta e menos difícil, o corpo
deve ser transformado pela ficção. Sair com a faca que, talvez, não saibamos
manejar. Letteroxd
05/05/25
O Eternauta, El Eternauta, Série TV, 2025,
Criação: Bruno Stagnaro
'O Eternauta': conheça a tragédia real por trás de novo sucesso com
Darín
Janina Martens e Luiza Palermo, UOL, 08/05/2025
A clássica história em quadrinhos argentina de ficção científica "O
Eternauta", de 1957, ganhou sua primeira adaptação para as telas. Lançada
em 30 de abril pela Netflix, a série de seis episódios é estrelada por Ricardo
Darín, que interpreta Juan Salvo, um homem comum que, após uma nevasca tóxica
dizimar milhares de pessoas em Buenos Aires, torna-se um viajante do tempo e do
espaço em busca de sua família.
Com efeitos especiais de última geração, a produção acompanha a odisseia
de Salvo — que se transforma no Eternauta, um viajante eterno — enquanto ele se
junta a um grupo de resistência para sobreviver e, mais tarde, enfrentar uma
ameaça alienígena que pretende destruir a Terra.
No entanto, a produção traz consigo uma trágica história que envolve o
autor dos quadrinhos. Vinte anos depois de escrever a história do Eternauta, o
renomado escritor argentino Héctor Germán Oesterheld teve um destino semelhante
ao de seu personagem durante a ditadura militar no país.
Em sua história em quadrinhos, alienígenas exterminaram impiedosamente a
população de Buenos Aires. Na Argentina real, a junta militar de Jorge Rafael
Videla impôs um regime totalitário em 1976, aterrorizando a população.
Oesterheld e sua família foram sequestrados pelos militares.
Quando a ficção científica reflete a realidade
"O Eternauta" reflete profundamente a personalidade e os
valores de Oesterheld, que colocava na história do quadrinho sua perspectiva
social e política em um contexto de Guerra Fria. Mais tarde, isso o levou a se
juntar à resistência contra o regime militar, junto com suas quatro filhas.
Eles participaram do grupo Montoneros, uma organização político-militar
argentina contra a ditadura. No entanto, em 1977 todos foram sequestrados e
acabaram entre os 30 mil argentinos que desapareceram naquele período.
Os corpos do autor e de suas filhas nunca foram encontrados. Desde
então, foi estabelecido que suas filhas foram assassinadas, e acredita-se que o
próprio Oesterheld foi morto pelo regime em 1979. No caso da família
Oesterheld, os militares deixaram vivos apenas sua esposa, Elsa Sánchez, e dois
netos pequenos: Martín Mortola Oesterheld, de 4 anos, e Fernando Araldi
Oesterheld, de 1 ano.
Símbolo contra o esquecimento
A história em quadrinhos de Oesterheld, com os desenhos de Francisco
Solano López, tornou-se um enorme sucesso na Argentina. Até hoje, "O
Eternauta" é lembrado como um poderoso capítulo contra o esquecimento - um
alerta permanente sobre um dos períodos mais sombrios da história do país. Um
capítulo que, para muitos, ainda está em aberto.
Na ficção científica, o herói passa sua vida buscando sua família
através do espaço e do tempo. Assim como ele, milhares de argentinos ainda não
sabem o que aconteceu com seus entes queridos durante a ditadura militar e
seguem procurando pais, filhos e netos desaparecidos.
Há quase meio século, por exemplo, a organização Abuelas de Plaza de
Mayo (Avós da Praça de Maio, em português) procura o paradeiro de quase 500
bebês roubados durante a ditadura e criados sob identidades falsas.
A estreia da série lançada na Netflix, inclusive, motivou a volta das
buscas pelos dois possíveis netos ou netas de Oesterheld, nascidos em
cativeiro. Segundo o El País, Diana Oesterheld, a segunda das quatro filhas do
autor, estava grávida de seis meses quando foi sequestrada, enquanto Marina
Oesterheld, estava a poucas semanas de dar à luz.
"Você está assistindo 'O Eternauta'? Se sim, e nasceu em novembro
de 1976 [data prevista para o parto do filho ou filha de Diana] ou entre
novembro de 1977 e janeiro de 1978 [possível nascimento do filho ou filha de
Marina] e tem dúvidas sobre sua identidade ou a de alguém que nasceu nessas
datas, entre em contato com a Abuelas Difusión", publicou nas redes a
organização Avós da Praça de Maio, em parceria com o grupo de direitos humanos
Hijos (Filhos e Filhas pela Identidade e Justiça contra o Esquecimento e o
Silêncio).
Assim, a figura de Juan Salvo, presente em murais e grafites por toda
Buenos Aires, continua a representar algo maior do que um personagem de ficção
científica. Símbolo político e memorial vivo, o Eternauta segue lembrando aos
argentinos a importância de enfrentar o passado e lutar, sempre, pelos direitos
humanos.
Os 3 Eternautas: o original, o remake, acontinuação vídeo
06/05/25
Louis Theroux: The Settlers, Filme para televisão, 2025, Direção Joshua
Bake, Roteirista Louis Theroux
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https://x.com/GeopolPt/status/1916812574164763015
https://www.instagram.com/reel/DJH0i7UJTeG/
https://x.com/SerraSilvaSofia/status/1918711686350958922
Bruno Altman: Palestina, Israel aposta na solução final vídeo
Os Colonos do Presente é um soco no estômago por Jair de Souza*
SOBRE A PALESTINA
Muita maldade em um só pacote
Ao assistir ao novo documentário do jornalista britânico Louis Theroux, tive a sensação de que estava diante de uma peça que, embora não ultrapassasse
em muito uma hora de duração, nos apresentava de modo cristalino um repasso de
alguns dos principais fenômenos da história da Humanidade.
Tenho dúvidas se devo considerar-me feliz por havê-lo visto, ou triste
por tê-lo feito.
É que, infelizmente, a retrospectiva que nos vem à mente neste trabalho
jornalístico nos traz de volta à memória algumas das fases mais tenebrosas
pelas quais as sociedades humanas já trilharam ao longo dos séculos. Assim que, num curto lapso de tempo, podemos sentir a persistência ainda
em nossos dias de várias das mais abomináveis atrocidades que a perversidade
humana foi capaz de engendrar.
O imperialismo nos dias de hoje
É como se, em pleno século 21, tivéssemos à nossa disposição um
laboratório para experiências práticas onde os horrores do colonialismo, do
nazismo e do apartheid estivessem sendo novamente exercitados, para que o mundo
todo pudesse conhecê-los de modo mais realístico.
E tudo isto entrelaçado com o imperialismo da atualidade.
Por isso, muito mais valioso do que tentar expor em palavras toda a
riqueza de informações contida no já citado documentário, gostaria de
recomendar ardentemente que cada um o visse com atenção, refletisse sobre seu
conteúdo e tratasse de divulgá-lo a quantos outros mais lhe seja possível.
O combate ao etnocentrismo racista, genocida e sociopata depende de que
a vacina da consciência e do sentimento de humanidade esteja presente entre
aqueles que lutam por um mundo justo e sem exclusivismo nacional ou étnico.
*Jair de Souza é economista e Mestre em Linguística
#18 - THE
SETTLERS, de Louis Theroux
Ou: quando religião, racismo e ódio dão as mãos, nada segura a
colonização
A contrapelo, Rodrigo Castro, abril 29, 2025
Se eu fosse religioso, e curtisse escatologias como os extremistas
sionistas, eu diria que vi a cara do demônio. O sorriso nefasto de Daniela
Weiss certamente vai me atormentar por um bom tempo depois de ver sua maldade
explícita tão graciosamente nas conversas com Louis Theroux, em The Settlers
(2025). O documentário do singapurense foi lançado pela BBC no final da semana
passada e, como é de se esperar graças 1) ao tema e 2) à própria cobertura nada
exemplar que o veículo britânico vem fazendo do genocídio palestino, está
causando (e com certeza ainda vai causar) um bocado de barulho, merecidamente.
Aliás, barulho é o que mais se precisa neste momento desde o 7 de outubro de
2023, considerando o desequilíbrio de vozes críticas às atrocidades sionistas
no jornalismo e na política mainstream.
Antes, uma breve notinha sobre Louis Theroux, o jornalista/cineasta que
conduz o filme do começo ao fim — é dele o roteiro e a direção de The Settlers.
Theroux começou seu trabalho audiovisual em TV Nation, hoje uma clássica série
criada por Michael Moore, que produzir reportagens provocantes com o humor
ácido que o consagrou no cinema. Louis, por sua vez, também já faturou alguns
prêmios importantes por aí, como o BAFTA. E o que isso tem a ver com o filme?,
já que quase nunca comento as carreiras pessoais dos cineastas por aqui? Bom,
se você assistir a este filme, vai notar um humor muito peculiar na forma como
Theroux conversa com alguns dos personagens escolhidos.
(Por falar em ver o filme, infelizmente ainda não está circulando no
mercado paralelo — bora MakingOff! — e nem é possível acessar via BBC iPlayer,
a plataforma oficial dos britânicos. Porém, uma boa alma postou o filme
inteirinho no falecido Twitter.
Como nem tudo pode ser tão bom assim, só está disponível com os textos em
inglês. Porém, como se vê, ainda há resquícios de humanidade por lá…)
Dito isso: The Settlers é, num resumo bem sucinto (e me perdoem a
redundância), um retrato cru e lamentável da questão colonial sionista através,
principalmente, do movimento de colonos liderado por Daniela Weiss - certamente
uma das pessoas mais sádicas que já vi num documentário.
Cru, pois nenhum colono entrevistado, e muito menos Weiss, que é chamada
carinhosa e diabolicamente de madrinha dos colonos, sente remorso ou sequer
reflete de verdade sobre os atos perpetrados contra a população palestina.
Pior: nenhum colono, e com grande influência de Weiss, sequer reconhece a
população palestina como formada por seres humanos, que têm direitos e deveres
como qualquer outra pessoa deveria ter num Estado democrático [1]. Essa visão
deturpada da realidade [2], baseada no direito divino que os judeus sionistas
alegam deter sobre o território palestino, é a raiz do problema sionista, já
que dá as bases de todos os processos de violência aos quais palestinos e
palestinas estão submetidos: o policial, o judiciário, o racial, o psicológico
etc. — mas, primordialmente, o processo de violência colonial, intrínseco à
própria situação da colonialidade (afinal, é impossível levar a cabo um projeto
de conquista territorial sem, em algum momento, ter que lidar com a população
autóctone; essa lógica está irônica e cinicamente materializada no slogan que
os sionistas adotaram para o movimento, uma terra sem povo para um povo sem terra).
Lamentável porque, a despeito de se mostrarem tranquilos e serenos, os
colonos, e principalmente Weiss, que detém um poder descomunal dentro do
movimento e da política israelense, não sofrerão nenhuma represália, seja do
próprio Estado, seja dos organismos internacionais. Nem hoje, frente ao
genocídio mais explícito, nem no passado, nem no futuro — pelo menos não
enquanto houver sionismo como forma e ideologia do Estado israelense. É
impossível que um etno-Estado fascista responsabilize pessoas que levam à
frente a própria ideia deste etno-Estado fascista, através de ações diretas de
intimidações, expulsões, agressões e assassinatos. O sentimento exclusivista
dos colonos é naturalizado e incentivado, principalmente através do mito da
terra prometida e por pessoas como Itamar Ben-Gvir [3], que até pouco tempo era
Ministro da Segurança Nacional de Israel e sempre participa de eventos de
colonos como o registrado por Theroux em The Settlers.
Este sentimento é tão difundido que se materializa na fala de um dos
colonos entrevistados (e aqui pouco importa o nome dessas pessoas, exceto o de
Daniela Weiss, que se orgulha de seu papel de líder do movimento) que ecoa
Golda Meir, outra madrinha do sionismo: eles não creem existir algo como o povo
palestino. A desumanização dessas pessoas faz com que colonos e Weiss possam
tranquilamente dizer coisas como “eu não vejo isso [e aponta para as vastas
terras] como Palestina; não existe Palestina, é Judeia e Samaria” ou “eu não me
preocupo com árabes, eu sou judia; não penso em árabes”. Weiss chega a apontar
para algumas porções de terra: seu único pensamento é saber onde é possível
trabalhar a terra e onde não é possível fazer nada. Seu pensamento não está nos
palestinos e nas palestinas porque, no fundo, essas pessoas não fazem parte de
seu vislumbramento do mundo; elas não existem enquanto conceito, não são seres
humanos, e é por isso que, apesar de insistentemente a madrinha dos colonos
dizer que não, é tão fácil clamar pela aniquilação palestina. É por isso, também,
que uma simples colheita de olivas se transforma num evento militar grotesco,
que impõe aos agricultores humilhações constantes e cotidianas em tarefas tão
banais quanto buscar comida ou arar a terra.
É o capital (de novo)
"Eles não nos veem como seres humanos iguais que merecem os mesmos
direitos que eles."
Eles, é claro, são os sionistas, e é assim que Issa Amro, um palestino
militante que guia Theroux por Hebron, resume a questão que atravessa sua vida
desde o nascimento. Diferentemente dos militares que fazem divisa com sua casa,
ele pertence a Hebron. E é nesta cidade que fica mais explícito como o capital
funciona como braço amigo (e armado) do projeto colonial sionista (já falei
disso por aqui outra vez, certo?).
Antes, vejamos o que Weiss diz brevemente sobre sua relação com a
Cisjordânia, ao recordar brevemente sua história numa conversa com Theroux:
"Meus pais vieram para cá e investiram fortunas, acreditando que,
um dia, haveria um Estado judeu"
O grifo é meu, pois é muito importante entender como esse sonho molhado
colonialista se materializou: através de fortes incentivos à imigração de
judeus espalhados mundo afora, vivendo em diáspora, uma característica que eles
acreditam ser fundante de sua própria judaicidade (apesar de não ser exatamente
assim) e que, por isso mesmo, justificaria o retorno à terra prometida (sabe-se
lá por quem, já que também não é bem assim) (Sand, 2011). O empreendimento
colonial precisa ser integrado ao capital; é por isso que Weiss fala de Gaza
devastada como uma oportunidade imobiliária (e, claro, de criação de novos
assentamentos): é possível, além de reafirmar a identidade judaica, ganhar
dinheiro, muito dinheiro, com a colonização total do território.
Não é à toa, então, que Amro aponta um cartaz pregado na parte palestina
de Hebron, uma cidade que usa os famosos checkpoints como ferramentas de
segregação espacial urbana:
O cartaz materializa na porta de uma loja palestina fechada pelas FDI a
forma como sionistas enxergam os palestinos: são todos, sem exceção,
terroristas. Não há nenhuma nuance, nem distinção etária ou de gênero: mulheres
são parideiras de pequenos militantes, e estes pequenos militantes são futuros
terroristas que ameaçam o espaço sionista: é preciso, também, evitar o comércio
dessas não-pessoas ardilosas; é preciso evitar qualquer possibilidade de
manifestação de vida.
Para o sionismo, é preciso, é um dever, por fim, e evocando Judith
Butler (2017), garantir a escolha de com quem se vai habitar o planeta — e os
palestinos e as palestinas definitivamente não são uma das opções viáveis dessa
escolha.
Referências bibliográficas
Butler, Judith. Caminhos divergentes. Judaicidade e sionismo. São Paulo:
Boitempo, 2017.
Sand, Shlomo. A invenção do povo judeu. São Paulo: Benvirá, 2011.
[1] Israel é tratada como a "única democracia do Oriente
Médio". Isso está presente em discursos oficiais e midiáticos. Contudo, é
um tanto óbvio que democracia e etno-nacionalismo não costumam andar juntos —
ou, ao menos, não costumam dar bons frutos.
[2] Essa visão deturpada atinge níveis irracionais, como numa espécie de
crítica (que não vou linkar aqui, mas é facilmente encontrada numa busca
rápida) feita ao documentário por Eitan Oren, um acadêmico que, tal qual Ross
Geller, parece gostar muito de se apresentar ao mundo com seu epíteto “doutor”
— pelo menos é assim que ele assina seu texto contra o filme de Theroux. Oren,
orgulhosamente nascido e criado em um assentamento sionista, afirma
categoricamente que a minoria dos colonos tem para com palestinos um sentimento
de ódio — a despeito do que demonstrem gráficos como este, da al Jazeera, que
mostra que, desde 2023, acontecem quatro ataques de colonos sionistas na
Cisjordânia por dia. Oren também enfatiza que é dever do jornalismo ouvir
sempre os dois lados, e que Therous deveria ter escolhido melhor suas fontes,
pois ficou preso a, supostamente, uma minoria extremista — neste caso, é só
ignorância mesmo, já que um documentário, por mais que esteja exibido num canal
de televisão, antes de tudo é uma narrativa audiovisual, e o diretor tem o
poder e o dever de escolher quem bem entender relevante para sua obra. Sobre o
tema violência de colonos, deixo um bom artigo da Armed Conflict Location &
Event Data (ACLED),
com mais seriedade que um simples post de um sionista colono orgulhoso da
Cisjordânia.
[3] Ben-Gvir é um dos mais esforçados sionistas de nossos tempos. Ele
mesmo um colono na Cisjordânia, não se cansa de incentivar a limpeza étnica e o
genocídio do povo palestino. Sua demissão do cargo que ocupava no governo de
Benjamin Netanyahu se deveu pois discordava irremediavelmente da possibilidadede um cessar-fogo
entre o Hamas e o governo israelense e a troca de reféns entre os dois (me recuso
a chamar palestinos de prisioneiros de uma forma abstrata): seu desejo era a
aniquilação e a expulsão total de palestinos e palestinas do território de
Israel, Gaza e Cisjordânia. Contudo, com a retomada dos incessantes ataques
sionistas à Faixa de Gaza, o partido de Ben-Gvir, Otzma Yehudit, retornou à
coalizão de apoio a Netanyahu e ao Likud — como se vê, Ben-Gvir não disfarça seu gosto pelo sangue do povo palestino.
The Settlers review – this vital film forces Louis Theroux to dosomething he’s never done before
08/05/25
Noites Brancas, Le notti bianche, 1957, Luchino Visconti
Roteiristas: Fyodor
Dostoevsky novel "White Nights/Belye noci" (as Fedor
Dostoevskij), Suso Cecchi
D'Amico, Luchino Visconti
No iutui aqui
Resenha #17 – Noites Brancas (Le Notti
Bianche, 1957)
Por Alexandre Cataldo / 25 de outubro de 2015
Luchino Visconti sempre terá seu nome ligado
ao movimento neo-realista italiano, afinal, foi um dos seus precursores. Mas a verdade é que a sua “poesia” fez com
que sua obra se afastasse um pouco daquelas de seus colegas de movimento, como
Rossellini e De Sica, garantindo-lhe sucesso em filmes de vários gêneros.
De seus filmes a que assisti, “Noites Brancas”
é o que mais me envolveu (mais até que o excelente “Rocco e Seus Irmãos”). Ouso dizer que se trata de um filmaço, com
vários pontos fortes, a começar por uma boa história, baseada no conto homônimo
publicado em 1848 pelo escritor russo Fiodor Dostoievsky. Ambientanda em São
Petersburgo, a história de Dostoivesky acompanha um protagonista sonhador, que
cria uma utopia de amor ideal ao esbarrar com uma desconhecida.
Visconti não apenas “filmou o livro”, mas
transportou para as telas a sua própria “leitura” da obra de Dostoievsky,
alterando levemente alguns pontos. Além
de termos o cenário mudado para Livorno, o protagonista Mario (Marcello Mastroianni)
não domina completamente o filme. A
personagem da desconhecida, Natalia (Maria Schell), ganha força e passa a ser
praticamente a protagonista, já que são as suas utopias (e não as de Mario) que
dominam a história.
As noites brancas do título simbolizam a
solidão dos dois personagens. Tanto
Mario quanto Natalia são seres solitários e ansiosos por encontrar alguém. Ela demonstra, já de início, uma quase
infantilidade no modo como lida com o amor.
Já Mario, que a princípio parece ser até mesmo um tipo cínico e
aproveitador, só mais tarde demonstra ser, ele também, um sonhador.
As filmagens foram todas feitas em estúdio,
tendo sido construído todo um quarteirão de uma fictícia Livorno. Visconti orientou os designers para que não
se fizesse uma reconstrução perfeita, para que o filme se afastasse ainda mais
do neo-realismo.
As interpretações de Maria Schell e
Mastroianni são muito boas, principalmente se levarmos em conta que são
praticamente os únicos personagens em tela, durante a maior parte do
tempo. Maria não sabia falar uma palavra
de italiano quando foi contratada para fazer o filme. Aprendeu o suficiente para o filme em apenas
15 dias.
Mas de todos os pontos altos do filme, talvez
o de maior destaque seja a belíssima fotografia de Giuseppe Rotunno, ainda em
início de carreira. Na década de 60,
Rotunno se tornaria um dos mais importantes diretores de fotografia da Europa,
trabalhando com nomes como Fellini e, posteriormente, Mike Nichols e Bob Fosse
(em “All That Jazz”, trabalho que lhe valeu indicação ao Oscar, em 1979). Neste filme em especial, o trabalho de
Rotunno é fantástico, tendo usado, por exemplo, centenas de véus finíssimos,
pendurados pelo set, para criar a atmosfera quase onírica de um constante
nevoeiro.
Noites brancas por Paulo Ricardo de Almeida
Adaptação de Luchino Visconti e de Suso Cecchi
D’Amico (que trabalha, a partir de Belíssima, em todos os filmes do cineasta)
para o conto homônimo de Fiódor Dostoiévski, Noites Brancas, Leão de Prata no
Festival de Veneza de 1957, representa marco fundamental na carreira do mestre
italiano, na medida em que expande as noções de realismo, tão presente nas
obras anteriores, rumo à fantasia e à imaginação, seja no tratamento
diferenciado dado ao espaço cênico, seja na construção atemporal da narrativa.
Obsessão e A Terra Treme são comumente
identificados com o neo-realismo italiano, pois, da mesma forma que, segundo
Carlo Lizzani, operam a junção da realidade sócio-econômica das camadas baixas
da população, com a tradição cultural erudita do Ocidente, sobretudo literária
– a transposição de O Destino Bate à Sua Porta, de James M. Cain, para o
cotidiano dos trabalhadores pobres do Sul em Obsessão, o uso do clássico de
Verga a fim de retratar a vila de pescadores em A Terra Treme –, também
encampam práticas de produção que os afastam do sistema de estúdio fascista (o
cinema de "telefone branco"), tais quais filmagens em locações,
iluminação natural, equipamentos mais leves e atores não-profissionais ou
desconhecidos pelo público. Assim, se Sedução da Carne, por um lado, rompe com
o neo-realismo – posto que a ação é deslocada da Itália miserável do pós-guerra
para o seio da aristocracia durante o Risorgimento –, por outro se mantém fiel,
dada a verossimilhança e o detalhismo com que Visconti impregna a narrativa,
precisa quanto à reconstituição de época: o realismo praticado pelo diretor, na
verdade, decorre da ópera verista, na qual temas fantasiosos e mitológicos são
preteridos em troca de histórias calcadas nos contextos sociais em que
transcorrem, em que o comportamento, as atitudes e a psicologia dos personagens
se subordinam (melodramática e tragicamente) ao mundo restritivo que os cerca.
Em Noites Brancas, porém, a cenografia de
Mario Garbuglia aponta justamente para o sonho, para o conto-de-fada. Ao
reconstruir quarteirão inteiro de Livorno, com suas pontes e rios, nos estúdios
da Cinecittá, Visconti opta, como De Sica já o fizera em Vítimas da Tormenta
(em que o dia-a-dia dos garotos engraxates se transforma em pesadelo), por
paradoxal antinaturalismo, já que, embora pautado na irrealidade fake do espaço
cênico e da iluminação (a cargo de Giuseppe Rotunno), igualmente se esforça
para torná-los críveis, não omitindo (e mesmo realçando) a sujeira das ruas, as
paredes rachadas, as fachadas velhas e descascadas, as prostitutas e os
mendigos que vagam sem esperança, enfim, a atmosfera triste e soturna dos
ambientes. Trata-se, para o cineasta, não apenas de representar o real
objetivo, mas de articulá-lo a camadas e camadas de imaginação e de fantasia a
fim de narrar a eterna e atemporal busca romântica do homem pelo amor do Outro,
capaz de libertá-lo da solidão que a sociedade, emocionalmente fria, violenta,
distante e cruel, lhe impõe.
Mario (Marcello Mastroianni) retorna de viagem
feita com a família do chefe. Andando a noite pelas ruas, de início confunde Natalia
(Maria Schell), a qual chora sobre a ponte, com prostituta, para depois se
apaixonar por ela. Marcam novo encontro para o dia seguinte, no mesmo local e
na mesma hora, mas Natalia, ao avista-lo, foge. Mario a persegue, e por fim lhe
arranca a verdade: todas as noites, há um ano, ela espera a volta do amado,
misterioso inquilino (Jean Marais) que veio morar na casa em que Natalia e a
avó viviam a solitárias.
O inquilino representa o príncipe encantado de
Natalia: não se sabe quem ele é, de onde veio ou para onde vai; quase não fale,
quase não aparece ao longo do filme, mas ainda assim povoa os pensamentos e os
sonhos da jovem apaixonada. Por mais que Mario lhe procure defeitos, por mais
que tente com que Natalia o esqueça, não consegue. O que tem, afinal, este
trabalhador, que sobrevive graças a emprego miserável, que habita pensão
caótica longe da família, que vez ou outra briga nas ruas, que é perturbado
pelas prostitutas, que só encontra amizade em cão vadio, para lutar contra a
imaginação romântica de uma mulher?
Mario é humano, demasiado humano. No triângulo
amoroso criado por Visconti, ele representa a vida em si, com seus erros e
acertos, com suas misérias e belezas, enquanto o misterioso inquilino, ao
contrário, encarna o homem ideal, o cavaleiro de armadura brilhante egresso dos
contos-de-fadas. Natalia, por sua vez, é o meio termo entre os dois, entre o
real e o imaginado: meiga, tímida, ingênua, apaixonada, inocente, pura, amorosa
e sonhadora, ela, ao mesmo tempo em que espera o grande amor, também integra os
sonhos de Mario, conquanto se constitui na mulher que ele próprio idealiza.
Natalia, a qual sempre aparece nas sombras, a
qual sempre é vista de relance, talvez exista apenas no pensamento de Mario, já
que mesmo o homem, imperfeito por natureza, possui o direito de sonhar, de
buscar a felicidade no mundo padrasto em que subsiste, com sofrimento e com
alegrias. Na seqüência que justifica o título da obra, Natalia, desgostosa com
seu príncipe, que não veio, resolve se entregar a Mario. Ela não o ama, mas
quem sabe, no futuro? Felicíssimo, ele a leva para passeio de barco e, sob a
ponte, onde se acotovelam mendigos e prostitutas, começa a nevar. Trata-se da
indicação simbólica de que Mario, enfim, toca o conto-de-fada, materizaliza o
sonho, funde a realidade à fantasia.
Quando cessa de nevar (sem antes o comentário
de que o sobretudo de Natalia coberto pelos flocos brancos será seu vestido de
noiva), é hora de voltar à terra. Sobre a ponte, encontra-se o inquilino, o
cavaleiro encantado: ela corre para seus braços, desculpando-se com Mario, o
qual lhe responde, sem mágoa, que, por um momento – de que sempre se lembrará –
foi feliz. O tempo ínfimo, mas eterno, que justifica toda a existência.
A impossibilidade de concretizar a idealização
do mundo (através do amor) mostra que o homem está condenado a vagar ao sabor
dos quatro ventos, sempre à procura da felicidade, com a incômoda lembrança do
Paraíso do qual foi expulso. Pelo menos, o cão vadio, fiel, continua a seu
lado, para ajudá-lo: em Noites Brancas, não estamos sós.
Noites brancas (tradução direta do original russo) Capa comum – Livro
interativo, 1 janeiro 2009
Edição Português por Nivaldo dos Santos (Tradutor), Fiódor Dostoiévski
(Autor)
Editora 34,
3ª edição (1 janeiro 2009)
Noites brancas – o livro
1951 Bellissima [Luchino Visconti] assistir aqui
1965 Sandra - Of A Thousand Delights assistir aqui
09/05/25
O Conto da Aia, The
Handmaid's Tale, Série de TV-2017–2025 S06, Bruce Miller-
A última travessia de June: um começo potente
para o fim de ‘O Conto da Aia’
Giselle
Costa Rosa 09/04/2025
Depois de uma longa pausa, “O Conto da Aia”
(The Handmaid’s Tale) retorna com a temporada 6 prometendo finalmente encerrar
a jornada de June Osborne — e, quem sabe, dar ao público um pouco da catarse
tão adiada.
Os dois primeiros episódios da última
temporada não apenas retomam a narrativa exatamente de onde parou, como
imprimem um novo ritmo à série, que por anos oscilou entre sofrimento extremo e
avanços mínimos na trama. Agora, com um destino à vista, os caminhos de June,
Serena e tantos outros personagens se cruzam novamente em meio ao caos e à
reconstrução.
Sinopse da temporada 6 da série O Conto da Aia
/ The Handmaid’s Tale (2025)
A temporada começa com June (Elisabeth Moss)
fugindo com a filha Nichole num trem rumo ao Alasca, após sobreviver a uma
tentativa de assassinato em solo canadense. No mesmo trem, está Serena Joy
(Yvonne Strahovski), também em fuga e com seu filho recém-nascido, Noah. O
reencontro tenso entre as duas, agora em circunstâncias improváveis, cria uma
das dinâmicas mais interessantes da série até aqui.
Enquanto isso, Luke está preso, Nick lida com
pressões internas em Gilead, Moira se aproxima da resistência Mayday e uma
revelação inesperada: Holly, a mãe de June, dada como morta nas Colônias, está
viva — e em solo americano. A série acelera, mas sem perder o peso emocional
que sempre a definiu.
Crítica da temporada 6 de O Conto da Aia (The
Handmaid’s Tale), do Paramount+
A relação entre June e Serena sempre foi o
coração moral e ambíguo de “O Conto da Aia”, mas nos dois primeiros episódios
da sexta temporada ela ganha contornos ainda mais humanos — e contraditórios.
No trem, Serena tenta se aproximar, como se o passado pudesse ser varrido sob o
tapete.
June, carregando traumas incontornáveis, tenta
ao mesmo tempo manter distância e sobreviver. O momento em que Serena é
reconhecida por outras refugiadas e quase linchada — salvo por um ato
inesperado de compaixão de June — mostra o quanto a série ainda sabe construir
tensão com domínio absoluto de espaço e silêncio.
Direção precisa e atuações intensas
Elisabeth Moss, que também dirige os dois
primeiros episódios, dá uma aula de como captar emoções cruas sem exagero. A
cena do reencontro entre June e Holly é exemplar: o uso da música, a câmera que
hesita antes do abraço, tudo comunica dor, alívio e, acima de tudo, exaustão.
Cherry Jones, como Holly, entrega uma
performance comedida e poderosa. Há uma tensão entre mãe e filha que ultrapassa
a simples alegria da sobrevivência: são duas mulheres marcadas por escolhas e
perdas que não têm como voltar atrás.
Serena, a sobrevivente disfarçada de mártir
Serena é lançada de um trem com um bebê nos
braços e, no melhor estilo da personagem, cai em pé. Seu abrigo numa comunidade
religiosa feminina chamada Canaan parece, à primeira vista, um retiro
espiritual. Mas rapidamente entendemos: ela está apenas esperando a próxima
oportunidade de retomar o controle.
Seu retorno a Gilead — agora sob o disfarce da
reformulação em New Bethlehem — mostra que Serena nunca quis redenção, apenas
um novo púlpito. Seu discurso messiânico no jantar em Canaan é assustador pela
calma com que ela reivindica um papel de salvadora, sem jamais confrontar o que
realmente foi.
A série encontra propósito e urgência
A sexta temporada parece ter aprendido com
seus próprios erros. Se nas últimas temporadas a história andava em círculos,
agora ela tem rumo. A reintrodução de personagens como Holly, a volta do núcleo
da resistência com Moira e Mark, e o novo papel de Luke na Mayday dão dinamismo
à trama. Até o salto temporal de dois meses — algo que normalmente pareceria
artificial — funciona como ferramenta para limpar o terreno e posicionar as
peças para o confronto final.
Nick continua sendo um personagem que flerta
com o desgaste. A série parece não saber muito bem o que fazer com ele, e o
roteiro o transforma mais uma vez em uma ponte entre Gilead e a resistência.
Ainda assim, sua relação com June continua sendo emocionalmente potente, mesmo
que agora com mais dúvidas do que certezas. A tensão entre ele e o sogro, o
novo Comandante Wharton, adiciona um novo elemento político à narrativa que
ainda pode render.
Conclusão
Os dois primeiros episódios da temporada 6 de
“O Conto da Aia” funcionam como um verdadeiro reinício. Com direção afiada,
foco narrativo e diálogos emocionalmente carregados, a série parece finalmente
disposta a entregar um encerramento digno ao seu universo distópico.
June segue sendo o centro moral da história,
mesmo quando suas escolhas são difíceis de apoiar. Serena, por sua vez,
confirma-se como a antagonista mais fascinante da TV atual — complexa, calculista,
e quase sempre um passo à frente.
Mais do que redenção, a temporada promete
confronto. E se a série mantiver o nível apresentado nesse início, “The
Handmaid’s Tale” poderá se despedir com a força que fez dela um marco na ficção
contemporânea.
12/05/25
5 Homens Selvagens, The Animals, 1971, Ron Joy
No iutui
aquiNuma super produção da METRO GOLDEN MAYER,
esta aventura de western mostra um grupo de assaltantes que querem a todo custo
resgatarem seu chefe Pudge que está preso e roubar um carregamento de ouro.
Associados à índios renegados, os cinco homens selvagens saqueiam, violentam e
sequestram para alcançarem seu objetivo. Somente Chatto e sua tribo poderá
impedi-los. Filmow
15/05/25
Andor, Série de TV, 2022–2025 S02, Tony Gilroy
Andor S02 por PH Santos
ANDOR - Resumo da 1ª Temporada
ANDOR 2: Parte 1 - Vida instável | Análise2x01 2x02 2x03
ANDOR 2: Parte 2 - Rebeldia x Revolução |Análise 2x04 2x05 2x06
ANDOR 2: Parte 3 - Quem vai ajudar? | Análise2x07 2x08 2x09
ANDOR 2: Parte 4 – Por um amanhã possível |
Análise 2x10 2x11 2x12
Star Wars já era
20/05/25
The Last of Us, Série de TV, 2023–S02, Neil Druckmann & Craig Mazin
The last of us S02 por PH Santos
THE LAST OF US - Resumo | 1ª Temporada
THE LAST OF US 2x01 - Paralelos e contrastes |Análise do episódio
THE LAST OF US 2x02 - E agora, Ellie? |Análise do episódio
THE LAST OF US 2x03 - O Caminho | Análise doepisódio
THE LAST OF US 2x04 - Um dia ou dois | Análise
THE LAST OF US 2x05 - Que abismo | Análise
THE LAST OF US 2x06 - Feliz aniversário |Análise
THE LAST OF US 2x07 - O Que Restou | Análise
THE LAST OF US - Temp 2: Boa ou decepção? |Saldo Final
27/05/25
O Barão Aventureiro, The Baron of Arizona, 1950, Samuel Fuller
No iutubi
aqui ou
aquiThe Baron of Arizona (Lippert, 1950), May 3,
2018
O melodrama gótico vai para o Oeste (tradução livre)
The Baron of Arizona foi estrelado por Vincent
Price. Price é mais conhecido pelos cinéfilos pelo gênero de terror, mas, na
verdade, ele também fez alguns faroestes na tela grande e pequena, e acho que
ele foi bom neles.
Para ser honesto, no entanto, The Baron é mais
um melodrama gótico do que um faroeste durante a maior parte de sua duração e é
realmente muito caro, pois Vincent, de barba cortada e, às vezes, com uma capa,
vagueia pela Espanha e Paris. Ainda assim, ele faz o filme (acho que sem ele o
filme teria sido um verdadeiro fracasso). Price afirmou que esse foi seu papel
favorito.
O projeto foi divulgado pela primeira vez
antes da guerra e deveria ter sido um filme da Warners, Prince of Imposters,
com Edward G. Robinson como Reavis, mas nunca aconteceu.
Ele foi dirigido e escrito por Samuel Fuller -
na verdade, a tela de título o anuncia grandiosamente como Samuel Fuller's The
Baron of Arizona. Estou longe de ser um fã de Fuller. Os cinéfilos o adoram,
especialmente aqui na França, onde eles podem ser bastante pretensiosos em
relação aos filmes, que eles chamam de sétima arte (depois da arquitetura,
escultura, pintura, música, poesia e dança), e são autoristas inveterados,
atribuindo tolamente ao diretor toda a contribuição criativa em um filme.
Ainda assim, como Fuller frequentemente
dirigia, escrevia e produzia seus filmes, que tinham certas tendências
artísticas (para compensar o tema sensacionalista), suponho que às vezes eles
tinham razão. De qualquer forma, Fuller é admirável no que diz respeito aos
franceses. Eu mesmo acho seus westerns escabrosos e de aparência barata. Esse
foi seu segundo filme, depois do polpudo I Shot Jesse James, do ano anterior.
Run of the Arrow, de 1957, foi absolutamente terrível, com Rod Steiger atuando
ainda mais do que o normal, e Forty Guns, do mesmo ano, foi um lixo. O melhor
filme de faroeste que ele fez foi The Command, com Guy Madison no papel de um
médico do exército obrigado a assumir o comando de uma tropa de cavalaria em território
indígena, mas mesmo esse foi apenas razoável. No entanto, para ser justo (e seu
Jeff sempre tenta ser assim, provavelmente falhando), se você chamar The Baron
of Arizona de faroeste, ele foi um dos melhores de Fuller. O slogan era típico
de Fuller: 'MULHERES lutaram por seus beijos! HOMENS clamavam por sua vida!
Mas, na verdade, não era tão sensacional assim.
Foi um filme de Lippert, filmado em quinze
dias. Como você provavelmente sabe, Robert L Lippert (1909 - 1976) foi o
proprietário de uma cadeia de cinemas que, irritado com os preços cobrados
pelos estúdios, começou a produzir. “Todo dono de cinema acha que pode fazer
filmes melhores do que os que lhe enviam”, disse ele. “Então, em 1943, tentei
fazer isso.” Ele ajudou a financiar cerca de 300 filmes, todos de baixo
orçamento. Ele disse sobre si mesmo: “O que se diz em Hollywood é: Lippert faz
muitos filmes baratos, mas nunca fez um filme ruim”. Ainda assim, acho que
seremos nós que julgaremos isso. Lippert fez alguns bons filmes de faroeste, é
preciso dizer. Gosto especialmente de Little Big Horn, por exemplo, um filme de
1951 com um excelente John Ireland e Lloyd Bridges.
Além de Vincent estar à espreita sinistramente
como um Drácula do Oeste, há mais boas notícias: o filme foi filmado por James
Wong Howe, um dos melhores diretores de fotografia que Hollywood já produziu.
Ele era um mestre do preto e branco e das sombras e, com a inclinação de Fuller
para o noir, isso resultou em algumas cenas incrivelmente boas, especialmente,
na minha opinião, quando a multidão de linchadores estava nas sombras, pronta
para atacar. As cenas noturnas e de chuva também são maravilhosas. Howe era um
verdadeiro artista, e há cenas em The Baron em que isso realmente fica
evidente.
É uma história bastante fantástica de James
Reavis (Price), um funcionário do cartório de registro de imóveis que elabora
um esquema para colocar as mãos em todo o Arizona. Ele se esforça ao máximo
para falsificar documentos, chegando a ir à Espanha e passar três anos como
noviço para ter acesso à biblioteca do monastério onde estão guardadas as
concessões de terras originais. Em uma espécie de Anastasia, ele escolhe uma
jovem órfã e faz dela a herdeira de uma fabulosa concessão de terras do rei
Fernando VI da Espanha em 1748. Ao se casar com ela, ele se torna o Barão do
Arizona.
Surpreendentemente, James Addison Reavis (1843-1914) foi, de fato, uma pessoa real que se tornou um barão de
terras ultra-rico, foi recebido pela Rainha Vitória e apoiado pelo pai de
William Randolph Hearst, mas acabou sendo considerado culpado de tentar roubar
a maior parte do Arizona falsificando documentos de concessão de terras. Ele
pagou uma multa de US$ 5.000 e cumpriu dois anos de prisão.
De certa forma, o herói da história é Griff,
um escritor e especialista em falsificação que trabalha para o governo,
interpretado por Reed Hadley, um dos destaques de Lippert. Há uma relação
bastante interessante ao longo do filme entre o barão e o escritor. O primeiro
usa a obra do segundo como uma bíblia, mas finge que não a leu.
Cada um parece ter uma admiração furtiva pelo
outro. É uma imagem de flashback, com Griff em 14 de fevereiro de 1912, quando
o Arizona já era um estado, contando a história a outros cinco senhores idosos.
Ellen Drew interpreta a garota órfã que se
transforma em uma bela baronesa sob a tutela de Vincent. Drew foi notada por
William Demarest enquanto trabalhava em uma sorveteria de Los Angeles, um conto
clássico de Hollywood, e recebeu um contrato com a Paramount. Mas ela nunca
chegou a fazer sucesso. A biografia do IMDb diz: “Ela nunca conseguiu se
destacar entre o bando de beldades de Hollywood em exibição e, portanto,
permaneceu na periferia durante a maior parte de sua carreira.” No faroeste,
ela estrelou com Preston Foster o filme Geronimo, de 1939, e foi a
protagonista, oscilando entre Glenn Ford e William Holden em The Man from
Colorado. Ela foi bastante memorável, mas os doze filmes de faroeste que fez
foram, em sua maioria, trabalhos de baixo orçamento.
Os monges e ciganos espanhóis com quem Vincent
se envolve depois de fugir do mosteiro parecem ter sotaques muito americanos,
mas não importa. Na verdade, acho que Gene Roth, o padre superior, era de
Dakota do Sul, mas ele certamente parece e soa como um brutamontes do Bronx. É
muito divertido.
Os fazendeiros e agricultores de Arizon que
foram desapropriados pelo barão e pela baronesa ficam um pouco irritados.
Então, eles recorrem a uma instituição americana muito querida, tão popular
quanto o jantar de Ação de Graças ou o desfile de 4 de julho: o linchamento.
Isso dá a Fuller um final satisfatoriamente (melo)dramático.
Ainda assim, há um final emocionante. Como eu
odeio final emocionante. Ah, bem.
Assista, por causa de Vincent Price e da
fotografia de Jimmy Howe. Mas não espere um ótimo faroeste.
....
Review by Rafael "Mister Movie"
Jovine -
(tradução livre)
Ação! - Três autores: The Narrative Tabloids
Of Samuel Fuller
Para o segundo filme de Fuller, o diretor
revisita o gênero faroeste da mesma forma que fez com o primeiro, deixando para
trás os cowboys e os tiroteios em favor de um estudo de personagem baseado em
uma história real sobre um homem que quase tomou conta de todo o estado do
Arizona e o romance que pode trazê-lo de volta à razão. O filme também tem a
distinção de ser um dos primeiros trabalhos de Ed Wood como dublê.
Mas a bobagem não termina aí, pois Vincent
Price, o astro do filme, traz consigo uma certa teatralidade que caracterizou
toda a sua carreira. Isso torna esse melodrama ainda mais divertido. Para a
surpresa de ninguém, a cinematografia do famoso pioneiro James Wong Howe é de
primeira linha. Ele pega um roteiro simples e muita ambição e o transforma em
um filme realmente excelente.
Em suma, embora tenha um tom um tanto
melodramático que prejudica o filme, ainda vale a pena assisti-lo devido ao seu
contexto histórico e às boas atuações. Letterboxd
28/05/25
O Libertino, The Libertine, 2004, Laurence Dunmore Redação: Stephen
Jeffreys
No iutubi aqui
O libertino por Pablo Villaça
- Eu te condeno a ser você pelo resto dos seus
dias.
Quando o Rei Charles II dirige estas palavras
ao poeta e dramaturgo John Wilmot, em certo momento de O Libertino, sua
condenação traz o peso do reconhecimento de que aquele é um homem cuja vida
tornou-se um fardo: consumido pela doença e odiado por muitos, Wilmot parece
mais abatido por permanecer vivo do que ficaria caso fosse sentenciado à guilhotina.
Isto, porém, não vem como surpresa para o espectador, já que, na introdução do
filme, o protagonista rompe a quarta parede e, dirigindo-se ao público,
manifesta orgulho pela própria falta de caráter, avisando-nos de que não
gostaremos dele.
Uma das figuras mais conhecidas da Inglaterra
durante o período pós-restauração da monarquia britânica (1660), John Wilmot, o
Segundo Earl de Rochester (título que herdou do pai), era um autor conhecido,
entre outras coisas, por seus textos picantes e nada comportados – e uma de
suas peças, Sodoma, é considerada o primeiro exemplar impresso de pornografia
da História. Arrogante, egoísta e inconseqüente, casou-se por interesse
financeiro com uma jovem herdeira, chegando a seqüestrá-la a fim de obrigá-la a
aceitá-lo – um plano frustrado pelo próprio Rei Charles II que, mesmo sendo seu
amigo, ocasionalmente o enviava para o exílio como punição por seus exageros
(eventualmente, a tal herdeira, Elizabeth Malet, se casaria com Wilmot por
vontade própria). Hedonista convicto, não desperdiçava a chance de ir para a
cama com quem quer que fosse – homens ou mulheres – e, entre suas “conquistas”,
encontra-se a renomada atriz inglesa Elizabeth Barry, cujo imenso talento nos
palcos teria sido lapidado justamente por Wilmot, seu “tutor” (algo que o filme
retrata, embora ainda haja grandes discordâncias sobre o fato entre
historiadores).
Aliás, um dos pontos fracos de O Libertino diz
respeito justamente às inúmeras sessões de ensaios entre os amantes:
pretensiosas e inverossímeis, as “lições” dadas por Wilmot parecem sair de um
manual de auto-ajuda – e se Barry realmente dependesse daquelas aulas para se
tornar uma grande atriz, seu futuro no elenco de Malhação estaria assegurado.
Um dos principais problemas atribuídos à moça pelo filme, por exemplo, é o
pouco alcance de sua voz - e mais tarde, quando a vemos “brilhando” no palco,
sua performance contida funciona para o Cinema, mas continuaria inaudível para
qualquer membro da platéia que não se encontrasse na primeira fila. Como se não
bastasse, Samantha Morton, embora seja uma atriz talentosa, parece determinada
a quase sempre transformar suas personagens em figuras extremamente frágeis e
vulneráveis (observem como ela cobre o rosto ao ir para a cama com Wilmot) e,
neste caso, esta característica soa implausível, desnecessária e enfraquece o
impacto que Elizabeth Barry deveria causar em Wilmot.
Enquanto isso, a bissexualidade do
protagonista é praticamente ignorada pelo roteiro de Stephen Jeffreys (também
autor da peça que deu origem ao filme), que limita-se apenas a insinuar o
interesse de John Wilmot por outros homens. Da mesma forma, O Libertino jamais
se preocupa em explicar por que o sujeito era tão respeitado profissionalmente
– o que fazia dele um autor tão conceituado, bem-sucedido? Seu processo
criativo jamais é abordado pelo longa, que se mostra muito mais interessado em
seu dom para a auto-destruição. Desta forma, a impressão que temos é a de que
Wilmot não era verdadeiramente talentoso; apenas tinha coragem para ser vulgar
em seus textos, o que o diferenciava de boa parte de seus contemporâneos.
Por outro lado, o filme demonstra coragem ao
abraçar um protagonista tão desprezível: sempre com um olhar inegável de
desprezo para todos que o cercam, o escritor não faz o menor esforço para
ocultar seu egoísmo monstruoso – a não ser, é claro, ao julgar estar perdendo
sua influência sobre alguém, quando, então, volta a utilizar todo seu charme
para reconquistar sua “vítima”. Em certo instante, por exemplo, sua esposa
manifesta sua frustração em um pequeno monólogo escrito com grande elegância:
- John, eu poderia suportar nosso casamento mais facilmente caso não
houvesse fingimento. Caso eu fosse uma mera dona-de-casa e um passaporte para
que você tivesse acesso à linhagem nobre. Mas quando você está longe, escreve
tão convincentemente sobre o quanto me ama e... não acho que queira me
torturar, mas é uma tortura ser informada à distância sobre sua paixão e,
então, ser tratada com tamanha frieza pessoalmente.
Ainda assim, há momentos em que O Libertino
parece tentado a justificar as ações de seu protagonista: além da cena
introdutória (que fará uma rima narrativa com o desfecho do longa), que busca
mostrar um John Wilmot mais razoável, ainda que ciente de sua própria canalhice
(se ele nos alerta contra si mesmo, não pode ser tão mau!), o filme investe no
intenso amor do escritor por Barry como forma de torná-lo mais vulnerável e
menos frio – e o fato é que o interesse romântico do sujeito jamais soa
realmente convincente. Felizmente, por mais que o roteiro busque aproximar o
espectador de seu personagem-título, mostrando-o apaixonado, retratando sua
busca pela redenção ou mesmo confessando seus pecados, o brilhante Johnny Depp
simplesmente não permite que isto aconteça. Sempre que o filme cria uma
situação que possa inspirar nossa simpatia por Wilmot, Depp carrega no cinismo,
como para nos lembrar de que não devemos confiar no sujeito – o que engrandece
a produção.
Enquanto isso, o diretor estreante Laurence
Dunmore revela um moralismo irritante ao encenar as cenas de sexo (e orgias) de
maneira carregada, desagradável, como se víssemos um quadro do Inferno na
Terra. Em contrapartida, demonstra sensibilidade ao manter sua câmera afastada
do protagonista enquanto este mantém uma conversa delicada no fim de um
corredor, como se quisesse preservar sua intimidade (o que me fez lembrar de
Taxi Driver, quando Scorsese desvia o olhar de sua câmera enquanto Travis se
embaraça ao telefone com Betsy). Da mesma forma, Dunmore faz uma escolha particularmente
interessante quando Wilmot, já com o rosto desfigurado pela sífilis, faz um
discurso: mantido fora de foco, o personagem caminha em direção à câmera, mas,
sempre que se torna claramente visível para o espectador, o cineasta volta a se
afastar, como se a repulsa provocada pela figura grotesca do personagem não
permitisse sua aproximação.
Trazendo ainda o sempre competente John
Malkovich (que retrata a ambigüidade de sentimentos de Charles II com relação a
Wilmot de maneira sensível), O Libertino é mais um veículo que comprova o
imenso talento de Johnny Depp e seu eterno interesse por personagens malditos,
à margem da Sociedade. Taí um ator que, mesmo em filmes irregulares como este,
é sempre capaz de despertar o interesse do espectador.
05 de Julho de 2006
Pablo Villaça, 18 de setembro de 1974, é um
crítico cinematográfico brasileiro. É editor do site Cinema em Cena, que criou
em 1997, o mais antigo site de cinema no Brasil. Trabalha analisando filmes
desde 1994 e colaborou em periódicos nacionais como MovieStar, Sci-Fi News,
Sci-Fi Cinema, Replicante e SET. Também é professor de Linguagem e Crítica
Cinematográficas.
Stephen Jeffreys (1950-2018)
John Wilmot
Carlos II de Inglaterra
Elizabeth Barry
30/05/25
José Lino Grunewald: Ingmar Bergman & Robert Aldrich et cetera
Ao propor a postulação dos principais atores que atuam positivamente na
estética de Bergman não nos podemos furtar, de início, a chamar a atenção para
sua obsessiva paixão pelo enquadramento e composição. Todas as cenas são
confeccionadas com um rigor poucas vezes notado até então. Procura ele tirar do
"décor" o máximo de suas possibilidades plásticas, possuindo, além
disso, um acurado senso no controle de iluminação do detalhe.
Nesse ponto é que se deve observar um fator da mais alta relevância em
seu esteticismo – o ultrapassar dos efeitos de montagem pela "qualidade''
do "shot". Não queremos dizer, com isto, que o cineasta sueco
desdenhe da função montagem, o que seria absurdo por ser esta de natureza
orgânica para qualquer processo de elaboração da linguagem cinematográfica.
Ocorre que, ao contrário de um Eisenstein, por exemplo (o maior teórico de
montagem, aliás), não é o efeito proveniente dos recursos de montagem que
incide imediatamente como elemento direto a atuar na sensibilidade do
espectador, no papel de agente de impacto emocional. A não ser dentro de seus
recursos acessórios - um corte deliberadamente utilizado para funcionar em dado
momento - a montagem permanece em sua função estrutural, condicionando
justamente a eclosão dos efeitos provocados pelo incansável perscrutar da
câmera.
Surge, por conseguinte, um fenômeno que vem novamente situar Bergman em
posição bem distinta da grande maioria dos realizadores até então aparecidos.
Dentro dessa sua rigorosa manipulação do enquadramento e da composição,
valorizando consequentemente a função do "décor" e da iluminação, êle
atinge em cada filme, ao contrário de quase todos os "metteurs en
scène", a superação do que poderíamos chamar de uma energia visual nas
cenas de interiores.
A cena em exteriores, com a concepção paisagística inerente à sua
projeção, sempre foi um campo aparentemente mais fácil, e consequentemente mais
explorado, quando necessário era uma maior amplificação temática em função das
possibilidades da simbologia contida puramente nos efeitos plásticos. Porém, no
caso em que o momento de detonação do elemento simbólico esteja pré-ajustado a
uma visualização estática, não existe tal imposição. E é nisso que Bergman
rompe com uma longa tradição na qual se pautava a orientação de grande maioria
de responsáveis pelo roteiro.
Claro que em condições opostas, quando essa visualização se mantém
adstrita a um sentido de movimento de massas, dinâmica portanto, torna-se
forçosa aquela concepção de amplitude a ser proporcionada pela cena. Bergman entretanto
não é um épico; no sentido de que a acepção de expansão, ligada a êsse
conceito, não está vinculada à, periferia de suas obras. Poucas vêzes manuseia
com as massas num sentido dinâmico, nem possui uma preocupação imediata com as
repisadas variações panorâmicas ensejadas pelos exteriores. Seu problema é o
individuo; e a reação do meio vem geralmente simbolizada na atitude de
determinado personagem, que também muitas vêzes surge com foros de entidade
mítica. É o Copelius de "Juventude, Eterno Tesouro" ou o velho que
susta o suicídio do desesperado espôso no primeiro episódio de "Enquanto
as Mulheres Esperam".
Porém, exatamente para assinalar o que anteriormente já sublinháramos,
que êle procura sempre se renovar, nunca se repetir, que, justamente, a melhor
sequência que construiu e talvez, a melhor que tivemos ocasião de apreciar até
hoje, em tudo a que já nos foi dado assistir em cinema, apóia-se principalmente
em efeitos imediatos de montagem e foi filmada em exteriores. Referimo-nos à
inesquecível passagem de "Noites de Circo", em que o palhaço vai
buscar a espôsa que se banhava diante dos soldados em manobras, encerrando-se
admiràvelmente com um marcar sonoro de sua volta - apenas o vulto, com a mulher
nos braços, caminhando trôpego - o cenário estático, as linhas de composição,
simples; uma autêntica reedição do calvário. Nesse trecho, assume a montagem um
papel da mais alta relevância: a perfeita utilização dos cortes, a
impressionante interseção dos planos com a gradação dos "shots", o
"close-up" brusco significativo; tudo compassado pelo extraordinário
acompanhamento musical expressionista de Karl Bigger Blondhau. Tal sequência é,
sem dúvida, um dos pontos; mais altos que atingiu o cinema.
Jornal do Brasil 03/03/1957
Irgmar Bergman II
Ao contrário dos realizadores neo-realistas, Bergman jamais procura
imprimir um sentido imediatamente social em sua obra. Esta liberdade de
compromisso é que justamente faculta um maior empreendimento às perquirições
formais necessárias para que se mantenha um constante revigoramento dos meios
de expressão na sétima arte. Moço ainda, já possui uma filmografia extensa,
sendo que dois de seus filmes, entre os que aqui foram exibidos, constituem
obras maiores, antológicas mesmo: "Noites de Circo" (Gyrcklanas
Afton) e "Juventude, Eterno Tesouro" (Sommarlek); e outro, malgrado
se trate de uma realização algo desigual, não deixa de ser um filme importante:
"Enquanto as Mulheres Esperam" (Kvinnors Vantan). "Monika e o
Desejo" (Sommaren Med Monika), embora paire num plano inferior e tenha
menos densidade, apresenta também excelentes momentos de cinema, como o
inesquecível "close up" de Harriet Anderson, em que ela fita
longamente o espectador enquanto se ouve ao mesmo tempo um dixieland.
Bergman não é entretanto somente "metteur en scène"; em boa
parte de suas fitas é o próprio autor do cenário. Suas atividades nessa função
também desenvolveram-se fora de suas produções e tiveram um papel marcante.
Basta lembrar "A Tortura de Um Desejo" (Hets), de Alf Sjoberg,
pelicula que serviu exatamente para chamar a atencão aos olhos do mundo, no
após-guerra, do novel cinema sueco. Em "Eva" de Gustav Molander,
percebe-se de um modo claro a sua incisiva influência na confecção de certas
passagens, como a do sonho do protagonista, compassado pelo tambor do colega de
quarto, que está provocando-o a seduzir sua espôsa - uma sequência insólita,
inusitada e criando, às vêzes, a impressão de um macabro divertissement.
A constante em sua obra - a tentativa de fuga do ambiente que sufoca e a
busca de um outro rumo - tem sempre o amor como veículo impulsionador, a
concretizar essa ânsia e, transfigurando o pathos, Bergman transporta o pequeno
drama do homem comum às últimas consequências do grande trágico. Um modo
reflexo de valorizar o humano, partindo do particular, e assim conferir ao
impasse e à conjuntura dramática do indivíduo, a intensidade que só este mesmo
poderia avaliar. Essa uniformidade de pretensões pressupõe, destarte, um
caráter funcional ao seu esteticismo e os personagens, incorporados a uma nova
dimensão do patético, assumem uma figuração que transcende os limites que
permitiriam os efeitos estritamente vinculados a um esquema puramente realista
e, consequentemente, direto de focalizar o tema. Saindo do campo oposto, foi
justamente com um objetivo análogo que Renato Castellani, em "Romeu e
Julieta", carregou o toque neorealista na atuação dos intérpretes, a fim
de humanizar o grande trágico em Shakespeare.
Tal estilização, por si alcançada, e que é uma das razões que faculta a
sua ascensão entre os maiores realizadores da sétima arte, não o cingiu
entretanto a um modus faciendi uniforme, cujo excessivo repisamento acabaria
redundando na esterilidade. Não se prendeu à categoria de mestre, isto é,
dominando os instrumentos e portanto atendo-se principalmente a uma correção
artesanal, como o Wyler dos últimos anos. Ao contrário, procura sempre
utilizar-se de um modo inventivo dos processos e elementos formais. Domina
amplamente seu estilo, porém, dentro disso, renova-se de filme para filme,
criando diversas soluções inesperadas com relacão ao que já tinha sido
aplicado. E nesse ponto, pela maneira com que concebe o detalhe, pelo arrôjo
inventivo que imprime a certas sequências, poucos realizadores, hoje em dia,
podem sofrer um paralelo com Bergman em sua dinâmica de criador - um Aldrich,
um David Lean, um Visconti, um Elia Kazan ou um Charles Laughton (pela amostra
de "The Night of the Hunter”).
Jornal do Brasil, 24/02/1957
Ingmar Bergman - IV
Ainda a propósito de "Noites de Circo", iremos agora nos
reportar a outra das características do "regisseur'' sueco, vinculada à
sua técnica de narrativa no cinema - a liberdade temporal. Tal processo invoca,
de imediato, um dos recursos mais utilizados no ecran, que é o flash-back.
Em grande parte dos filmes o flash-back é perfeitamente substituível
pelo monólogo ou pelo diálogo, cabendo a opção aos próprlos realizadores, que
procuram, de acôrdo com o esquema traçado, verificar por qual dos meios
poderiam melhor apurar a linguagem cinematográflca.
Entretanto, Bergman, ao se utilizar do flash-back, confere a este uma
função saliente - essencial, nunca acidental - dentro da estruturação da obra.
Não atua o flash-back apenas incidentalmente, a qualificar uma das ramificações
acessórias da temática do filme; é uma parte consubstanciada visceralmente ao
todo, contribuindo para condicionar o sentido do movimento de temas nas
diversas áreas a serem delineadas pelos vetores da estrutura.
Mediante essa ruptura da lógica do tempo, amplia-se e, ao mesmo tempo
fertiliza-se o campo de operação dos agentes simbológicos. Nisso ele segue em
paralelo com a técnica do romance moderno, rompendo uma longa tradição da
linguagem direta e talvez seja Faulkner, de "O Velho",
"Santuário'' e “Uma Fábula", principalmente - com quem mais se
assemelhe na conjugação dos métodos.
Voltando à mencionada sequência de "Noites de Circo", à
primeira vista parece, embora esteticamente admirável comum, no que se refere
ao modo como o flash-back foi inserido no começo da película e extremamente deslocada
do ritmo e da própria história. Terminada, porém, a fita, desvenda-se a sua
importancia vital. Colocada assim no princípio, anuncia o fim, antecipando os
efeitos de repercussão dramática a serem desfechados pelo patos criado. O que
ocorre durante o banho de Alma não será senão um reflexo do que acontecerá no
fim, quando Albert, o dono do circo, provoca em pleno picadeiro o sedutor de
sua companheira, a jovem amazona. Este último, saltando na arena, surrará
zombateiramente o pobre ofendido, diante da assistência, que na cena do banho
eram os soldados e os colegas do palhaço.
Essa sequência da briga, também excelente, reveste-se de brutal
selvageria, atuando o diretor com invulgar maestria, desde o início, quando,
após o primeiro murro desferido sôbre Albert, provoca um corte brusco para a
cara de um palhaço assustado, com a boca exageradamente esparramada, de tinta.
Servindo-se principalmente de recursos de pura imagem, consegue Bergman atingir
o que grande parte dos estilistas dda violência do cinema americano alcançam
mediante recursos enfaticamente sonoros.
Após o triste papel ridículo, tentará Albert o suicidio e, numa cena
igualmente admirável, em que os olhos de um gato condicionam as variações da
tensão do espectador, ele desistirá porque seu destino irremediavelmente
traçado é o de rodar à toa, com sua carroça, de cidade em cidade, e mais que
tudo, porque não é um personagem metafisicamente responsável nem consciente.
Jamais poderá assumir uma atitude literária, pois não tem capacidade especulativa
sobre o significado mítico das coisas - é quase um animal doméstico e, nessa
oportunidade, o instinto de auto-preservação superará a noção do trágico.
Destarte, não seria funcionalmente adequado que a grandlosldade, a
amplitude do drama, em estado bruto - latente, fosse lapidada mediante as
reações do próprio protagonista. Daí ter sido antecipada a eclosão que
transferida para aquele memorável flash-back inicial, atordoante tanto pela sua
grandeza como pelo mistério, despertará o poder catártico do espectador para
todo o resto do desenrolar da fita.
Já a linha de tensão dramática de Ana (Harriet Anderson), conduzida de
maneira direta, com respeito à gradação de intensidade, atingirá seu ponto alto
de saturação, decorridos dois têrços do tempo de projeção. É o momento em que
se entrega ao cínico ator, um dos típicos e frequentes personagens satanicos de
Bergman, com o tio da heroína, em Sommardeck, ou o sedutor do 2º episódio de
“Enquanto as Mulheres Esperam”, breve aventura de Ana constitui uma das figuraças
das tentativas de fuga do cotidiano, próprias da temática bergminiana. Aqui,
todavia, a protagonista conhece sua pequenez, e só terá coragem de se arriscar
quando o outro a livra dos escrúpulos oferecendo paga pelo amor e,
consequentemente, dando enfase à sua mediocridade. E, noutra cena antológica,
volta a "meteur en scène" a atingir uma auto-superação de energia
visual, quando todos os elementos postos em cena funcionam com perfeita coesão:
os espelhos, além do caráter simbólico, ampliado o campo visual; a jóia,
balançando em primeiro plano, numa variação de enquadramento quase que
compassada em tempo de ballet; finalmente, a exatidão dos diálogos, conferindo
perfeita naturalidade à cena.
Sôbre essa legítima obra-prima que é "Noites de Circo",
deve-se ainda chamar a atenção para a impecável fotografia de Sven Nykvist e
Hilding Bladh, o acompanhamento musical de Karl Birger Blomdhau, conseguindo em
muito intensificar o sublinhamento expressivo da fita, e para a interpretação
de Ak Gromberg, que compõe um dos grandes tipos grotescos da sétima arte.
"Noites de Circo” foi considerada pela crítica uruguaia e argentina
a melhor película exibida nos anos em que respectivamente foi lançada em ambos
os paises, tendo no último superado, inclusive, "La Strada", de Fellini,
julgamento que, sob diversos aspectos se reveste de plena razão.
Jornal do Brasil, 17/03/1957
Ingmar Bergman - V
A função do ''flash-back" assume um caráter mais complexo em
"Kvinnors Vantan" (Enquanto as Mulheres Esperam). O argumento, em
linhas gerais, se constitui na história de três mulheres que numa casa de
campo, enquanto aguardam a chegada dos respectivos maridos, começam a narrar,
cada uma por sua vez, os acontecimentos mais incisivos que lhes marcaram a
grande aventura que, para Bergman, é a do amor, com suas variedades, ético e
mórbido-sexuais.
Destarte, o filme se apresenta fragmentado em três partes distintas,
cuja fusão temática das respectivas narrações haverá de se plasmar no momento
em que aflore uma idéia do irrisório. Em virtude disso, o ritmo da película,
por outro lado, não obedecerá a um sentido de crescendo em tensão - pelo
contrário: a fita em vez de vir em direção do espectador, descerra-se à sua
frente, tal qual se fôra um painel, cujo findar-se é a própria consequência de
uma forçosa volta ao princípio, mediante a aventura que será encetada pelos dois jovens que fogem pelo mar.
As mulheres são as três grandes vencidas, e que agora a experiência
ensinou a aceitar a cômoda isenção do alheiamento burguês. Falam dos
acontecimentos passados com uma certa frieza e o sublinhamento nostálgico
constitui mais uma falácia em esconder a fraqueza do que um anelo pelo que
passou. Bergman circula com a câmera pelas suas cabeças, trazendo à tona as
mais variadas concepções de composição com esses elementos e assim confere a
impressão de um moto-perpétuo, provocado pela atenção de tôdas no clima
evocativo da conversa.
Nesse caso, romper com uma estrutura linear da narrativa, já seria uma
consequência lógica para esquematisação do cenário. Porém, o realizador foi
mais longe e incluiu, no segundo episódio, outro "flashback", abrindo
mais uma válvula de escape a fim de inserir as sequências melhores de
"Enquanto as Mulheres Esperam". Tais sequências funcionam como
contraponto à solidão de uma mulher grávida (Maj Britt Nilson) que rememora a
féerie de encanto que precedeu a sua noite de amor. Primeiro, o cabaré, onde
Bergman, retomando o mais íntimo contato com o expressionismo alemão, constrói
uma passagem admirável, mediante o ambiente esfumaçado, a cara dos espectadores
e as coristas no palco, tudo conferindo um caráter extremamente bizarro ao
ambiente, graças também ao hábil jôgo de cortes.
A cena da sedução, que vem a seguir, é das mais características como
demonstração da fecunda imaginação do cineasta sueco: a jovem no quarto escuro,
ligeiros ruídos, um sôpro é a mão que brilha, como se flutuasse no espaço.
Finalmente a voz do corredor, entoando uma canção bela, estranha.
Outro excelente momento de cinema, que ocorre durante êsse segundo
episódio, é o detalhe do telefone, apresentado de tal forma que desperta na
platéia a mesma ânsia da moça em ouvir o seu tilintar.
O primeiro episódio do filme é, entretanto, o melhor, pela sua impecável
unidade plástico-ritmica e também pela extraordinária interpretação de Anita
Bjork, cujo papel de casada insatisfeita ela vive ainda melhor que seu famoso
desempenho em "Senhorita Júlia", de Alf Sjoberg. Do início ao fim, o
tratamento visual é vazado dentro de um rigoroso manusear do enquadramento,
conjugado, ao mesmo tempo, com o incessante perscrutar dos travellings curtos
(interiores), em busca do mais satisfatório ponto estático de composição.
O terceiro episódio, amoralmente saboroso, passa-se quase que
inteiramente dentro de um elevador que enguiça, quando levava um casal de meia
idade. Lembrando um pouco os realizadores britânicos, tanto pelo assunto, como
pelo "toque" imprimido, Bergman consegue num "tour de
force" manter viva essa parte da fita, por todo o tempo.
Jornal do Brasil, 24/03/1957
Ingmar Bergman - VI (conclusão)
A fuga dos jovens, que se verifica no final de "Enquanto as
Mulheres Esperam", não diferirá, em essência, da aventura de Monika. A
suprema felicidade eclode e dura como um verão para, posteriormente, se
dissipar. Daí, a razão da persistência do têrmo (sommar) no título de boa parte
das realizações. Mesmo quando não seja a perversidade do mundo ou a própria
falácia da tentativa, a fatalidade se encarregará de quebrar êsse período de
ventura, como em “Juventude, Eterno Tesouro" (Sommarleck).
Nesse filme, aliás outra obra de grande envergadura, todas as constantes
e variantes de sua temática se concentram num todo compacto, assumindo,
destarte, invulgar importância entre as fitas de Bergman. Narra a história de
uma bailarina que, na dúvida em imprimir novamente um significado à sua vida,
através do amor, volta à casa de campo onde, há 14 anos, floresceu seu verão. O
"flash-back" ocupa então quase todo o desenrolar do filme, com breves
interrupções.
Ao escolher as cenas de ballet como contraponto dos dois tempos da
história, tinha o diretor a imediata consciência das conotações simbológicas
entre a dança e o verão. A dança, com a sua alegria, leve - absoluta -
forçosamente efêmera, atua inclusive em paralelo com os aspectos mórbidos das
introversões sentimentais de seus personagens. Essas passagens de ballet
lembram também, sob alguns pontos de vista, as mesmas de "Limelight”, de
Chaplin, embora, ao contrário desta última película, a intensidade da
visualização em "Juventude'' possua um carater mais transfigurador, não
incidindo apenas como qualificativo dos fluxos e refluxos emocionais do
protagonista.
Todas as cenas dos jovens em seu pequeno paraíso correm num amplo
diapasão, em que o sol, a natureza, a mocidade e a própria quietude das
paragens são os principais elementos constitutivos. Bergman não perde ocasião
para criar seus preciosos achados, como, por exemplo, o diálogo das mãos: os
amantes deitados no divã, e a câmera focalizando apenas os braços levantados e
as mãos em movimentos constantes, tocando-se, entrelaçando-se em belos e
sugestivos efeitos.
Até a cena da morte de Henrik, permanece num clima alegórico, sob um
ritmo algo moderado, calcado numa pertinaz contenção dos efeitos mais
vibratórios. Porém, a partir do acidente, até o fim, o realizador entra com o
máximo de sua capacidade criadora para uma elevada tensão da energia visual e
nos brinda com sequências de extraordinária beleza, a começar justamente com a
queda de protagonista, que ao tentar dar um mergulho, vai de encontro às
pedras. A cena é impressionante. A câmera foca seu impacto na rocha, fazendo
depois, Bergman, uma admirável fusão da cabeça pendida com a nuvem escura que
paira no céu. A seguir, as sequências no hospital com a posterior saída de
Mari, em que, noutro excelente recurso de fusão, os lençóis do quarto do
paciente confundem-se com as paredes do corredor. E, no carro onde ela retorna,
um peculiar jogo de claro-escuro ilumina seu rosto num compasso macabro.
Logo após, chegamos a um trecho decisivo no desfecho da película, onde
os requintes formais de Bergman atingem ao paroxismo. Já estamos no tempo
presente. Mari, findo o espetáculo, volta ao seu camarim e senta-se frente ao
espelho. Surge então Copelius personagem estranho - ainda com as vestes com que
aparece no palco. Entabulam diálogo: ele é incisivo - não adianta mais
alimentar esperanças. A cena torna-se admirável: ela, o maquilagem em
deconposição, a intensa iluminação interior, mediante as lâmpadas que circundam
os espelhos; estes, ao mesmo tempo, ampliando o campo visual, desvendando novos
espaços de composição num enquadramento apurado ao extremo. Transfigura-se o
ambiente por completo e os personagens transcendem a estreita realidade
sensível. Esta fantástica passagem dura até o momento em que chega o repórter
que com ligeiras frases e breves acenos espanta o gênio mau, quem sabe, talvez
o próprio Bergman. O amor reflorirá e, por isso, a última sequência focaliza
novamente a dança.
"Juventude" é, de certo modo, a menos caótica das fitas de Bergman
que abordam o mesmo tema. É verdade que não se pode assegurar uma totalidade
absoluta a êsse visIumbre de esperança. Será o advento de outro verão ou a
integral acomodação a uma vida burguesa?
O filme repousa quase que inteiramente na interpretação de Maj Britt
Nilson. Não é a mais bem dotada das artistas suecas que atuam sob a batuta de
Bergman. Em "Enquanto as Mulheres Esperam", suportou mal o confronto
com Anita Bjork e Eva Dahlbeck. Mas para esta realização, além de seu tipo
físico ser adequado ao papel, correspondeu com êxito às nuanças de
interpretação.
O próprio diretor escreveu o argumento e a cenarização, esta juntamente
com Herbert Grevenius. Para a fotografia e a música, contou com dois habituais
colaboradores, Gunnar Fisher e Erik Nordgren.
''Sommarlek" foi produzida em 1950 e até hoje está mofando nas
prateleiras de uma distribuidora, sem ter sido ainda exibida aqui no Rio.
É anterior a· "Monika e o Desejo", "Enquanto as Mulheres
Esperam" e "Noites de Circo". Após esta última, Bergman enveredou
para o gênero da comédia satírica que, segundo ele, é o que mais se ajusta ao
seu temperamento. Realizou então "Uma Lição de Amor" e "O Sonho
das Mulheres", das quais não possuímos referências de ordem crítica, e
“Sorrisos de Uma Noite de Verão”, muito bem recebida por toda a crítica
européia. Parecia, portanto, estar com razão e esperamos que nos seja dado
assistir esta sua incursão num terreno em que existem na verdade muitas
afinidades com certos aspectos de seu temperamento.
Jornal do Brasil, 31/03/1957
Ingmar Berman na comédia
Produção - Svenskfilmindustri; Direção e cenário- Ingmar Bergman
Fotografia - Martin Bodin; Música - Dag Wiren
Argumento e diálogos – Ingmar Bergman; Cenografia - P. A. Lundgren
Elenco - Gunnar Bjornstrand , Eva Dahlbeck, Ake Gromberg, Harriett
Anderson, Yvonne Lombard, Birgit Reimers, Olof Winerstrand, Renée Bjorling,
John Elfstrom, Dagmar Ebbesser, Sigge Furst.
Após ter concluído essa fascinante película, verdadeira obra-prima, que
é "Noites de Circo" (Gyrcklanas Afton), Ingmar Bergman surpreendeu a
todos, declarando que passaria a se dedicar à comédia satírica, que considerava
o gênero ao qual melhor se adaptaria, na realidade, o seu temperamento - o novo
objetivo, enfim.
O inesperado, quanto a isso, provém não de que se pudesse conjeturar que
as suas possibilidades de sucesso na comédia fôssem menores, ou mesmo,
duvidosas. Pelo contrário, não apenas através de certa maleabilidade de seu
temperamento, por demais evidenciada, mas, por razão de uma série de elementos
formais integrantes da técnica em construir a linguagem cinematográfica e
adequados ao novo estilo, dos quais é inegável a sua extraordinária capacidade
de se utilizar com privilegiado domínio, facultava-se a previsão da perfeita
viabilidade do fato. A noção exata, de que é possuidor, de como jogar com o
detalhe, as variadas nuances de interpretação que obtém dos atores, o cinismo
frio, o superior desprêzo (superior, dizemos, em oposição à ánsia mais direta
de agressão, manifesta pela grande parte dos temperamentos latinos, tanto no
que se refere ao desejo de ridicularizar, como ao de chocar) denotado em
relação às instituições burguesas - tudo isso constitui um fator positivo para
o manejo da comédia satírica com credenciais para êxito.
O que viria, portanto, surpreender era o repentino abandono de uma saga
por êle mesmo criada: a do mundo caótico do indivíduo, atormentado pelo
efêmero, pelo irrisório das coisas que o cercam, ocasionando, por conseguinte,
a tentativa de fuga, quase sempre através do amor, êste com suas implicações
mórbido-sexuais e metafísicas. E, a metafísica, assolando, inclemente, os seus
personagens, quando, mesmo intuitivamente, lutam contra o destino, é a fôrça
motora que dinamiza o impacto dramático.
"Noites de Circo" foi justamente o grau máximo a que a tensão
se dilatou, a figuração do paroxismo da saga; depois, o autor talvez percebesse
então ter-se:esgotado no caminho do trágico, isto é, sentiu a impotência de ir
mais adiante em seu poder de expressão nesse caminho.
O pathos bergminiano já apresenta, entretanto, um caráter antológico e
ficará provavelmente na história da sétima-arte. Corresponde para o próprio
cineasta a uma escala forçada no evoluir de sua formação como pensador - que
permite que transpareça em suas obras um reflexo de sua automaturação. Tais
considerações se apropriam mais ainda, em especial, ao caso de Ingmar Bergman,
se levarmos em conta que, de suas 16 realizações até "Sorrisos de Uma
Noite de Verão", foi o cenarista de 13 e, dessas, 7 possuíam o argumento
original de sua própria autoria.
Assim, agora que a aventura ética fôra desenvolvida até às extremas
consequências, cabia ,a incursão por novos rumos - o fabulista, como pensador,
torna-se mais experiente e seguro de si; e pode troçar.
A certeza de uma transitoriedade permanente de todos .os valores
obrigará a uma atitude despojada de intenções falsamente construtivas. Para o
indivíduo responsável, a solução definitiva é tão irreal ou absurda como o
próprio esquema da aventura que a invoca. Esta, não passa de uma irrisória
plaisanterie e será ridícula e falaz além dela mesma. Daí, o artista consciente
estará munido de bastante senso de rigor para consigo e se despoja, não coloca
em cheque a problemática de sua vivência particular dentro do que vai realizar.
A sua liberdade não será jamais fazer o que queira, mas sim, saber o que faz -
uma· vontade firmemente dirigida e concentrada na criação do objeto. E tôda a
sua ontologia se espraiará (aqui falamos no homem de cinema) entre os seus
personagens como uma estratificação ou uma busca, mediante os vários métodos
dos quais se serviu, intuitivamente ou não, para o estudo do comportamento.
Trata-se da nocão exata de uma liberdade essencial – “freedom", em
contraposição a "liberty"(1).
***
Quando analisamos a obra de Bergman e o seu papel saliente como uma
contribuição de extraordinária e inobjetável importância para o cinema moderno,
pensamos logo em Malarmé. Assim como o autor de "Un Coup des Dés",
nenhum cineasta é mais consciente do que êle quanto ao objetivo de seu
trabalho. Ninguém se afasta tanto da obra para melhor servi-la. A obra de arte
não é a cristalização de um subjetivismo latente, nem uma expressão da
realidade exterior ou interior - porém, desde que consumada, uma realidade que
independe por si - autônoma. Da mesma forma que no grande poeta, nele
constatamos o apuro artesanal elevado à máxima potência, e também a inventiva
constante e o caráter encantatório de sua linguagem, com os recursos de
pontuação cinematográfica (corte, fusão, fade-in, fade-out, etc.) utilizados
sempre com um cunho de originalidade. Malgrado a incompreensão de muitos, um
impacto revitalizante, um discernir de novas perspectivas para alguns. Os seus
filmes demandam que sejam assistidos mais de uma vez, não somente para que
se.possa captar tôdas as pulsações radiais e acessórias de sua estruturação
temático-formal, como também para que se perceba todos os achados preciosos que
encerram.
Mesmo a idéia do "jôgo" surge também em Bergman com uma
recorrência afluente. Diz Eric Rohmer: 'Cette phrase
- Dieu n'existe pas - il la place à plusieurs reprises dans la bouche de
ses personages. Le mal dont nous souffrons est métaphysique. Chacun de nos
regards jetés sur le monde nous oblige à remonter jusqu'à cette évidence dont
rien, pas même le jeu, ne peut naus distraire" (2).
Finalmente, outra característica que apresenta, a reforçar a semelhança
com Mallarmé, é a de não ser um épico. Não se prende em demasia a exteriores e
o sentido de tal expansão nunca aflora à periferiá de suas obras. Ao contrário
de Eisenstein, os efeitos de montagem são geralmente superados ou dosados pela
"qualidade" do "shot''. Raramente vêmo-lo se utilizar da eclosão
mediante o movimento de massas (3). E, justamente, em virtude dêsse maior
consumar de sua energia visual nas cenas de interiores, da transfiguração pelo
barroco e do consequente detonar do elemento simbólico, através dos diversos
fatôres de detalhe pré-ajustados a uma concepção estática dos elementos básicos
de composição - sob o incessante perscrutar da cúmera – que se torna ainda mais
viável a sua adaptação à comédia satírica, sofisticada.
***
A caixa de música com os três bonecos que dançam; um raio cruza a tela -
corte brusco, e o "close-up" da jovem, dizendo: "ridículo".
É assim que começa, e de maneira admirável, "Uma Lição de Amor",
verdadeira obra-prima no gênero. Desde o princípio nota-se claramente o
habitual rigor artesanal do "metteur en scène" sueco, traduzido no
esmerado conceber do enquadramento, o uso inteligente e muitas vêzes inventivo
dos recursos da linguagem cinematográfica e também no perfeito desembaraço dos
intérpretes em cena. Este último aspecto vem corroborar a impressão que Bergman
despertava de ser dono de um preciso contrôle sôbre o jôgo dos atores. Todos os
quatros personagens principais foram vividos por elementos que já tinham mais
de uma vez figurado como protagonistas de seus filmes dramáticos: Eva Dahlbeck,
Gunnar Bjornstrand, Ake Gromberg e Harriett Andersson. E, nessa ocasião atuam,
embora ainda mais empenhados, em razão da maior importância do caráter
interpretativo dentro de realizações de tal teor, com a mesma eficiência
demonstrada nas fitas anteriores. Pelo que conhecemos do ciclo bergminiano,
apenas Eva Dahlbeck e Gunnar Bjornstrand já tiveram oportunidade de se aplicar
na criação de papéis semelhantes. Referimo-nos ao terceiro episódio de
"Enquanto as Mulheres Esperam" (Kvinnors Vantan), quando o diretor,
num invejável "tour de force", manteve viva a passagem de quase
meia-hora de duração na história do casal que ficara prêso dentro do elevador
enguiçado. Aqui podemos achar o germe do assunto que voltará a ser desenvolvido
mais tarde. Justamente a sátira a respeito da gravidade ou do irremediável do
que se denomina de infidelidade conjugal no mundo burguês tem o seu primeiro
tratamento resumido em "Kvinnors Vantan" e agora, posteriormente,
virá o tema a ser fartamente esmiuçado em "Uma Lição de Amor".
Um ginecologista e sua espôsa, após longo período matrimonial, resolvem
se separar. Ele, malgrado não funcionasse a contento como verdadeiro marido,
teve suas amantes quase que inadvertidamente. Ela, decidida por seu lado a não
permanecer em estéril e absurdo conformismo, volta às relações com um ex-noivo.
O esposo se arrepende e fará o possível para reencetar o casamento...
A extraordintíria lucidez, exatidão e vivacidade dos diálogos, de
autoria do· próprio Bergman, constituem um dos pontos marcantes que em muito
auxiliaram ao êxito artístico do espetáculo. Saborosamente amoral, com tiradas
de fino gôsto, o diálogo sustenta sozinho algumas sequências apoiadas
inteiramente nele, como os trechos da viagem no trem. Para tanto, contribui a
perfeita adequação expressivo-fisionômica de Eva Dahlbeck e Gunnar Bjornstrand,
principais responsáveis por essa parte.
Alguns recursos e características típicas do seu estilo foram ao mesmo
tempo transportados para a comédia. O "flash-back", por exemplo, que
já apontáramos como detentor de função orgânica no processo de estruturação
formal de suas películas, ressurge com as mesmas propriedades conferidas em
filmes como. "Enquanto as Mulheres Esperam", "Juventude, Eterno
Tesouro" ou "Noites de Circo". Faculta novamente uma liberdade
temporal para que se desenrole a narrativa, quando, inclusive, em determinado
momento, o diretor ilude a assistência fazendo que esta julgue, através de um
corte rápido de uma cena para outra, que a ação se encaminha para o futuro,
quando ocorria exatamente o opôsto, ao se saber posteriormente que a mulher que
viajava no trem era, na realidade, a espôsa do protagonista – em suma, êste não
estava empenhado numa conquista amorosa (embora, por duas vêzes ganhe uma
aposta feita com o engraçado e aturdido passageiro que os acompanha na cabina),
e sim, numa reconciliação.
A constante utilização do "flash-back" permitiu que se
imprimisse uma permanente fluidez ao transcorrer do entrecho, mantendo aceso
por todo o tempo o interesse da platéia para as cenas subsequentes. E, é a
propósito disso, que se pode ainda ressaltar que, ao contrário das outras películas,
a extrema unidade de "Uma Lição de Amor" salta de imediato aos olhos.
Deve-se também notar que quase todos os momentos de transição de tempo se
consumam mediante excelentes recursos de fusão, existindo, no entanto, exceções
qual o magnífico achado da súbita freiada do automóvel.
Porém Bergman não permanece durante a totalidade da fita prêso apenas ao
"'humour" vinculado a um "mood" cínico-satírico. Por duas
vêzes vai ao "non-sense", tateia o pastelão, em sequências
admiravelmente bem construídas e dotadas de elogiável sobriedade no desencadear
dos efeitos. Primeiro é a passagem da "homérica" festa de casamento,
em que o papel de Ake Gromberg, que se tornará, finda a cena, ex-futuro noivo,
assume faceta em muito parecida com o desempenho por Victor Mc-Laglen, em
"The Quiet Man", de Ford. E aqui eclode, outrossim, uma briga
quase-homérica, só que, desta vez, entre noivo e noiva, a circularem em tôrno
do saiote do padre completamente atarantado que nada sabe o que fazer,
assistindo mais aterrado e mais calmo do que os convivas ao desenrolar da
querela.
Na outra sequência, perto do desfecho, vai o trio a um esfusiante
cabaré, onde o marido, disposto a tudo para retomar a espôsa do amante,
porta-se qual um turbulento apache, assumindo o primeiro plano no exótico clima
de folia que lá impera até a chegada da polícia. O ambiente é retratado mercê a
utilização de precisos recursos plásticos, com um esfumaçado claro-escuro
predominando na composição dos corpos que se movem incessantemente no ritmo do
"jazz".
O acompanhamento musical e a fotografia não representam função apenas
adequada linearmente, no sentido de uma plena coesão do espetáculo. O critério
concebido para sua integração é altamente inventivo, singular às vêzes, e, em
certos trechos, fornecem inusitada fôrça e palpitação às sequências.
Dag Wiren sublinhou o correr do celulóide baseado sempre numa quantidade
discreta de instrumentos, predominando os de sôpro ou corda. Utilizou-se de
efeitos correlatas à música moderna, mas com uma estrita funcionalidade no que
tange à aplicação dos recursos de distorção. Sua originalidade e precisão
calcaram de modo magnífico a cena final, principalmente no cadenciar dos
passos, quando cupido aparece no corredor e cerra a porta da câmara, onde acaba
de se restaurar o leito nupcial. Ateve-se o acompanhamento musical ao segundo
plano, quando o ritmo visual dispensava perfeitamente o refôrço sonoro, como a
cena da cozinha no dia de aniversário do avô, em que seis personagens se
locomovem quase que em tempo de ballet.
Martin Bodin pela primeira vez se encarrega da fotografia de uma
realização de Bergman. Este, que sempre procurou criar uma equipe de trabalho,
servia-se inicialmente de Goram Strindberg, tido em elevado conceito e que há
pouco se destacou nos exteriores de "A última Felicidade", de Arne
Mattsson. Após, contou com a colaboração quase permanente, do excepcional Gunar
Fisher. Em “Uma Lição de Amor", experimenta Martin Bodin, obtendo êxito
além de qualquer expectativa. Em todas as cenas de interiores, o enquadramento
e iluminação estão utilizados com mestria e, a tôda solução mais inventiva
propiciada pelo regisseur, conferiu o mais adequado tratamento plástico, o mais
rigoroso cunho tonal. Nas cenas filmadas em exteriores sua capacidade se
agiganta, revelando, em especial, uma nítida preferência pelo
"long-shot", quando sua noção de ângulo de visão em função de
valorizar a passagem denota amplitude nunca antes recordada.
A sequência do passeio no bosque é inobjetavelmente antológica, na hora
em que o diretor, o fotógrafo e o músico se reunem para proporcionar autêntico
"show" de cinema puro. O casal, solitário, passeia fumando, os dois,
o mesmo cigarro. A tomada se realiza de longe, e a fumaça, quando entra na área
de luz, existente devido aos poucos raios que atravessam a espessura das
árvores, cria belíssimos efeitos, em contraponto ao movimento irregular do
homem e da mulher que perambulam. Em determinados instantes, a câmera focaliza
o tôpo das árvores, de baixo para cima, e imediatamente faz lembrar
"Rashomon" pela luminosidade intensa, aparentemente lá no alto
retida, que consegue captar. Quando ambos se deitam na grama, a câmera se
aproxima para o grande primeiro plano, e então o "metteur en scène"
joga com as cabeças de maneira excepcional, usando as mais ousadas disposições
para efeito de composição.
Como sempre também, o poder criativo de Bergman manifesta-se em pequenos
recursos e, aqui, repetidamente. O mais frisante e que se figura em verdadeira
amostra de sua inteligência, do seu virtuosismo, ocorre no trecho em que a
espôsa sai do consultório de seu marido e se prepara para ir ao hotel em
quedescobriu que provavelmente êle irá ter com a sua amante. A fusão se
processa assim: o médico fica só, pensativo e, de repente, num rompante de
irritabilidade vira a lâmpada de sua mesa em direção da platéia. A violência da
luz como que queima ou apaga o próprio filme e, quando o espectador se refaz,
enxerga, exatamente dentro do mesmo círculo ocupado pela lâmpada, o emblema do
hotel no primeiro plano e para onde agora se encaminha, mais ao longe, a
espôsa.
Entre os intérpretes, Eva Dahlbeck e Gunnar Bjornstrand estão
praticamente perfeitos no casal. Harriett Andersson é a filha que sofre com o
comportamento dos pais, em aparente descaso, absorvidos em sua questão amorosa.
Ela reage calma, quase meiga e, ao mesmo tempo, lastima ser mulher,
porque talvez assim perderá sua condição de criança mais cedo. É a mágoa
estampada no momento em que narra a mudança de uma de suas amigas que já passou
a se pintar. Seu papel trai aparentemente uma afluência reflexa do tema do
filme: a ânsia consciente de inocência, já que ser mais velho é fingir apenas
que não se está brincando.
Ake Gromberg não tem a mesma chance que em "Noites de Circo",
porém revela versatilidade, pois talhou as reações de seu tipo (outro grotesco)
de modo saboroso.
***
"Uma Licão de Amor" se constitui num filme dê imensa
importância, uma das melhores comédias realizadas para o cinema. Ultimamente só
encontra paralelo com "Les Vacances de M. Hulot", de Jacques Tati, embora
esta se consista numa incursão em outros aspectos do gênero. A fita de Tati é
um achado por si e todo o seu dinamismo visual pré-existe, isto é, já vem
incorporado à sua essência. A película sueca, ao contrário, exige um acurado
trabalho de adaptação, uma concepção de como estruturar seu "script"
nos mínimos detalhes para evitar o perigo de cair no teatral, na monotonia, no
vulgar e, até mesmo, no mau gôsto. Tal não deve incidir num critério
comparativo para julgamento ou aferição de valores das duas obras – interessa o
resultado final - porém contribui para mais uma reafirmação do fabuloso talento
e capacidade de Ingmar Bergman. Revelando, além de tudo, versatilidade, passou
para a comédia, superando logo de início tudo que se levou a efeito até então
em determinada área. Conta, entretanto, com ampla liberdade de ação num país
onde felizmente o clero, um comitê de atividades antiaméricanas ou o partido
comunista parecem não exercer influência, pelo menos quanto ao cinema.
Posteriormente a "Uma Lição de Amor", foram produzidas mais
duas comédias suas: "O Sonho das Mulheres" e "Sorrisos de Uma
Noite de Verão". Se, da primeira não possuímos referência, a segunda, mais
ambiciosa, foi contudo motivo de grandes aplausos da crítica européia. Sua
derradeira realização, "O Segrêdo do Sêlo", apresentada em Cannes no
corrente ano e, da mesma forma que "Cabiria”, de Fellini, sob
manifestações de estranheza do público preteridas pelo estagnatário Wyler,
parece fugir ao assunto.
(1) Herbert Read, em "Anarchy and Order", pag. 163, chama a
atenção para o fato de a língua inglêsa possuir duas palavras para cada uma das
características do que conhecemos por liberdade. Os outros idiomas mais
conhecidos não apresentam essa peculiaridade. Assim, segundo ele, para o inglês
"liberty é concreta: existencial; freedom é abstrata: essencial" .
(2) "Esta frase - Deus não existe - ele coloca por diversas vêzes
na bôca de seus personagens. O mal que sofremos é metafísico. Cada um dos
nossos olhares lançados sôbre o mundo, nos obriga a remontar até essa
evidência, da qual nada, nem mesmo o jôgo, pode nos fazer esquecer." Eric
Bohmer - Cahiers du Cinema nº 61, julllo de 1956 - pag. 8.
(3) Vide artigo publicado neste suplemento “Ingmar Bergman III” e,
8/3/56
Cine-resenha
findo o primeiro semestre do corrente ano, apresentamos uma resenha
resumida das realizações de maior interêsse, lançadas nos cinemas desta
capital. na relação abaixo disposta, a ordem em que colocamos as películas
consideradas merecedoras de destaque não é qualitativa, e sim, cronológica.
quando terminar 1957, então procuraremos organizar uma relação, de acôrdo com
um critério de classificacão em ordem mais ou menos decrescente, conforme os
méritos artísticos dos filmes a serem, para tal, discriminados. deve-se ressaltar
que, apenas com a contribuição parcial dêsses seis primeiros meses, o presente
ano já oferece perspectivas bem superiores a 1956. enquanto neste último, não
assistimos nenhuma fita que julgássemos se revestir de valor excepcional, já,
em 1957, pelo menos até agora, "la strada", de federico fellini, e
"les vacances de m. hulot", de jacques tati, preenchem condições
suficientes, a nosso ver, para que se lhes confira. um cunho antológico. isso,
sem falar também no admirável "uma lição de amor", de ingmar bergman,
exibido em sessão especial no teoatro da maison de france, e que, segundo
consta, estreará antes do mês de outubro. também a excelente produção japonêsa,
"a bela e os ladrões", de keigo kimura, apresentada num
festival-fantasma (porque sem a mínima publicidade) da tabajara filme, no
cinema "eskye", da tijuca, oçupará posição de evidente realce, caso
venha a público normalmente até o fim de dezembro.
rastros de ódio (the searchers) - john ford, de volta ao seu grande
habitat, o western, gênero por excelência do cinema americano, constrói a sua
melhor realização nesses últimos anos. na realidade, posteriormente a "the
quiet man", nem "a paixão de uma vida", nem "o sol brilha
na imensidade", nem "mister roberts" - embora produções de certo
nível - conseguiram acrescentar, no sentido artístico, alguma coisa a mais na
extensa e invejável filmografia do mais importante edificador da mitologia do
filme de "far west". agora, com "the searchers", provando
ser dono ainda, apesar da idade avançada, de certa energia e bastante
maturidade, leva a efeito uma película de elevada categoria, fator denotável
desde a primeira cena, com o admirável enquadramento da tomada, por detrás da
porta da casa, da chegada de john wayne, habitual protagonista de seus filmes.
Louvável e funcional a fotografia de winston hoch e, cenas como a da chacina da
indefesa família pelos índios - sugerida por elipse, a partir do grandioso
close-up do cacique, ou do aparecimento do extravagante don emílio gabriel
fernandez y figueroa e seu bando demonstram a perfeita assimilação do diretor
de uma série de novos recursos, tanto no que se refere à parte técnica, como no
tratamento de determinadas passagens, onde a dissonância propiciada pelo toque
irônico-bizarro constitui atualmente um método de revitalização da
"partitura" para o ritmo interior nas películas de ação.
o quinteto da morte (the lady killers) – alexander mackendrick reafirma,
com essa comédia, a indiscutível hegemonia da "ealing tradiction" no
gênero. "lady killers" coloca-se na mesma altura de "o mistério
da tôrre", de charles crichton, "as oito vítimas", de robert
hamer, ou de "o homem do terno branco", também do próprio mackendrick
– no momento, talvez, o mais empenhado entre os realizadores dos estúdios de
sir michael balcon. alec guiness, protagonista dos outros filmes acima
mencionados, proporciona, mais uma vez, uma performance de grande classe; mas,
quem rouba o espetáculo é a velhinha katie johnson, em fabulosa interpretação,
no “supporting-cast” figuram atores do porte de cecil parker e herbert lom, e o
diretor soube imprimir um ritmo precisamente lento a fim de esmiuçar todas as
possibilidades de um argumento que, por si só, já se constitui em valioso
achado.
as férias de m. hulot (les vacances de m. de hulot) - jacques tati lança
a comédia mais importante dos últimos anos- ''les vacances de m. hulot" -
após a lnteressante experiência com "jour de fête". revelando-se como
mais um dos autênticos inventorores do cinema atual, ao lado de um bergman, de
um aldrich, apresenta um filme com imagens dosadas de extraordinário dinamismo
interior. prescinde quase que completamente do diálogo, e, quando este surge,
jamais assume o primeiro plano no que se desenrola em cena. cria, por outro
lado, um singular ritmo burlesco e utillza-se dos ruídos de modo inusatado,
revolucionário, mesmo, em alguns instantes, aproveitando o máximo de suas
possibilidades físicas como agente imediato de efeito sensorial sobre a
platéia. sequências como a de homérica viagem de hulot, em seu bizarro veículo,
as passagens que se desenvolvem na praia, ou a do entêrro são, além de
originais, antológicas. jacques tati, como intérprete, compõe um tipo
inesquecível, malgrado não seja rico em nuances de expressão fisionômica.
rififi (du rififi chez les hommes) - jules dassin, o diretor de
"cidade nua" e "mercado de ladrões", leva para a frança o
filme de gangsters com êxito. filia-se a película a um ciclo que possui, até o
momento, como centro de convergência, o imortal "the asphalt jungle",
de john huston. dassin houve-se com mestria na direção, principalmente na longa
sequência, com mais de meia-hora de duração, do assalto à joalheria.
agiganta-se a fita nos trechos finais e, em especial, na derradeira cena,
quando um automóvel à tôda velocidade leva consigo o gangster gravemente ferido
e o menino fantasiado para "brincar de mocinho", a agitar
constantemente o seu revólver de brinquedo.
na estrada da vida (la strada) - federico fellini cria uma verdadeira
obra-prima com "la strada", uma fita que, dentro do terreno ocupado
pelo moderno cinema italiano, apenas suporta um paralelo com "ladrões de
bicicleta", de sica-zavattlni. giulieta masina, sua espôsa, estréia com
estupenda interpretação. sua gelsomina vai para a galeria dos tipos imortais na
história da sétima-arte. "na estrada da vida" focaliza a luta entrê o
bem e o mal puros, porque brotam diretamente da singeleza ou da estupidez.
dentro dêsse esquema, gelsomimi e zampanô são dois personagens depurados de
qualquer implicação metafísica, agem de acôrdo com o instinto que a natureza a
cada um proporcionou. vivem juntos em virtude de a coexistência entre os dois
polos opostos ser praticamente fatal – um processo de mútua alimentação. a cena
final em que zampanô consegue chorar pela primeira vez é das mais pungentes já apresentadas.
anthony quinn também cria um grande tipo e richard basehart, como o louco, está
excepcional. bom o acompanhamento musical de nino rota e, otello martelli, na
fotografia, volta a brilhar intensamente, como já o fizera antes,
principalmente em "roma às 11 horas".
o grande golpe (the killing) - stanley kubrick é a grande revelação do
cinema americano que tivemos este ano. mediante uma modesta produção b, realiza
uma película que o coloca logo no primeiro plano entre os cineastas que
despertam maior interêsse na atualidade. The "killing" é cinema como
nicholas ray ainda não o fêz superior ao dassin, de "riflfi", nas
pegadas do melhor huston, de "the asphalt jungle”, kubrick denota
parentesco inclusive com ingmar bergman, através da utilização de caráter
orgânico que faz do "flash-back" - elemento vital na estruturação
rítmica do filme, assim como pelo insólito que marca certas sequências, como,
por exemplo, a espôsa alvejada pelo marido, de pé ao lado da gaiola do
papagaio, o trecho, em que sterling hayden assalta a caixa-forte do hipódromo
ou o encontro da esposa com o amante. Colaboram para o sucesso total da
produção, a extraordinária fotografia de lucien ballard e o original e preciso
acompanhamento musical de gerald fried.
folhas mortas (autumn leaves) - aldrich em espetacular "tour de
force" consegue promover um argumento fadado ao insucesso. Até joan
crawford, que atravessava período de, aparentemente irréparável, decadência,
brinda-nos com uma performanoe de mérito. “autumn leaves", embora não seja
das melhores realizações que dirigiu, serve para evidenciar a capacidade
daquele que, por ora, é o cineasta de hollywood do qual mais se pode esperar. o
"flash-back" inicial, quando a protagonista rememora durante o
concêrto a sua mocidade desperdiçada ao lado de um pai enfêrmo, se processa de
modo admirável, tanto no que diz respeito à fusão, como no uso de detalhe.
o homem que sabia demais (the man who knew too much) - hitchcock leva a
cabo uma pequena obra-mestra do divertissment. uma história plena em
quiproquóos, clima de expectativa, mistério - enfim, os ingredientes habituais
para fertilizarem o campo de ação a fim de que eclodam as sensações do thriller
e se crie a desejada atmosfera de suspense. cenas como a do assassinato de
daniel gélin, a luta e perseguição na sala dos bichos empalhados ou a da batida
dos pratos que precederá imediatamente a tentativa de crime no teatro,
confirmam a impressão de que hitchcock se encontra em perfeita forma. robert
burks valoriza a película com a sua fotografia, dando um caráter às vezes,
diretamente simbólico ou insólito ao uso da côr. o filme somente cai um pouco
no final, no trecho da recepção em casa do embaixador, em que james stewart
procura o filho, enquanto doris day canta o intolerável "que será".
a trágica farsa (the harder they fali) – mark robson, realizador muito
irregular, acerta em cheio com esta película que, por outro lado, já se reveste
de um caráter histórico, em virtude de ser a derradeira aparição de humphrey
bogart, o grande ator recentemente falecido. a narrativa se reporta à descrição
do processo de rapinagem que pauta as atividades dos empresários e de todos que
procuram negociar com êsse verdadeiro eldorado do esporte que é o boxe. o
diretor mantém sempre um clima de elevada tensão e a fita apresenta como lacuna
contundente apenas o método de fabulação do tema - muito simplório, diríamos -
demasiado direto em sua intenção, isto é, acusando mais do que sugerindo. o
diretor fornece autêntico show de eficiência no manejo da montagem nas
sequências de luta, conferindo às mesmas violências inaudita. A fotografia do
grande burnet guffy visivelmente prejudicada pela cinegráfica são luiz e pelos
exibidores que espicharam as imagens até uma dimensão de 18 cruzeiros.
o caso maurizius (l'affaire maurizius) – julien duvivier continua
brilhando em grande estilo e confere ao famoso romance de jakob wasserman uma
eficiente adaptação para o écran. o filme se vaza através de perfeita unidade
de seu ritmo dramático. cenas dotadas de vigor mantêm aceso todo o incisivo
libelo de ordem social que o livro criou. a sequência final, com o suicídio de
maurizius e logo após o trem entrando no túnel para sair a palavra fim, se
constitui num feliz achado. all star cast compõe o elenco: daniel gélin,
madeleine robinson, eleonora rossi drago, charles vanel, anton wallbrook - este
último, naturalmente, sobreissaindo.
o balão vermelho (le ballon rouge) – albert lamourisse é o realizador deste
curta-metragem premiado em festival. Tocante singeleza, a inocência
ridiculariza e teme o mundo cruel dos adultos. O vermelho vivo do balão, um
constante contraste ao décor de cunho tonal formado somente por cores mortas. a
cena em que o menino, no fim, sobe com os balões seria fruto de lugar comum,
caso o metteur en scène não imprimisse excepcional fôrça às imagens; é, por
exemplo, o close-up do pequeno protagonista, antes de ser levado para cima,
cuja alegria estampada na face, se configura numa perfeita irradiação do que
denominaríamos pureza.
morte sem glória (attack) - aldrich, outra vez, com a sua produção mais
ambiciosa, com exceção de "the big knife". Tratamento rigorosamente
cinematográfico às imagens, isoladamente, graças também à contribuição do
camera-man joseph biroc. Falta, entretanto, maior amplitude à película, isto é,
o impacto descarregado se evola com a solução final - nítida oposição a
"um passo da eternidade", de fred zinneman que, pelo contrário,
desperta muito mais o nosso poder catártico. Inferior a "a grande
chantagem" e "kiss me deadly", ligeiramente acima de "vera
cruz", todas do mesmo realizador, "attack", no entanto, oferece
bons momentos de cinema, embora não seja a fita corajosa que supúnhamos: se um
capitão covarde comanda uma companhia, logo surgirá um coronel venla, que é seu
cumplice e lhe mantém nessa posição por interesses políticos. Está
salvaguardado o exército como instituição e a guerra não é absurda, pois a
companhia quer lutar, apenas o capitão não deixa fazê-lo direito. alguns
trechos lembram muito o milestone de "sem novidade no front" e
"um passeio ao sol", do qual, aliás, aldrich já foi assistente.
grilhões do passado (confidential report) - orson welles retorna, como
sempre munido de grandes intenções. malgrado se denote um caráter algo
desconjuntado ao imenso aparato de seu esteticismo, leva a efeito uma
realização fascinante sob diversos aspectos. a passagem inicial do assassinato
nas docas é antológico é o baile em que se revive, através do barroco e do
expressionismo, o goya das máscaras. o ritmo exterior, entretanto, começa a
entrar em desconexão com o ritmo psicológico desenvolvido para o espectador e,
em consequência, algumas cenas tornam-se sôltas do contexto incluso numa área
essencial de aceitação intuitiva. welles nos obriga então a sair da fita para
raciocinar como êle, isto é, a fim de procurarmos a justificação disto ou
aquilo e, nessa altura, é o que se perde. a história, simples. sem invocar
problemática de alcance, não encontrou a valoriilação formal mais adequada que
conferisse ao filme a amplitude desejada. de qualquer forma, porém, é um
espetáeulo, como já o dissemos, fascinante.
blefando a morte (the man from del rio) - harry horner realiza o seu
melhor filme, na sua primeira incursão ao western. uma obra de intenções
moderadas e que se resolve inteiramente em si mesma, quer dizer, os objetivos
se cumprem com frieza e sobriedade. Anthony quinn compõe um outro tipo
muito-bem marcado: david robles, o ingênuo e tímido matador, que se torna
xerife da pequena cidade, nesse ponto, surge o inevitável parentesco com
"high noon", embora a narrativa ofereça solução das mais originais.
todavia, o dono do espetáculo é stanley cortez que, mesmo sem a oportunidade
propiciada em "the night of the hunter" (mensageiro do diabo),
fornece ao aspecto essencialmente visual da fita um caráter marcante.
o último ato (die letste akt) - g. w. pabst, já consagrado como
realizador clássico do cinema, lança um filme de grandes proporções mediante a
narração dos últimos dias de hitler. um impacto dramático de alta significação
histórica - um libelo contra a guerra, não sendo, aliás, o primeiro de pabst. o
ambiente sufocante que consegue criar domina todo o desenrolar da fita, cujo
patético lembra, outrossim, o da tragédia grega. Extrema unidade, um crescendo
admirável no quarto final - cenas impressionantes, qual a da completa folia e
desespêro no refeitório, a enchente ou a da visita do fuherer aos feridos.
albin skoda está excelente na figura de hitler, e oskar werner repete a
eficiente performance, em papel também semelhante, que teve no extraordinário
"decision before dawn" (decisão antes do amanhecer), de anatole
litvak.
***
outras realizações menos importantes, porém de interesse, em virtude de
determinados aspectos positivos que ofereceram: "o planeta proibido",
de fred m. wilcox - "a última carroça", de delmer daves - "o
homem do braço de ouro", de otto preminger - "a rua da
esperança", de carol reed" - "sêde de viver", de vincente
minelli - "entre o céu e o inferno", de richard fleisher - "um
ianque na escócia", de alexander mackendriek - "a loteria do
amor", de charles crichton - "suplício de uma alma", de fritz
lang - "quem foi jesse james?” de nicholas ray.
Jornal do Brasil, 07/07/1957
A trajetória de Aldrich
Muito mais que a de Nicholas Ray, que juntamente com êle forma o duo de
cineastas americanos atualmente mais discutidos e estudados, avulta, no
momento, a importância de Robert Aldrich.
Com relação ao primeiro se verifica uma injustificada euforia de
exaltações ao seu talento após o lançamento de suas derradeiras produções,
principalmente da parte de alguns elementos da nóvel equipe de críticos de
"Cahiers du Cinema" (François Truffaut, Jean Domarchi, Jacques
Rivette - até mesmo um Eric Rohmer bem lúcido no que. se refere a vários
assuntos, não escapou ao contágio), sendo que, um dêles já o comparou com Bach
– caracteristica típica do que poderíamos denominar de processo
post-surrealístico para equiparação de valores. A carreira de NichoIas Ray até
hoje tem sido desigual e mesmo "Juventude Transviada", a sua realização
decisivamente marcante, não deixa de apresentar alguns fatôres negativos sob o
ponto de vista da tabulação temática, isto é, dentro de seu critério de
elaboração através do complexo argumento-cenário. E, muito menos concebível
ainda são os esforços para conferir méritos a "Sangue Ardente", um
filme absolutamente indefensável.
Aldrich, pelo contrário, a partir de "Bronco Apache" até êsse
admirável "Attack" vem palmilhando uma trilha que o coloca, por ora,
como o realizador mais inventivo de Hollywood e, ao mesmo tempo, como um dos
mais importantes, na linha de frente - logo acima ou abaixo, conforme as
circunstâncias delimitantes de um critério de comparação – com Mankiewicz,
Huston, Kazan, Stevens, Zinneman, Ford e Billy Wilder.
Emhora não oferecendo ainda as nítidas características do que
definiríamos como "estilo Aldrich", "Apache” foi uma realização
muito digna, mantendo seu responsável as tonalidades mais sóbrias para seu
sentido épico. Filia-se a uma série de filmes, iniciada com “Broken Arrew”, de
Delmer Daves, cujo objetivo precípuo é o de humanizar os índios, focalizando os
diversos problemas acarretados a toda uma raça em virtude de uma existência,
insegura, nômade, a que era acarretada a enfrentar.
A seguir, no fantástico e desconcertante "Vera Cruz", podemos
aproximá-lo do John Huston “blagueur” de "Beat the Devil'' e "The
African Queen”. Nesse filme já se observa a cristalização de uma apurada
estilística, sempre calcada em evidentes imperativos de ordem estética.
Invertendo por completo as equações necessárias para o desenvolvimento de um
melodrama, o "metteur en scène" cria um ritmo extravagante, situações
paradoxalmente inesperadas e, pelo menos, uma sequência antológica: a do duelo
final de Gary Cooper e Burt Lancaster. Nessa ocasião, o bem e o mal que
"funcionavam" como aliados para criar uma supra-ambiguidade a atuar
como fator de decomposição dos clássicos postulados que regem a grande farsa,
que para Aldrich seria a da aventura por um ideal, tornam a se desmembrar num
irônico e nostálgico sublinhamento dessa mesma concepção. Noutras palavras: a
história de mocinho pura, quer dizer, despida dos falsos preconceitos
estruturais a justificar a aventura, seria ridícula por ser absurda, caso essa
peculiaridade não fôsse propositadamente adaptada ao contexto. Uma lúcida
reintroversão dos preceitos temáticos elidirá por completo a ameaça do
irrisório de se fantasiar a sério, frente a um espelho.
Posteriormente, revelando estupenda versatilidade, vêmo-Io passar para o
filme de "gangsters" com "Kiss Me Deadly" - um dos melhores
no gênero dos últimos anos, apenas pouco inferior a "O Grande Golpe"
(The Killing), de Stanley Kubrick (1).
Apesar de ter-se empenhado nessa realização contra a vontade, segundo
mesmo declarou em recente entrevista ao "Cahiers du Cinema”, forçado a
lidar com um argumento que lhe foi impôsto, malgrado êle próprio, construiu uma
bela película. Partindo então da novela de Mickey Spillane, Aldrich se
aproveitou para, mediante a própria história, fazer um impressionante apanhado
de uma civilização caótica, a qual justamente é quem possibilita o aparecimento
das· histórias em quadrinhos ou de indivíduos como o autor do entrecho. Mesmo o
herói, bem interpretado por Ralph Meeker, um personagem frio, praticamente
amoral, não estaria jamais consciente do que aflora nas entrelinhas. Apenas e
exclusivamente se atém a desempenhar sua parte no jôgo - o jôgo a que o diretor
obedece friamente para espelhar o clima da falta de sentido das coisas, da
ausência de uma convincente fixação de valores. E, em tais condições,
movimenta-se incessantemente, livrando-se sempre com desembaraço da traição das
louras, das agressões traiçoeiras ou da bomba que lhe colocam no motor do
automóvel. Finalmente, na derradeira cena, à constatação de um mundo
alucinante, é conferida uma transcendência cósmica através da explosão que
sacode toda a paragem.
"A Grande Chantagem" (The Big Knife) se constitui na produção
mais ambiciosa e, por enquanto, também, no melhor filme de sua carreira. É, por
outro lado, o libelo mais incisivo e corajoso feito em Hollywood contra a
própria Hollywood. Deve-se ressaltar que a amplitude temática de "A Grande
Chantagem'' avulta em contraposição a "Attack". Enquanto no último
tôda a tensão criada pelo impacto dramático se evola com a solução fornecida
para o destino de cada personagem, no primeiro a tese permanece viva. Apesar de
ser a Meca do cinema o objetivo de mira imediato, o que fica após o término da
película é o choque provocado por um dos exemplos mais tocantes do triste
processo de rapinagem e degradação que pauta todo um complexo de vida no mundo
de hoje, principalmente o mundo supercapitalista, do qual Hollywood é um dos
exemplos mais característicos. Vale lembrar, sob êsse aspecto, a admirável
composição do tipo do produtor de filmes levada a cabo por Rod Steiger, na qual
todas as características físicas, todas as reações estão concentradas numa rara
e eficiente figuração do sórdido businness-man.
No sentido formal logo de início se denota a extraordinária e inventiva
concepção do enquadramento. Cenas como a de Jack Palance tomando massagem,
enquanto palestra com seu agente, realçam a extrema valorização visual de
imagens que se dinamizam; através da tomada estática, somente pelo esmerado uso
da iluminação e do enquadramento, prescindindo do "travelling". O
corpo do ator, no grande primeiro plano, atravessado quase em diagonal com a
posição do interlocutor, destaca-se com nitidez e cria um efeito tridimencional
em virtude da interseção dos elementos de composição e a precisa graduação
fornecida pelo iluminador.
"The Big Knife" talvez não tenha sido a grande obra-prima que
merecia, por razão de não ter o regisseur conseguido superar certos aspectos
teatrais da trama. Entretanto serviu para demonstrar a capacidade de um realizador
que atingia plena maturidade em seu metier sem necessitar de diluir fórmulas já
por demais desgastadas. Ao contrário, revelava uma notável concepção de como
utilizar o "shot'', ao conferir um vigor quase inusitado às magens
mediante perfeita noção de como aprofundar o campo visual e, ao mesmo tempo,
colocar em evidência o detalhe convergente de tôda a estruturação dos elementos
que, em cada sequência, deverão concorrer para compor o quadro.
É exataniente na concepção da tomada, no método de angulação do
enquadramento, no "travelling" sinuoso, por vêzes em movimento de
câmera inesperado, que se pode basear uma conceituação do que seja o estilo
Aldrich. Para êle, a angulação do "shot" obedecerá sempre a um
critério que torne impossível ao espectador enxergar mais do que o
"metteur eu scène" deseja. O julgamento da assistência não interessa
porque não é esta que faz o filme. Destarte, é mister que se impeça que as
deduções sejam por demais diferentes das que possui o realizador. Assim, por intermédio
de recursos quase sempre novos, inesperados, pelo método insólito de chamar a
atenção sôbre as peças que mais interessam, é fácil manter o espectador num
transe que o impeça de "enxergar" em demasia. Em "Fôlhas
Mortas", por exemplo, após um determinado corte, aparece de súbito um
enorme telefone que nos entra pelos olhos de imediato, antes que pudéssemos
reparar até mesmo onde se localizava. Nessa fita existe um dos melhores
"flashbacks" já imaginados. Logo posteriormente ao princípio da
história, Joan Crawford assiste a um recital de piano, e vemos o seu rosto
entre os dos muitos espectadores. Depois, a tela vai escurecendo até que apenas
a sua face fique iluminada. Isto se constitui já, em si, num admirável recurso
de efeito simbólico a fim de demonstrar que, embora se encontre entre um grupo
enorme de pessoas, acha-se só, pois sua atenção não se concentra no palco, como
todo mundo, e sim na rememoração do que vem a seguir: um passado de privações
quando se sentia obrigada a cuidar exclusivamente de um pai doente. Aqui,
Aldrich dando vasão outra vez à sua extraordinária capacidade inventiva,
consegue se expressar com perfeita economia de linguagem, focalizando apenas o
tronco da atriz em volta do leito em que está o velho.
A propósito de "Autumn Leaves", deve-se lembrar outro
admirável "tour de force" do diretor ao extrair uma grande
performance de Joan Crawford, que, aparentemente, atravessava um período de
irremediável decadência. Com uma exagerada e, por vêzes, ridícula exuberância,
a famosa atriz vinha se tornando um autêntico Kirk Douglas feminino, o qual nem
também Nicholas Ray, em "Johnny Guitar", tinha conseguido controlar.
***
É, através do espírito e de um pálido sublinhamento poético, o Milestone
de "Sem Novidade no Front" em "Um Passeio ao Sol", quem
mais nos recordamos, ao assistir "Attack". Dêle, Aldrich já fôra
assistente de direção, e pode-se logo de início verificar ter assimilado o
essencial das qualidades do outro grande "metteur en scène" do
passado sem deturpar a sua própria personalidade. Aliás, boas foram as suas
convivências numa fase que denominaríamos de aprendizado: além de Milestone um
Chaplin, um Zinneman, um Renoir, uma fonte de influências invejável e, mais do
que tudo, eclética.
A fita talvez tenha consistido para o realizador um empreendimento mais
ambicioso ainda que "The Big Knife". Baseia-se num cenário de James
Poe, oriundo da peça teatral "Fragile Fox", de Norman Brooks. E,
justamente o caráter do argumento é que nos parece ter impedido o diretor de
conferir a transcendência temática que era de se esperar a um filme
rigorosamente exato, perfeito em tudo que envolve os critérios de solucão
formal encontrados para a sua confecção. Como já foi acima assinalado, a tensão
dramática existente tem apenas sua razão de ser enquanto o jôgo com os diversos
elementos estruturantes do entrecho se encontra vivo. Findo o espetáculo, não
permanece um impacto maior a traduzir qualquer tese antibélica ou
autimilitarista. O filme se encerra em si mesmo, ficando todos os
acontecimentos narrados condicionados a um aspecto meramente acidental. Não que
faltasse coragem a Aldrich de ir mais longe - "A Grande Chantagem"
prova exatamente o oposto - mas para tanto era necessário quebrar o sentido do
"script", o que não quis ou não pôde fazê-lo. Sob êsse ponto de
vista, "From Here to Eternity", de Fred Zinneman, foi muito mais
amplo, aberto. Observe-se nessa altura a diferença entre o comandante que
apreciava o boxe, dessa última realização, com o covarde capitão de "Morte
Sem Glória”. Se no primeiro constata-se facilmente que grande parte dos
defeitos de sua formacão foram criados ou alimentados pela vida em caserna, já
o outro na menos convincente cena do filme, explica ter sido o pai, através da
educação que lhe proporcionara, o maior culpado. A indagação que, de pronto,
virá de como permitem que um incapaz comande uma companhia, surge como resposta
um coronel venal, com êle ligado a interêsses políticos e que tudo fará para
ocultar o fato. Fica portanto fechado o círculo que caracteriza a exceção,
mesmo porque, no fim, o tenente Woodruff ligará para o general Parsons
relatando as ocorrências anormais.
Abstraindo tôdas as consideracões enunciadas e, agora, encarando o filme
sob o aspecto da ação imediatamente correlacionada com a trama, pode-se dizer
que "Attack" é cinema no mais elevado nível, desde a apresentacão dos
letreiros até a derradeira cena. O capacete que rola a encosta e fustiga a flor
é um eficiente contraponto lírico à violência que se desencadeará e, por outro
lado, lembra em muito a passagem final de "Sem Novidade no Front", de
Lewis Milestone, quando Lew Ayres ao se esgueirar pela trincheira para apanhar
uma borboleta é alvejado pelo soldado inimigo. Daí em diante, é um puro clima
de guerra, estúpida, brutal, mas necessária, que virá a imperar.
A fim de conferir fôrça às imagens, principalmente nas sequências em
exteriores, torna -se quase tirânico o empenho de Aldrich sôbre o fotógrafo,
Joseph Biroc. Não há uma cena sequer que não obedeça a um rigoroso
aprimoramento visual, o enquadramento preciso, dentro de uma constante variação
nas tomadas, desde a vertical, como o trecho do jôgo de poquer até à quase
paralela ao solo, no avanço dos soldados contra o inimigo.
A compacta densidade dramatica, obtida mediante êsses recursos, cria uma
ambiência alucinante para o entrecho. Se não existe a configuração de um libelo
atuante, chega-se, em certo sentido, a um paroxismo do absurdo sartriano de
"Mortos Sem Sepultura". Nesta peça o que há de aterrador é o
sofrimento sem razão de ser daqueles presos que são submetidos a torturas para
confessar o que desconhecem. Aqui, é um grupo de soldados que deseja lutar, mas
cuja ârisia fica sufocada pelo conhecimento da imposibilidade em realizar pelo
menos um ataque que resulte em sucesso, em virtude da insana covardia de seu
comandante. Contra êle se insurgirá o tenente Costa (Jack Palance) cuja luta é
pelo direito. Costa, na realidade, corresponde a uma pura incarnação do
justiceiro e, quando no final morre, tôda a impressionante distorção de seu
rosto denota a dor em não ter podido cumprir a missão, à qual se propusera,
isto é, vingar-se do culpado pela trucidação de seus companheiros.
Os tanques (que, aliás, o realizador viu-se nas contingências de
comprar, já que o Exército negou-se terminantemente a auxiliá-lo para esta
película) representam também um papel marcante. Parecem seres vivos pelo modo
com que se locomovem ou, quando param, como se es tivessem a espreitar a prêsa
e, na sequência mais violenta, um dêles esmaga o braço de Jack Palance, que,
acuado, contra a parede encarava-o aterrorizado como se fôsse um monstro que
iria devorá-lo.
No que se refere ao tratamento emprestado ao personagem do capitão,
vivido por Eddie Albert, existe um certo excesso em caracterizar um homem
medroso. A interpretação carecia ele maior sobriedade, bem como o modo de
conceber certas reações deveria obedecer a um processo mais sutil. Em relação
aos métodos de equacionamento do impacto dramático, o ridículo, pelo que às
vêzes passam certas atitudes do personagem, é inteiraimente inaceitável.
Psicologicamente encarada, parece também estranha a moderação com que enfrenta
Costa, no momento em que êste se predispõe a cumprir o que prometera, isto é,
matá-lo.
Tal pormenor e as limitações para uma maior diretriz existentes no
argumento são as duas únicas lacunas que impedem que "Morte Sem
Glória", assim como "A Grande Chantagem", seja a obra-prima que
Robert Aldrich há muito tempo vem prometendo lançar. Porém, de qualquer forma,
sua filmografia se estende já com cinco realizações de indiscutível valor e, no
momento, talvez seja o cineasta de Hollywood que mais mereça nossa confiança,
devendo temer mesmo, nesse terreno, mais que os veteranos, os novos: o Charles
Laughton de "Mensageiro do Diabo", o Stanley Kubrick, de "O Grande
Golpe", ou um Gilbert S. Kay, de "The Three Bad Sisters".
Jornal do Brasil, 12/05/1957